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CAROLE PATEMAN E A CRÍTICA FEMINISTA

DO CONTRATO*

Luis Felipe Miguel


Universidade de Brasília (UnB), Brasília – DF, Brasil. E-mail: luisfelipemiguel@gmail.com

DOI: http//dx.doi.org/10.17666/329303/2017

Se definimos os primórdios do feminismo feminista do século XIX é o sufragismo: a luta pelo


como vinculados à obra de Mary Wollstonecraft direito de voto sintetiza a exigência de igualdade
(2001 [1792]), podemos caracterizá-lo, em grande política entre mulheres e homens.
medida, como um movimento por inclusão política. O que marca o pensamento de Wollstonecraft
Tratava-se de estender às mulheres os direitos que como feminista é a vinculação, que ela faz com vee-
o pensamento liberal atribuía aos homens e que mência, entre a exclusão na esfera pública e a opres-
a Revolução Francesa prometia conceder a todos são no espaço privado; dito de outra forma, ela
os homens. O eixo das reivindicações era o aces- introduz a crítica à distinção público/privado, que
so à esfera pública e um conjunto de direitos que será própria do feminismo até hoje. É possível dizer
eram necessários para que tal acesso pudesse ocor- que o sufragismo venceu a batalha em relação à sua
rer, como os direitos à educação e à propriedade. agenda específica – o direito de voto foi conquista-
Não por acaso, a face mais visível do movimento do pelas mulheres, na maior parte dos regimes elei-
torais, nas primeiras décadas do século XX.1 Mas
* Este artigo foi produzido no âmbito da pesquisa “Te- tal vitória não foi acompanhada de uma redefinição
oria democrática, dominação política e desigualdades das hierarquias no espaço doméstico ou da redis-
sociais”, apoiada pelo CNPq com uma bolsa de Pro- cussão das fronteiras entre público e privado.
dutividade em Pesquisa. Agradeço a leitura prévia e os O feminismo que reemerge na metade do sé-
comentários de Flávia Biroli e de Regina Dalcastagnè. culo XX, cujo marco é a obra de Simone de Beau-
Artigo recebido em 11/11/2015 voir (1949), apresenta uma aproximação diferente
Aprovado em 04/07/2016 em relação à política. A política em sentido estrito
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é praticamente uma ausência. Em Beauvoir, assim tiva crítica (ou, antes, um conjunto de alternati-
como em Betty Friedan (2001 [1963]) ou Ger- vas críticas) às concepções hegemônicas.
maine Greer (1991 [1970]), para citar duas obras É possível dizer que a obra que marca a chega-
centrais do desencadeamento da chamada “segunda da desse projeto a seu estágio maduro é O contrato
onda” do feminismo, o foco está na construção so- sexual, da cientista política britânica Carole Pate-
cial da mulher e nos limites impostos à sua agência man (1988). Ela faz uma leitura em profundida-
autônoma. São questões eminentemente políticas, de da tradição do pensamento político ocidental e
é claro, e o feminismo desde então contribui para apresenta uma reinterpretação feminista de um de
forçar e redefinir os limites do que entendemos seus elementos-chave, a noção de contrato social.
como política. Mas a atenção dada à política insti- Enquanto na narrativa contratualista, que domi-
tucional e o diálogo com as tradições da teoria polí- nou a filosofia política dos séculos XVII e XVIII
tica são praticamente nulos. e conheceu um revival a partir dos anos de 1970, o
Neste momento, a denúncia do patriarcado, contrato é o instrumento que formaliza a igualdade
como forma de dominação política, é fortemente civil, a inclusão da categoria “gênero” permite en-
retórica e com reduzido desenvolvimento teórico, tendê-lo como definidor de assimetrias e exclusões.
já que se julga que o império do patriarcado “é evi- Pateman avança na direção de uma crítica abran-
dente, uma vez que se lembra que forças armadas, gente ao contrato, que para o pensamento liberal
indústria, tecnologia, universidades, ciência, cargos garante a possibilidade de cooperação social sem
políticos e finança – em suma, cada caminho para o coerção, na medida em que se baseia em consenti-
poder dentro da sociedade, incluindo a força coer‑ mentos voluntários e acordos mútuos, mas que ela
citiva da polícia, está inteiramente em mãos mas- descreve como produtor de padrões de submissão.
culinas” (Millett, 2000 [1969], p. 25). O sexismo Neste artigo, apresento uma leitura abrangente
é apresentado “como raiz e paradigma das várias da obra de Pateman, buscando identificar as contri-
formas de opressão” (Daly, 1993 [1973], p. 56), e buições – significativas – que ela faz a uma ciência
o estupro, como “modelo da construção de armas crítica da política. Na primeira seção, trato da Pa-
nucleares, racismo, pobreza causada pelo homem, teman “pré-feminista”. Suas obras iniciais, embora
contaminação química” (Idem, p. xvi). Em suma, não tenham uma preocupação focada nas relações
grande parte da formulação feminista, até finais da de gênero, já indicam muitos dos temas que surgi-
década de 1970, passa ao largo da teoria política. rão depois. Na segunda seção, debruço-me sobre O
Só a partir de então começa a se formar uma contrato sexual, a obra em que a discussão sobre as
teoria política feminista propriamente dita. Ela desigualdades entre homens e mulheres encontra
passa por uma revisão crítica dos pressupostos do as discussões anteriores da autora sobre o signifi-
pensamento político ocidental, em especial assi- cado social do consentimento. Na terceira seção,
nalando como a divisão entre as esferas pública e discuto até que ponto a leitura de Pateman sobre o
privada, naturalizada e assumida como incontes- contrato serve para compreender as assimetrias de
tável, é crucial tanto para o estabelecimento do gênero nas sociedades contemporâneas.
espaço da política tal como ele está constituído
quanto para a exclusão das mulheres desse mesmo
espaço. Longe de ser um acontecimento contin- A democracia liberal como limite
gente, tal exclusão é condição necessária para e à autonomia
consequência inevitável da maneira como a po-
lítica e as instituições são concebidas (Brennan A crítica de Carole Pateman aos limites do li-
e Pateman, 1979; Okin, 2013 [1979]; Elshtain, beralismo é anterior à preocupação com as questões
1993 [1981]). A partir daí, o feminismo ressitua de gênero. Sua obra pré-feminista já apresenta uma
a discussão sobre os principais temas da teoria denúncia das formas naturalizadas de submissão
política – democracia, representação, justiça, ci- presentes na sociedade, a começar por seu livro de
dadania, identidade – apresentando uma alterna- estreia, o influente Participação e teoria democrática
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(Pateman, 1992 [1970]). Seu alvo são as democra- minação e exploração torna-se, graças ao contrato,
cias liberais vigentes no mundo ocidental, em que a cooperação interindividual.
promessa de soberania popular é reduzida à transfe- Seu foco, como o título já indica, é a “obrigação
rência de poder pelo voto. Ela anota a contradição política”: o que faz com que uns poucos mandem
entre o chamamento eventual à participação, no e os restantes devam obedecer. Como ela observa
momento das eleições, e o treinamento contínuo em outro momento, a noção liberal de indivíduos
para a passividade e a obediência, nas relações ver- “naturalmente” livres e iguais revoluciona a discus-
ticalizadas e autoritárias dominantes nos diferentes são “sobre relações de autoridade de todos os tipos;
espaços da vida cotidiana – em particular, nas re- como e por que um indivíduo livre e igual pode,
lações de trabalho. Apoiando-se em Jean-Jacques alguma vez, ser legitimamente governado por outra
Rousseau, em John Stuart Mill e no defensor da pessoa” (Pateman, 1989, p. 72). Para o contratua-
democracia industrial, G. D. H. Cole, ela propõe lismo liberal, a única resposta possível é a obrigação
um modelo democrático renovado, em que as pes- autoassumida. O compromisso de obedecer a outro
soas participam diretamente da tomada de decisões implica uma restrição à liberdade individual que
que afetam seu dia a dia, como maneira tanto de “só é compatível com o postulado inicial de liber-
ampliar sua autonomia quanto de qualificá-las para dade e igualdade se o indivíduo se coloca volunta-
outras formas de intervenção política. riamente na relação. A relação de obrigação é justi-
Há dois elementos, em Participação e teoria de- ficada porque o indivíduo a criou para si mesmo,
mocrática, que sinalizam desdobramentos posterio- com completo conhecimento daquilo que ela en-
res da reflexão de Pateman. O primeiro deles é que, volve” (Pateman, 1985 [1979], p. 13). É a narrativa
embora não esteja preocupada com questões de gê- que está presente em Thomas Hobbes ou em John
nero e não dê atenção ao ambiente familiar, ela já Locke: diante dos muitos problemas do estado de
põe em xeque a fronteira entre o público (o Estado, liberdade natural, em que não há autoridade esta-
em que processos democráticos de decisão são acei- belecida, as pessoas entendem que é necessária uma
tos e mesmo requeridos) e o privado (as empresas, sociedade política e, por isso, decidem estabelecer
nas quais é legítimo que impere o arbítrio do pa- um pacto que produz um governo e, simultanea-
trão). O segundo é a recusa a aceitar ao pé da letra mente, a obrigação de que todos obedeçam a ele.
as maneiras pelas quais a submissão é formalmen- Entre os muitos problemas que emergem da
te admitida como voluntária e, portanto, legítima. formulação contratualista, três se destacam. O
Ainda que, na democracia liberal, a participação no primeiro é a maneira pela qual os indivíduos par-
processo eleitoral seja compreendida como a aceita- ticipantes do pacto transacionam suas liberdades,
ção da autoridade que dele resulta, na ausência de assinalando aquilo que, na teoria política, é chama-
condições para uma ação efetiva e esclarecida esses do de “individualismo possessivo” (Macpherson,
resultados são injustos e carentes de legitimidade. 1962): os direitos individuais são como proprieda-
É esse segundo ponto que organiza o livro se- des, externas a cada pessoa e logo negociáveis. Há,
guinte de Pateman, no qual, embora ainda dando assim, uma contradição entre o sistema jurídico
às questões de gênero um estatuto secundário, ela fundado na noção de direitos inalienáveis e a or-
estabelece o arcabouço geral do que será sua contri- dem política que legitima uma autoridade que seria
buição ao pensamento feminista. The problem of po- fruto da alienação de direitos. Pano de fundo tanto
litical obligation (Pateman, 1985 [1979]) apresenta de The problem of political obligation quanto de O
um escrutínio crítico abrangente da visão liberal contrato sexual, o tema foi tratado em artigo poste-
do contrato, indicando como o pressuposto de que rior de Pateman (2009 [2002]).
relações contratuais são voluntárias e mutuamente O segundo problema, central na discussão
benéficas funciona para que, por meio de contra- apresentada em O contrato sexual, é o das exclusões.
tos, formas de submissão de algumas pessoas a ou- Nem todos os indivíduos presentes no estado de
tras passem de ilegítimas a legítimas, de injustas a natureza participam do pacto. Locke, por exemplo,
justas, de condenáveis a aceitáveis. O que seria do- assume uma exigência de racionalidade que lhe per-
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mite afastar crianças, mulheres e trabalhadores. A não investigam o significado desse consentimento
atribuição de racionalidade deficiente para os dois (Idem, p. 81; Pateman, 1989, p. 71). Caso inves-
primeiros grupos estaria ancorada na sua imaturi- tigassem, teriam de colocar em xeque uma ordem
dade e na sua debilidade intelectual inata. No caso que é marcada simultaneamente pela transferên-
dos trabalhadores, o fato de que não conseguiram se cia de poderes e pela desigualdade. Da análise dos
tornar patrões provaria o uso insatisfatório da razão. problemas da obrigação política resulta a com-
Com o passar do tempo, a ordem liberal “sanou” preensão de que “a crítica que afirma que a maior
boa parte dessas exclusões, incorporando formal- parte da teoria democrática liberal é uma mera de-
mente mulheres e não proprietários à cidadania fesa ideológica do status quo é mais fundamental e
política, mas essa inclusão não anula o fato de que devastadora do que em geral se supõe” (Pateman,
o cidadão abstrato, pressuposto pelas instituições, 1985 [1979], p. 5).3
sempre foi o homem burguês.2 O que a teoria contratualista e, a partir dela, a
O terceiro problema, enfim, está ligado ao ca- teoria democrática liberal apresentam como essên-
ráter conjectural do consentimento. Mesmo que se cia da obrigação política é a promessa de obedecer
aceite a ficção do pacto originário, ele não vincu- (feita pelo governado ao governante). No entanto,
laria as gerações subsequentes. Pateman mostra a seguindo Rousseau, a autora entende que a pro-
inadequação dos dois grandes eixos de resposta à messa de obedecer é inaceitável porque revoga (ou,
questão. Há soluções baseadas no que ela chama de ao menos, limita) as capacidades que permitem o
“voluntarismo hipotético” (Pateman, 1985 [1979], próprio ato de prometer (Idem, p. 19). Essa críti-
p. 16), que nasce já com Locke: ao aceitar os be- ca aos mecanismos de “submissão voluntária” é um
nefícios da vida social (por exemplo, desfrutando dos eixos centrais de O contrato sexual, em que Pa-
do direito de propriedade ou da segurança pública, teman analisa diferentes procedimentos pelos quais
ou simplesmente usando uma estrada), o indivíduo as mulheres são convocadas a consentir “livremen-
tacitamente aderiria ao contrato. A inversão nos te” com a dominação masculina.
termos da “arquitetura da escolha”, que faz da ade-
são ao contrato o comportamento padrão (uma vez
que estamos cercados pelos frutos da vida social) O sexo do contrato
e exige um esforço de quem deseje não participar
dele, desnuda o caráter não voluntário da obrigação Em O contrato sexual, Pateman indica que,
política. para decifrar a posição do contrato no pensamen-
A outra resposta é o voto. Ao participar do pro- to liberal, é necessário investigar simultaneamente
cesso eleitoral, cada cidadão estaria afirmando seu suas três expressões principais: o contrato social,
comprometimento com a ordem política em geral. o contrato de trabalho e contrato de casamento.4
Para além dos problemas banais com essa ideia – A teoria política dominante, diz ela, deturpa siste-
não é possível derivar a obrigação política em uma maticamente os dois primeiros e ignora o último
situação de voto obrigatório, nem afirmar a obriga- (Pateman, 1988, p. x). No livro, ela estuda deti-
ção dos que se abstêm (Idem, p. 86) –, há o fato de damente os contratos de trabalho e de casamento,
que se assume que o ato de votar implica o consen- mas seu objetivo principal é entender qual o papel
timento ao sistema político, sem se preocupar em que a sujeição das mulheres aos homens desempe-
analisar o que o eleitor realmente deseja expressar nha no contrato social.
(por exemplo, caso escolha candidatos revolucioná- Ela entende que a crítica feita ao contrato, a
rios). Em suma, “desconsiderar a intenção dos vo- partir sobretudo da tradição socialista e marxista,
tantes é tratar seu voto como um gesto desprovido é uma crítica focada nos mecanismos de explora-
de significado” (Idem, p. 88). ção que são muitas vezes revestidos com relações
Assim, os teóricos e cientistas políticos apre- contratuais. Assim, o relato clássico da extração
sentam o “consentimento dos governados” como da mais valia é que o trabalhador, desprovido de
característica central da democracia liberal, mas outras mercadorias para oferecer no mercado, é
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constrangido a vender sua força de trabalho. Mas liberdade que era condição para seu próprio estabe-
a força de trabalho é uma mercadoria especial: ela lecimento. Pensadores ultraliberais, que estendem
gera mais riqueza do que a necessária para se repro- ao máximo o princípio do individualismo posses-
duzir. Levado pela necessidade, o trabalhador aceita sivo, afirmam posição contrária. Para eles, a liber-
um contrato de assalariamento que sacramenta sua dade precisa incluir o direito de se vender como
exploração: ele vai produzir mais valor do que rece- escravo (Nozick, 1974, p. 331). Afinal, como dizia
berá em pagamento (Marx, 2013 [1867], seção V). outro autor da corrente, “os únicos direitos huma-
Não há dúvida de que o relato centrado na nos [...] são direitos de propriedade” (Rothbard,
exploração é relevante. Mas Pateman quer desta- 2006 [1970], p. 291). A distinção entre o indiví-
car outro aspecto, em geral negligenciado: a su- duo e suas propriedades externas é apagada.
bordinação presente no contrato. Seja no contrato É claro que a maior parte dos autores, sobre-
de trabalho, seja no contrato de casamento, há o tudo no contratualismo contemporâneo, recusa a
estabelecimento de uma hierarquia pela qual um linguagem da alienação de direitos. É a defesa aber-
