Você está na página 1de 28

É proibido tocar os seios de mamãe

Uma ciranda de conversão histérica

autor: Benê Rodrigues

elenco:

figurino:

cenografia:

iluminação:

equipe pesquisadora:

direção:

assistência de direção:

OLHA – TE! SEM MEDO E ENFRENTA-TE!

1
POR QUE NÃO HÁ FUGA QUE SE ETERNIZE.
E NÃO HÁ CAMINHOS QUE TE LEVEM PARA LONGE DE TI.
ESTAREMOS SEMPRE PRENSADOS UM NO OUTRO.
E POR MAIS QUE TE SUFOQUES, QUE TE AMORDACES,
CHEGARÁ O DIA EM QUE ESTARÁS DIANTE DE TI MESMO.
E ME VERÁS SABENDO O QUE TU ÉS.
O QUÊ ESCONDES.
NÃO ADIANTE MUTILAR-ME POR QUE SOMOS UM SÓ.
OLHA-ME! DE FRENTE!
E ASSIM TE VERÁS COMO ÉS.
COMO JAMAIS ACEITASTES SER.
ÉS O DESEJO AMORDAÇADO, TENDO NAS MÃOS FACA DE POUCO
CORTE.
É A TI MESMO QUE SANGRAS.
CORPO – PORCO – SANTO – ENFERMO – PROCISSÃO.
É O TEU SANGUE QUE ESCORRE E QUE TORNAS A BEBER, PARA NÃO
MAIS SANGRAR.
MAS A FERIDA NÃO ESTANCA!
POR QUE NÃO ABRE PARA A VIDA OS TEUS DESEJOS?
POR QUE NÃO GRITAS PARA O MUNDO OS TEUS MEDOS?
NÃO. NÃO É DE OUTRO EU A VOZ QUE OUVES,
ESTA VOZ CALADA, FRIA, ENCARCERADA.
E A TUA VOZ, QUE NA ESCURIDÃO DO DE DENTRO, BUSCA-TE A TI.
E HÁ DE BUSCAR SEMPRE.
ENQUANTO UNIVERSO – VIDA EXISTIR.
E TU FORES MIGALHAS DAS SOMBRAS DE TI MESMO.

É proibido tocar os seios de mamãe


Uma ciranda de conversão histérica

2
RESIDÊNCIA DOS FREIRES. ALTA BURGUESIA. O CASAL ACABA DE
SAIR. A PORTA AINDA ESTÁ ABERTA. A CRIADA ÂNGELA, O
MORDOMO PEDRO E O MOTORISTA NINO ESTÃO IMÓVEIS, MEIO
ENFILEIRADOS, COMO QUE EM PARADA MILITAR.
DANIEL, FILHO DO CASAL FREIRE, ADOLESCENTE, 15 ANOS, COMO
UM GATO ESPREITA A TODOS. ÂNGELA FECHA A PORTA COM
CERTA VIOLÊNCIA. A POSTURA DE TODOS É QUEBRADA.
A FARSA TERMINOU...

ÂNGELA: (EXAGERANDO NA CARICATURA) Não abram a porta a


ninguém. Soltem os cães. Os assaltos são freqüentes. A cidade está infestada de
ladrões!

NINO: Os piores, os mais sujos acabaram de sair.

PEDRO: Isso quer dizer que jamais poderão entrar.

ÂNGELA: Lamento que os cães não estraçalhem as coxas desses porcos!

PEDRO: (COMO DR. FREIRE) E vigiem Daniel. Ele anda muito estranho.
Devem ser as más companhias.

NINO: Dele e da esposa, naturalmente.

PEDRO: (PARA NINO) Não sei por que o dispensaram. O Dr. Freire detesta
dirigir e a Dona Júlia vive bêbada.

NINO: Enquanto durmo no carro eles se divertem. Uns com as mulheres dos
outros.

PEDRO: Às vezes todos juntos.

ÂNGELA: Hoje deve ser da pesada. Nem testemunha permitiram.

NINO: Como se o que penso quisesse dizer alguma coisa para eles. (PAUSA)
Pedro, aquele vinho, safra 78... muitas garrafas na adega?

PEDRO: Muitas.

NINO: Se a gente abrisse uma, eles desconfiariam?


PEDRO: (SORRINDO) Bem... um descuido... deixei cair... Posso até cortar as
mãos. Parecerá mais convincente. Levo uma bronca, mas já estou acostumado.

ÂNGELA: Como eu!

3
NINO: Os bons cães sempre balançam o rabo, satisfeitos, quando levam
pontapés dos donos.

ÂNGELA: Mas a vontade que a maldita covardia silencia, é cravar-lhes os


dentes nas coxas.

PEDRO: Ver o sangue escorrendo, grosso, pesado, vermelho...

NINO: Dançar sobre suas cabeças, esmagá-las como se fossem cobras.

ÂNGELA: (IRÔNICA) Por que não vamos embora, já que os odiamos tanto?

PEDRO: Somos bem pagos. Só por isso.

NINO: A puta velha não me amedronta. O chifrudo do marido não me afeta.


São nuvens negras que passam.

PEDRO: Daniel, esse sim me assusta. Me assusta e me fascina. Com aqueles


olhos de touro no cio parece que nos desnuda a todos. Perto dele, diante de
tanta beleza, sinto vergonha de sempre ter sido tão feio, pobre e envelhecido.

NINO: Você sempre atraído por garotos!

PEDRO: Mas nesse são se toca. É se deixar cegar, lentamente, diante do


esplendor de tanto sol.

ÂNGELA: Um sol vermelho feito sangue.

PEDRO: Ardente como desejo!

NINO: Vamos, Pedro, vá fazer o que mandei! Traga logo esse vinho.

PEDRO: Não se exalte! (FRIO) Os que nos dão ordens já saíram.

PEDRO SAI PARA BUSCAR VINHO.

NINO: (PARA ÂNGELA) Hoje eu quero dormir com você!

ÂNGELA: Pode ser. Depois de alguns copos de vinho nunca digo não a
ninguém.

NINO: Você me atrai!

ÂNGELA: Sei disso. É o que os outros dizem também. E é só. Nem me esperam
vestir a roupa. Saio sempre sozinha dos motéis, ou me deixo ficar um pouco,
contando o dinheiro e rasgando a vida.

NINO: Com o patrão deve ganhar uma boa nota.

4
ÂNGELA: Nunca ficou excitado comigo. E isso o deixa agressivo, violento. É
degradante o que faz comigo nesses momentos, mas o que me paga compensa.
(PAUSA) Uma vez mencionou o seu nome. Perguntou se você já dormiu
comigo.

NINO: E você?

ÂNGELA: Disse que não. Que você sempre saía da minha cama assim que
acabava.

NINO: Isso podia me complicar, sua besta!

