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A Filosofia e o Milênio*

O milênio, medida do tempo cronológico, marca o decurso de mil anos


dentro do calendário cristão, isto é, do sistema de datação a partir do nascimento
de Cristo, tomado, em nossa cultura, como ponto de origem de eventos que se
alinham, num eixo referencial imaginário, antes e depois desse ponto, a.C. e
d.C., os posteriores formando uma era, ao alcançar a longa duração de dez
séculos, inclusiva de períodos e épocas. Mas a contagem da era cristã, que vai
para dois milênios, vinte séculos, só foi instituída no século Vi, seis séculos
depois de já ter começado, momento em que se fixou a data do nascimento de
Jesus Cristo em 753 após a fundação de Roma, equivalendo ao nosso ano 1. Daí
para a frente contamos 1996 anos – um milênio completo no ano 1000, século
XI, em plena Idade Média, e o segundo, a completar-se daqui a quatro anos, em
2000, quando, então, entraremos no terceiro milênio.
A Filosofia é mais velha; tem mais de 2 mil anos, em tolerável conta
redonda 2596 anos, levando-se em consideração a data aproximada de seu
surgimento oficial, 600 a.C., entre os antigos gregos. Ela é, assim, por nascimento,
pré-cristã, se não for pagã e, em todo caso, anterior ao primeiro milênio, como
parte da cultura grega ou helênica, que contava o tempo de outra maneira, pela
sucessão dos Jogos Olímpicos. Quando, em contraproposta ao tema que me
pediram abordasse, A Filosofia no ano 2000, sugeri a Filosofia e o milênio, quis,
primeiramente, salientar esse fato, diminuindo a importância que se estava dando
ao fim do segundo milênio ou início do terceiro, reputado, segundo difusa crença,
data resolutiva de uma era apontando para o limiar de outra, à qual se empresta
o fascinante apelo do início de um tempo diferente, com a envergadura de novo
ciclo da existência humana. Sob o fascínio dessa crença numa onda renovadora,
desenrolada pelo advento de outro milênio, duas questões se insinuaram: estaria
a Filosofia preparada para enfrentá-lo? Não seria preciso, desde já, cobrar do
filósofo uma atuação coerente em abono dessa preparação?
Não posso nem devo abstrair essas duas questões, mas peço licença para a
elas opor, deixando-as provisoriamente em suspenso, outro par de perguntas
* Conferência para o diretório
acadêmico da UFPA, 1996. conexas mais gerais: para o quê a Filosofia, com o peso de sua idade já provocara,
Publicado em NUNES, Bene- nos tem preparado? E qual, ao longo de mais de dois milênios, a atuação que vem
dito. Crivo de papel. São Paulo:
Ática, 1998. distinguindo aquele que denominamos filósofo e que o identifica como tal?

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Uma vez que o propósito inicial dos promotores desse encontro foi indagar
se a Filosofia está apta a enfrentar o novo milênio, é preciso antes saber o que ela
nos ofereceu ontem e nos oferece hoje, a que nos habilita, a nós que a estudamos
atualmente, aproveitando seu esforçado exercitamento de milênios. E, se do filósofo
exigimos um modo de conduta para o futuro, necessitamos avaliar previamente o
que o identifica como filósofo numa história de longa duração. A primeira das
duas novas perguntas é tanto sobre a instrução filosófica quanto sobre a
habilitação,no sentido próprio e não no sentido legal da palavra, do estudante de
Filosofia. O que a torna paralela à segunda. Perguntamos nessa o que identifica
o filósofo como filósofo e naquela também o que identifica o estudante de Filosofia
no correr dos séculos. O que é que ambos fizeram e fazem, segundo o que lhes
deu e tem dado a Filosofia? Num caso e noutro, como um longo percurso terá que
ser reduzido à dimensão razoável das quinze páginas desta reflexão,
correspondendo a pouco menos de duas horas de leitura e conversa, permito-me,
nesta exposição, burlar o tempo, sem respeito pela ordem cronológica.
Chegam frequentemente às nossas mãos, como um dado corriqueiro da vida
de relação cartões de identidade profissional os mais variados – Fulano de tal,
motorista; Beltrano, economista; Sicrano, técnico em computação ou comunicólogo
ou encadernador ou garçom ou professor de Matemática, de Português, misturando-
se aí diferentes profissões, atividades específicas, socialmente integradas ao sistema
social do trabalho, mediante as habilitações técnicas variadas, sejam intelectuais,
sejam manuais, que as identificam. Mas ainda não vi, e estranharia se visse, inscrito
num desses retângulos de cartolina, por exemplo, “Spinoza Amoedo da Silva,
filósofo”. Julgaria o seu portador ou um pedante ou um ingênuo, se não o incluísse
na mesma categoria dos exibicionistas desajeitados, porque exibicionistas há que
são jeitosos, ao lado de quem mandasse imprimir abaixo de seu nome próprio, para
identificar-se, o título de intelectual ou de poeta. Intelectual é uma classificação
genérica para todo aquele que, advogado, jornalista, sociólogo, médico, engenheiro
– os chamados profissionais liberais -, pode pretender para si um trabalho livre das
injunções e servidões que sujeitam o trabalhador comum; também significa,
excepcionalmente, a pessoa em que esse trabalho livre se mistura com a liberdade
de espírito e o exercício crítico da inteligência. Tanto o filósofo quanto o poeta são
intelectuais nos dois sentidos, mas é difícil ajustá-los a estritos quadros profissionais,
como os do carteiro e do sociólogo, a menos que trabalhem como professores. Seria
normalíssimo inscrever em nossos cartõezinhos de representação social, em
policromia, abaixo do nome próprio, a identidade profissional de professor de
Filosofia, acrescido, se for o caso, com letras douradas, de um PhD (Doctor Philosophia).
Mas, atenção. O título de PhD, de significação lata, também recobre ramos de saber
que não a Filosofia propriamente dita, a palavra aqui usada na acepção geral de
ciência ou de conhecimento científico. O PhD pode ser em Economia ou em Direito,
e não necessariamente em Filosofia. Os três mil anos dessa disciplina um tanto
indisciplinada mostram-nos, confirmando a dificuldade de ajustamento profissional
a que me referia, que nem todo professor de Filosofia foi filósofo e, inversamente,
que nem todo filósofo foi professor de Filosofia. E, muito embora seja frequente a
relação do filósofo com o professor, não há equivalência entre os dois termos, salvo
se tomarmos o último na acepção ampla, como aquele que professa ou ensina,