dos contratantes (o patrão ou o marido) exerce ta da alienação de direitos que faz com que, para
autoridade sobre o outro (o trabalhador ou a mu- Samuel Freeman (2002) como para Susan Okin
lher). A subordinação é condição necessária para (1990), o libertarianismo à la Nozick seja conside-
que, tanto no trabalho quanto no casamento, a rado uma doutrina alheia ao liberalismo. Para Pa-
exploração possa ocorrer (Pateman, 1988, p. 8). teman, o ponto é outro. Contratos que envolvem
Há, aqui, ecos da obra inicial da autora, simpática a submissão pessoal implicam a restrição efetiva
à democracia industrial: é o exercício de autorida- ao exercício de direitos. Posso mantê-los nominal-
de do patrão que permite que ele obrigue os traba- mente, mas estou numa posição em que careço de
lhadores a jornadas e a um ritmo de trabalho que autonomia para ativá-los, estando sob o arbítrio
proporcionam a exploração. de outrem. É o caso do trabalhador (de ambos os
A fórmula do contrato permite a legitimação sexos) no contrato de emprego e da mulher no ma-
das relações interpessoais de subordinação porque trimônio tradicional. Há uma efetiva, ainda que
está assentada no individualismo possessivo. A mu- não declarada, alienação de direitos.
lher ou o trabalhador podem abrir mão de uma boa A questão importante, para Pateman, é com-
parte de sua autonomia, em troca do salário ou da preender a dubiedade envolvida na noção, que re-
proteção do marido, porque se julga que são “pro- monta a Locke, de que cada indivíduo possui uma
prietários de si mesmos” e, portanto, podem alienar propriedade em sua própria pessoa. Por um lado, é
direitos como se alienam propriedades externas. uma noção que permite avançar na defesa de direi-
Há dois ganchos para críticas aqui. O primeiro é tos individuais dos trabalhadores e das mulheres.
que tais decisões, vistas como “livres”, são frutos de “Marx não poderia ter escrito O capital e formula-
imposições materiais e simbólicas e da ausência do o conceito de força de trabalho sem ela”, assim
de alternativas. Não é à toa que o capitalismo blo- como ela encoraja “muitas campanhas feministas,
queou sistematicamente todas as formas que os não do passado e do presente, de tentativas de reformar
proprietários tinham de garantir sua própria sub- a legislação do casamento e de obter cidadania até
sistência, desde o cercamento das terras comunais, demandas pelo direito de aborto” (Pateman, 1988,
ainda no início da Idade Moderna, como forma de pp.13-4). Por outro lado, a noção de propriedade
forçá-los ao assalariamento. Ou que, nas sociedades de si mesmo legitima formas de abdicação de direi-
marcadas pela dominação masculina, as mulheres tos e de subordinação, impedindo que se avance na
solteiras são impedidas de desfrutar da sua liberda- crítica à sociedade presente. Sem romper com ela,
de, pela lei ou pelos costumes.5 Marx não teria chegado à denúncia da alienação
A segunda dimensão da crítica, que é mais cen- sob o capitalismo. E tampouco – o que é crucial
tral para Pateman e que se inspira em Rousseau, para o desenvolvimento do restante do livro –o fe-
é que não pode ser aceito um contrato que, ainda minismo não seria capaz de questionar a construção
que livremente acordado, retira de uma das partes a do “indivíduo” liberal, à imagem e semelhança do
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homem proprietário. Portanto, não seria capaz de tal posição, manifesta-se a tendência de transfor-
colocar em xeque a “construção patriarcal da femi- mar a diferença sexual e também a esfera privada
nidade”6 (Idem, p. 15). em questões politicamente irrelevantes (Pateman,
Para entender esse processo, é necessário re- 1988, pp. 3, 6 e 17). Com isso, perde-se a com-
contar a história do contrato social. As narrativas preensão de como a diferença sexual é presente e
canônicas do contratualismo dos séculos XVII e ativa nas instituições e nas formas de pensar o
XVIII contam que os seres humanos partiriam mundo político. Anulá-la permite superar as ex-
de um hipotético estado de natureza, em que não clusões formais, mas não enfrentar os mecanis-
havia hierarquia e todos eram livres e iguais. No mos excludentes informais, atuantes nas práticas
entanto, tal estado era ruim, impedindo que hou- correntes.
vesse segurança e progresso (para Hobbes, Locke Trata-se, então, de entender que o contrato
e Kant), ou instável, caminhando rumo à própria sexual, que determina a sujeição das mulheres aos
dissolução (para Rousseau). Assim, as pessoas no homens, é indissociável do contrato social, que cria
estado de natureza percebem que é necessário que uma sociedade em que esses homens serão preten-
elas se associem, formando uma comunidade e, samente livres e iguais:
dentro dela, estabelecendo formas de exercício da
autoridade, de uma maneira que varia de pensa- A dominação dos homens sobre as mulheres e o
dor para pensador. Para todos eles, porém, as mu- direito dos homens de desfrutar de igual acesso
lheres estão ausentes do pacto de associação, seja sexual às mulheres estão em questão na produção
em razão de sua inferioridade natural (segundo do pacto original. O contrato social é uma histó-
Locke, Rousseau e Kant), seja por motivos cir- ria de liberdade; o contrato sexual é uma história
cunstanciais (segundo Hobbes, para quem, origi- de sujeição. O contrato original constitui tanto a
nalmente igual ao homem, a mulher se fragiliza ao liberdade quanto a dominação. A liberdade dos
assumir a responsabilidade pelos filhos). homens e a sujeição das mulheres são criadas por
É característico da teoria política tradicional meio do contrato original – e a natureza da liber-
que essa exclusão das mulheres seja vista como algo dade civil não pode ser entendida sem a metade
contingente. Se alguns preconceitos são superados faltante da história, que revela como o direito pa-
e passamos a entender que elas devem ter acesso triarcal dos homens sobre as mulheres é estabele-
à cidadania plena, basta retirar a cláusula que as cido por meio de contrato (Idem, p. 2).
proscreve e o resto do modelo continua inalterado.
Nem é preciso ficar na Idade Moderna para obser- Pateman lê a teoria do contrato como uma
var o fenômeno; ele aparece em autores centrais da atualização da ideologia do patriarcado, adaptada
filosofia política contemporânea. Jürgen Habermas a circunstâncias políticas renovadas. O termo, que
(1984 [1962]) anotou a ausência das mulheres de no discurso corrente aparece muitas vezes como
sua esfera pública idealizada, mas não julgava que um sinônimo para “dominação masculina”, possui
tivesse maiores implicações, o que foi criticado por um sentido preciso na história das ideias, o que le-
feministas (Fraser, 1992). O mais importante au- vou muitas feministas a contestarem seu uso para
tor neocontratualista, John Rawls (1971), fazia sua descrever as sociedades contemporâneas. Nem o
imaginária “posição original” ser monopólio dos patriarcado como forma de organização política
“chefes de família”. Aceitando a crítica de autoras (remetendo a um absolutismo que entendia a na-
feministas (Okin, 1989), adicionou explicitamente ção como dotada de vínculos orgânicos similares
a igualdade de gênero a seu ideal normativo, sem aos que existiriam nas famílias), nem o patriarcado
julgar que ela promovesse alterações substantivas na como forma de organização doméstica (que supõe
proposta (Rawls, 2001). uma família que incorpora mais de uma geração e
Ou seja: para os contratualistas, a diferença também um contingente de agregados e serviçais,
sexual era politicamente relevante, uma vez que sob o domínio incondicional do patriarca) corres-
embasava a exclusão das mulheres. Na resposta a pondem ao mundo atual.
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Nas palavras de Jean Bethke Elshtain, a “so- necessidade política de seu uso, como ferramenta
ciedade capitalista avançada e pluralista está tão retórica. A própria Pateman não se furta a tal cami-
distante dos contornos do caso paradigmático [do nho, afirmando que “se o problema não tem nome,
patriarcado] que rotular a ambos como ‘patriarcal’ é o patriarcado pode facilmente deslizar de novo para
embaralhar e distorcer a realidade” (Elshtain, 1993 a obscuridade, sob as categorias convencionais da
[1981], p. 215). Da mesma forma, seria enganador análise política” (Pateman, 1988, p. 20). A posição
estabelecer uma equivalência entre o modelo atual é expressa com maior franqueza ainda por Michèle
de família nuclear vigente no Ocidente, em que Barrett, ao explicar por que recuou de sua crítica
marido e mulher estão formalmente em situação anterior à aplicação do conceito de patriarcado à
de maior equilíbrio (sobretudo com a derrubada, sociedade contemporânea. Mesmo que haja um
ao longo do século XX, dos diplomas legais que erro do ponto de vista histórico, permanece o valor
determinavam a autoridade masculina), da famí- de um uso “simbólico”, que serve para afirmar “o
lia patriarcal propriamente dita. Em vez de buscar caráter independente da opressão das mulheres e
uma essência invariável, que a ideia de patriarcado evitar explicações que a reduzam a outros fatores”
expressaria, é mais útil entender como a dominação (Barrett, 1988b, p. XIII).
masculina é capaz de subsistir mesmo quando as O segundo caminho é uma defesa da validade
formas que adotava são substituídas.7 intrínseca do conceito para apreender a dominação
Nas sociedades ocidentais contemporâneas, as masculina contemporânea. Para trilhá-lo, Pateman
relações de subordinação direta de uma mulher es- produz uma reinterpretação da história do pensa-
pecífica a um homem específico, que eram caracte- mento patriarcal, que ela periodiza entre três etapas.
rísticas do patriarcado histórico, foram substituídas O patriarcado tradicional estabelece uma analogia
em grande medida por formas coletivizadas de do- entre a autoridade na família e a autoridade no Esta-
minação. São estruturas impessoais que distribuem do. A família é tanto uma metáfora da sociedade po-
vantagens e oportunidades, em prejuízo do gênero lítica quanto sua origem, já que o Estado seria o re-
feminino (Okin, 1989, pp. 138-139). Com as mu- sultado da união de muitas famílias (Pateman, 1988,
danças no casamento, ele tampouco se adequa ao pp. 23-24). Tal relação é reforçada na segunda etapa,
modelo de autoridade absoluta do marido. É mais que ela chama de patriarcado clássico e que estabelece
adequado defini-lo como uma “parceria desigual”, não uma mera analogia, mas uma identificação com-
em que as mulheres estão em posição de desvanta- pleta entre o poder do pai e o do governante.
gem (Fraser, 1997, p. 229). A maior expressão do patriarcado clássico sur-
Por isso, essas autoras feministas preferem en- giu no século XVII, no livro Patriarcha, obra pós-
tender o patriarcado apenas como uma manifesta- tuma de Robert Filmer. Seu objetivo era justificar
ção histórica específica de um fenômeno mais pe- o poder absoluto do rei da Inglaterra, o que ele
rene e abrangente, a dominação masculina – mais faz derivando a autoridade política diretamente
ou menos como, para o marxismo, “feudalismo” ou da autoridade paterna e do direito de primogeni-
“capitalismo” são expressões historicamente cir- tura. De maneira simplificada, o argumento é o de
cunscritas da dominação de classe. O paralelo é que Deus concedeu a Terra a Adão, que a legou
“mais ou menos” porque, na percepção marxista, como herança a seu filho primogênito. O monar-
as classes dominantes variam de modo de produ- ca inglês seria o primogênito dos primogênitos de
ção para modo de produção, ao passo que na do- Adão, governando seus súditos da forma irrestrita
minação masculina há uma maior continuidade: como o patriarca governa sua casa: “O pai de uma
os homens estão sempre no polo dominante e as família governa sem outra lei que sua vontade, não
mulheres, no dominado. pelas leis ou vontades de seus filhos ou serviçais”
Contra tais críticas, é possível defender a per- (Filmer, 1991a [1680], p. 35). Sem ser o pai dos
tinência do conceito de patriarcado de dois modos súditos, o rei deve ser entendido como se o fosse;
diferentes. O primeiro, banal, é ignorar a questão daí a conclusão de que o absolutismo é o único
da precisão ou imprecisão histórica e afirmar a regime político apropriado.
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Quando Filmer escrevia, o absolutismo já es- adquiriram o pleno uso da razão. Em suma, nós
tava derrotado como ideia política. A pá de cal foi “nascemos livres, assim como nascemos racionais;
jogada por John Locke, que dedicou seu Primeiro não que tenhamos de fato o exercício de uma coisa
tratado sobre o governo civil a responder ao Patriar- ou outra: a idade que traz uma traz também a ou-
cha. Para Pateman, nesse momento se estabelece tra” (Locke (1998 [1698], p. 437, grifo suprimido).
também a doutrina do patriarcado moderno, que é O primeiro passo, porém, permanece intoca-
definido não pela soberania de um indivíduo, mas do. Mary Wollstonecraft tomou ao pé da letra a
pela igualdade entre os homens e sua soberania co- equivalência entre monarquia absoluta e casamento
letiva sobre as mulheres. Tal movimento tende a e, evocando a Revolução Francesa, provocou: “O
ser ignorado porque “a interpretação patriarcal do direito divino dos maridos, tal como o direito di-
‘patriarcado’” (Pateman, 1988, p. 27) vê nele uma vino dos reis, pode, espera-se, nessa era esclarecida,
relação de autoridade do pai sobre os filhos, deixan- ser contestado sem perigo” (Wollstonecraft, 2001
do de lado a relação prévia e necessária de submis- [1792], p. 24). Mas não podia. As reivindicações
são da mulher ao marido. Isto é, a interpretação do pelos direitos políticos das mulheres foram silencia-
patriarcado como direito paterno oculta o contrato das; o triunfo dos regimes liberais, a partir do sécu-
de casamento anterior e a relação entre homens e lo XVIII, marcou não a superação do patriarcado,
mulheres que ele determina. mas, nos termos de Pateman, a emergência de sua
No entanto, tal relação é crucial para que o encarnação moderna.
patriarcado se estabeleça. Não é à toa que, em sua Trata-se de um ordenamento social em que se
polêmica contra o outro grande teórico inglês do garante tanto a igualdade entre os homens quan-
absolutismo, Thomas Hobbes, Robert Filmer faça to a submissão coletiva das mulheres (sem que isso
questão de assinalar que a mulher nunca foi igual implique a destruição do padrão de subordinação
ao homem. A soberania dele sobre ela seria natural, individual no casamento). O patriarcado moderno
determinada pelo fato de ele ser “o agente mais no- prescinde da figura do pai: é um patriarcado “fra-
bre e principal na geração” (Filmer, 1991b [1652], ternal”. Seguindo alguns outros estudiosos do con-
p. 192). A igualdade entre os sexos é descartada trato, Pateman inclui a teoria social de Sigmund
desde o início, com base em suas características Freud como uma versão tardia da corrente – e uma
intrínsecas e não em padrões menos ou mais ade- em que a passagem para o patriarcado fraternal é
quados de distribuição social do poder. Para Pate- particularmente clara. Em Totem e tabu e em Moi-
man, uma leitura atenta de Filmer deixa claro que, sés e o monoteísmo, o criador da psicanálise indica
em sua teoria, a “gênese do poder político reside como momento crucial da história humana aque-
no direito sexual ou conjugal de Adão, não em sua le em que se sai da horda primitiva, na qual o pai
paternidade. O direito político está garantido antes primitivo monopolizava as mulheres (e que, para
de ele se tornar um pai” (Pateman, 1988, p. 87). Pateman, é o equivalente ao estado de natureza dos
Em suma, ao reler a teoria patriarcal tradicio- outros autores contratualistas). A superação ocorre
nal e clássica, Pateman estabelece um processo em por meio do assassinato do pai; depois de um breve
três passos. Há a submissão da mulher ao homem, (e, para Freud, desinteressante) período de direito
por intermédio do contrato de casamento. Esse materno, os filhos, percebendo que nenhum deles
passo costuma estar apenas implícito nessas formu- poderia ocupar o lugar que era do pai, formam uma
lações teóricas. O segundo passo é a submissão dos espécie de contrato que assegura seu poder fraternal
filhos aos pais, determinada pelo modelo familiar partilhado (Freud, 1997 [1938], 2012 [1913]; Pa-
patriarcal. Essa submissão aparece como fonte me- teman, 1988, pp.103-104).
tafórica ou factual para a autoridade monárquica, O cerne da narrativa freudiana é a substituição
o que corresponderia ao terceiro passo. Os teóricos de um regime de posse de todas as mulheres por
antiabsolutistas do contrato impugnam o terceiro um único homem por outro, em que os homens as-
passo. Para fazê-lo, limitam o alcance do segundo: a seguram coletivamente a posse das mulheres. Pate-
autoridade paterna só vigora enquanto os filhos não man indica como, para Freud, as mulheres não são
CAROLE PATEMAN E A CRÍTICA FEMINISTA DO CONTRATO 9