ÂNGELA: Nu como um porco, babando sobre o meu sexo, pedindo para que
eu descrevesse o seu corpo com detalhes, e do jeito mais vulgar a maneira como
você me usava, tudo isso na tentativa inútil de se excitar, você acha que
pensaria em causar-lhe algum dano?

NINO: E conseguiu?

ÂNGELA: Não. Só uma vez... Daniel.

NINO: Daniel?

ÂNGELA: Queria saber se Daniel me procurou alguma vez.

NINO: E já?

ÂNGELA: Daniel sente nojo de mim. E depois daquela noite mais ainda.

NINO: Você cantou o garoto?

ÂNGELA: Foi um dia de muita chuva. Ele ficou o dia todo trancado. Nem
desceu para almoçar. À noite entrei para arrumar o quarto. Pensei que ele tinha
saído na sua ronda noturna. Fiquei paralisada na porta. Nu diante do espelho,
se masturbava com a violência de um animal. O rosto contorcido, disforme. O
Dr. Freire quis saber como era o sexo do filho, as suas coxas...

NINO: E como é?

ÂNGELA: Nunca vi um adolescente com o corpo mais bonito. Bronzeado. Os


pêlos pareciam veludo, campos de trigo, uma camada rala, brilhante. Sexo de
homem naquele rosto de criança.

NINO: E ele não mandou você tirar a roupa?

5
ÂNGELA: Não! Ficou como que enlouquecido. Berrava como uma gaivota
enlouquecida: “Fora daqui, sua puta nojenta!”. Aquilo me feria e me excitava.
(PAUSA) Já entrou no quarto dele?

NINO: Não tenho essa regalia de circular pelos quartos, a não ser quando me
convidam.

ÂNGELA: Pelas paredes fotos mutiladas do pai e da mãe. Um santuário


mórbido. Como nós, ele também, todas as noites, assassina os porcos quando
sabem estar só.

NINO: E o Dr. Freire se excitou?

ÂNGELA: Pela primeira vez. Mas não me tocou. Apenas o sexo. Com violência.
Nem vi seus olhos. Era como se não os tivesse. Depois disso, nunca mais voltou
a falar com Daniel, mesmo durante as refeições.

NINO: Será que...

ÂNGELA: Não quero entender dessas coisas. São problemas de outro tipo de
pessoas. Nada tenho a ver com elas.

ENTRA PEDRO COM O VINHO.

PEDRO: Trouxe duas garrafas. Que seja dobrada a bronca e o porre.

NINO: Se algum de nós soubesse a magia de multiplicar esse vinho! (RI


DEBOCHADO) Acho que você vai sobrar no fim da festa, Pedro.

PEDRO: Se conseguir ficar bêbado o suficiente, será suportável.

ÂNGELA: Aqui estão os copos. Vamos à festa!

NINO ABRE AS GARRAFAS.


DANIEL SURGE, MANSAMENTE, COM UM SORRISO FRIO NA BOCA.

DANIEL: Não me convidam? Eu posso multiplicar o vinho!

TODOS FICAM PARALISADOS.

DANIEL: Pelo que pude entender tudo pra você tem um preço. Para ser aceito
nessa festa mambembe, ofereço as outras garrafas que restam na adega.

ÂNGELA: Pensei que estivesse...

DANIEL: Nunca durmo antes que amanheça. Deveriam ter percebido isso já
que são tão vigilantes. Quanto a mim, sei de todos os passos que dão nessa casa.
Nada escapa aos meus olhos de vidro.

6
PEDRO: Duas garrafas bastam. E ninguém ia beber tudo.

DANIEL: Ou tudo ou nada. Escolham!

NINO: Nada! (PAUSA) Vou para o meu quarto.

DANIEL: Desistiu de dormir com Ângela?

PESADO SILÊNCIO.

DANIEL: E as frustradas ereções de meu pai? As orgias de que participam.


(PAUSA) Vocês sabem demais sobre coisas que deveriam ficar lacradas no
corpo de cada um. Criados foram feitos para servir e calar. (PARA PEDRO)
Não tenha medo de olhar-me já que o fascino tanto. Seu rosto disforme não me
assusta. Os fantasmas do meu quarto são bem mais assustadores e não me
idolatram tanto.

ÂNGELA: Você ouviu tudo?

DANIEL: Sempre ouço tudo o que vocês sufocam.

PEDRO: Eu preciso deste emprego, Daniel.

DANIEL: Por isso mesmo devem obedecer-me. (PAUSA) Quanto ódio


acumulado nesses anos de subserviência. Como são simulados e hipócritas.

NINO: Eu não vou ficar!

DANIEL: Vai! Vai, sim! Sei de sua cumplicidade com a “puta velha”. O seu
papel é o mais sujo, mas a remuneração compensa. (SORRI) Somos todos sujos.
Apenas uns ganham mais do que os outros. (PAUSA. PARA NINO) Você está
planejando um casamento de rei com a garçonete descarnada da rua de baixo,
não está? Não é o que diz a Pedro?

ÂNGELA ENCARA NINO.


ELE A OLHA DESAJEITADO.

ÂNGELA: Tire esse fingimento ridículo do rosto, Nino. Você nunca me


prometeu nada. Sei bem o que sou.

DANIEL: (PARA PEDRO) Os moleques do bairro, os que freqüentam o


fliperama, tiram o maior sarro da bicha velha e escrota. Devia tomar mais
cuidado ou pagá-los melhor. Meus pais fazem questão da moral de seus
criados.

ÂNGELA: O que você quer da gente, Daniel?

7
DANIEL: Não sei! Talvez dentes trincando as minhas coxas e o sangue
escorrendo grosso, pesado, vermelho...

NINO: Não somos os cães de guarda de sua casa.

DANIEL: Claro que não. São covardes!

NINO: Daniel, tenho 30 anos. Comigo você não brinca.

DANIEL: (COMO SE NÃO OUVISSE) Para a festa que imagino existe


claridade em demasia. Se tudo em nossas vidas é penumbra, apaguem as luzes
e acendam os candelabros. As sombras sempre tornam tudo mais excitante e
perigoso. (OLHANDO A TODOS) Tirem do rosto essas expressões de palhaços
falidos. Hoje eu darei a vocês o direito de regar o espetáculo. Nada de meias
palavras.

PEDRO: E valerá tudo nesse espetáculo?

DANIEL: Tudo!

NINO: Eu estou de fora.

DANIEL: Você é o que mais quer. Sempre gostou de experimentar de tudo. É


um aventureiro. Um cigano. Não é o que diz?

NINO: (CÍNICO) Está bem! Eu aceito desde que nada seja poupado. Nem nós e
nem você.

DANIEL: É isso o que mais quero. Desde sempre! (PAUSA) Ângela, traga todos
os punhais da coleção de papai. Poderemos precisar deles.