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mesmo sem cátedra, fora de um estabelecimento ou instituição pedagógica. Mas
nessa hipótese se dá a interessante particularidade de que o professor também aprende
ao professar ou ensinar.
Dois filósofos alemães de nossos dias, Hans George Gadamer e Karl-Otto
Apel, foram ativos professores, hoje, aposentados, enquanto o americano Richard
Rorty, mais jovem, leciona na Universidade de Charlottesville (Virgínia, Estados
Unidos), e o francês Paul Ricoeur, com mais de oitenta anos, que lecionou até o
início dos anos 70, em Nanterre, uma das Universidades de Paris, ainda profere,
nos seus cursos em universidades norte-americanas, aulas expositivas, que não
saíram de moda, ou dirige seminários para os quais os estudantes contribuem
efetivamente, lendo textos de sua própria autoria. Como típicos professores de
cátedra, os quatro vinculam-se à instituição universitária, de origem medieval, até
o final do século XVII o único veículo do ensino superior, a serviço da transmissão
do saber tradicional, religioso, dependente do domínio intelectual e disciplinar
das Igrejas cristãs e de suas hierarquias eclesiásticas, católica na França e na
Espanha, protestante na Inglaterra, na Holanda e em boa parte da Alemanha.
Mas um Leibniz, tanto filósofo quanto matemático, que viveu entre o século XVII
e o século XVIII, quando as guerras de religião estavam para cessar, não passou
pelo umbral das velhas universidades alemãs. Em seu país um dos pioneiros das
sociedades ou associações de sábios à margem da instituição universitária,
frequentou a Academia de Berlim, que ajudou a fundar, tomando por modelo as
duas mais importantes precursoras dos institutos de pesquisa, ou como diríamos
nós, das sociedades para o progresso da ciência, a da França e a da Inglaterra,
oficializadas, respectivamente, como Academia de Sciences (1666) e Royal Society
de Londres (1645), depois que o Estado moderno descobriu na ciência natural,
fundada por Galileu, uma aliada para a conquista de sua independência. Como
Bacon, que fazia experimentos em laboratório, Newton, contemporâneo e
concorrente de Leibniz, era professor de Matemática e apresentou sua teoria da
luz aos confrades da Royal Society, à qual John Locke se filiou.
Houve, assim, filósofos sem cátedra, ao lado dos catedráticos. Kant viveu
sete anos depois que se aposentou, aos 73 anos, de sua cadeira na Universidade
de Königsberg, onde chegou a lecionar, quando professor auxiliar, Lógica,
Geografia, Pedagogia e até Fortificação e Pirotécnica. Já filósofos como Fichte,
Schelling e Hegel, este o mais imponente dos mestres alemães do século XIX,
lecionam as suas próprias filosofias, dando cursos sempre lidos que divulgavam o
que já tinham escrito ou que lhes motivavam as obras, elaboradas em sala de aula,
procedimento tornado comum entre os professores europeus e que continuou
neste século. Mas Descartes jamais teria dado uma só aula se a rainha Cristina não
o tivesse chamado, para seu professor particular, à frígida Suécia, onde veio a
morrer de gripe. Spinoza explicava suas ideias, expostas na Ética, a alguns poucos
amigos fiéis, em cartas que lhes dirigia. No século XVIII, Voltaire, Diderot,
D´Alembert ficaram à margem do ensino oficial, mas não da Academia de Ciências,
embora fossem pensadores didáticos, participando juntos de um empreendimento
educacional inédito, a publicação de A Enciclopédia das Ciências, Artes e Ofícios, para
a qual escreveram verbetes ao lado de Jean-Jacques Rousseau, que, como o escocês
David Hume, não pertenceu nem à Universidade nem à Academia.

