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MEUS OITO ANOS (CASSIMIRO DE ABREU)

Oh! Que saudades que tenho


Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!

Como são belos os dias


Do despontar da existência!
- Respira a alma inocência
Como perfumes a flor;
O mar é - lago sereno,
O céu - um manto azulado,
O mundo - um sonho dourado,
A vida - um hino d'amor!

Que auroras, que sol, que vida,


Que noites de melodia
Naquela doce alegria,
Naquele ingênuo folgar!
O céu bordado d’estrelas,
A terra de aromas cheia,
As ondas beijando a areia
E a lua beijando o mar!

Oh! dias da minha infância!


Oh! meu céu de primavera!
Que doce a vida não era
Nessa risonha manhã.
Em vez das mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minha irmã!

Livre filho das montanhas,


Eu ia bem satisfeito,
De camisa aberto ao peito,
- Pés descalços, braços nus -
Correndo pelas campinas
À roda das cachoeiras,
Atrás das asas ligeiras
Das borboletas azuis!
Naqueles tempos ditosos
Ia colher as pitangas,
Trepava a tirar as mangas,
Brincava à beira do mar;
Rezava às Ave-Marias,
Achava o céu sempre lindo,
Adormecia sorrindo
E despertava a cantar!

Oh! Que saudades que tenho


Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!

DISPONÍVEL EM: Casimiro de Abreu | Academia Brasileira de Letras


Meus oito anos (Oswald de Andrade)

Oh que saudades que eu tenho

Da aurora de minha vida

Das horas

De minha infância

Que os anos não trazem mais

Naquele quintal de terra

Da Rua de Santo Antônio

Debaixo da bananeira

Sem nenhum laranjais

Eu tinha doces visões

Da cocaína da infância

Nos banhos de astro-rei

Do quintal de minha ânsia

A cidade progredia

Em roda de minha casa

Que os anos não trazem mais

Debaixo da bananeira

Sem nenhum laranjais

DISPONÍVEL EM: Meus Oito Anos » Recanto do Poeta


Canção do exílio (Gonçalves Dias)

Minha terra tem palmeiras

Onde canta o Sabiá,

As aves, que aqui gorjeiam,

Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,

Nossas várzeas têm mais flores,

Nossos bosques têm mais vida,

Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,

Mais prazer encontro eu lá;

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá.

Minha terra tem primores,

Que tais não encontro eu cá;

Em cismar – sozinho, à noite –

Mais prazer encontro eu lá;

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá.


Não permita Deus que eu morra,

Sem que eu volte para lá;

Sem que desfrute os primores

Que não encontro por cá;

Sem qu’inda aviste as palmeiras,

Onde canta o Sabiá.

Disponível em: Canção do exílio – Cadernos Virtuais (escrevendoofuturo.org.br)


HINO NACIONAL
Parte I

Ouviram do Ipiranga as margens


plácidas Parte II
De um povo heróico o brado
retumbante, Deitado eternamente em berço
E o sol da liberdade, em raios esplêndido,
fúlgidos, Ao som do mar e à luz do céu profundo,
Brilhou no céu da pátria nesse Fulguras, ó Brasil, florão da América,
instante. Iluminado ao sol do Novo Mundo!
Se o penhor dessa igualdade Do que a terra, mais garrida,
Conseguimos conquistar com braço Teus risonhos, lindos campos têm mais
forte, flores;
Em teu seio, ó liberdade, "Nossos bosques têm mais vida",
Desafia o nosso peito a própria "Nossa vida" no teu seio "mais amores."
morte! Ó Pátria amada,
Ó Pátria amada, Idolatrada,
Idolatrada, Salve! Salve!
Salve! Salve! Brasil, de amor eterno seja símbolo
Brasil, um sonho intenso, um raio O lábaro que ostentas estrelado,
vívido E diga o verde-louro dessa flâmula
De amor e de esperança à terra - "Paz no futuro e glória no passado."
desce, Mas, se ergues da justiça a clava forte,
Se em teu formoso céu, risonho e Verás que um filho teu não foge à luta,
límpido, Nem teme, quem te adora, a própria
A imagem do Cruzeiro resplandece. morte.
Gigante pela própria natureza, Terra adorada,
És belo, és forte, impávido colosso, Entre outras mil,
E o teu futuro espelha essa grandeza. És tu, Brasil,
Terra adorada, Ó Pátria amada!
Entre outras mil, Dos filhos deste solo és mãe gentil,
És tu, Brasil, Pátria amada,
Ó Pátria amada! Brasil!
Dos filhos deste solo és mãe gentil,
Pátria amada,
Brasil!