ÂNGELA: Serei despedida e não me darão carta de recomendação. Tenho


uma...

DANIEL: (INTERROMPENDO) Já conheço a mediocridade de sua vida.


(SORRI) Não se preocupem. O palco estará limpo quando chegarem os donos
da companhia.

NINO: E se não estiver?

DANIEL: Darei um jeito. Se houver! (CÍNICO) Por favor, Ângela, vá fazer o


que “pedi”.

ÂNGELA OLHA A TODOS QUE ESTÃO COMO QUE FASCINADOS.


AFASTA-SE RAPIDAMENTE PARA BUSCAR OS PUNHAIS.

DANIEL: (PARA NINO) Tem alguma condição especial para jogar com a
gente?

8
NINO: Tenho! Não sei que espécie de jogo será, mas seja o que for, você será o
primeiro.

PEDRO: Quem decide é Daniel.

DANIEL: Ninguém irá decidir nada. Pela primeira vez vocês não serão
obrigados a obedecer ordens de ninguém. Seremos os donos de nossos destinos.
(SORRI) Espero que saibam aproveitar. (PAUSA) Será o que for. Como for
surgindo. E ninguém recuará. Ninguém! Essa será a única regra estipulada.
(PARA PEDRO) Vá buscar as outras garrafas de vinho. O álcool sempre torna
mais corajosos os lacaios.

PEDRO SAI.

DANIEL: (PARA NINO) Sua noiva é mesmo virgem?

NINO: Claro!

DANIEL: Como você é suburbano! Ângela já foi virgem um dia e também teve
um noivo.

NINO: Pior para ele se ele não era um suburbano como eu.

DANIEL: Por que quer que eu seja o primeiro?

NINO: Primeiro de quê?

DANIEL: Do que for.

NINO: Você não nos conhece a todos?

DANIEL: Pensei que preferisse Ângela.

NINO: Já é carne mordida. Gosto de experimentar carne fresca.

DANIEL: (SORRI) Isso veremos!

PEDRO E ÂNGELA VOLTAM COM OS PUNHAIS E O VINHO.

DANIEL: (PARA ÂNGELA) Distribua os punhais sobre a mesa. (PARA


PEDRO) Faça o mesmo com essas garrafas e acenda os candelabros. O tempo
escorre depressa demais!

NINO APROXIMA-SE DE DANIEL.

NINO: Deixa ver o seu braço.

9
DANIEL: Pra quê? Você sabe o que quer saber. E não é coisa pouca, não. Não
sou de beber de pouca água. Nunca!

NINO: Gostaria de experimentar dessas de primeira.

DANIEL: Tudo tem a sua hora. (RODEANDO A TODOS) Encham os copos!


(TODOS ENCHEM OS COPOS DE VINHO) A partir de agora seremos todos,
seremos o que tiver de ser. Bebam! E que surja entre nós o primeiro.

PEDRO: Quem?

DANIEL: (CRUEL) César! O da voz rouca que telefona sempre às 3 da tarde.

PEDRO: E eu?

DANIEL: Você será Pedro. O de sempre. Depois poderá ser eu, Ângela, Nino...
quem quiser!

DANIEL PULA BRUSCAMENTE NA FRENTE DE PEDRO COMO QUE


BARRANDO-LHE A PASSAGEM.

DANIEL: (COMO CÉSAR) Vamos! O relógio!

PEDRO: Não, por favor. Foi de meu pai. Ganhei pouco antes de sua morte.

DANIEL: Você é quem sabe. Sou de menor. Faço um puteiro aqui. Os grandes
vão acordar e ver o mordomo que tem.

PEDRO: Dou o dinheiro.

DANIEL: Mixaria não tô afins.

PEDRO: 5 mil.

DANIEL: Pouco!

PEDRO: Não tenho mais.

ÂNGELA E NINO ASSUMEM O DR. FREIRE E DONA JÚLIA.

ÂNGELA: Quem fala tão alto?

NINO: Algum bêbado. Este bairro está completamente desprotegido da


vigilância policial.

PEDRO: Fala baixo, César! Não posso perder esse emprego.

LADRAR DE CÃES.

10
ÂNGELA: Os cães estão soltos?

NINO: Pedro tem severas recomendações para soltá-los antes de dormir.

DANIEL: Vamos, bichona velha, o relógio.

PEDRO: 10!

DANIEL: Que seja.

PEDRO: E acabou. Não quero mais.

DANIEL: Quer. Quer sim! Você gosta disso.

PEDRO: Não me telefona mais. Eu chamo a polícia.

DANIEL: Chama mesmo? Tô pagando pra ver.

PEDRO: Sempre te dei a maior força.

DANIEL: E vai continuar dando. (PUXA OS CABELOS DE PEDRO PARA


TRÁS, INCLINANDO VIOLENTAMENTE SUA CABEÇA) Nem pense em
me fazer de otário. Apago sua vida do mapa. Vale merda mesmo.

PEDRO: (DANDO O DINHEIRO) Toma. Vou ficar sem um tostão.

DANIEL: Não reclama que a coisa engrossa. Da próxima vez levo o relógio.
Vale mais do que diz. Tô por dentro. (PAUSA) Os cães estão presos?

PEDRO ESTÁ ARRASADO. ÂNGELA CHAMA-O DA MESA COMO


DONA JÚLIA.

ÂNGELA: Sirva o almoço.

PEDRO: A Sra. não vai esperar os demais?

ÂNGELA: Desde quando, seu porco, dei-lhe o direito de fazer-me perguntas?

NINO APROXIMA-SE DE ÂNGELA.

NINO: O carro está a sua disposição, “Madame”.

ÂNGELA: Ponha outra roupa. Esse uniforme está imundo. Você não vai me
levar a nenhuma pizzaria, não.

NINO: Pensei que tivesse pressa.

11
ÂNGELA: Você não tem que pensar nada. Ande. Enquanto almoço dá tempo
de tomar um banho também. Não suporto esse cheiro de estábulo.

DANIEL APROXIMA-SE DE ÂNGELA.

DANIEL: Mamãe, preciso dizer-lhe uma coisa.

ÂNGELA: Agora não tenho tempo. (PARA NINO) Ande, Nino. O meu almoço
é rápido. Estou de regime.

DANIEL: É importante, mãe!

ÂNGELA: Desde quando você tem alguma coisa importante pra dizer?

DANIEL: Preciso de sua ajuda.

ÂNGELA: Na minha caixa de jóia tem dinheiro. Pegue algum, mas não facilite.
Sei quanto tem lá. E não ouse roubar algum de meus anéis.

DANIEL: Não uso jóias.

ÂNGELA: Mas precisa de dinheiro para os abortos, para os... “namorados”.