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Se agora dermos um salto no tempo para as origens, e corrermos do século
VI a.C. ao século IV a.C., para depois voltarmos à fase moderna, veremos, a
despeito da conaturalidade existente entre o magistério, na acepção lata antes
considerada, e o exercício da Filosofia, que a identidade do filósofo como filósofo,
nascida, conforme nos diz Nietzsche, de maneira tortuosa, enviesada, até mesmo
truncada, sob diversas formas de comportamento, religioso, místico, ascético,
científico, poético, profético, combinadas em proporções de quase impossível
discernimento, nunca foi nem é estritamente profissional, e se compatibilizou
com as mais diversas condições de existência social e pessoal.
Tales de Mileto encabeça a sequência dos primeiros filósofos em todas as
Histórias da Filosofia. Mas, para os mais antigos gregos,era,como astrônomo e
geômetra, um sábio – um dos sete sábios da Hélade, ao lado de Bias, Pitaco,
Sólon, Periandro, Cleóbulo, Quilon. Ora, o filósofo seria aquele que, segundo
uma proposição atribuída a Pitágoras, trocou essa condição pela de “amigo do
saber” – do saber, acrescente-se, ancestral, mítico, que ele não mais possui
completamente, do qual se recorda porque dele já se afastara. Eminentemente
oral, relacionado com as principais capacidades de visão profética e poética,
valorizadas pelos gregos, o delírio (manta) e a adivinhação (mantica), ativadas pela
religião, sob o patrocínio das divindades complementares, Dionísio e Apolo, esse
saber de tradição exteriorizou-se, contudo, nas epopeias e nas tragédias. Um
Ferécides de Siro, imbuído de profetismo, prevendo o futuro, tal como os áugures
dos templos gregos, ainda estava plenamente dentro dessa tradição, à qual também
pertencia o próprio Pitágoras, que praticou a ascese, a disciplina do corpo, em
proveito da purificação da alma, na confraria religiosa por ele organizada.
Como o gigante se conhece pelo dedo, os sábios se denunciam pela
linguagem, ainda cifrada. Invocam, à semelhança dos poetas trágicos, os mitos
e as divindades, tanto quanto a ordem natural (o cosmo), assimilada à regulação
das Cidades pelas suas leis (nomoi), comuns aos homens e comensuradas ao
entendimento humano (logos).Cosmos, nomos, logos são palavras que os filósofos
utilizarão depois de Heráclito, um desses sábios, cognominado “o Obscuro”,
devido aos aforismos sibilinos, de duplo sentido, que escreveu, semelhantes aos
enigmas dos oráculos gregos, os quais, transmissores de um ensinamento superior,
de origem sacra, falariam sob a inspiração divina, de modo afirmativo. Linguagem
afirmativa um tanto mítica também encontramos em Parmênides, que compôs
o seu famoso escrito sobre o ser e o não-ser com o estilete de poeta (os gregos
ainda não usavam caneta e nem escreviam sobre papel), em versos hexâmetros;
a deusa da verdade inspirara-lhe a distinção entre ser e não ser, formulada com
base no saber ancestral, um século depois retomada, com as mesmas palavras,
numa outra linguagem, interrogativa e contraditória, desdobrada em pergunta e
resposta, que não é mais a linguagem do sábio, porque já é a do filósofo.
A primeira identidade de filósofo como filósofo, que interroga perguntando
o que é – o que é (ti esti) a natureza (physis), o conhecimento (epistéme), a virtude
(areté), a justiça (diké) -, é conquistada perante o outro, como dialogante. Pois, ao
interrogar, está voltado para o pensamento alheio, à espera de que este o aprove
ou conteste. Dizia Platão que o pensamento é uma conversação que a alma mantém
consigo mesma sobre aquilo que é eventualmente objeto de seu exame. Quando