personagens: são objetos da luta entre os homens. A que não contam com as competências necessárias
história começa quando o direito sexual do pai so- para firmá-lo, em particular o uso da razão. Mas, ao
bre as mulheres já está estabelecido. E ela pergunta: mesmo tempo, devem participar do contrato de ca-
como esse direito se estabeleceu? Se o contrato so- samento, que, sem sua anuência expressa, seria uma
cial nasce de um crime, o parricídio, o contrato sexual forma indisfarçada de coerção.
não nasceria de outro crime, o estupro (Pateman, Ou seja, os “teóricos do contrato simultanea-
1988, p. 105)? É o que Freud nega, mas essa ne- mente negam e pressupõem que as mulheres po-
gação é sintoma da tendência, comum a todo pen- dem firmar contratos” (Pateman, 1988, p. 54).
samento político pré-feminista, de recusar caráter Consideradas naturalmente inferiores, elas ainda
político à dominação das mulheres. E também da assim devem subscrever de forma voluntária a or-
tendência – de que Freud, como bem observa Pa- dem que lhes atribui a posição de inferioridade.
teman, é representante destacado – de negligenciar Isso porque, como anotou uma comentarista de
o componente de violência presente em tantas das Pateman, ela percebe que “a livre-escolha é [...],
relações sexuais. mais que um ideal, a condição sine qua non para
A referência ao estupro foi criticada por mui- a legitimidade e a justeza dos contratos e dos acor-
tas comentaristas de Pateman. Ela estaria aderindo dos” (Biroli, 2013, p. 97). Ela é, portanto, sempre
à visão de uma parcela do feminismo radical, que pressuposta, para que sua ausência não ponha risco a
julga que as relações heterossexuais nunca ou qua- continuidade das relações daí resultantes.
se nunca são consensuais (Okin, 1990, p. 662). O paradoxo fica claro em especial na argumen-
No entanto, o ponto de Pateman reside muito tação de John Locke, que cabe observar, talvez com
mais na ambiguidade do consentimento – uma um pouco mais de detalhe do que a própria Pate-
vez que há um deslizamento do sexo consensual man faz. Locke é um ardoroso defensor da ideia de
para a subordinação na vida conjugal – e no fato que o domínio do homem sobre a mulher, na rela-
de que a dominação patriarcal sobre os filhos se ção conjugal, faz parte da “ordem natural das coi-
estabelece a partir de uma assimetria prévia entre sas”. No entanto, movido por sua polêmica contra
o marido e a mulher, ignorada pela reflexão teó- Robert Filmer, ele disputa a interpretação do trecho
rica tradicional. Como respondeu Pateman, sem bíblico usado para justificar a autoridade masculi-
disfarçar a irritação: “Não me ocorreu que alguém na, em que Deus, ao expulsar Adão e Eva do Jardim
pensaria que eu era tão estúpida a ponto de fazer do Éden, diz a ela: “Multiplicarei os sofrimentos de
da ‘conquista’ ou do ‘estupro primário’ a base de tua gravidez, entre as dores darás à luz os filhos, a
um livro em que eu discuto que contratos relati- paixão arrastar-te-á para o marido e ele te domina-
vos à propriedade na pessoa, uma forma de acordo rá” (Gn 3, 16). No trecho, diz ele, Deus “não con-
voluntário, são o mecanismo da subordinação civil cede nenhuma autoridade a Adão sobre Eva ou aos
moderna” (Pateman, 2007, p. 217). homens sobre suas esposas”. Mas determina “que
É correto apontar, porém, que a formulação ela estivesse submetida ao esposo, tal como vemos
presente em O contrato sexual dá margem a tais que, geralmente, as leis da humanidade e os costu-
interpretações, que ecoam mesmo em críticas que mes das nações assim deliberam; e existe, admito-
partem de posições simpáticas a Pateman (cf. Bou- -o, fundamento para tal na natureza” (Locke, 1998
cher, 2003, p. 35). O paralelo entre o parricídio [1698], p. 249).
descrito por Freud e um estupro original, que daria O objetivo de Locke é refutar a ideia de que
força retórica à argumentação, não contribui para Adão recebeu um mandato divino para exercer
iluminar o fato de que o patriarcado moderno, em autoridade sobre toda a Criação, mas é notável a
particular, se esforça para produzir o consentimento ambiguidade de sua reflexão sobre as relações entre
pelo qual as mulheres aceitariam ser subordinadas os sexos. Não é o marido que recebe o direito de
ao homem. Daí resulta um paradoxo crucial quan- mandar: é a mulher que recebe a obrigação de obe-
to à posição delas no pensamento dos contratualis- decer. Tal obrigação tem fundamento na natureza e
tas. Mulheres são excluídas do contrato social por- na vontade de Deus, mas, como o trecho do Gênesis
10 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 32 N° 93