DANIEL: Não tenho namorados.

ÂNGELA: Claro que não. Namorados são para as outras. Você é apenas um
abrir e fechar de coxas.

NINO APROXIMA-SE DE ÂNGELA.

ÂNGELA: Isso! Melhorou um pouco.

NINO: Onde vamos hoje?

ÂNGELA: Ao Shopping Center de sempre.

NINO: Vou ter que esperar muito no carro?

ÂNGELA: Não sei. Depende do tempo que leve pra comprar o que quero.

NINO: Não irá demorar muito. A tarde é propícia para adolescentes.

OS COPOS DE VINHO SÃO CHEIOS POR TODOS. BEBEM.


DANIEL APROXIMA-SE DE NINO.

DANIEL: (COMO DONA JÚLIA) É capaz de lembrar a última vez que me


beijou?

12
NINO: (COMO DR. FREIRE) Foi na noite do nosso casamento. Eu estava
bêbado e odiava você.

DANIEL: Antes de irmos pra cama, trepei com um de seus amigos, no


banheiro.

NINO: Eu sei. Ele me contou. Rimos muito com isso. A cadela insaciável.

DANIEL: Beije-me! Agora!

NINO: É o que você quer?

DANIEL: (DÚBIO) E você?

NINO ERGUE DANIEL PELA CINTURA ATÉ FICAREM CARA A CARA.

NINO: Você é um pobre gatinho solitário.

DANIEL: Tenho tudo o que quero.

NINO: Nem tudo.

DANIEL: Quer ver? (BEIJA NINO LONGAMENTE, NO QUE É


CORRESPONDIDO. NINO DESCE DANIEL RAPIDAMENTE ATÉ O
CHÃO. DÁ-LHE UM VIOLENTO TAPA NO ROSTO)

PEDRO INTERVÉM COMO DR. FREIRE.

PEDRO: Não permito que encoste a mão em Daniel. Ele é meu filho. Só meu.

ÂNGELA: Ele é filho do homem que me currou no banheiro. Você nunca se


excitou comigo. Aquele homem maravilhoso possuía uma loucura fascinante.
Como Daniel. Você jamais conseguiria por dentro de mim alguém tão belo
quanto ele.

NINO, COMO PEDRO, APROXIMA-SE DE ÂNGELA.

NINO: Tenha piedade de seu filho. Ele está sangrando.

ÂNGELA: Também tenho sangrado, e muito, por ele.

NINO: Veja o que lhe fizeram!

DANIEL ESTÁ COM A ROUPA E O CORPO SUJOS DE VINHO,


SIMULANDO SANGUE.

13
ÂNGELA: Outra tentativa inútil de suicídio. (PARA PEDRO) Ângela, vá até o
quarto dele e limpe os vidros quebrados. Deve ter destruído tudo como sempre
faz. Não sei por que não se mata mesmo de uma vez! Isso é só pra chamar
atenção. (APROXIMA-SE DE NINO) Sabe que filme está passando lá no
Shopping? Detesto fitas italianas. Você sabe!

NINO: Nem sempre. Às vezes se demora olhando minhas coxas e o que tenho
entre as pernas.

ÂNGELA: Aproxime-se! Ande!

NINO APROXIMA-SE. ÂNGELA ACARICIA O SEXO DELE.

ÂNGELA: Sim. Às vezes. Quando quero brincar com os porcos.

PEDRO, COMO SE FOSSE DANIEL, PARA ÂNGELA.

DANIEL: Mamãe, voltará tarde?

ÂNGELA: Não sei. Quando me der vontade. Converse com Pedro. Pra alguma
coisa há de servir esse traste.

DANIEL DIRIGE-SE A PEDRO.

DANIEL: (COMO PEDRO) Pode falar, Daniel, o que quiser. Eu ouvirei pelo
tempo que for. Sei o quanto é triste não ter ninguém pra conversar.

PEDRO: (COMO DANIEL) Gosto tanto do seu olhar. Azul! (ACARICIA OS


CABELOS DE DANIEL) Seus cabelos parecem ouro. Tão brilhantes! Tão
macios!

DANIEL: Envelheci depressa demais. E ser velho é quase um crime para os


jovens de agora.

PEDRO: Você será eternamente jovem!

DANIEL: Só se morrer em plena juventude.

PEDRO: Seu desejo de encontrar alguém que o ame fará de você eternamente
uma criança.

DANIEL: Sedenta!

PEDRO: Descansa seu corpo sobre mim que eu amparo você.

DANIEL: Não posso! Seus pais são muito severos.

PEDRO: Eles não precisam saber.

14
DANIEL: Será que você conseguirá sentir pelo menos um pouco de ternura por
mim?

ÂNGELA E NINO SERVEM-SE DE VINHO.

ÂNGELA: Ela é bonita?

NINO: Você é mais mulher.

ÂNGELA: Meiga? Pura?

NINO: Dessas que foram feitas para um homem só.

ÂNGELA: Nunca sentiu amor por mim?

NINO: Não.

ÂNGELA: Desejo?

NINO: Melhor do que resolver-se sozinho ou ter que pagar.

ÂNGELA: Nunca sentiu nem mesmo... piedade?

NINO: Às vezes. Quando bebe é ridícula.

ÂNGELA: Todos os bêbados dão ridículos. Principalmente as mulheres que vão


envelhecendo solitárias.

NINO: Você me ama?

ÂNGELA: Não! Você ou qualquer outro, tento faz. Mas procuro, e queria tanto.

DANIEL SERVE-SE DE VINHO. NINO AFASTA-SE DE ÂNGELA. PEDRO


PASSA POR NINO QUE ASSUME UMA POSIÇÃO DE “PROFISSIONAL”.

PEDRO: (ESTENDENDO A MÃO PARA NINO) Como vai? Tudo bem?

NINO: (IGNORANDO A MÃO ESTENDIDA) Tá me seguindo por quê? Vai


se danar, coroa escroto. Vai levando, vai.

PEDRO: (DESCONCERTADO) Desculpe... pensei que conhecia você.

NINO: Não sou cachorro! Dá o fora! Some do pedaço ou vai levar umas
porradas.

15
PEDRO AFASTA-SE. É COMO SE ENTRASSE NUMA IGREJA. AJOELHA-
SE DIANTE DE UMA “IMAGEM”. DANIEL APROXIMA-SE. SENTA-SE
PERTO DE PEDRO.

DANIEL: (COMO MICHÊ) Bonito ter fé!

PEDRO: (VIRANDO O ROSTO PARA DANIEL) Você não tem nenhuma?

DANIEL: Fico dormindo aqui até que enxotem. Dá pra ter fé?

PEDRO: Conheço um hotel aqui perto. Nem precisa de documento seu não. Dá
pra gente dormir um pouco. Vamos?