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a alma conversa consigo mesma é também com o outro em mim que ela conversa.
Disputo comigo mesmo, abro de mim para mim uma contenda, e então a conversa
vira controvérsia. Mas se o outro está fora, e reconheço-o como meu opositor,
aquele que, interrogando o mesmo que interrogo, nega o que afirmo ou me
contradiz, a controvérsia se faz discussão, e a discussão, troca de discursos opostos,
chamados de argumentos – por isso também uma luta (polemos) verbal compartilhada
por um mínimo de dois contendores, a caminho de um possível entendimento comum
–, se faz dialogação, conflitiva pendência (agon) sempre renovável, que a cada
passo renasce do antagonismo das posições ou da própria dificuldade da matéria
discutida. Por isso, a Filosofia precisou, para nascer, em correspondência com
essa primeira identidade do Filósofo, da “intervenção de uma nova forma literária”,
que foi o diálogo platônico.
Permito-me essa redundância - diálogo platônico- para realçar o direito de
propriedade de Platão, universalmente reconhecido, sobre tal nova forma literária
que ele inventou, depois de haver abdicado da poesia. Conta-se que Platão, a quem
se atribuem os versos sentenciosos publicados pela Antologia Grega, recentemente
traduzidos por José Paulo Paes, queimou, em sinal de sua conversão à Filosofia, as
tragédias que produzira, tornando-se discípulo de Sócrates, o pai do exercício de
conceituação, a maiêutica (parturição das ideias), treino cotidiano do filósofo, que
fundamenta a relação opositiva, de luta, entre os contendores do diálogo, a caminho
do entendimento comum, anteriormente descrita. Como a luta é um confronto verbal,
que vai de argumento a argumento, ou seja, de raciocínios armados sobre
conceituações preliminares até se chegar mediante retificações sucessivas, a um
conceito onde se detêm, a discussão, pelo seu curso e pelo seu resultado, toma o
nome a dialética, palavra afim a diálogo e a lógica, por sua vez derivada de logos.
Dizendo isso à maneira do filósofo Wittgenstein: ao dialogar, os que discutem
travam uma espécie de jogo de linguagem, que como todo jogo tem as suas próprias
regras. Ao discutir, os contendores já aplicam regras lógicas, sobre as quais se
puseram de acordo, e que os autorizam a armar conceituações e aceitar conclusões
do raciocínio. Ao acordo chamaria de razão e ao entendimento comum, mesmo
que não seja definitivo ou final, chamaria de verdade. Verdade e razão são as
palavras que mais frequentemente se inscrevem na carta de identidade do filósofo,
já configurada pela dialogação. Dialogação e diálogo se unem sem confundir-se.
O diálogo é a forma literária, escrita; a dialogação é o estar um diante do
outro da conversa daqueles que se interrogam, confrontados a si mesmos e ao
mundo, a moralidade do pensamento em situação. A dialogação é, ainda, o
inquieto movimento do pensar vivido; o diálogo fixa-o numa forma, que traça,
graças à convenção, estabilizada no drama, da alternância entre falas de dois ou
mais personagens, imitados pelo autor e dele completamente distintos, o caminho
(método para os gregos), nesse caso a dialética, no sentido antes estabelecido, e
que liga pergunta e resposta, interrogação e conclusão, não apenas por força das
regras lógicas, mas também pela intercorrência de procedimentos retóricos, jamais
ausentes, que visam mais a persuadir do que convencer, e de qualidades poéticas,
próprias da escrita.
O diálogo conserva, pois, o curso da dialogação, assim como o curso da
dialogação, dependente da maiêutica, põe, no começo, os contendores ocupando

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posições distintas, uns como Mestres que ensinam, outros como Discípulos que
deles aprendem. Hoje tendemos a embaralhar essas posições, confundindo a
relação entre Mestre e Discípulo com o nexo que Hegel estabeleceu entre Senhor
e Escravo. Mas o que se passa na maiêutica, um procedimento oral de pergunta
e resposta, inventado por quem foi, como Sócrates, que nada escreveu, um
pensador de voz e não de texto?
Ela manifesta a pretensão de nada ensinar e não ser o princípio de que
qualquer um só pode aprender pelos seus próprios meios. O professor é como a
parteira da imagem socrática: ele ajuda a partejar a ideia, fazer nascer a
conceituação no Discípulo, que só vem à luz quando, auxiliado pelo professor,
pelo Mestre, seu oponente, o Discípulo a retira de seu espírito – como se, diria
Sócrates, recorresse a uma lembrança – à custa de um esforço intelectual próprio,
que o antagonista estimula e por obra do qual descobre por si mesmo o caminho
da verdade, de que o Mestre não tem a posse. Se a tivesse, o Mestre estaria para
o Discípulo assim como o Senhor está para o Escravo a quem domina.
Dessa forma, ensinar Filosofia não é professar uma doutrina determinada,
mas conforme o velho Kant, ensinar a filosofar, o que significa transmitir a aptidão
de pensar a razão ou o fundamento de qualquer concepção, doutrina ou sistema.
Só se transmite essa aptidão a outrem se também se é capaz de aprender dele – do
que afirma ou refuta com o auxílio de bons argumentos. Ou o entendimento é comum,
compartilhado, ou a razão perde a sua autoridade, e a verdade, professada pelo filósofo, decai
para o estado de aceitação autoritária, instrumentando o poder de quem o professa.
Forçoso é concluir, portanto, que a maiêutica alterna as posições do Mestre
e do Discípulo, distintas e antagônicas no começo da dialogação, até que Mestre
e Discípulo possam caminhar juntos, num symphilosophieren, num filosofar em
comum, quando quem ensina também aprende e quem aprende também ensina.
Portanto, o diálogo, como forma literária, que reincorpora a dialogação na
dialética, confirma a canaturalidade entre ensino e Filosofia a que aludimos
linhas atrás.
Mas há muito tempo os textos filosóficos fundamentais deixaram de ser
dialogais. Salvo raras exceções, que pespontam hoje aqui e ali, como unidades
isoladas, dentro das obras de Santayana, de Heidegger ou do polonês Leszeck
Kolakowski, o diálogo, ainda usado na Antiguidade pelos estóicos, por Cícero
e Santo Agostinho, e que foi preferido no Renascimento e um pouco depois por
Galileu, escasseou, desde a época de Descartes, para ceder lugar, depois de
novo e pequeno surto durante o Iluminismo, ao texto expositivo sistemático, ao
tratado, pelo qual, já no século III. a.C., derrotando o estilo de ensino de seu
mestre Platão, Aristóteles, professor que adotou a prática, por aquele abominada,
dos apontamentos de aula, escritos pelos discípulos sob ditado, abandonara a
forma dialogada.
No entanto, nem todos os tratados são como os de Aristóteles. Na Idade
Média, foi a modalidade de ensino da Filosofia, sob a tutela da Teologia, por meio
de questões levantadas e discutidas em aula, que gerou a sistemática expositiva
em Sumas, compêndios articulando teses contra teses, de acordo com argumentos
opostos, demonstrados segundo a técnica, então uniformemente cultivada, do
raciocínio silogístico, aprendido de Aristóteles. Os textos filosóficos, principalmente