deixa claro, é estabelecida por um ato da própria cravidão como “servidão perpétua voluntária”, ele
mulher (“a paixão arrastar-te-á para o marido”). diz que
São, portanto, dois pontos de ambiguidade. O
primeiro se vincula à ausência de espelhamento en- […] em toda parte se admite que a Prole de Pais
tre o direito de uns e os deveres dos outros, que é que são Escravos encontra-se também em uma
funcional para a acomodação entre princípios que Condição servil, e pertence como Escravos ao
se deseja manter e práticas que não os respeitam. Dono de sua Mãe. O que se justifica por esta
Pateman cita William Blackstone, importante au- Máxima: que Quem é Proprietário do Corpo
tor liberal do século XVIII, explicando que, como é também Proprietário de qualquer Produto
a Inglaterra não admite a escravidão, um escravo desse Corpo, e porque essa Prole nunca teria
que ingresse em seu território torna-se imediata- nascido se o Senhor houvesse feito valer o Rigor
mente um homem livre, mas isso não quer dizer da Guerra sobre o Genitor; e como a Mãe nada
que a obrigação perpétua de servir a seu senhor es- tem que possa chamar de seu próprio, sua Cria,
teja rompida (Pateman, 1988, p. 145). Isso permite de resto, não pode ser criada senão a cargo de
combinar a regra da igualdade natural com a ma- seu Senhor (Pufendorf, 2007 [1673], p. 279).
nutenção da subordinação do escravo, assim como,
na interpretação que faz do Gênesis, Locke pode Isto é, levada a seu grau máximo, a doutrina
distinguir a família da autoridade política, sem com do individualismo possessivo justifica mesmo a
isso comprometer a dominação do marido. escravidão hereditária. Nascida para afirmar a au-
O segundo elemento de ambiguidade está no tonomia de cada indivíduo, ela acaba por permitir
fato de que algumas pessoas precisam dar seu aval “que a oposição entre liberdade e escravidão seja
para as relações de subordinação às quais já estão na- dissolvida” (Pateman, 1988, p. 66). Escravidão, as-
turalmente destinadas, como é o caso das mulheres e salariamento e casamento são, assim, três formas de
dos trabalhadores (de ambos os sexos). Há uma con- subordinação que contratos contribuem para dis-
tradição evidente entre “os pressupostos da teoria do farçar. E que, prévias ao contrato social da narrativa
contrato e os apelos à força [física e mental] natural” liberal, permitem que trabalhadores de ambos os
(Idem, p. 94). A legitimidade da relação contratual se sexos e mulheres de todas as classes sociais sejam
baseia no entendimento de que as partes são igual- excluídos da cidadania.
mente capazes. Se mulheres e trabalhadores são in-
feriores por natureza, seu engajamento em relações
contratuais é tanto desnecessário quanto incapaz de O patriarcado, hoje
dotar tais relações da legitimidade pretendida.
Os contratos de casamento e de trabalho esta- Pateman tem sucesso ao indicar de que forma
belecem relações de subordinação entre indivíduos a dominação sobre as mulheres é uma etapa neces-
específicos, assim como os pretensos contratos se- sária, mas oculta, do patriarcado político. Sua des-
xual e social originários criam narrativas que sus- crição de como, na ideologia predominante, a au-
tentam a subordinação das mulheres aos homens e toridade individual do patriarca é substituída pela
dos governados aos governantes. O paradigma de autoridade coletiva de todos os homens também é
todas essas relações é a escravidão, que um autor convincente. Ainda assim, resta polêmica sobre a
contratualista do século XVII, Samuel von Pufen- caracterização da sociedade contemporânea como
dorf, também julga que pode ser fruto de acordo patriarcal. Na própria teoria de Pateman, o concei-
voluntário entre as partes.8 Para Pateman, os argu- to permanece ancorado numa desigualdade brutal e
mentos de Pufendorf são úteis por desvelar a cone- escancarada de direitos na relação conjugal. Como
xão entre a ideologia do contrato, o individualismo visto, o fato de esta não ser mais uma descrição ade-
possessivo e a justificação da dominação. quada das sociedades ocidentais leva autoras femi-
Um trecho da obra principal do jurista alemão nistas a descartar o rótulo. As mulheres obtiveram
serve de exemplo suficiente. Após apresentar a es- acesso à educação, à propriedade e ao voto; cada vez
CAROLE PATEMAN E A CRÍTICA FEMINISTA DO CONTRATO 11