DANIEL: E o resto, como é que fica?

PEDRO: Dá pra levar alguma se a cama for boa.

PEDRO E DANIEL SEPARAM-SE. PEDRO SERVE-SE DE VINHO.


ÂNGELA, COMO DONA JÚLIA, COMEÇA A GARGALHAR, SENTADA
NUM BANCO DE BARZINHO, COMO SE ESTIVESSE NUMA
LANCHONETE. NO BANCO AO LADO FAZ SENTAR-SE A CADELA
LAIKA. DANIEL APROXIMA-SE, SENTADO EM OUTRO BANCO. PEDRO
TORNA-SE O GARÇOM.

DANIEL: Um chees-salada e meia cerveja!

ÂNGELA COMEÇA A OLHAR, LASCIVA, PARA DANIEL. PROCURA


PARECER MAIS EMBRIAGADA DO QUE REALMENTE ESTÁ.

ÂNGELA: Como é, garotão? Quer um whisky?

DANIEL: (DISTANTE) Não, obrigado.

ÂNGELA: Eu pago. Não se preocupe. Estou convidando. Tenho muito


dinheiro. Sobrando. Posso pagar whisky pro mundo inteiro se quiser. Não
acredita? Quer ver minha bolsa? Olha, olha só! Está vendo essas jóias? São todas
verdadeiras, meu gatinho. Senta aqui, senta. Vem beber whisky comigo.

DANIEL: Obrigado. Prefiro cerveja.

ÂNGELA: (GARGALHANDO) Se bebo cerveja vou ao banheiro de 2 em 2


minutos. (PARA A CADELA LAIKA) Laika, senta direito senão não lhe dou
mais whisky. (RI) Ela já está muito bêbada.

DANIEL ESBOÇA UM SORRISO SEM GRAÇA.

ÂNGELA: Estou aborrecendo você?

16
DANIEL: Não... é que hoje não estou legal.

ÂNGELA: Coitadinho! Que olhar mais triste que ele tem! Senta aqui perto,
senta. Vem cá!

DANIEL: Já disse que prefiro ficar sozinho.

ÂNGELA: Estou convidando você pra sentar aqui comigo. Não precisa pensar
que é pra outra coisa, não. Sou casada! Tenho um filho lindíssimo, quase da sua
idade. É que eu gosto de conversar, fazer amizades...

DANIEL: Acontece que hoje eu estou péssimo. Naquela de curtir sozinho.

ÂNGELA: Então eu respeito. O que mais faço é respeitar a vontade dos outros.
Se você não quer conversar, não insisto. Mas pra quê ficar sozinho? Brigou com
a namorada?

DANIEL: (CADA VEZ MAIS NERVOSO) Não! Só não tô a fim de papo, falô?

ÂNGELA: (RI) Tá muito louco, né? Pensa que sou careta, é? Esse olhar não me
engana.

DANIEL: É! É isso aí, coroa. Tô muito louco mesmo.

ÂNGELA: Não precisa me agredir, meu bem! (RI IRÔNICA) Ainda sou tão
jovem! (PAUSA) Viajar sozinho não é uma boa, meu machinho. Olha, quando
você estiver assim... (DÁ UM TAPA NA CADELA) Quieta, Laika. Senta direito.
Direito eu disse! Quer mais whisky? Então toma. Mas não vá fazer escândalo,
hein? (BEBE WHISKY) Quando você estiver assim liga lá pra casa. Vou lhe dar
meu telefone... (GRITA) Garçom, me dá uma caneta. Anda logo, porra! Tá me
olhando assim por quê? (PARA DANIEL) Daí, a gente pode ir até o Pico do
Jaraguá. Passei a tarde inteira lá. Ainda nem fui pra casa. Estou de biquíni
ainda. (ERGUE A SAIA) Gostou? Até que dá pro gasto, não dá?

DANIEL: (PARA PEDRO) Como é, garçom? Esse chees sai ou não sai?

PEDRO: A casa tá cheia. Calma, rapaz!

ÂNGELA: (PARA LAIKA) Toma, Laika, bebe mais um pouco, mas vê se não
começa a agredir ninguém. Você fica muito agressiva quando está bêbada. (RI)
Como o mundo é grotesco! Como as pessoas são grotescas! (PARA DANIEL)
Olha a cara dessa gente. Olha bem! Tá olhando? Viu bem? Reparou todos os
detalhes? Agora faz de conta que tira uma fotografia deles. (FAZ O GESTO E O
SOM CARACTERÍSTICO) Veja agora eles parados, imóveis. Repare cada traço
dos rostos. (CARICATA) Que drama! (RI DEBOCHADO) Como são feios!
(SECA O RISO) Detesto gente feia! Se pudesse, matava todas. (RI) Olha só
aquele grupinho de suburbanos ali. Todos horrorosos! Bem dizem que os iguais
se juntam. (RI) Sou uma mulher livre! Saio quando e com quem quero. (ALTO)

17
Não sou desses bêbados de fim de semana, não! Tenho um filho e um marido.
Detesto os dois. E eles me detestam mais ainda. (BATE NA CADELA) Quieta,
praga! Não percebe que esses idiotas estão todos olhando pra você? (PARA
DANIEL) Gosto de jovens! (ENCARANDO-O BÊBADA) Quantos anos você
tem, meu amor?

DANIEL: 17.

ÂNGELA: (RI, LASCIVA) Hum! Maravilha! Senta aqui comigo. Eu não mordo,
não. Vamos sair daqui? Dinheiro não é problema pra mim.

DANIEL: Merda! (GRITANDO PARA O GARÇOM) Suspende esse chees,


porra!

ÂNGELA: Eu aborreci você?

DANIEL: Detesto bêbados. Tenho nojo de mulher bêbada. Você é ridícula!

ÂNGELA: (BEBENBO TODO O WHISKY DE UMA SÓ VEZ) Bebe, sua


cadela vulgar! Sua vira-lata de merda! Bebe, sua cadela bêbada no cio. (PARA
OS “PRESENTES” NA LANCHONETE) Estão olhando o que? Nunca viram
uma cadela de raça se embriagar de whisky? Seus mendigos de merda! Bêbados
de fim de semana. (AOS BERROS) Tá querendo beber mais, Laika? Pois você
vai beber. Mostra pra essa gente que você tem classe! Garçom! Dá mais uma
whisky pra minha cadela. Anda, seu babaca de merda!

DANIEL APROXIMA-SE DE PEDRO, COMO QUE ENTRANDO EM SEU


QUARTO.

DANIEL: (COMO MICHÊ) Legal seu mocó!

PEDRO: Por que você deixou aquele travesti jogar cerveja na sua cara e te
escorraçar do bar?