Letra: Joaquim Osório Duque Estrada


Música: Francisco Manuel da Silva

DISPONÍVEL EM: hino (planalto.gov.br)


Considerações em torno das aves-balas

Ivan Ângelo

Balas perdidas transformam-se em notícia por todo o país.

Desde que isso começou — não faz muito tempo, nem pouco — mais de uma centena
de pessoas foram atingidas só na cidade do Rio de Janeiro. Em São Paulo não se conta,
ou perde-se a conta. Em Belo Horizonte, elas sinistramente trabalham em silêncio. Em
Salvador são abafadas pelo baticum dos tambores. Sem nenhum bairrismo elas voam
geral, irrompem num circo, num ônibus, numa janela de sala de estar, numa padaria,
em muitas escolas, numa praça, num banco, numa rua e se alojam num corpo. Aí se
livram da sua característica principal — a de perdidas — e se acham, são achadas.

Por que se diz perdida? Perdida é a bala que não se encontra nunca, são as que voam
até perder a força e tombam, exaustas e sem glórias de Jornal Nacional, num mato
qualquer.

A bala perdida: quem a perdeu? A linguagem tem sempre uma lógica. Quem perdeu a
bala perdida? O atirador? Pior para quem a achou. Uma pessoa quando perdida, não
tem rumo. Se diz: desorientada. Uma bala não. A bala perdida segue reta e veloz como
quem sabe aonde vai. Igualzinho às outras, suas irmãs, que levam endereço certo.

Perdida, então quer dizer o quê? Desperdiçada? A linguagem nem sempre tem lógica.
Quem perdeu a bala perdida? O atirador? Pior para quem achou.

Quando acha um corpo a bala pode ainda se chamar perdida? A que acha, mesmo não
sendo aquele corpo que buscava, será menos desperdiçada do que as outras, que
esbarram em uma simples parede?

Ninguém procura balas perdidas. Nem quem as perdeu, nem quem as encontrou, sem
querer. São indesejadas, e quanto mais o sejam, mais ansiosas parecem por alojar-se.
Essas balas voadoras, libertas da sua casca, só são realmente perdidas se ninguém
nunca mais as viu. Então são também inúteis, pois isso é a negação da sua essência
mortal.

Uma bala, quando útil, fere, mata. É criadora: cria órfãos, viúvas, pais inconsoláveis.
Quem a dispara sabe disso.

Quem fabrica e vende sabe disso. Quem recolhe impostos sobre ela sabe muito bem.
Porque ela não serve para mais nada, para isso foi feita. Seria próprio chamar de
desaparecidas essas inúteis? No país das balas perdidas, perdem-se também crianças,
chamadas desaparecidas. Mas esta já é outra história.

Não, a essas balas não se poderia chamar de desaparecidas porque ninguém sabia
delas antes de se libertarem de sua casca, ainda pacíficas, guardando para si sua
capacidade voadora e mortal. Só depois que explodem é que voam, e então se perdem
ou não.

O poeta João Cabral de Melo Neto deu um lindo nome a essas balas sem dono: ave-
bala. No poema “Morte e vida Severina”, o retirante pergunta aos que levam um
defunto: “Quem contra ele soltou / essa ave-bala”. E a resposta: “Ali é difícil dizer /
Irmão das almas, / Sempre há uma bala voando / desocupada”.

Éramos um povo acostumado à arma branca, à peixeira, ao punhal, ao facão;


herdamos a tradição ibérica de sangrar, cortar o pescoço, capar. Meninos já tinham
seu canivete de ponta. Malandros riscavam o ar com navalhas. Mulheres da vida
brandiam giletes. Numa arruaça, quem metia a mão numa cara, dava rasteiras. Em
algum momento o “te meto a faca” virou “te meto a bala”, aquele “te meto a mão na
cara” virou “te meto uma bala na cara”. Começaram a voar as aves-balas.