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os modernos, alteram, modificam o tratado aristotélico, quando não o abandonam
completamente, aproveitando formas literárias já existentes ou criando variações
delas: o ensaio, em Montaigne, a narrativa no Discurso do método e nas Meditações
metafísicas de Descartes, os aforismos em Bacon e, muito mais tarde,
preponderantemente, em Nietzsche. Mas o espantoso é que os textos fundamentais,
em que se abastece o pensamento filosófico, mesmo quando não são dialogais,
guardam uma potência de dialogação que convida o professor e o estudante a atualizá-los de
companhia. A contenda agora é com os textos, que por sua vez conversam com o
mundo ou entre si em controvérsia. Ora lhes adotamos a voz, ora a contestamos,
e é com ela, com essa voz que já foi de alguém, que não está mais diante de nós,
rarefeita pela distância ou impessoalizada pelo tempo, que se abre a contenda e
prossegue a dialética dos diálogos platônicos, a caminho do entendimento comum.
O entendimento comum é a meta, e não o fecho da Filosofia, cuja
indagação se renova a cada leitura de seus textos. A indagação filosófica sempre
desborda o entendimento comum, alcançando num momento e refeito noutro.
A razão se move de encontro ao irracional, e a verdade obtida hoje revela- se
amanhã uma não-verdade. Por quê? O poeta Fernando Pessoa – e temos sempre
que ouvir os poetas, criadores de mitos – responde que:

A verdade, se ela existe


Ver-se-á que só consiste
Na procura da verdade.

E de novo perguntamos, por quê? Porque a verdade, em Filosofia, não é


factual, mas contextual, a mais contextual de todas as exigências do pensamento.
Basta considerar que quando o filósofo pergunta o que á a justiça ou o que é o
conhecimento, tal como os gregos fizeram e continuamos a nós a fazer, ele nem
pode satisfazer-se com uma simples definição – justiça consiste em dar a cada
qual o que lhe é devido, o conhecimento consiste na percepção ou no juízo – nem
está fora daquilo que pergunta. Ele vê que a justiça acrescenta-se um aspecto
social, distributivo, outro moral, um terceiro político, cada um dos quais é parte
de um contexto histórico, e vê, do mesmo modo, que a percepção e o juízo diferem
segundo as espécies de conhecimento, ora teórico, ora científico, ora prático, ora
artístico, cada um dos quais exige ser compreendido em função dos outros,
contextualmente. Por outro lado, as perguntas o envolvem, não pode cair fora: ao
indagar “o que é”?, não só se dá conta de que precisou dessa frase, e portanto da
linguagem, de que o conhecimento depende, como também do fato de que o uso
de verbo ser – é isto, é aquilo – recorta um aspecto determinado do mundo onde
já se encontra desde que começou a indagar. O mundo é o contexto dos contextos,
onde estão situados os que indagam alguma coisa e os que não indagam nada.
Se assim é, a Filosofia jamais pode pretender para si a exatidão, a certeza
e a pureza da teoria. Pura e impura ao mesmo tempo, a Filosofia, conivente com
o mundo, já está aliada às condições da existência humana, antes de começar a
fazer-se, e, portanto, também ao mito, do qual ainda não acabou, e talvez não
acabe nunca de se desprender, presa que está à tradição arcaica, a que opôs,
desde os gregos, a linguagem interrogativa, contraditória, de pergunta e resposta.

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Invoco mais uma vez um verso de Fernando Pessoa:

O mito é o nada que é tudo.


