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POR QUE NÃO HÁ FUGA QUE SE ETERNIZE.
E NÃO HÁ CAMINHOS QUE TE LEVEM PARA LONGE DE TI.
ESTAREMOS SEMPRE PRENSADOS UM NO OUTRO.
E POR MAIS QUE TE SUFOQUES, QUE TE AMORDACES,
CHEGARÁ O DIA EM QUE ESTARÁS DIANTE DE TI MESMO.
E ME VERÁS SABENDO O QUE TU ÉS.
O QUÊ ESCONDES.
NÃO ADIANTE MUTILAR-ME POR QUE SOMOS UM SÓ.
OLHA-ME! DE FRENTE!
E ASSIM TE VERÁS COMO ÉS.
COMO JAMAIS ACEITASTES SER.
ÉS O DESEJO AMORDAÇADO, TENDO NAS MÃOS FACA DE POUCO
CORTE.
É A TI MESMO QUE SANGRAS.
CORPO – PORCO – SANTO – ENFERMO – PROCISSÃO.
É O TEU SANGUE QUE ESCORRE E QUE TORNAS A BEBER, PARA NÃO
MAIS SANGRAR.
MAS A FERIDA NÃO ESTANCA!
POR QUE NÃO ABRE PARA A VIDA OS TEUS DESEJOS?
POR QUE NÃO GRITAS PARA O MUNDO OS TEUS MEDOS?
NÃO. NÃO É DE OUTRO EU A VOZ QUE OUVES,
ESTA VOZ CALADA, FRIA, ENCARCERADA.
E A TUA VOZ, QUE NA ESCURIDÃO DO DE DENTRO, BUSCA-TE A TI.
E HÁ DE BUSCAR SEMPRE.
ENQUANTO UNIVERSO – VIDA EXISTIR.
E TU FORES MIGALHAS DAS SOMBRAS DE TI MESMO.
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RESIDÊNCIA DOS FREIRES. ALTA BURGUESIA. O CASAL ACABA DE
SAIR. A PORTA AINDA ESTÁ ABERTA. A CRIADA ÂNGELA, O
MORDOMO PEDRO E O MOTORISTA NINO ESTÃO IMÓVEIS, MEIO
ENFILEIRADOS, COMO QUE EM PARADA MILITAR.
DANIEL, FILHO DO CASAL FREIRE, ADOLESCENTE, 15 ANOS, COMO
UM GATO ESPREITA A TODOS. ÂNGELA FECHA A PORTA COM
CERTA VIOLÊNCIA. A POSTURA DE TODOS É QUEBRADA.
A FARSA TERMINOU...
PEDRO: (COMO DR. FREIRE) E vigiem Daniel. Ele anda muito estranho.
Devem ser as más companhias.
PEDRO: (PARA NINO) Não sei por que o dispensaram. O Dr. Freire detesta
dirigir e a Dona Júlia vive bêbada.
NINO: Enquanto durmo no carro eles se divertem. Uns com as mulheres dos
outros.
NINO: Como se o que penso quisesse dizer alguma coisa para eles. (PAUSA)
Pedro, aquele vinho, safra 78... muitas garrafas na adega?
PEDRO: Muitas.
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NINO: Os bons cães sempre balançam o rabo, satisfeitos, quando levam
pontapés dos donos.
ÂNGELA: (IRÔNICA) Por que não vamos embora, já que os odiamos tanto?
NINO: Vamos, Pedro, vá fazer o que mandei! Traga logo esse vinho.
ÂNGELA: Pode ser. Depois de alguns copos de vinho nunca digo não a
ninguém.
ÂNGELA: Sei disso. É o que os outros dizem também. E é só. Nem me esperam
vestir a roupa. Saio sempre sozinha dos motéis, ou me deixo ficar um pouco,
contando o dinheiro e rasgando a vida.
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ÂNGELA: Nunca ficou excitado comigo. E isso o deixa agressivo, violento. É
degradante o que faz comigo nesses momentos, mas o que me paga compensa.
(PAUSA) Uma vez mencionou o seu nome. Perguntou se você já dormiu
comigo.
NINO: E você?