O que aconteceu no meio? Talvez o cinema, o faroeste, os gangsters, a TV, guerras


sujas, guerrilhas, terrorismo, drogas proibidas. Nasceu o culto da pontaria certeira.
Billy the Kid, John Wayne, Randolph Scott, Frank e Jesse James, Schwarzenegger,
Stalone, Matrix. “No século do progresso / o revólver teve ingresso / pra acabar com a
valentia” — cantou Noel Rosa nos anos 1930. Surgiu outro tipo de valente, o que fica
atrás do revólver. Não é preciso arriscar-se, chegar perto para ferir. “Mais garantido é
de bala / Mais longe fere”, diz o poeta João Cabral. Ninguém pense que a influência
estrangeira é justificativa. Não, não importamos a violência, ela é mais nossa que o
petróleo. Importamos foi a cultura da arma de fogo.

No país das balas perdidas, perdem-se também crianças, nem sempre desaparecidas.
Muitas delas, talvez a maioria, vão mais tarde brincar por aí de soltar aves-balas, nem
sempre perdidas.

ÂNGELO, Ivan. O comprador de aventuras: para gostar de ler. 2ª Ed. São


Paulo: Ática, 2003.
AMOR É FOGO QUE ARDE SEM SE VER (LUÍS DE CAMÕES)

Amor é fogo que arde sem se ver,

é ferida que dói, e não se sente;

é um contentamento descontente,

é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;

é um andar solitário entre a gente;

é nunca contentar-se de contente;

é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;

é servir a quem vence, o vencedor;

é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor

nos corações humanos amizade,

se tão contrário a si é o mesmo Amor?

DISPONÍVEL EM: users.isr.ist.utl.pt/~cfb/VdS/v301.txt


1 Coríntios 13 (BÍBLIA)

1 Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria
como o metal que soa ou como o sino que tine.

2 E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a


ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não
tivesse amor, nada seria.

3 E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que
entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me
aproveitaria.

4 O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com
leviandade, não se ensoberbece.

5 Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita
mal;

6 Não folga com a injustiça, mas folga com a verdade;

7 Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.

8 O amor nunca falha; mas havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas,
cessarão; havendo ciência, desaparecerá;

9 Porque, em parte, conhecemos, e em parte profetizamos;

10 Mas, quando vier o que é perfeito, então o que o é em parte será aniquilado.

11 Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como
menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino.

12 Porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora
conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido

13 Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três, mas o maior destes é
o amor.

DISPONÍVEL EM: 1 Coríntios 13 - ACF - Almeida Corrigida Fiel - Bíblia Online


(bibliaonline.com.br)
Monte Castelo (RENATO RUSSO)
Ainda que eu falasse a língua dos homens
E falasse a língua dos anjos
Sem amor, eu nada seria

É só o amor, é só o amor
Que conhece o que é verdade
O amor é bom, não quer o mal
Não sente inveja ou se envaidece

O amor é o fogo que arde sem se ver


É ferida que dói e não se sente
É um contentamento descontente
É dor que desatina sem doer

Ainda que eu falasse a língua dos homens


E falasse a língua dos anjos
Sem amor, eu nada seria

É um não querer mais que bem querer


É solitário andar por entre a gente
É um não contentar-se de contente
É cuidar que se ganha em se perder

É um estar-se preso por vontade


É servir a quem vence, o vencedor
É um ter com quem nos mata a lealdade
Tão contrario a si é o mesmo amor

Estou acordado e todos dormem


Todos dormem, todos dormem
Agora vejo em parte
Mas então veremos face a face

É só o amor, é só o amor
Que conhece o que é verdade
Ainda que eu falasse a língua dos homens
E falasse a língua dos anjos
Sem amor, eu nada seria

DISPONÍVEL EM: Monte Castelo - Legião Urbana - VAGALUME

TRECHO DE MORTE E VIDA SEVERINA (JOÃO CABRAL DE MELO NETO)


MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida Severina. 1ª Ed. Alfaguara. 2007.
O HOMEM OLHANDO O MAR (FERNANDO SABINO)