Nada é o mito porque nenhuma experiência o confirma, nenhuma ideia o
circunscreve, nenhum raciocínio o comprova. E é tudo porque o mito nunca falta
no horizonte da existência humana, como um seu acompanhamento situacional.
Permitam-me exemplificá-lo partindo de um antecedente histórico da expectativa
do ano 2000, que teria motivado o tema inicialmente proposto para esta palestra.
Relembra o historiador Henri Focillon que na Europa, principalmente na
França, Lorena e Turíngia, propagou-se, de acordo com o testemunho das
crônicas, o generalizado sentimento de que o mundo terminaria no ano 1000,
no começo do nosso segundo milênio, em plena Idade Média. O fim do mundo
se ia precedido pela chegada do Anticristo; ele viria alguns anos antes, em 954.
“Satanás em breve andará à solta, quando se completarem os mil anos”, anunciava
o padre Glaber da Borgonha. Mas isso era só uma parte da história.
Após a recrudescência do Mal, a humanidade, degradada por todos os
vícios, o pecado em desenfreio, Cristo retornaria para reinar por um período de
mil anos antes do definitivo encerramento do teatro-mundo, ao som das trombetas
do Juízo Final, tribunal de derradeira instância, sentenciando vivos e mortos.
Essa dupla expectativa de um milenar reino de Deus, após mil anos de duração
do mundo, procedia do profetismo hebraico e cristão.
Os profetas judeus anunciaram o reino do Messias, do enviado de Deus,
que segundo os livros apocalípticos, como o de São João, devia durar mil anos,
o que significa um dia da vida divina. Entre os primeiros cristãos, aguardava-se
a volta de Cristo na Palestina, antes da pregação de São Paulo. Esta, que levou
a mensagem evangélica aos gentios, aos não-judeus, latinos e gregos, desviou
essa esperança do retorno próximo de Jesus ressurrecto para a crença, chamada
Fé, na função sobrenatural redentora do filho de Deus, o Senhor (Kyrios), sem
prejuízo de Juízo Final, a realizar-se, sob a sua égide, em dia imprevisível,
determinado pelos altos desígnios da Providência divina e somente por ela sabido.
Combatida depois pelos Doutores da Igreja, tal esperança de um advento real
recuou perante a ortodoxia doutrinária, mas subsistiu, como fogo brando de uma
tendência duradoura, o milenarismo ou chiliasmo (período de mil anos em grego),
que de vez em quando e até hoje se alteia no âmbito das comunidades cristãs.
Na tendência milenarista, naturalizada no cristianismo e que lhe parece
ínsita, a expectativa difusa do fim do mundo (escatologia) está em correspondência
com o mito escatológico do fim dos tempos, do término de um ciclo ou de uma
época, implantado no zoroastrismo persa (12 mil anos duraria a batalha de Ormuz,
deus do Bem, contra Arihman, o deus do Mal), e que se sustenta na visão de
acontecimentos futuros decisivos (profecia) para o destino humano, porquanto
implica a crença de uma renovação da vida, interrompido o tempo cronológico
pelo advento de um período de paz, de fraternidade, de concórdia universal num
espaço desimpedido, sem distância e separação (o Reino de Deus).
O milenarismo apresenta-nos o inverso do mito hebraico-cristão de origem
– o Paraíso perdido. Este nos acena com uma falha, um desfalque no passado

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da espécie humana, aquém da história; o outro nos acena com uma final correção
ou limpeza do déficit humano, num momento futuro, além da história. E ambos
se sustentam, como mitos que são, de encontro ao sentimento deceptivo da
incompletude da existência e do desejo insatisfeito. Sentimento e desejo
realimentam agora a expectativa do milênio que se avizinha. Marcando o início
de um terceiro milênio, o calendário nos surpreenderia, na passagem de 1999,
com uma reviravolta do tempo, a trazer-nos ou um mar de calamidades ou um
mundo de maravilhas. Mas seja que nos sintamos na véspera de uma época
renovada ou de uma época decaída, nossa expectativa é um derivativo milenarista,
um resquício da batalha entre Arihman e Ormuz, entre o Anticristo e o Cristo.
À Filosofia não cabe preparar-nos para enfrentar o milênio, porque isso
implica empregá-la profeticamente para antever o advento de uma nova era, de
um novo tempo, embora possamos filosoficamente prestar reconhecimento ao
mito, à sua perduração, que o positivismo, no século passado, tentou em vão
extirpar, criando outros mitos, como o cientificismo e a religião da Humanidade.
O filósofo, que se separou do profeta, não é também um futurólogo, que prefetiza
sem sabê-lo, fazendo projeções de fenômenos cíclicos, suscetíveis de repetição
probabilística. Reconhecendo o mito sem adotá-lo, sem a ele aderir, não pode
(não deve) nem mitololizar (criar mitos, ofício da poesia e da religião), nem
mitificar, isto é, canalizar-lhe a força emocional, senão a aura poética e a carga
religiosa, para o desempenho de funções políticas. Platão, nesse particular, deu-
nos um, mau exemplo, quando adotou as duas práticas.
Para o que, então, nos prepara a Filosofia – que ela nos dá e pode oferecer-nos?
Já leram, certamente, o que Aristóteles escreveu a respeito da noção de
“problema””:
A diferença entre um problema e uma proposição é uma diferença na construção da frase.
Porque se nos expressarmos assim: “um animal que caminha com dois pés” é a definição do
homem, não é?, ou “ animal é o gênero do homem” não é?, o resultado é um proposição; mas se
dissermos: “é animal que caminha com dois pés a definição de homem ou não é?”, ou: “é animal
o seu gênero ou, não”?, o resultado é um problema (Tópicos, Capítulo IV).

Então a “proposição” difere do “problema” como uma frase afirmativa difere


de outra interrogativa (“um animal que caminha com dois pés é a definição de homem”, “é
animal que caminha com dois pés de a definição de homem? ” etc ), uma vez que a afirmativa
aplica o conceito “animal” ao conceito “homem” e a interrogativa põe em suspenso
essa relação, ou seja, questiona-a, converte-a numa questão para o pensamento. Isso
se torna patente na dialogação, quando o raciocínio depara com questões contra as
quais se choca, e nesse caso – ainda Aristóteles nô-lo diz – o problema é se, querendo
saber se uma coisa é isso ou aquilo, há “argumentos convincentes a favor de ambos
os pontos de vista”. Em outros casos, os pontos de vista são “extremamente vastos,
e temos dificuldade de expor nossas razões, como a questão sobre se o universo é
eterno ou não: pois também é possível investigar questões dessa classe”.
Aristóteles, porém, coloca-se aí, tanto considerando a proposição quanto
o raciocínio, anteriormente ao plano dos conceitos, que é onde os problemas
emergem. Assim, por exemplo, o problema da certeza cartesiana (o que é certo
nesse mundo, uma vez que posso duvidar da certeza do próprio mundo?) exige