ÂNGELA: Disse que não. Que você sempre saía da minha cama assim que
acabava.
ÂNGELA: Nu como um porco, babando sobre o meu sexo, pedindo para que
eu descrevesse o seu corpo com detalhes, e do jeito mais vulgar a maneira como
você me usava, tudo isso na tentativa inútil de se excitar, você acha que
pensaria em causar-lhe algum dano?
NINO: E conseguiu?
NINO: Daniel?
NINO: E já?
ÂNGELA: Daniel sente nojo de mim. E depois daquela noite mais ainda.
ÂNGELA: Foi um dia de muita chuva. Ele ficou o dia todo trancado. Nem
desceu para almoçar. À noite entrei para arrumar o quarto. Pensei que ele tinha
saído na sua ronda noturna. Fiquei paralisada na porta. Nu diante do espelho,
se masturbava com a violência de um animal. O rosto contorcido, disforme. O
Dr. Freire quis saber como era o sexo do filho, as suas coxas...
NINO: E como é?
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ÂNGELA: Não! Ficou como que enlouquecido. Berrava como uma gaivota
enlouquecida: “Fora daqui, sua puta nojenta!”. Aquilo me feria e me excitava.
(PAUSA) Já entrou no quarto dele?
NINO: Não tenho essa regalia de circular pelos quartos, a não ser quando me
convidam.
ÂNGELA: Pela primeira vez. Mas não me tocou. Apenas o sexo. Com violência.
Nem vi seus olhos. Era como se não os tivesse. Depois disso, nunca mais voltou
a falar com Daniel, mesmo durante as refeições.
ÂNGELA: Não quero entender dessas coisas. São problemas de outro tipo de
pessoas. Nada tenho a ver com elas.
DANIEL: Pelo que pude entender tudo pra você tem um preço. Para ser aceito
nessa festa mambembe, ofereço as outras garrafas que restam na adega.
DANIEL: Nunca durmo antes que amanheça. Deveriam ter percebido isso já
que são tão vigilantes. Quanto a mim, sei de todos os passos que dão nessa casa.
Nada escapa aos meus olhos de vidro.
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PEDRO: Duas garrafas bastam. E ninguém ia beber tudo.
PESADO SILÊNCIO.
DANIEL: Vai! Vai, sim! Sei de sua cumplicidade com a “puta velha”. O seu
papel é o mais sujo, mas a remuneração compensa. (SORRI) Somos todos sujos.
Apenas uns ganham mais do que os outros. (PAUSA. PARA NINO) Você está
planejando um casamento de rei com a garçonete descarnada da rua de baixo,
não está? Não é o que diz a Pedro?
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DANIEL: Não sei! Talvez dentes trincando as minhas coxas e o sangue
escorrendo grosso, pesado, vermelho...
DANIEL: Tudo!
NINO: (CÍNICO) Está bem! Eu aceito desde que nada seja poupado. Nem nós e
nem você.
DANIEL: É isso o que mais quero. Desde sempre! (PAUSA) Ângela, traga todos
os punhais da coleção de papai. Poderemos precisar deles.
DANIEL: (PARA NINO) Tem alguma condição especial para jogar com a
gente?
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NINO: Tenho! Não sei que espécie de jogo será, mas seja o que for, você será o
primeiro.
DANIEL: Ninguém irá decidir nada. Pela primeira vez vocês não serão
obrigados a obedecer ordens de ninguém. Seremos os donos de nossos destinos.
(SORRI) Espero que saibam aproveitar. (PAUSA) Será o que for. Como for
surgindo. E ninguém recuará. Ninguém! Essa será a única regra estipulada.
(PARA PEDRO) Vá buscar as outras garrafas de vinho. O álcool sempre torna
mais corajosos os lacaios.
PEDRO SAI.
NINO: Claro!
DANIEL: Como você é suburbano! Ângela já foi virgem um dia e também teve
um noivo.
NINO: Pior para ele se ele não era um suburbano como eu.
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DANIEL: Pra quê? Você sabe o que quer saber. E não é coisa pouca, não. Não
sou de beber de pouca água. Nunca!
PEDRO: Quem?
PEDRO: E eu?