DANIEL: Cê não viu a patola da bicha? Sô besta de reagir! A cara dele é um


taio só de navalha. Só vive metida em treta. Anda tarada pra deixar todo
mundo fodido igual ela.

PEDRO: Você ficou um cordeirinho. Abaixou a cabeça e se mandou. (PAUSA)


Quase compre a briga.

DANIEL: Cuidado. Cê é turista no pedaço. Te cuida que andam de olho no teu


relógio. Se marca, dança bonito. Tiram até sua calça.

PEDRO: Por que tanta bronca de você daquele jeito? Parece ser um bom
menino!

DANIEL: Depende. Bem... é que eu fiz sacanagem com a bicha.

18
PEDRO: Que tipo de sacanagem?

DANIEL: Ela vivia me cantando. Não topo travesti. Uma madruga, o


movimento tava fraco, não tinha descolado nenhum barão... o pedaço tava
russo de otário...

PEDRO: O otário de hoje sou eu?

DANIEL: Cê é gente fina! Aquela bicha é muito da escrota. Depois de muito


léro a gente acertou o preço. Pô, meu! Puta mão de obra pra descolá uma
mixaria. Fui no apê dela. A amiga tava curtindo uma cana por causa dos
bagulho. Daí, ela foi tomar banho, se perfumar, passa talco na bundinha, essas
frescuras de bicha. Aproveitei pra dar uma geral. Dentro de um vaso achei uns
trôco. Uns dez pau, mais ou menos. Enfurnei dentro a meia. Tava a fim de me
picar, mas não deu outra. Tive que comer a bicha, de meia e tudo que não sô
besta. Fiz um esforço pra ficar de pau duro que só vendo. Não tirava da idéia
uma boazuda, artista de cinema, que não sei falar o nome, pra ver se a
ferramenta endurecia. Depois da batalha falei que tinha de ir embora e outros
que tais. A bicha ficou uma vara. Tinha gostado e pensou que ia ter mais de
manhã. Qualé? Meu cacete não tá em liquidação. Paga um e quer levar dois.
Nem gozar eu gozei. Ganhei a minha mixaria e me piquei. Sumi do pedaço um
bom tempo. Comprei uma camisa jóia, um tênis legal que não dá chulé e me
mandei pro Rio. A maré no começo tava boa, apesar da concorrência dos
argentinos. Daí, maré vazou, movimento caiu e eu voltei pra casa da véia que já
tinha ido em tudo quanto é juizado de menor pensando que tinham me
apagado do mapa. O resto? Fazer ponto no lugar de sempre, né?

PEDRO: Então a bicha tinha razão em querer o troco?

DANIEL: Ela vivia insistindo. Chegou até a espalhar no pedaço que eu era
viado.

PEDRO: Vai aliviar alguma coisa aqui também? Não tem o quê?

DANIEL: Cê me tratou como gente. Não vou fazer sacanagem, não.

PEDRO: Quantos anos você tem?

DANIEL: 17.

PEDRO: 17 anos! Seu eu tivesse dinheiro adotava você.

DANIEL: Tenho pai. Que graça!

PEDRO: Modo de dizer. Cuidava de você. Podia até morar comigo. Pagava
seus estudos. Seria um médico muito famoso.

19
DANIEL: Arquiteto! Fazer dessas casa granfa.

PEDRO: Comprava uma dúzia de camisas.

DANIEL: (SORRINDO, SONHADOR) Que exagero! Umas três tava bom.

PEDRO: De seda.

DANIEL: De seda, não. Só viado gosta. Queria dessas camiseta jóia que boy de
motoca usa.

PEDRO: O que você quisesse.

DANIEL: Tá falando sério? Posso mesmo morar aqui? Lá em casa é uma barra.
Não dá pra agüentar.

DANIEL: (CRUEL) Tudo isso é conversa mole, garoto. Não percebeu ainda?
Ora, você não é nenhum ingênuo, Pedro Henrique, e eu não passo de uma bicha
velha, curtindo o maior pileque. (PAUSA) E depois, como é que vou explicar a
sua presença aqui?

DANIEL: Diz que sou seu sobrinho.

PEDRO: Eles sabem que não tenho família.

DANIEL: Inventa outra.

PEDRO: Eles sabem quando minto.

DANIEL: E daí, se eu posso te fazer feliz?

PEDRO: (SORRI, AMARGO) Me fazer feliz? Essa foi a maior piada da noite.
Como se isso ainda fosse possível.

DANIEL: Já entendi. Cê quer só pra hoje, né?

PEDRO: Depende de você.

DANIEL: Então, quando a gente se vê de novo?

PEDRO: É só marcar.

DANIEL: Então dá teu telefone.

PEDRO: Eu passo lá no pedaço.

20
DANIEL: Tô sacando! A estória de sempre. Tudo bem! A gente tá nessa vida
pra isso mesmo. (PAUSA. TENTA A ÚLTIMA CARTADA) Você não ia se
arrepender. Sou bom de cama. Todo mundo fala.

PEDRO: Sei disso. Dá pra saber só de te olhar. (PAUSA. ACARICIA OS


CABELOS DE DANIEL) Me beija?

DANIEL: (ESQUIVANDO-SE) Olha, sou cabrêro meio com esse negócio de


beijar viado. O resto, tudo bem. No capricho. Não vai se arrepender.

PEDRO: Pelo menos você toca o meu corpo com as suas mãos ou é pedir
muito?

DANIEL: Sem muito amasso.

PEDRO: Por quê?

DANIEL: Não tenho tesão.

PEDRO: Só mesmo pela grana?

DANIEL: Achei você legal.

PEDRO: (SORRI, IRÔNICO) Não mereço nem um pouco de carinho e você


ainda disse que podia me fazer feliz.

DANIEL: Cê regulou. Depois, se fosse uma mina!

PEDRO: Então é só virar e tudo bem?

DANIEL: Não é o que você quer?

PEDRO: Não! Não é só isso.

DANIEL: Se não tá mais afins eu posso me mandar. (PAUSA) Os cães estão


presos?

PEDRO: Fica! Já é tarde e eu não tenho mais saco pra sair por aí e pagar outro
que faça o que eu mandar.

DANIEL: Então abaixa as calça.

PEDRO: Não vai se despir?

DANIEL: Tudo bem! Mas sem sacanagem. Cê tá muito bodeado.

PEDRO: Nem tanto.

21
DANIEL: Apago a luz o quer no claro?

PEDRO: Apaga. Fica melhor pra você.

ÂNGELA ASSUME A POSTURA DE DONA JÚLIA.

ÂNGELA: Pedro, é a segunda vez que falo e você não me ouve. Está de ressaca
pra variar.

PEDRO: Eu não bebo, madame.