mais, a legislação define o casamento como uma ma coletiva do que por patriarcas individuais. O lar
parceria entre iguais, eliminando as cláusulas que permanece um espaço de opressão patriarcal, mas
garantiam a primazia do marido. É claro que per- não é mais o principal local em que mulheres estão
manecem assimetrias muito fortes – nenhuma auto- presentes” (Idem, p. 178).
ra feminista negaria o fato. Mas um casamento no O problema com o conceito de “patriarcado
final do século XX já era muito diferente de um ca- público” é que ele se distancia em excesso do senti-
samento no início do mesmo século, para não dizer do estabelecido de patriarcado. O patriarcado mo-
no auge do patriarcado clássico (cf. Biroli, 2014). derno de Pateman já havia abolido a figura do pa‑
Numa crítica aprofundada a Pateman, Nancy triarca; o patriarcado público afasta também a
Fraser afirma que ela lê as relações de gênero como vinculação com a organização familiar. Ademais,
uma relação entre senhor e súdita – o que está lon- é malograda a tentativa de Walby de descrever o
ge de ser apropriado para o mundo contemporâneo patriarcado como um sistema estruturado, que
(Fraser, 1997, p. 225). Mesmo o ambiente social age sobre os diferentes espaços da vida social, de
que forçava a mulher ao casamento, permitindo o forma similar à do capitalismo. Sua própria ar-
paralelo inconteste com a privação que obriga o tra- gumentação apresenta uma descrição de padrões
balhador a se assalariar, sofreu transformação. Ain- diferenciados de dominação masculina, que es-
da há dependência econômica da mulher, precon- tão sempre presentes e atuantes, mas respondem
ceitos contra as que permanecem solteiras e uma a dinâmicas diversas e agem por meio de meca-
ideia difusa de que elas estão carentes de proteção. nismos também diversos em cada espaço social
Mas não é possível equivaler essa situação à dos sé- (Pollert, 1996).
culos XVIII ou XIX, ou à das primeiras décadas do Outro flanco de crítica está no entendimen-
século XX. Ou seja, “os sentidos atuais de gênero, to das relações contratuais, que na leitura de Pa-
sexo e sexualidade são altamente fragmentados e teman seriam excessivamente desequilibradas ou
contestados. Os sentidos inscritos no contrato se- mesmo unilaterais. É verdade que para o feminis-
xual de Pateman são apenas um componente da mo, como para o socialismo, é central a denúncia
mistura” (Idem, p. 229). A própria Pateman reco- feita à ideia de que contratos são, por definição,
nhece, nas últimas páginas do livro, que “as estru- voluntários e mutuamente vantajosos. Aceitar tal
turas e divisões patriarcais não são mais tão sólidas ideia é negar o peso que as desigualdades sociais
quanto foram” (Pateman, 1988, p. 233), mas não têm na capacidade diferenciada de os agentes
desenvolve o ponto.9 exercerem sua autonomia e, portanto, o fato de
O apego à noção do contrato sexual e do pa- que alguns, pela falta de recursos e de alternativas,
triarcado moderno impediria, dessa forma, uma são levados a assumir contratos que beneficiam
compreensão clara da maior complexidade da do- muito mais a outros. Mas isso não significa enten-
minação masculina nas sociedades contemporâneas. der que os que estão em posição mais vulnerável
Uma tentativa de resolver o problema está na obra não possuem nenhuma capacidade de negociação
de Silvia Walby, que julga crucial preservar o con- ou não são capazes de extrair qualquer vantagem
ceito, único capaz de “capturar a profundidade, pe- das relações contratuais em que se inserem.10
netração ampla [pervasiveness] e interconectividade Nancy Fraser apresenta o exemplo hipotético,
dos diferentes aspectos da subordinação das mulhe- mas fundado na realidade, de uma jovem solteira
res” (Walby, 1990, p. 2). É possível lê-la como um que deixa a fazenda, “com seu horário de trabalho
acréscimo à narrativa de Pateman, seja de uma eta- indeterminado, supervisão permanente dos pais
pa posterior ao patriarcado moderno, seja de uma e pouca vida pessoal autônoma” (Fraser, 1997, p.
transformação dentro dele: a passagem do “patriar- 230), por uma cidade industrial, em que o controle
cado privado” ao “patriarcado público”. Nesse úl- estrito na fábrica se combina à autonomia ampliada
timo, as mulheres têm acesso à esfera pública, mas fora dela, em que ela é dona do próprio nariz e pos-
permanecem em posição subordinada dentro dela. sui seu próprio dinheiro para gastar. “De sua pers-
“A expropriação das mulheres ocorre mais de for- pectiva, o contrato de trabalho foi uma libertação”
12 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 32 N° 93