DANIEL: Você será Pedro. O de sempre. Depois poderá ser eu, Ângela, Nino...
quem quiser!
PEDRO: Não, por favor. Foi de meu pai. Ganhei pouco antes de sua morte.
DANIEL: Você é quem sabe. Sou de menor. Faço um puteiro aqui. Os grandes
vão acordar e ver o mordomo que tem.
PEDRO: 5 mil.
DANIEL: Pouco!
LADRAR DE CÃES.
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ÂNGELA: Os cães estão soltos?
PEDRO: 10!
DANIEL: Não reclama que a coisa engrossa. Da próxima vez levo o relógio.
Vale mais do que diz. Tô por dentro. (PAUSA) Os cães estão presos?
ÂNGELA: Ponha outra roupa. Esse uniforme está imundo. Você não vai me
levar a nenhuma pizzaria, não.
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ÂNGELA: Você não tem que pensar nada. Ande. Enquanto almoço dá tempo
de tomar um banho também. Não suporto esse cheiro de estábulo.
ÂNGELA: Agora não tenho tempo. (PARA NINO) Ande, Nino. O meu almoço
é rápido. Estou de regime.
ÂNGELA: Desde quando você tem alguma coisa importante pra dizer?
ÂNGELA: Na minha caixa de jóia tem dinheiro. Pegue algum, mas não facilite.
Sei quanto tem lá. E não ouse roubar algum de meus anéis.
ÂNGELA: Claro que não. Namorados são para as outras. Você é apenas um
abrir e fechar de coxas.
ÂNGELA: Não sei. Depende do tempo que leve pra comprar o que quero.
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NINO: (COMO DR. FREIRE) Foi na noite do nosso casamento. Eu estava
bêbado e odiava você.
NINO: Eu sei. Ele me contou. Rimos muito com isso. A cadela insaciável.
PEDRO: Não permito que encoste a mão em Daniel. Ele é meu filho. Só meu.
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ÂNGELA: Outra tentativa inútil de suicídio. (PARA PEDRO) Ângela, vá até o
quarto dele e limpe os vidros quebrados. Deve ter destruído tudo como sempre
faz. Não sei por que não se mata mesmo de uma vez! Isso é só pra chamar
atenção. (APROXIMA-SE DE NINO) Sabe que filme está passando lá no
Shopping? Detesto fitas italianas. Você sabe!
NINO: Nem sempre. Às vezes se demora olhando minhas coxas e o que tenho
entre as pernas.
ÂNGELA: Não sei. Quando me der vontade. Converse com Pedro. Pra alguma
coisa há de servir esse traste.
DANIEL: (COMO PEDRO) Pode falar, Daniel, o que quiser. Eu ouvirei pelo
tempo que for. Sei o quanto é triste não ter ninguém pra conversar.
PEDRO: Seu desejo de encontrar alguém que o ame fará de você eternamente
uma criança.
DANIEL: Sedenta!
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DANIEL: Será que você conseguirá sentir pelo menos um pouco de ternura por
mim?
NINO: Não.
ÂNGELA: Desejo?
ÂNGELA: Não! Você ou qualquer outro, tento faz. Mas procuro, e queria tanto.
NINO: Não sou cachorro! Dá o fora! Some do pedaço ou vai levar umas
porradas.
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PEDRO AFASTA-SE. É COMO SE ENTRASSE NUMA IGREJA. AJOELHA-
SE DIANTE DE UMA “IMAGEM”. DANIEL APROXIMA-SE. SENTA-SE
PERTO DE PEDRO.
DANIEL: Fico dormindo aqui até que enxotem. Dá pra ter fé?
PEDRO: Conheço um hotel aqui perto. Nem precisa de documento seu não. Dá
pra gente dormir um pouco. Vamos?
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DANIEL: Não... é que hoje não estou legal.
ÂNGELA: Coitadinho! Que olhar mais triste que ele tem! Senta aqui perto,
senta. Vem cá!
ÂNGELA: Estou convidando você pra sentar aqui comigo. Não precisa pensar
que é pra outra coisa, não. Sou casada! Tenho um filho lindíssimo, quase da sua
idade. É que eu gosto de conversar, fazer amizades...