ÂNGELA: Bebe! Não me contrarie ou o despeço sem direito a nada. Você bebe
e é humilhado nas lanchonetes pelos jovens. (PAUSA) Os cães estavam presos
quando chegamos esta manhã. Esqueceu de soltá-los antes de dormir? Você não
lê os jornais? Não sabe dos assaltos? Famílias inteiras assassinadas. Por acaso
está de cumplicidade com esses marginais?

PEDRO: Trabalho com vocês há 17 anos.

ÂNGELA: Que horas são?

PEDRO: (EMBARAÇADO) Perdi meu relógio.

ÂNGELA: É o terceiro relógio que perde em menos de um ano.


(IRRITADÍSSIMA) Pare de me olhar com essa cara de cão sem dono. Vá
cuidar de sua obrigação.

PEDRO AFASTA-SE. ÂNGELA, AINDA COMO DONA JÚLIA, SENTA-SE


NO SOFÁ, COMO QUE CONVERSANDO COM SUA VELHA IRMÃ.

ÂNGELA: Ando preocupada com Daniel. Ele deita-se comigo e eu noto que sua
respiração vai se tornando ofegante. Tem cinco anos, mas parece um homem
com desejo. Lentamente sinto suas mãozinhas irem timidamente acariciando
meus braços, até pousarem quentes e quietas sobre os meus seios. Fico imóvel.
Continuo contando a estória que sei que ele já não ouve mais. (VAI SE
TORNANDO OFEGANTE, SENSUAL) Aos poucos, suas mãos já sem medo,
começam a apertar os meus seios, e o que antes era casto, vai se tornando
violento, obsceno, animal.

PEDRO ASSUME O PAPEL DA VELHA TIA.

PEDRO: Daniel, venha aqui. Precisamos conversar.

DANIEL: Não quero conversar com você. Parece aquelas estátuas defeituosas
dos cemitérios.

22
PEDRO: Não fale assim comigo, Daniel. Sou sua tia e Deus habita o meu
coração e comando minhas palavras. (PUXANDO DANIEL) Sente-se aqui.
Quero lhe contar uma estória.

DANIEL: Não quero. Você não sabe contar estórias. Somente as mulheres
bonitas como mamãe sabem contar estórias.

PEDRO: (EMPURRANDO DANIEL) Sente-se! Estou mandando e você tem de


obedecer-me. (PAUSA) Vou lhe falar através de parábolas como fazia o Senhor.
(PAUSA) Não sei sua mãe já lhe contou essa estória. (SORRI, SARCÁSTICA) É
claro que não! Mas você precisa saber. Para sua salvação. É a estória de um
menino que não sabia que era pecado acariciar os seios de sua mãe. Ele fazia
isso sempre. Sempre! Uma noite, estava sozinho em seu quarto escuro, quase
dormindo, quando começou a ouvir ruídos estranhos. Através da pouca
claridade pode perceber que negros porcos selvagens iam entrando em seu
quarto, com enormes presas, grunhindo alucinadamente. O menino quis gritar,
mas a voz estava muda na garganta. Quis se mover e não conseguiu. Os olhos
do menino em pânico, esbugalhados. Os porcos foram se aproximando e
começaram a devorá-lo, lentamente, começando pelas mãos, até que ele,
esquartejado, ficou uma massa disforme sobre a cama ensangüentada.

DANIEL: Pare com isso! No meu quarto nunca entrarão porcos selvagens. Eu
tranco a porta a chave. E na cidade não existem porcos.

PEDRO: Não eram porcos selvagens, seu idiota. Era o demônio, que toma a
forma que quer e entra em qualquer lugar. Transforma-se em legiões de porcos
selvagens para devorar o pecado de meninos pervertidos e imorais como você.

DANIEL: (ARRANHANDO O ROSTO DE PEDRO) Mentira! Não existe


Deus. Não existe Diabo. Existem vocês que são piores que eles.

NINO ASSUME O PAPEL DO DR. FREIRE.

NINO: Daniel, o que está acontecendo?

PEDRO: Esse delinqüente arranhou minha cara.

NINO: (TIRANDO O CINTO) Ande, peça desculpas a sua tia.

DANIEL: Nunca! Não vou pedir desculpas. Vocês é que são os porcos da
estória que ela me contou. Vocês é quem são o demônio que se transforma
naquilo que quer. Vivem entrando no meu quarto e me devoram pouco a
pouco, pedaço por pedaço, minha cabeça, meus pensamentos, minhas vontades.
Eu odeio vocês! Demônios! Jamais toquei os seios de mamãe. É mentira dela. Eu
sei que é proibido tocar os seios de mamãe desde que nasci. Nunca fiz isso.
Tenho nojo daquela mulher. Nojo!

23
DANIEL CORRE PARA UM CANTO DA SALA. É BARRADO POR
ÂNGELA.

ÂNGELA: Agora eu!

DANIEL: Quem é você?

ÂNGELA: A criada. A vaca. A puta. Aquela de quem você tem nojo.

DANIEL: Não podemos ser nós mesmos por livre escolha.

ÂNGELA: Foi o que fizemos o tempo todo. (PAUSA. ABRE A BLUSA) Aperte
meus seios! Com força! Com ódio! (BEM PRÓXIMA DE DANIEL) Como se eu
fosse sua mãe, então! (COMO DONA JÚLIA) Daniel, meu querido, não sei
quem foi que disse essa bobagem que é proibido tocar os seios de mamãe. Isso
não é verdade. Vem! Mata sua sede! Vem!

DANIEL RECOMPÕE-SE COMO NINO.

DANIEL: Estou noivo. Eliana ela se chama. Virgem, de coxas brancas. Pura de
homem. Treme como trigo ao sabor do vento quando roço minha boca no seu
pescoço. Mas não vou além disso. Sei que será só minha. Antes disso, as outras.
Como você. Depois lavo-me bem para não correr o risco de sujar o sangue da
futura mãe de meus filhos.

PEDRO, COMO O PIVETE CÉSAR, APROXIMA-SE DE DANIEL.

PEDRO: Vamos lá, velhote, o relógio!

DANIEL: Outro mais esperto levou.

PEDRO: Então me dá a grana.

DANIEL: Chega! O velho escroto cansou de ser explorado.

PEDRO: Olha que faço uma zona aqui!

DANIEL: Experimente!

NINO APROXIMA-SE DE DANIEL COMO SE FOSSE UM DOS MICHÊS


DE PEDRO.

NINO: Conseguiu o pó?

DANIEL: (COMO PEDRO) Foi difícil, mas consegui. Não muito pra não dar na
vista.

NINO: Quem foi essa boa alma que facilitou a caridade?

24
DANIEL: Roubei de Daniel.

NINO: Não sabia que o garotão era chegado. Ele já andou por aqui?

DANIEL: Claro que não! Daniel é filho dos patrões.

NINO: Também sou filho de patrões!