(Idem). Isto é, as circunstâncias devem ser levadas em p. 666). O projeto de Okin, afinal, é caminhar na
conta não só para questionar a ideia de que os con- direção de uma releitura do contrato, a partir da
tratantes estão em posição equivalente, mas também variante rawlsiana, que permita apropriá-lo na fun-
para entender qual o impacto que a relação contratu- damentação de uma sociedade igualitária no que
al, mesmo assimétrica, exerce na vida das pessoas. O diz respeito aos sexos. Sem chegar a construir tal
contrato de trabalho estabelece uma subordinação, modelo, Okin (1989) aposta que a inclusão da fa-
como diz Pateman, mas tal subordinação, circuns- mília entre as estruturas que devem ser regidas pe-
crita à jornada laboral que o próprio contrato esta- los princípios da justiça permitiria fundar normati-
belece, pode ser um avanço em relação à exploração vamente a igualdade de gênero.
do trabalho na esfera familiar, em que a autoridade Mas a discussão mais aprofundada foi estabeleci-
paterna (e materna) é basicamente ilimitada. da por Charles W. Mills, que se inspirou em Pateman
Um exemplo adicional é a prostituição. Na para desenvolver sua ideia de um “contrato racial”.
visão de Pateman, o contrato estabelecido entre a Pateman mesma observou que o contrato social pos-
prostituta e seu cliente sintetiza as assimetrias e as sui uma dimensão racista, que ela não analisava em
vulnerabilidades de trabalhadores e mulheres, pre- seu livro (Pateman, 1988, p. 161). Mills parte daí e
sentes no contrato de trabalho e no contrato de ca- indica como, no início da Idade Moderna, os euro-
samento. É a expressão maior da ideia de que a pes- peus pactuaram entre si a divisão do mundo e seu
soa é uma propriedade que pode ser transacionada direito de governar os não brancos. Da mesma forma
e a mais clara forma de institucionalização da su- que o contrato sexual, estabelecido por homens sobre
bordinação de um ser humano a outro. O contrato as mulheres, é pactuado “entre aqueles caracterizados
garantiria ao cliente acesso unilateral e ilimitado ao como brancos sobre os não brancos, que assim são
corpo da prostituta; o único critério para avaliação os objetos antes que os sujeitos do acordo” (Mills,
do serviço prestado seria sua própria satisfação. E, 1997, p. 12). Mas, ao contrário do contrato social
sobretudo, no contrato de prostituição não há se- na tradição filosófica dominante ou do contrato se-
quer o fornecimento de proteção, que, nos contra- xual de Pateman, o contrato racial de Mills remete a
tos de trabalho e casamento, é a contrapartida da um conjunto de eventos históricos efetivos, que estão
obediência (Pateman, 1988, pp. 208-209).11 na raiz da dominação europeia sobre todo o planeta
Mas Nancy Fraser julga que é equivocado en- e da consequente subjugação dos povos não brancos
tender o contrato de prostituição nos moldes – uma (Idem, p. 20). Em sua dimensão “epistemológica”, o
vez mais – de uma relação entre senhor e súdita. Ao contrato garante a permanência de uma hierarquia
contrário do que diz Pateman, as profissionais do racial que faz com que, de maneira sistemática, os
sexo impõem limites e negociam com seus clientes brancos tenham privilégios e suas vidas sejam consi-
como será sua performance. Elas vendem “uma fan- deradas mais valiosas.
tasia masculina do ‘direito sexual masculino’, que No entanto, Mills julga que é possível diferen-
implica a sua precariedade no mundo real. Mais ciar o “contrato de dominação”, que estabelece a
do que adquirir comando sobre a prostituta, o que subordinação de trabalhadores, mulheres e não
o cliente recebe é uma encenação deste comando” brancos, de um modelo contratual marcado pelo
(Fraser, 1997, p. 233). Isto é: o contrato impõe a respeito mútuo e simétrico a todos. Sua posição
subordinação, mas também determina seus limites. “não vê os ideais do contratualismo em si mesmos
Críticos de Pateman condenaram também sua como necessariamente problemáticos, mas mos-
recusa liminar à ideia de contato social. Por exem- tra como eles foram traídos pelos contratualistas
plo, Susan Okin, em sua resenha, apresenta uma brancos” (Idem, p. 129). O erro de Pateman seria
série de questionamentos à estratégia argumentati- julgar que a variável hobbesiana do contrato é a
va do livro, mas o ponto central é que seria errô- única possível. O contrato kantiano não presumi-
neo condenar todos os contratos como ilegítimos. ria o individualismo possessivo; ao contrário, seria
Segundo ela, “Pateman desiste fácil demais dos marcado pelo imperativo categórico de garantir a
usos do contrato para o feminismo” (Okin, 1990, autonomia de todos os “fins últimos em si mes-
CAROLE PATEMAN E A CRÍTICA FEMINISTA DO CONTRATO 13