ÂNGELA: Então eu respeito. O que mais faço é respeitar a vontade dos outros.
Se você não quer conversar, não insisto. Mas pra quê ficar sozinho? Brigou com
a namorada?
DANIEL: (CADA VEZ MAIS NERVOSO) Não! Só não tô a fim de papo, falô?
ÂNGELA: (RI) Tá muito louco, né? Pensa que sou careta, é? Esse olhar não me
engana.
ÂNGELA: Não precisa me agredir, meu bem! (RI IRÔNICA) Ainda sou tão
jovem! (PAUSA) Viajar sozinho não é uma boa, meu machinho. Olha, quando
você estiver assim... (DÁ UM TAPA NA CADELA) Quieta, Laika. Senta direito.
Direito eu disse! Quer mais whisky? Então toma. Mas não vá fazer escândalo,
hein? (BEBE WHISKY) Quando você estiver assim liga lá pra casa. Vou lhe dar
meu telefone... (GRITA) Garçom, me dá uma caneta. Anda logo, porra! Tá me
olhando assim por quê? (PARA DANIEL) Daí, a gente pode ir até o Pico do
Jaraguá. Passei a tarde inteira lá. Ainda nem fui pra casa. Estou de biquíni
ainda. (ERGUE A SAIA) Gostou? Até que dá pro gasto, não dá?
DANIEL: (PARA PEDRO) Como é, garçom? Esse chees sai ou não sai?
ÂNGELA: (PARA LAIKA) Toma, Laika, bebe mais um pouco, mas vê se não
começa a agredir ninguém. Você fica muito agressiva quando está bêbada. (RI)
Como o mundo é grotesco! Como as pessoas são grotescas! (PARA DANIEL)
Olha a cara dessa gente. Olha bem! Tá olhando? Viu bem? Reparou todos os
detalhes? Agora faz de conta que tira uma fotografia deles. (FAZ O GESTO E O
SOM CARACTERÍSTICO) Veja agora eles parados, imóveis. Repare cada traço
dos rostos. (CARICATA) Que drama! (RI DEBOCHADO) Como são feios!
(SECA O RISO) Detesto gente feia! Se pudesse, matava todas. (RI) Olha só
aquele grupinho de suburbanos ali. Todos horrorosos! Bem dizem que os iguais
se juntam. (RI) Sou uma mulher livre! Saio quando e com quem quero. (ALTO)
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Não sou desses bêbados de fim de semana, não! Tenho um filho e um marido.
Detesto os dois. E eles me detestam mais ainda. (BATE NA CADELA) Quieta,
praga! Não percebe que esses idiotas estão todos olhando pra você? (PARA
DANIEL) Gosto de jovens! (ENCARANDO-O BÊBADA) Quantos anos você
tem, meu amor?
DANIEL: 17.
ÂNGELA: (RI, LASCIVA) Hum! Maravilha! Senta aqui comigo. Eu não mordo,
não. Vamos sair daqui? Dinheiro não é problema pra mim.
PEDRO: Por que você deixou aquele travesti jogar cerveja na sua cara e te
escorraçar do bar?
PEDRO: Por que tanta bronca de você daquele jeito? Parece ser um bom
menino!
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PEDRO: Que tipo de sacanagem?
DANIEL: Ela vivia insistindo. Chegou até a espalhar no pedaço que eu era
viado.
PEDRO: Vai aliviar alguma coisa aqui também? Não tem o quê?
DANIEL: 17.
PEDRO: Modo de dizer. Cuidava de você. Podia até morar comigo. Pagava
seus estudos. Seria um médico muito famoso.
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DANIEL: Arquiteto! Fazer dessas casa granfa.
PEDRO: De seda.
DANIEL: De seda, não. Só viado gosta. Queria dessas camiseta jóia que boy de
motoca usa.
DANIEL: Tá falando sério? Posso mesmo morar aqui? Lá em casa é uma barra.
Não dá pra agüentar.
DANIEL: (CRUEL) Tudo isso é conversa mole, garoto. Não percebeu ainda?