DANIEL: Mas não dos meus.

NINO: Que quarto mórbido! Como você consegue dormir aqui?

DANIEL: Não é assim tão mórbido, é? Procurei dar um jeito, o melhor que
pude, pra esperar você. Até roubei essas flores no jardim proibido, só pra te
agradar.

NINO: Deixam um cheiro de velório no ar.

DANIEL: Vai dormir aqui, não vai?

NINO: Sofro de uma maldita insônia e aqui realmente não dá pé. É o mesmo
que dormir num cemitério.

DANIEL: Mas você prometeu que se eu arrumasse o pó...

NINO: Que é isso? Vamos mostrar que você é um coroa bonzinho,


compreensivo e que confia no garotão aqui. Me dá o pó, numa boa, eu dou um
giro com a turma e, na próxima, se você conseguir mais do que essa amostra
grátis, eu até posso pensar em dormir no castelo do conde Drácula e deixar que
ele me chupe um pouquinho. (PAUSA) Os cães estão presos?

DANIEL: Não! Dessa vez eu os deixei soltos!

DANIEL TORNA-SE O PIVETE CÉSAR.

PEDRO: (PARA DANIEL) César, cai fora!

DANIEL: Não antes do prometido.

PEDRO: Você não leva mais nenhum tostão de mim. Cansei de ser explorado.

DANIEL: Não banque o valente que você se estrepa. Acabo com a sua lata!

PEDRO: (PEGANDO UM PUNHAL) Experimente!

DANIEL VIRA-SE RAPIDAMENTE PARA NINO, ASSUMINDO DONA


JÚLIA.

25
DANIEL: Italiano imundo! Quando eu chamar não demore. Abra a camisa!
Quero ver esse corpo forte!

NINO: Seu cheiro me enoja, Daniel! (PEGANDO UM PUNHAL) Agora sou eu


quem vai brincar. Vamos! Tire a roupa!

DANIEL: (AINDA COMO DONA JÚLIA) Não se atreva! Eu grito! Chamo a


polícia! (PAUSA. OLHANDO A TODOS) Mas o que é isso? Uma revolta?
Vocês estarão perdidos se ousarem fazer alguma coisa contra mim.

NINO: Acabou a brincadeira, Daniel. Tire a roupa, já disse! (EMBRIAGADO)


Quero ver esse corpo que você sempre negou a todos e que tanto nos excita.

DANIEL: (COMO ELE MESMO) Então é isso! Você me deseja tanto quanto
“eles”. Todos ansiavam ver meu corpo nu, meu sexo. Satisfazerem seus
instintos da maneira que for, fazendo de mim homem ou mulher. (PAUSA.
FRIO) Não precisam de punhais. Se eu brinquei com vocês até agora, vestido,
também posso brincar nu. (VAI TIRANDO A ROUPA, LENTAMENTE)
Olhem! Devagar! Saciem a sede por que depois será muito mórbido um corpo
ensangüentado, furado 17 vezes. (DESAFIANTE) Aproximem-se! Toquem-me
antes de usarem os punhais. Eles estão bem afiados? Não gostaria que minha
carne resistisse ao corte. Quem irá me apunhalar primeiro? Pedro? Nino?
Ângela? (PRÓXIMO DELES) Vamos, usem os punhais em mim, em Daniel, o
duende brincalhão de seus sonhos.

PEDRO: Não, você não é Daniel. Você é Pedro. O velho, o escroto, o solitário,
pagando moleques desocupados para lhe cuspirem na cara só pra não se sentir
tão sozinho.

ÂNGELA: Você é Ângela. A que serviu de pasto para todos os patrões e para
todos os seus filhos e criados. A mulher que nunca amou ninguém. Só uma vez!
E durou dois dias. Ele morreu, não foi? É melhor dizer que ele morreu do que
constatar que faz cinco anos que ficou de voltar no dia seguinte.

DANIEL: Não! Eu sou Daniel. Aquele que morre com 17 anos. Antes de
envelhecer. Antes de servir de pasto. Antes de ser usado. Morro jovem, belo,
viril e desejado. Sempre tive o que vocês jamais ousaram ter. (DIRETAMENTE
A PEDRO) Por que não começa você que de todos nós é o mais desgraçado?

PEDRO: Eu não o magoaria nunca!

DANIEL: Estou dando uma oportunidade pra vocês mudarem suas vidas.
Aproveitem.

ÂNGELA: A sua morte não mudará nada.

DANIEL: Seria um começo.

26
ÂNGELA: O que você quer é compensar o seu vazio através do nosso ódio.
Mas eu lhe nego meu ódio.

DANIEL: Será que nem isso vocês conseguem mais?

ÂNGELA: Dar o que você procura seria um ato de amor. Você continuará
buscando, Daniel. Insaciável!

PEDRO: Vamos embora por que os punhais me fascinam.

NINO: Ainda não. É cedo! É preciso mergulhar um pouco mais na lama.


(TEMPO. PARA OS OUTROS, VIOLENTO) Vamos, parasitas de merda!
Vamos acabar com essa raça!

ÂNGELA E PEDRO AGARRAM DANIEL.

NINO: Deitem-no aqui. (INDICA A MESA) Não irá doer muito, Daniel. Só um
pouco. Mas a distância entre a vida e a morte é muito breve. Basta apenas um
salto.

LEVANTAM DANIEL PARA O ALTO. DEITAM-NO SOBRE A MESA.


PEDRO AFASTA OS CABELOS DO ROSTO DE DANIEL. INCLINA-SE
PARA BEIJÁ-LO NA BOCA.

DANIEL: (CUSPINDO NO ROSTO DE PEDRO) Prefiro os punhais! É mais


excitante.

PEDRO: Vamos! Agora! Vamos dar fim nesse porco.

ERGUEM OS PUNHAIS. SOM DE CARRO CHEGANDO. EXPECTATIVA.


OS PUNHAIS ESTÃO IMÓVEIS NO ALTO. OLHAM-SE. COM
VIOLÊNCIA ELES CRAVAM OS PUNHAIS NA MESA, EM TORNO DE
DANIEL. TEMPO. DANIEL, ENTRE OS PUNHAIS, VAI LEVANTANDO-
SE, LENTAMENTE.

DANIEL: Ângela, leve Nino para o seu quarto. Agora, mais do que nunca ele
precisa de uma mulher. (PAUSA) Pedro, jogue fora as flores murchas do seu
quarto. Elas sempre serão murchas. (PAUSA) Outra noite qualquer
continuaremos de onde paramos. (COM OS OLHOS FIXOS NA PORTA,
SORRI, ENIGMÁTICO) Ou pode ser que continue agora, se os porcos que
chegam estiverem bêbados o suficiente.

BLACK-OUT

27
FIM

1983

28

Você também pode gostar