Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Tese Email
Tese Email
CAMPINAS
2015
i
ii
iii
iv
v
vi
Resumo
O jornalismo científico, como praticado atualmente no Brasil, se ocupa quase que exclusivamente
dos resultados da ciência. Os processos históricos, sociais, políticos e econômicos em que a
ciência está envolvida quase sempre são esquecidos pela mídia. A metodologia empregada e os
equívocos ao longo do processo também são deixados de lado quando os jornalistas se deparam
com o que consideram um acontecimento merecedor de receber um tratamento jornalístico. O
público que tem acesso aos produtos jornalísticos acaba por ter contato apenas com essa “ponta
de iceberg” da prática científica. Com esse problema, elegi a etapa de formação de jornalistas, a
graduação, como um local adequado para trabalhar com um possível encaminhamento para
minimizar esse problema. Assim, tive por objetivos compreender o funcionamento de uma
unidade de ensino sobre aspectos teóricos e práticos do jornalismo científico em que sejam
abordados processos da ciência e construir um dispositivo de análise que contemple
especificidades do campo jornalístico, mais especificamente do jornalismo científico, para que
nos auxiliasse tanto na elaboração da unidade de ensino quanto na análise das interpretações dos
discursos de estudantes de jornalismo. A unidade de ensino foi dividida em cinco eixos: aspectos
introdutórios do jornalismo e do jornalismo científico; filosofia e epistemologia da ciência e suas
relações com o jornalismo científico; pesquisas sobre jornalismo científico; narrativa jornalística
e jornalismo científico e produção em jornalismo científico. Em todos esses eixos foi abordado
como se trabalhar com os processos da ciência, em especial na abordagem do jornalismo
enquanto expressão narrativa da contemporaneidade, noção que considerei propícia para a
compreensão da relevância em trazer os processos da ciência para o jornalismo científico. A
análise de discurso foi mobilizada para se compreender como os alunos produziram sentidos com
relação à unidade de ensino. Os estudantes conseguiram fazer algumas relações satisfatórias entre
a relevância em se abordar os processos da ciência, notar o problema em se deter só nos
resultados e apontarem como o jornalismo narrativo poderia criar condições para a cobertura dos
processos da ciência, enumerando diversas consequências que a narrativa poderia oferecer ao
jornalismo, como chamar a atenção dos leitores, desmistificar a ciência e facilitar o entendimento
da ciência para um público amplo. As reportagens produzidas pelos estudantes foram além de
meramente expor os resultados da ciência e trouxeram aspectos históricos, sociais, econômicos e
conceituais em que estão envolvidos esses resultados. A abordagem desses aspectos foi possível
com o uso de elementos narrativos, como marcação temporal (uso de locuções que denotam
temporalidade e ruptura), mudança de cenário e uso de personagens. Isso me permite reforçar a
tese de que trabalhar com aspectos narrativos do jornalismo abre a possibilidade para a
abordagem dos processos da ciência no jornalismo científico.
vii
viii
Abstract
Science journalism, as currently practiced in Brazil, is concerned almost exclusively with the
results of science. The historical, social, political and economic processes in which science is
involved are often forgotten by the media. The methodology and errors in the process are also left
out when journalists encounter with what they consider an event worthy of receiving a
journalistic treatment. Public who has access to this kind of journalism can only see the “tip of
the iceberg” of scientific practice. With this issue, I have chosen to work in a undergraduate
journalism course as a suitable place to work with a possible solution to minimize this problem.
So I aimed to understand how a teaching unit composed with theoretical and practical aspects of
science journalism with processes of science worked among journalism students. The teaching
unit was divided into five areas: introductory aspects of journalism and science journalism;
philosophy and epistemology of science and its relationship with science journalism; research on
science journalism; narrative journalism and science journalism; and production in science
journalism. In all of these areas I worked with the processes of science, especially in the
journalism approach as narrative expression of contemporaneity, a notion that I considered
propitious for understanding the importance of bringing the processes of science to science
journalism. The discourse analysis was mobilized to understand how the students produced
meanings with regard to teaching unit. Students were able to make some satisfactory
relationships between relevance in approaching the processes of science, noted the problem in
covering only the results and suggest how the narrative journalism could create conditions for
coverage of the processes of science, listing several consequences that the narrative could offer to
journalism, such as calling the attention of readers, demystify science and facilitate the
understanding of science to a wide audience. The reports produced by the students were beyond
merely set out the results of science and brought historical, social, economic and conceptual
aspects that are involved in these results. This was possible with the use of narrative elements
such as the use of phrases denoting temporality and rupture, change of scenery and use of
characters. This allows me to reinforce the thesis that work with narrative journalism opens the
possibility to approach the processes of science in science journalism.