mos”, isto é, os seres humanos, caracterizados por Pateman certamente não. Seu feminismo é indissoci-
seu igual valor moral (Idem, pp. 84 e 86). Fica claro ável do compromisso com uma sociedade diferente,
que, na visão de Mills, as desigualdades afirmadas com pontos de contato com aquela esboçada pelo
por Kant como naturais, que fazem com que ele socialismo antiautoritário e pelo ecologismo auto-
julgue expressamente que mulheres e não brancos nomista de André Gorz (1988) – um autor que, no
são inferiores, seriam acessórias. Seria possível lim- entanto, foge a seu repertório.
par sua teoria de tais elementos e permanecer com É esse compromisso que dá rumo a toda a obra
uma visão normativamente íntegra e igualitária. de Pateman, cujo principal esforço, então, é contri-
Tais observações não são pertinentes para Pa- buir para desnaturalizar as instituições, revelando
teman porque ela parte de uma crítica muito mais padrões de dominação subjacentes a elas. A eman-
radical às instituições vigentes, fundada numa visão cipação feminina é parte essencial desse programa;
emancipatória mais rigorosa – ou talvez, diriam al- por isso, como disse ela, “uma teoria e prática ‘de-
guns, mais irrealista. Como ela observa em seu di- mocrática’ que não é ao mesmo tempo feminista
álogo com Charles Mills, que é o capítulo inicial serve apenas para manter uma forma fundamental
do livro conjunto The contract and domination, o de dominação e assim zomba dos ideais e valores
contrato tem um lugar valioso nas transações co- que a democracia busca encarnar” (Pateman, 1989,
merciais, mas estabelecer toda a cooperação social p. 223). Ao propor uma interpretação sofisticada
nesses moldes é “ver os indivíduos como pacotes de da relação entre a dominação masculina e as no-
propriedade alienável, [...] uma visão muito estreita ções de contrato e consentimento que estão na base
dos seres humanos e do que eles criam” (Pateman e dos regimes políticos ocidentais, ela contribuiu de-
Mills, 2007, p. 15). No momento em que a “mer- cisivamente para avançar nessa direção, tornando
cantilização está avançando a uma taxa extraordi- o feminismo componente inextricável de qualquer
nariamente rápida [e] já não há virtualmente nada reflexão sobre a democracia digna de seu nome.
que tenha ficado fora do alcance da propriedade
privada, do contrato e da alienação” (Idem, p. 14),
é necessário resistir a tal discurso. Notas
Criticando Pateman, Wendy Brown diz que
ela investe contra um espantalho (um “fetiche”, em 1 A pioneira foi a Nova Zelândia, em 1893. Os casos
suas próprias palavras), uma vez que, no liberalis- mais gritantes de retardo foram Suíça (1971) e Lie-
mo contemporâneo, as funções de legitimação não chtenstein (1984, com restrições).
se apoiam mais na linguagem do contrato, mas no 2 Além, é claro, de branco. Os não brancos estão au-
discurso dos direitos (Brown, 1995, p. 138). Ainda sentes da discussão de Locke. É possível pensar, como
que não se conteste o veredito (é possível argumen- faz um comentarista, que essa exclusão, associada ao
fato de que o filósofo inglês se opunha à escravidão
tar que a invocação legitimadora do contrato não
mas investia em empresas de tráfico negreiro, indica
está tão morta assim), cabe lembrar que o esforço que “Locke via os negros como não inteiramente hu-
de Pateman foi também mostrar como o discurso manos e portanto sujeitos a um conjunto diferente de
contemporâneo dos direitos depende da noção da regras normativas” (Mills, 1998, p. 68).
pessoa como proprietária de si mesma (Gatens, 3 Pateman defende um modelo inspirado em Rousseau,
2008, p. 41). É essa concepção, uma visão antropo- que privilegia a obrigação política horizontal, entre os
lógica decalcada do Homo economicus gerado pelo cidadãos, em vez de vertical, com os governantes. A con-
capitalismo, que é, no final das contas, o grande cordância dos cidadãos seria ratificada cotidianamente,
alvo de Pateman. por meio da participação permanente na comunidade
Charles Mills pode dizer que, na ausência de al- política (Pateman, 1985 [1979], p. 152). Ou seja: em-
ternativas, sua denúncia do contrato racial apostaria bora seja tecnicamente um “contratualista”, Rousseau é
num “capitalismo não supremacista branco”, que ao aceito por Pateman como uma de suas inspirações por-
que seu contrato social não implica abdicação (como
menos fizesse jus “à sua publicidade de ‘sociedade
em Hobbes) ou delegação (como em Locke), mas sim
aberta aos talentos’” (Pateman e Mills, 2007, p. 31).
14 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 32 N° 93