da palavra 381
os conceitos de pensamento ou Espírito, como o problema dos juízos sintéticos a
priori, em Kant (os juízos universais de base empírica), toma por base os de
experiência e das categorias aplicadas aos juízos. Desse ponto de vista, os problemas
aparecem concomitantemente com os conceitos que permitem formulá-los. O filósofo, por
excelência um questionador, é aquele que consegue pôr ou formular um problema.
Conforme disse Bérgson, em Filosofia, “um problema bem posto é um problema
resolvido”. Mas o pensador francês esqueceu que o problema bem posto precisa
de elaboração inventiva do conceito, e que o resolvido leva a outros maiores
problemas. Descartes hesitou em como chamar, se Espírito, Razão ou Pensamento,
o princípio que lhe dava acesso à certeza; Kant teve que separar a sensibilidade
do entendimento e o entendimento da razão, dando, para isso, um sentido diferente
às palavras de sua língua. Sinnlichkeit (sensibilidade), Verstanden (entendimento) e
Vernunft (razão-raciocínio), já usadas filosoficamente. A hesitação de um e as
distinções do outro atestam a elaboração inventiva dos conceitos.
No final do milênio, a Filosofia não se limita a ser um repositório de
problemas; ela também se torna problemática. O que significa que a razão mesma
se problematiza. Kant, sem sua primeira Crítica, erigira a Filosofia em um tribunal
para julgar a Metafísica enquanto ciência e, portanto, também, a razão
especulativa. Atualmente, o processo é aberto contra a filosofia toda, posta a
razão em julgamento de três modos principais: o analítico (Ryle, Wittgensteins),
que consiste em rebatê-la para a instância da linguagem; o desconstrucionista
(Derrida), que a condiciona ao inconsciente da escrita; e o de Heidegger, que lhe
antepõe a geral entificação, o pensamento do ente dominando a Filosofia, feito
o filósofo um intérprete das metamorfoses do ser.
Mas quem julga nesse novo Tribunal senão a mesma razão, despojada de
suas ambições metafísicas? É ainda Fernando Pessoa que vem dizer-nos:

Guia-me a só razão.
Não me deram mais guia.
Alumia-me em vão?
Só ela me alumia.

É uma razão cauta, sem a pretensão cartesiana da certeza, abdicando do


papel de agente do saber absoluto que lhe deferira Hegel – uma razão ciente de
seus débitos com a Antropologia Cultural, com a Linguística, com a Psicanálise
e, ainda, com as Ciências da Natureza – que nos alumia. E que, alumiando-nos,
pode preparar-nos para a tarefa esta, sim, real e não mítica, de reformulação
dos problemas prático-morais, tecno-científicos, artísticos e culturais, a caminho,
nessa “era dos extremos” em que nos encontramos, daquele entendimento
comum de que já falei. Eis o que a Filosofia, feita magistério, pode nos dar, de
acordo com a atuação do filósofo, homem do mundo, cuja identidade, como
filósofo, provém do modo de pensamento que pratica, e não da doutrina que
professa ou da ciência em que se instala.
Repito aqui o que escreveu o pensador espanhol Miguel de Unamuno, em
Del sentimiento trágico de la vida, obra que deveriam ler todos os aspirantes a filósofos
e candidatos a professores de Filosofia:

382 da palavra
La Filosofia es um poducto humano de cada filósofo, y cada filósofo es um hombre de carne y
hueso que se dirige a otros que se dirige a otros hombres de carne y hueso como el. Y haga lo que
quiera, filosofa, non com la razón solo, sino com la voluntad, com el sentimiento, com la carne y
com los huesos, com el alma toda y com todo el cuerpo. Filosofa el hombre.

