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Fevereiro de 2020
Alquimia do Sonho
Uma mudança emergente no paradigma do teatro amador na periferia
da periferia
Resumo
O presente artigo pretende ser uma reflexão sobre as novas oportunidades para o teatro na
periferia. Usando a realidade do concelho de Odivelas, pretende-se explorar novos
caminhos que revolucionem os movimentos teatrais existentes de forma a preservar, abrir e
transformar o teatro comunitário no concelho. Uma maior troca de experiencias e a partilha
de boas práticas pode ajudar a alargar as experiências de arte comunitária, envolvendo
mais gente e partilhando mais recursos. Com o desinvestimento total da autarquia em
espaços de apresentação tornam-se necessários novos espaços de intervenção artística
que sejam novos palcos e conquistem novos públicos e novos atores. Na periferia da
periferia renasce a esperança de uma transformação que, pela arte, crie comunidade e
desafie a uma cidadania mais participativa, mais responsável e mais democrática!
A reflexão sobre o teatro que se faz nas ruas nos conduz a uma
inevitável aproximação com o fenômeno urbano e sua complexidade. Como
sugere Nestor García Canclini em seu livro Imaginarios Urbanos (2005) dois
aspectos do urbano aparecem como chaves neste contexto: a experiência de
habitar a cidade e as representações que os habitantes fazem dessa cidade. A
cidade é resultado da relação entre o habitar e sua construção imaginária.
A periferia tem um urbanismo ainda mais estranho. As cidades periféricas de Lisboa são
lugar de dormida, a maioria da população trabalha em Lisboa onde estão localizados os
serviços, as empresas e os empregos em geral. Um habitante periférico tem assim duas
cidades: a metrópole – que no seu imaginário é a “sua” cidade pois habita-a durante o dia
ou em atividades culturais ou de lazer – e a outra cidade em que apenas dorme. É, no
entanto, na periferia que habita a maioria das pessoas, mas vivem numa cidade que não
desejam que seja sua. A construção idílica de uma cidade imaginada será sempre Lisboa,
com os seus jardins, as suas avenidas largas e os seus espaços culturais. As próprias
autarquias defendem-se do pouco investimento em espaços culturais justificando a
proximidade de Lisboa, que com os seu recursos oferece tudo o que o cidadão da periferia
podia imaginar. A consequência deste pensamento causa na população periférica,
sobretudo na juventude, uma sensação de ter de sair do seu espaço para outro que nunca
será seu. A imponência dos edifícios destinados à prática cultural como máscara do poder,
assim os habitantes da periferia veem esses lugares como territórios de conhecimento e
saber especializados, pertencentes a uma elite intelectual, muito distante da sua realidade
(Monteiro, 2017). Mas a cidade, a grande cidade, engloba a periferia sem a qual se
esvaziava de humanidade. Não existe portanto uma só cidade na cidade, mas, pela
diferente experiência vivencial dos habitantes desta macropólis, existem inúmeras
pequenas cidades – micropólis – em que em nos instalamos (Carreira, 2009; citando
Calcini, 2005). Enquanto habitantes deste espaço comum, escolhemos e recriamos o
espaço em que habitamos e outros espaços que vamos visitando, havendo assim inúmeras
representações locais para uma cidade que é identitária para todos. É no encontro destas
micropólis que se pode criar um cidade inclusiva, ativa, participada e verdadeiramente
democrática. Como defende Oliveira Martins uma democracia moderna precisa de uma
ligação efetiva entre criatividade e inclusão. Uma população consciente da importância do
seu papel democrático não só é mais consciente e crítica como consegue resolver com
mais autonomia situações que lhe são especificas, mas que contribuem para a melhoria do
bem comum a todos.
Sob a égide de D. Dinis, o Rei Poeta, mas sem dinheiro para a cultura.
A população de Odivelas é muito antiga, remonta à primeira dinastia, e tem nela sepultado o
rei D. Dinis. Com tão ilustre rei como referência era de esperar que as artes e a cultura
tivessem um papel de relevo nas iniciativas autárquicas locais, mas o investimento em arte
é escasso. O que existe de agregador em torno das artes performativas está relegado para
a carolice das coletividades. Com o aparecimento de alternativas ao encontro físico de
pessoas, como as redes sociais e os jogos on-line interativos, a população jovem está mais
aberta a outros apelos e como tal as coletividades são assumidas por pessoas mais velhas
o que as afasta ainda mais da juventude. Há evidencias de uma agenda política eleitoralista
que se foca no imediato que possa granjear votos que garantam a recondução num próximo
mandato.