Ora, você não é nenhum ingênuo, Pedro Henrique, e eu não passo de uma bicha
velha, curtindo o maior pileque. (PAUSA) E depois, como é que vou explicar a
sua presença aqui?
PEDRO: (SORRI, AMARGO) Me fazer feliz? Essa foi a maior piada da noite.
Como se isso ainda fosse possível.
PEDRO: É só marcar.
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DANIEL: Tô sacando! A estória de sempre. Tudo bem! A gente tá nessa vida
pra isso mesmo. (PAUSA. TENTA A ÚLTIMA CARTADA) Você não ia se
arrepender. Sou bom de cama. Todo mundo fala.
PEDRO: Pelo menos você toca o meu corpo com as suas mãos ou é pedir
muito?
PEDRO: Fica! Já é tarde e eu não tenho mais saco pra sair por aí e pagar outro
que faça o que eu mandar.
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DANIEL: Apago a luz o quer no claro?
ÂNGELA: Pedro, é a segunda vez que falo e você não me ouve. Está de ressaca
pra variar.
ÂNGELA: Bebe! Não me contrarie ou o despeço sem direito a nada. Você bebe
e é humilhado nas lanchonetes pelos jovens. (PAUSA) Os cães estavam presos
quando chegamos esta manhã. Esqueceu de soltá-los antes de dormir? Você não
lê os jornais? Não sabe dos assaltos? Famílias inteiras assassinadas. Por acaso
está de cumplicidade com esses marginais?
ÂNGELA: Ando preocupada com Daniel. Ele deita-se comigo e eu noto que sua
respiração vai se tornando ofegante. Tem cinco anos, mas parece um homem
com desejo. Lentamente sinto suas mãozinhas irem timidamente acariciando
meus braços, até pousarem quentes e quietas sobre os meus seios. Fico imóvel.
Continuo contando a estória que sei que ele já não ouve mais. (VAI SE
TORNANDO OFEGANTE, SENSUAL) Aos poucos, suas mãos já sem medo,
começam a apertar os meus seios, e o que antes era casto, vai se tornando
violento, obsceno, animal.
DANIEL: Não quero conversar com você. Parece aquelas estátuas defeituosas
dos cemitérios.
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PEDRO: Não fale assim comigo, Daniel. Sou sua tia e Deus habita o meu
coração e comando minhas palavras. (PUXANDO DANIEL) Sente-se aqui.
Quero lhe contar uma estória.
DANIEL: Não quero. Você não sabe contar estórias. Somente as mulheres
bonitas como mamãe sabem contar estórias.
DANIEL: Pare com isso! No meu quarto nunca entrarão porcos selvagens. Eu
tranco a porta a chave. E na cidade não existem porcos.
PEDRO: Não eram porcos selvagens, seu idiota. Era o demônio, que toma a
forma que quer e entra em qualquer lugar. Transforma-se em legiões de porcos
selvagens para devorar o pecado de meninos pervertidos e imorais como você.
DANIEL: Nunca! Não vou pedir desculpas. Vocês é que são os porcos da
estória que ela me contou. Vocês é quem são o demônio que se transforma
naquilo que quer. Vivem entrando no meu quarto e me devoram pouco a
pouco, pedaço por pedaço, minha cabeça, meus pensamentos, minhas vontades.
Eu odeio vocês! Demônios! Jamais toquei os seios de mamãe. É mentira dela. Eu
sei que é proibido tocar os seios de mamãe desde que nasci. Nunca fiz isso.
Tenho nojo daquela mulher. Nojo!
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DANIEL CORRE PARA UM CANTO DA SALA. É BARRADO POR
ÂNGELA.
ÂNGELA: Foi o que fizemos o tempo todo. (PAUSA. ABRE A BLUSA) Aperte
meus seios! Com força! Com ódio! (BEM PRÓXIMA DE DANIEL) Como se eu
fosse sua mãe, então! (COMO DONA JÚLIA) Daniel, meu querido, não sei
quem foi que disse essa bobagem que é proibido tocar os seios de mamãe. Isso
não é verdade. Vem! Mata sua sede! Vem!