É o homem que filosofa, empenhando sua vida na Filosofia. Mas esse


empenho, que se compatibilizou, conforme assinalamos anteriormente, às mais
diversas condições de existência pessoal e social, aliou-se a diferentes atividades
e profissões. Faremos agora um ziquezague cronológico, entre a Antiguidade e a
época moderna.
Platão e Aristóteles foram cidadãos na Polis grega, aquele de família grega
aristocrática, o último, filho de um médico, estrangeirado pela sua origem
macedônica. À pequena nobreza da França no século XVII pertencia Descartes,
que foi militar antes de dedicar-se completamente aos estudos, graças aos
rendimentos próprios de que dispunha. Os filósofos gregos, poupados de todo
labor manual, dispunham de escravos, que trabalhavam e exerciam os ofícios
em proveito deles. Entretanto, o fato de que fossem senhores não os eximia das
atividades comuns e da prática de negócios. Platão comprou o terreno, fora dos
muros de Atenas, onde instalou a sua Academia organizada como Thiasos
(comunidade religiosa) e, mais tarde, Aristóteles alugou, num bosque consagrado
ao deus Apolo Lykeios, as casas que abrigariam a instituição escolar (Liceu) por
ele dirigida.
Conta-se que Tales de Mileo alugou, certa vez, todas as prensas para óleo
da região, sob a suposição de que haveria farta colheita de azeitonas, depois de
ter previsto, observando o movimento dos astros, do fundo de um poço onde
distraidamente caíra, um eclipse do sol. Tenha ou não esse fenômeno influído
na fertilidade das oliveiras, a historieta relata, em conclusão, que a abundante
produção de azeite daquele ano, sob o controle de quem tinha a posse das prensas,
deu grandes lucros a Tales.
Nem sempre os filósofos foram desinteressados, corajosos e ascéticos
como Giordano Bruno e Spinoza. Aquele morreu, na fogueira, condenado pela
Inquisição.Uma vez excomungado pela Sinagoga de Amsterdã, Spinoza teria
sobrevivido pelo humilde trabalho de suas próprias mãos, polindo lentes e, diz-
se também, com a ajuda, em dinheiro, que lhe propiciavam amigos e admiradores.
Essa atitude de serenidade contrasta com o medo de Descartes. Depois da
publicação do Discurso do método e das Meditações metafísicas, Descartes só se
fixará em Amsterdã para fugir de Paris e ficar a salvo da Inquisição que temia.
Era então recente o exemplo do que acontecera a Galileu. Já um Francis Bacon,
ávido por dinheiro, perdeu, acusado que foi de corrupção, o cargo no Parlamento,
a que tinha direito pela sua origem aristocrática.
Não se deve, pois, julgar os filósofos pela vida que levaram, e sim pelas
obras que escreveram – várias pelos problemas, diversas pelas diferentes formas
de que se revestiram, mas tendo todas, pelo fato de que constituem, ao mesmo
tempo, obras de pensamento e de linguagem, sob a assinatura pessoal de quem
as elaborou, uma individualidade característica na maneira de sua escrita,
chamada estilo.

da palavra 383
As traficâncias de Bacon condenam o indivíduo, mas não é por elas que
vamos julgar o Novum Organum. Platão aproximou-se do tirano de Siracusa, a
quem quis, em vão, converter à Filosofia, sem que isso empane o valor dos Diálogos.
Condenemos Rousseau por ter exposto seus filhos na “roda”; esse gesto de pai
desnaturado não desqualifica o Discurso sobre a desigualdade nem atinge a pedagogia
de Emilio. Heidegger aderiu ao Partido Nazista durante um certo tempo, mas Ser
e tempo, uma das principais obras filosóficas deste século, nada tem de nazista. Se
é “alto e régio o pensamento”, a fraqueza de caráter ou o momentâneo ofuscamento
do homem não prejudicam a honra do filósofo como filósofo: o seu obstinado
rigor, a sua esforçada lucidez, que só podemos encontrar dialogando com as obras,
com os textos que lhes definem a identidade do pensamento. Essa identidade
guarda, por certo, uma relação tensa com a vida do “hombre de carne y hueso” – que
é também a nossa -, e sem a qual os problemas não nos envolveriam. Mas a vida
não explica o pensamento a que incorpora; tão pouco o pensamento serve para
justificar ou indultar a vida. No entanto, os problemas filosóficos, tanto os de
hoje como os de ontem, sempre tiveram a incomoda vitalidade de questões que
afetam a vontade, o sentimento, a carne e os ossos.
Estamos nós, nesse fim, de milênio, a braços com novas perguntas, que
interferem sobre as antigas. Não nos basta indagar o que é a razão; precisamos
opô-la à desrazão com que contrasta. Quais os limites entre razão e loucura?
Não nos limitamos a indagar sobre as bases cognoscitivas do saber; precisamos
opô-lo às formas de poder a que se associa. Quais os limites entre saber e
poder? A par das novas perguntas, continuarão a ser revistos, neste e no próximo
milênio, os grandes conceitos clássicos de alma e corpo, de Natureza e Espírito,
de consciente e inconsciente, de conduta moral, de vida, de sexo, de objetividade,
de subjetividade e até de ação - eis que, numa escala inimaginável outrora,
como demonstram a destruição dos ambientes naturais e a engenharia genética,
os efeitos da atividade humana, tecnicamente conduzida, exigem o alargamento
das noções de responsabilidade moral, jurídica e política.
Não posso afirmar que a época vindoura seja uma era de mutantes; mas
sei que se prolongará, muito além do ano 2000, a mutação de conceitos que a
Filosofia parteja em nossos dias.

REFERÊNCIAS
ARISTÓSTELES. Tópicos, Abril Cultural, 1978, capítulo XII.
COLI, Giorgio. La naissance de la Philosophie. Editions de l‘Aire, 1975, p. 114.
DILTHEY. Leibniz e sua época. Coimbra, Armênio Amado Editor, 1947, p. 24.
FOCILON, Henri. O ano 1000. Lisboa: Editorial Estampa, 1977, pp. 54/72.
NUNES, Benedito. Crivo de papel. São Paulo: Ática, 1998.
UNAMUNO, Miguel de. Del sentimiento trágico de la vida. Buenos Aires: Ed.
Losada, 1966, p. 31

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