a participação permanente no exercício da soberania. vadora, segundo a qual a venda de sexo ofenderia va-
Não há como desenvolver o ponto aqui. lores morais e familiares, e outra liberal, para a qual a
4 Falando sobre o livro, ela enfatiza que seu tema é tanto sociedade não pode intervir em atos consensuais entre
gênero quanto classe (Pateman, 2007, p. 13). A crítica adultos. No feminismo, que recusa tanto o enquadra-
ao contrato de trabalho é tão central ao argumento mento moral convencional quanto a noção liberal de
quanto a crítica ao contrato de casamento. uma autonomia individual descolada do contexto so-
cial, a polêmica é entre defensoras da proibição, como
5 Um exemplo literário eloquente está no romance Retra-
forma de combater o tráfico de mulheres e a explo-
to de uma senhora, de Henry James (1995 [1881]). Isa-
ração sexual, e as advogadas da legalização, que daria
bel Archer, a protagonista, é uma jovem que recebe uma
recursos para que as profissionais do sexo ficassem em
grande herança e decide usá-la para conhecer o mundo.
posição menos vulnerável. Para um resumo da discus-
Mas regras legais, preconceitos e formas de violência tor-
são no feminismo, ver Miguel (2014).
nam inviável que, na segunda metade do século XIX,
mesmo uma mulher solteira rica desfrute de sua fortu-
na. Ela se vê forçada, então, a abrir mão de seus sonhos,
arranjar um marido e aceitar seu comando. BIBLIOGRAFIA
6 No original, womanhood. Optei por usar “feminidade”
como tradução, indicando o “ser mulher” de maneira BARRETT, MICHÈLE. (1988A [1980]), Women’s
mais neutra, e traduzir “femininity” por “feminilida- oppression today: the Marxist/feminist encounter.
de”, indicando o conjunto de estereótipos vinculados Londres, Verso.
aos papéis sexuais femininos. _____. (1988b), “Introduction to the 1988 edi-
7 Para outra autora crítica à utilização do conceito de tion”, in Women’s oppression today: the Marxist/
patriarcado, o entendimento de que a dominação mas- feminist encounter. Londres, Verso.
culina é invariável, insensível à transformação histórica, BEAUVOIR, Simone de. (1949), Le deuxième sexe.
levaria a entendê-la como fundada nas diferenças bioló-
Paris, Gallimard, vol. 2.
gicas entre mulheres e homens (Barrett, 1988a [1980],
pp. 12-4) – posição que a maioria das feministas se es-
BÍBLIA SAGRADA. (s.d.), Petrópolis, RJ, Vozes,
força por refutar. 1982.
8 É o caso também de Hobbes, mas ele é singular ao
BIROLI, Flávia. (2013), Autonomia e desigualdades
não escamotear que a violência é a matriz de gran- de gênero: contribuições do feminismo para a crí-
de parte das relações contratuais. A originalidade de tica democrática. Niterói, RJ, Eduff.
Hobbes – teórico do absolutismo que advogou tanto _____. (2014), Família: novos conceitos. São Paulo,
a origem popular do poder quanto a primazia dos Fundação Perseu Abramo.
interesses individuais, sendo fonte do pensamento BOUCHER, Joanne. (2003), “Male power and
democrático e do pensamento liberal – faz com que contract theory: Hobbes and Locke in Carole
sua posição, entre os contratualistas, seja sempre es- Pateman’s The sexual contract”. Canadian Jour-
pecial (Miguel, 2015, cap. 5). nal of Political Science/Revue Canadienne de
9 Em resposta a seus críticos ela é bem mais enfática, Science Politique, 36 (1): 23-39.
afirmando que observara que as estruturas patriar- BRENNAN, Theresa & PATEMAN, Carole
cais “estavam já começando a se desfazer” (Pateman,
(1979), “‘Mere auxiliaries to the Commonwe-
2007, p. 228).
alth’: women and the origins of liberalism”. Po-
10 Uma resposta banal à posição de Pateman diria que litical Studies, XXVII (2): 183-200.
os contratos descritos pelos contratualistas são hipo-
BROWN, Wendy. (1995), States of injury: power
téticos, não reais, e pressupõem a igualdade entre as
partes. Como visto, há aí o equívoco de julgar que a
and freedom in late modernity. Princeton, Prin-
assimetria de recursos é um aspecto contingente, que ceton University Press.
pode ser abstraído sem prejuízo à economia geral do DALY, Mary. (1993 [1973]), Beyond God the fa-
modelo. E não se leva em conta o papel que a narrati- ther: toward a philosophy of women’s liberation.
va edulcorada do contrato ideal cumpre na legitima- Boston, Beacon Press.
ção dos contratos (desiguais) reais. ELSHTAIN, Jean Bethke. (1993 [1981]), Public
11 O debate sobre a prostituição opõe uma visão conser- man, private woman: women in social and poli-
CAROLE PATEMAN E A CRÍTICA FEMINISTA DO CONTRATO 15

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RESUMOS / ABSTRACTS / RESUMÉS 17

CAROLE PATEMAN E A CRÍTICA CAROLE PATEMAN AND THE CAROLE PATEMAN ET LA


FEMINISTA DO CONTRATO FEMINIST CRITIQUE OF THE CRITIQUE FÉMINISTE DU
CONTRACT CONTRAT
Luis Felipe Miguel
Luis Felipe Miguel Luis Felipe Miguel
Palavras-chaves: Teoria democrática;
Feminismo; Contrato; Consentimento; Keywords: Democratic theory; Feminism; Mots-clés: Théorie démocratique; Fémi-
Carole Pateman. Contract; Consent; Carole Pateman. nisme; Contrat; Consentement; Carole
Pateman.
O artigo discute a contribuição de Carole This article discusses the contribution of
Pateman para a teoria política democrá- Carole Pateman for the democratic po- L’article aborde la contribution de Carole
tica. A crítica ao instrumento liberal do litical theory. The criticism of the liberal Pateman à la théorie politique démocra-
contrato, presente desde suas primeiras instrument “contract”, which is frequent tique. La critique de l’instrument libéral
obras, permite entender como relações de since her early works, allows us to un- du contrat, présente dès ses premières
subordinação, que reduzem a possibilida- derstand how relations of subordination, œuvres, nous permet de comprendre
de de autonomia dos agentes, transitam which reduce the possibility of autonomy comment les relations de subordination,
de maneira voluntária e consentida. Isso for the agents, pass as voluntary and con- qui réduisent la possibilité d’autonomie
leva Pateman a analisar como a subordi- sensual. This leads Pateman to analyze des agents, circulent de façon volontaire
nação das mulheres organiza uma ordem how the subordination of women orga- et consensuelle. Cela conduit Pateman à
política liberal que, no entanto, busca nizes a liberal political order that seeks analyser la manière par laquelle la subor-
se apresentar como neutra em relação a to present itself as neutral in relation to dination des femmes organise un ordre
gênero. Uma análise do enfrentamento gender. An analysis of Pateman’s confron- politique libéral qui, cependant, cherche
de Pateman com seus críticos possibilita tations with her critics permits us to ob- à se présenter comme neutre par rapport
observar os limites de sua empreitada te- serve the limits of her theoretical work, au genre. Une analyse de la confronta-
órica, assim como a radicalidade de seu and also the radical nature of her demo- tion de Pateman avec ses critiques permet
projeto democrático. cratic project. d’observer les limites de son œuvre théo-
rique, mais aussi la nature radicale de son
projet démocratique.

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