DANIEL: Estou noivo. Eliana ela se chama. Virgem, de coxas brancas. Pura de
homem. Treme como trigo ao sabor do vento quando roço minha boca no seu
pescoço. Mas não vou além disso. Sei que será só minha. Antes disso, as outras.
Como você. Depois lavo-me bem para não correr o risco de sujar o sangue da
futura mãe de meus filhos.
DANIEL: Experimente!
DANIEL: (COMO PEDRO) Foi difícil, mas consegui. Não muito pra não dar na
vista.
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DANIEL: Roubei de Daniel.
NINO: Não sabia que o garotão era chegado. Ele já andou por aqui?
DANIEL: Não é assim tão mórbido, é? Procurei dar um jeito, o melhor que
pude, pra esperar você. Até roubei essas flores no jardim proibido, só pra te
agradar.
NINO: Sofro de uma maldita insônia e aqui realmente não dá pé. É o mesmo
que dormir num cemitério.
PEDRO: Você não leva mais nenhum tostão de mim. Cansei de ser explorado.
DANIEL: Não banque o valente que você se estrepa. Acabo com a sua lata!
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DANIEL: Italiano imundo! Quando eu chamar não demore. Abra a camisa!
Quero ver esse corpo forte!
DANIEL: (COMO ELE MESMO) Então é isso! Você me deseja tanto quanto
“eles”. Todos ansiavam ver meu corpo nu, meu sexo. Satisfazerem seus
instintos da maneira que for, fazendo de mim homem ou mulher. (PAUSA.
FRIO) Não precisam de punhais. Se eu brinquei com vocês até agora, vestido,
também posso brincar nu. (VAI TIRANDO A ROUPA, LENTAMENTE)
Olhem! Devagar! Saciem a sede por que depois será muito mórbido um corpo
ensangüentado, furado 17 vezes. (DESAFIANTE) Aproximem-se! Toquem-me
antes de usarem os punhais. Eles estão bem afiados? Não gostaria que minha
carne resistisse ao corte. Quem irá me apunhalar primeiro? Pedro? Nino?
Ângela? (PRÓXIMO DELES) Vamos, usem os punhais em mim, em Daniel, o
duende brincalhão de seus sonhos.
PEDRO: Não, você não é Daniel. Você é Pedro. O velho, o escroto, o solitário,
pagando moleques desocupados para lhe cuspirem na cara só pra não se sentir
tão sozinho.
ÂNGELA: Você é Ângela. A que serviu de pasto para todos os patrões e para
todos os seus filhos e criados. A mulher que nunca amou ninguém. Só uma vez!
E durou dois dias. Ele morreu, não foi? É melhor dizer que ele morreu do que
constatar que faz cinco anos que ficou de voltar no dia seguinte.
DANIEL: Não! Eu sou Daniel. Aquele que morre com 17 anos. Antes de
envelhecer. Antes de servir de pasto. Antes de ser usado. Morro jovem, belo,
viril e desejado. Sempre tive o que vocês jamais ousaram ter. (DIRETAMENTE
A PEDRO) Por que não começa você que de todos nós é o mais desgraçado?
DANIEL: Estou dando uma oportunidade pra vocês mudarem suas vidas.
Aproveitem.
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ÂNGELA: O que você quer é compensar o seu vazio através do nosso ódio.
Mas eu lhe nego meu ódio.
ÂNGELA: Dar o que você procura seria um ato de amor. Você continuará
buscando, Daniel. Insaciável!
NINO: Deitem-no aqui. (INDICA A MESA) Não irá doer muito, Daniel. Só um
pouco. Mas a distância entre a vida e a morte é muito breve. Basta apenas um
salto.
DANIEL: Ângela, leve Nino para o seu quarto. Agora, mais do que nunca ele
precisa de uma mulher. (PAUSA) Pedro, jogue fora as flores murchas do seu
quarto. Elas sempre serão murchas. (PAUSA) Outra noite qualquer
continuaremos de onde paramos. (COM OS OLHOS FIXOS NA PORTA,
SORRI, ENIGMÁTICO) Ou pode ser que continue agora, se os porcos que
chegam estiverem bêbados o suficiente.
BLACK-OUT
27
FIM
1983
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