O primeiro sítio onde se corta num orçamento político, quer seja autárquico ou do governo
central, é na Cultura. Sobretudo nos primeiros anos da legislatura as opções raramente
passam por um investimento na área cultural, sobressaindo os eventos desportivos e os
concertos de Verão na agendas municipais para dar ao povo entretenimento e animação de
consumo imediato e, muitas vezes, inconsequente. Na segunda metade da legislatura
aparecem os Orçamentos Participativos (OP), que procuram dar alguma atenção às
vontades e anseios populares. Foi no OP de Odivelas, que o Grupo de Teatro Alquimia do
Sonho fez a proposta da organização de um festival internacional de artes de rua que fosse
a todos os bairros do município. A proposta foi rejeitada, mas a vereadora convidou o grupo
para uma reunião em apresentou o Grupo de Teatro da Casa da Juventude (GTCJ),
também chamado “Expressões & Impressões”. Era uma atividade que decorria na casa da
juventude e destinava-se aos jovens do município que quisessem fazer teatro. O grupo
tinha sido encenado até então por um actor residente do Centro Cultural da Malaposta, mas
essa parceria terminou e o GTCJ viu-se em encenador. A Vereadora teve a ideia de montar
uma parceria que comprometesse o Alquimia do Sonho a encenar o GTCJ como primeiro
passo para a construção futura do festival de teatro e artes de rua .
O Grupo de Teatro Alquimia do Sonho faz parte do Projecto JR, tem sede na Ramada, uma
freguesia do Município de Odivelas no distrito de Lisboa. Iniciou a sua atividade em Janeiro
de 1995 fazendo, portanto, este ano 25 anos de atividade. O Projecto apresenta diversas
valências e tem por fim a criação e dinamização de atividades que permitam desenvolver
vivências comunitárias na população a partir da Ramada, tem por lema “somos felizes
fazendo os outros felizes”. Voltado para a juventude nele se criaram diversos projetos:
projetos musicais – que chegaram a participar, e a vencer, em festivais nacionais e
internacionais; projetos de intervenção social ao nível do combate ao abandono escolar –
como o Projecto Jovem, na freguesia de Famões; projetos de reintegração social de jovens
– com a Casa do Gaiato de Lisboa; campanhas de voluntariado – como a construção de
uma escola na Ilha do Príncipe; e o Grupo de Teatro Alquimia do Sonho.
1
A Malaposta era um Centro Cultural localizado no Olival Basto, sede de uma associação constituída
pelas Câmaras da Amadora, Loures, Sobral de Monte Agraço e Vila Franca de Xira, a Associação de
Municípios para a Área Sociocultural, a Amascultura. Com a criação do concelho de Odivelas desfez-
se a Amascultura e o espaço ficou para o município e que o cedeu em exploração a privados em
2018.
Mas coletividades de cultura e recreio também tinham a sua sala de espetáculos com os
seus palcos, muitos delas já têm outros usos2. A verdade é que, nesta altura, só se
encontram ativos cinco grupos de teatro amador e só o da Casa da Juventude tem como
alvo os jovens. Os outros grupos são de teatro de revista, musicais e teatro convencional
uma imitação do que se pode ver em Lisboa, mas mais perto de casa e mais barato.
2
O Teatro da Póvoa de Santo Adrião é hoje um armazém do projeto REFOOD.
A partir daí a rua e o espaço público tornaram-se lugar de intervenção, provocação e
memória. Sem o saber, o Alquimia do Sonho recuperava um período em que os espaços
públicos eram utilizados para manifestações artísticas, um espaço-tempo anterior à
edificação dos grandes teatros e a espetáculos realizados de acordo com os interesses
econômicos da classe dominante (Monteiro, 2017). Na linha da reflexão de Amir Haddad,
diretor do grupo “Tá na Rua” do Rio de Janeiro, também na Ramada foi necessário
encontrar meios que servissem outra solução, ou uma solução que funcionasse sem os
meios que desejava mas aproveitando o potencial dos meios que tinha. Tomando
consciência que, sem um palco, era difícil agradar ao público que procurava o teatro
amador – enquanto imitação do teatro profissional com as peças que toda a gente faz – foi
necessário assumir a busca de um novo público, aquele que no quotidiano e sem o pensar
se iria cruzar com performances artísticas. Um público diferente para um espetáculo
diferente.
(…) Se hoje é possível ver, vez ou outra, Praças e Ruas ocupadas com
manifestações populares, teatro e dança de rua, além de outras
expressões artísticas, é exatamente pelo que se deseja enquanto lugar de
partilha e sociabilidade, além de experimentação estética e política do
uso social de um lugar. (Monteiro, 2017)
Foi exatamente este caminho que levou o Alquimia do Sonho a intervenções em escolas,
bares, praças e rotundas, sítios de passagem onde se cativavam nem que fosse por breves
instantes a atenção de quem passa, isso é construir comunidade (Kuppers, 2014). Em 2006
durante cinco domingos consecutivos as rotundas da Ramada foram invadidas por
personagens quotidianas e temas quotidianos, a rotina diária em espaço de reflexão de
domingo. As evidências do impacto da ação só apareceram ao sexto domingo em que muita
gente estranhou a ausência.
Figura 2- "Por que é que os Homens não são felizes?", Ramada 2006
Bibliografia