Ela carregava a pasta contra o peito, e caminhava com estudada displicência – o que, de
certo modo, disfarçava a deselegância do uniforme. Deu uma corridinha para atravessar
a rua e depois se compenetrou, tentando fazer-se adulta. Logo se distraía, de vitrine,
com seu próprio corpo que passava, refletido no vidro – às vezes estacando para olhar
um vestido, uma bolsa, um sapato Bárbaro, murmurava.Na esquina se deteve junto à
carrocinha de sorvete:

- De chocolate. A mãe era capaz de dizer que não ficava bem uma moça de 13 anos
tomando sorvete pela rua afora. Ainda mais nesse passinho saltitante, evitando as listas
pretas da calçada, só pisando nas brancas. Pouco se importava: muita coisa que não
ficava bem ela gostava de fazer. Por exemplo: tirar o sapato ali mesmo e andar descalça,
dava vontade. Outro exemplo: matar a última aula, pois não era isso mesmo? Sorvete
acabado, ficou pensando se agora não seria o caso de comprar um sacode pipocas.
Enquanto decidia, olhava os cartazes de cinema. Por um instante teve a tentação de
entrar. Isto é, se o dinheiro desse. Isto é se desse tempo. Isto é, se já não tivesse visto
aquele filme.- Amanhã vou pedir ao papai – afirmou, como se falasse para o próprio
sapatinho branco na vitrine, logo adiante: bárbaro também. O pai, naquele instante na
cidade, trabalhando no escritório. O que eu estou precisando é tomar juízo, concluiu.
Mas, francamente: só a última aula. Ainda mais numa tarde tão bonita como aquela.
Virou a esquina em direção ao mar.O mar. Ondas que se quebravam lá adiante,
espumando verde. Ao longe, cruzando a barra, um navio branco. O azul do céu sem
uma nuvem, a areia dourada. Foi andando devagar, ao longo da praia, reconciliada com
o mundo, leve, distraída, olhando o mar. De repente estacou, surpresa: num dos bancos,
logo adiante, um homem também olhando o mar. Um homem alto como seu pai,
curvado como seu pai, olhando o mar. Mas, àquela hora, sentado sozinho num banco de
praia, paletó largado ao colo, olhando o mar? Virou rapidamente o rosto, porque ele se
movera e já podia tê-la visto. Deu-lhe as costas e atravessou a ruía, aturdida com a
descoberta: ele também matava aula para ficar olhando o mar. Antes de desaparecer na
esquina, arriscou ainda um olhar furtivo, para confirmar lá está ele. Teve a impressão de
que agora ele é que virava o rosto, para não ser reconhecido. Por via das dúvidas, foi
logo para casa. Já era tempo mesmo: chegou à hora de sempre. À noite, ele chegou
também à hora de sempre. E durante o jantar, a uma pergunta da mulher, enfrentou a
família com o costumeiro sorriso de cansaço. - Tive um dia atarefadíssimo, hoje.Olhou
a filha, meio ressabiado, mas ela já lhe devolvia o olhar, com ternura. Uma ternura
cúmplice.

(Fernando Sabino)

DISPONÍVEL EM: Homem olhando o mar | Crônicas | Portal da Crônica Brasileira


(cronicabrasileira.org.br)
BANHO DE MAR (CLARICE LISPECTOR)

Meu pai acreditava que todos os anos se devia fazer uma cura de banhos de mar. E
nunca fui tão feliz quanto naquelas temporadas de banhos em Olinda.

Meu pai também acreditava que o banho de mar salutar era o tomado antes do sol
nascer. Como explicar o que eu sentia de presente inaudito em sair de casa de
madrugada e pegar o bonde vazio que nos levaria para Olinda, ainda na escuridão?

De noite eu ia dormir, mas o coração se mantinha acordado, em expectativa. E de puro


alvoroço, eu acordava às quatro e pouco da madrugada e despertava o resto da família.
Vestíamos depressa e saíamos em jejum. Porque meu pai acreditava que assim devia
ser: em jejum.

(…)Eu não sei da infância alheia. Mas essa viagem diária me tornava uma criança
completa de alegria. E me serviu como promessa de felicidade para o futuro. Minha
capacidade de ser feliz se revelava. Eu me agarrava, dentro de uma infância muito feliz,
a essa ilha encantada que era a viagem diária.

