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Vinte mil léguas submarinas

FRANÇA - 1869 - Júlio Verne

Capítulo 1

O ano de 1866 foi assinalado por um acontecimento estranho. Havia já algum


tempo que vários navios vinham encontrando nos mares “uma coisa enorme”, um
objeto comprido, em forma de fuso, às vezes rodeado por uma espécie de
fosforescência, muito mais corpulento e rápido do que uma baleia. [...] Na época em
que esses acontecimentos ocorreram, regressava eu de uma expedição científica
nas inóspitas terras do Nebraska, nos Estados Unidos. À minha chegada, várias
pessoas deram-me a honra de me consultar sobre o fenômeno, em vista de uma
obra que eu publicara na França, intitulada Os mistérios dos grandes fundos
submarinos.

O acontecimento passara a preocupar várias camadas da população


americana, e os Estados Unidos foram o primeiro país a adotar medidas enérgicas,
em nível de governo, para esclarecer o mistério. A fragata “Abraham Lincoln”,
moderna e muito rápida, recebeu ordens para se fazer ao mar o mais depressa
possível, com esse objetivo.[...] A 20 de julho, atravessamos o Trópico de
Capricórnio, a fragata rumou para oeste, entrou nos mares centrais do Pacífico e
dirigiu-se para os mares da China. [...] E nada! Nada que se parecesse com um
narval gigantesco, com uma ilhota submersa, com o casco de um navio afundado,
com um escolho móvel ou com algo de sobrenatural.

No dia 5 de novembro, [...] a noite aproximava-se. Acabavam de soar oito


horas. [...] O mar ondulava calmo sob a quilha do navio. De repente, no meio do
silêncio geral, ouviu-se uma voz. Era Ned Land quem gritava: — Alerta! Vejo o
monstro! Dirige-se para nós.

Àquele brado, toda a tripulação se precipitou para o arpoador. A escuridão


era total e [...] não era um simples fenômeno de fosforescência. Não havia engano.
Do monstro, submerso a alguns metros da superfície, emanava aquele brilho
intenso e inexplicável, mencionado em vários relatos de capitães que o tinham visto.

O comandante havia mandado parar a fragata. [...] Todos a bordo não


podíamos nem respirar. A estupefação, mais do que o medo, mantinha-nos mudos e
imóveis. O animal ultrapassava-nos com a maior facilidade. Deu uma volta à
fragata, que navegava a quatorze nós, e a envolveu com a sua claridade elétrica
como se fosse uma poeira luminosa. Depois afastou-se duas ou três milhas,
deixando um rastro fosforescente comparável aos turbilhões de vapor que lança a
locomotiva de um expresso. De repente, dos obscuros limites do horizonte onde se
encontrava, o monstro avançou para a “Abraham Lincoln” com aterradora
velocidade, parou bem próximo de nós e se apagou mergulhando nos abismos
profundos.

O seu brilho não sofreu um desaparecimento gradual, mas repentino, como


se a fonte do seu brilhante eflúvio se tivesse cerrado. Depois reapareceu do outro
lado da fragata, rodeando-a ou passando-lhe por baixo do casco. Apesar de
acompanhar cada movimento, não pudemos ver a sua manobra. Entretanto, eu me
surpreendia com os movimentos da fragata. Ela fugia em vez de atacar. Era
perseguida em vez de perseguir. [...] O narval parecia estar imóvel, talvez fatigado,
deixando-se vogar ao sabor das ondas. [...]

VERNE, Júlio. Veinte mil leguas de viaje submarino (traduzido e adaptado para
uso neste material).

Narval: espécie de mamífero marinho também conhecido como unicórnio-do-mar.


Assemelha-se a uma baleia.

Quilha: parte estrutural do navio que confere o reforço necessário para fortalecer o
casco.

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