O mar de Olinda era muito perigoso. Davam-se alguns passos em um fundo raso e de
repente caía-se num fundo de dois metros, calculo. Outras pessoas também acreditavam
em tomar banho de mar quando o sol nascia. Havia um salva-vidas que, por uma
ninharia de dinheiro, levava as senhoras para o banho: abria os dois braços, e as
senhoras agarravam-se a eles para lutar contra as ondas fortíssimas do mar.

O cheiro do mar me invadia e me embriagava. As algas boiavam. Oh, bem sei que não
estou transmitindo o que significavam como vida pura esses banhos em jejum, com o
sol se levantando pálido ainda no horizonte. Bem sei que estou tão emocionada que não
consigo escrever. O mar de Olinda era muito iodado e salgado. E eu fazia o que no
futuro sempre iria fazer: com as mãos em concha, eu as mergulhava nas águas e trazia
um pouco de mar até minha boca: eu bebia diariamente o mar, de tal modo queria me
unir a ele.

Não demorávamos muito. O sol já se levantara todo, e meu pai tinha que trabalhar cedo.
Mudávamos de roupa nas cabinas, e a roupa ficava impregnada de sal. Meus cabelos
salgados me colavam na cabeça. Então esperávamos, ao vento, a vinda do bonde para
Recife. No bonde a brisa ia secando meus cabelos duros de sal.

A quem devo pedir que na minha vida se repita a felicidade? Como sentir com a
frescura da inocência o sol vermelho se levantar? Nunca mais? Nunca mais. Nunca.

Clarice Lispector, A Descoberta do Mundo.

DISPONÍVEL EM: Banho de Mar, com Clarice - Espírito do Chá


(espiritodocha.com.br)
Canto de regresso à Pátria (Oswaldo de Andrade)

Minha terra tem palmares

Onde gorjeia o mar

Os passarinhos daqui

Não cantam como os de lá

Minha terra tem mais rosas

E quase tem mais amores

Minha terra tem mais ouro

Minha terra tem mais terra

Ouro terra amor e rosas

Eu quero tudo de lá

Não permita

Deus que eu morra

Sem que volte para lá

Não permita Deus que eu morra

Sem que volte pra São Paulo

Sem que eu veja a rua 15

E o progresso de São Paulo

ANDRADE, O. Cadernos de poesia do aluno Oswald. São Paulo: Cfrculo do Livro. s/d.
FERNANDO
PESSOA
Poesias de
Álvaro de Campos
ANIVERSÁRIO

No tempo em que festejavam o dia dos meus


anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma
tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com
uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus


anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,


O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui --- ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,


Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das
minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...


Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos
dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça,
com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas o resto na sombra
debaixo do alçado---,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa, No
tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!


Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

Álvaro de Campos, 15-10-1929

DISPONÍVEL EM: www.insite.com.br/art/pessoa/ficcoes/acampos/473.php


Profundamente (MANUEL BANDEIRA)

Quando ontem adormeci


Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.

No meio da noite despertei


Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?
— Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.

Quando eu tinha seis anos


Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo


Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?

— Estão todos dormindo


Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.
DISPONÍVEL EM: Profundamente - Poema de Manuel Bandeira (escritas.org)

Feito bala perdida (RICARDO AZEVEDO)


Crianças sem eira nem beira comendo

o lixo nosso de cada dia

Sonhos de propaganda & marketing

resfolegando em busca de todos os cios

Utopia reduzida a viver para ter mais e mais lucro

Lindas moças esqueléticas alimentadas por espelhos

de mentira

Elite fraudulenta formando e contratando

técnicos acríticos

Cachorros produtos e pessoas disputando espaços

em capas de revista

Alegria artificial obtida através de drágeas

drogas e dreams

Gente disposta ao câncer lutando alegremente para

encher o cofre dos fabricantes de fumaça

Felicidade televisiva entorpecendo corações e mentes

Paz transformadora em consumismo e outros bingos

Donos do poder especializados na criação e

exploração de mão de obra escrava

Indústrias de educação replicando consumidores

desempregados e carecas do abc

Modos de ser ter e viver determinados por nossos

patrocinadores

Vidas a esmo ricocheteando no espaço

feito bala perdida.

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