ix
x
Sumário
Resumo …................................................................................................................................................... xii
Abstract ….................................................................................................................................................. xix
Introdução ..................................................................................................................................................... 1
Problematização ............................................................................................................................................ 5
Objetivo e questões de estudo …................................................................................................................... 7
1. O jornalismo científico …....................................................................................................................... 9
1.1. A pesquisa em jornalismo científico ...................................................................................................... 9
1.2. Questões discursivas da ciência na mídia ............................................................................................ 12
1.3. Conflitos entre cientistas e jornalistas no jornalismo científico …..................................................... 14
2. Apoios teórico-metodológicos …........................................................................................................... 19
2.1. Sujeito e formações discursivas ........................................................................................................... 19
2.2. Dispositivo teórico, analítico da interpretação e metodologia da pesquisa ......................................... 23
2.3. Teorias do jornalismo ........................................................................................................................... 25
2.4. Objetividade no jornalismo .................................................................................................................. 31
2.5. A notícia como produto ........................................................................................................................ 36
2.6. Noticiabilidade ..................................................................................................................................... 38
2.7. Narrativa jornalística ............................................................................................................................ 39
2.8. Sobre o jornalismo científico ............................................................................................................... 40
3. Unidade de ensino: formulação e aplicação ....................................................................................... 47
3.1. Jornalismo e jornalismo científico ....................................................................................................... 49
3.2. Filosofia e epistemologia da ciência e suas relações com o jornalismo científico .............................. 51
3.3. Pesquisas sobre jornalismo científico .................................................................................................. 53
3.4. Narrativa jornalística e jornalismo científico ....................................................................................... 55
3.5. Produção em jornalismo científico ...................................................................................................... 63
4. Alguns resultados .................................................................................................................................. 67
4.1. 1ª Aula: Introdução ao jornalismo científico ....................................................................................... 67
4.2. 2ª Aula: Concepções de ciência e seu relacionamento com o jornalismo científico ........................... 68
4.3. 3ª Aula: Produção de sentidos referentes a pesquisa em jornalismo científico ................................... 81
4.4. 4ª Aula: Jornalismo como expressão narrativa da contemporaneidade ............................................... 88
4.4.1. Atividade sobre narrativa .................................................................................................................. 90
4.5. Avaliação final ..................................................................................................................................... 94
4.5.1. Relacionamento entre o jornalismo científico e a perspectiva narrativa para o jornalismo ............. 95
4.5.2. Finalidades da utilização de figuras de linguagem no jornalismo .................................................. 100
4.5.3. Relacionamento entre jornalismo científico, narrativa e processos da ciência ............................... 103
4.5.4. Atividade de leitura ......................................................................................................................... 112
4.6. Reportagem ........................................................................................................................................ 117
4.6.1. Conflitos e controvérsias ................................................................................................................. 118
4.6.2. Impacto e saúde ............................................................................................................................... 120
4.7. Categorias para a análise das reportagens .......................................................................................... 121
4.7.1. Vida, saúde e bem-estar .................................................................................................................. 121
4.7.2. Sustentabilidade .............................................................................................................................. 130
4.7.3. Economia local e produção rural .................................................................................................... 133
4.7.4. Textos sobre assuntos diversos ....................................................................................................... 137
Considerações finais ............................................................................................................................... 143
Referências ................................................................................................................................................ 155
Anexos ...................................................................................................................................................... 161
xi
xii
Agradecimentos
Agradeço também a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) pela bolsa
de doutorado e pela bolsa estágio de pesquisa no exterior.
xiii
xiv
Introdução
Este estudo visa trabalhar com estudantes de jornalismo cursando uma disciplina de
jornalismo científico alguns aspectos relacionados aos processos da ciência, diminuindo o foco
quase exclusivo nos resultados e aplicações práticas da ciência na mídia. Vários caminhos podem
ser tomados com esse objetivo, como o trabalho com abordagens da ciência que privilegiem a
percepção da ciência enquanto processo, como a abordagem em história, filosofia e sociologia da
ciência ou o trabalho com tópicos de ciência, tecnologia, sociedade e ambiente como mostram
diversos estudos na área em educação em ciências. Entretanto, considerei que apesar dos estudantes
de jornalismo poderem ter condições de contato com essas abordagens, quando eles se
imaginassem produzindo produtos jornalísticos os aspectos inerentes à prática jornalística
tradicional se sobreporiam às ideias propostas por essas abordagens, o que possivelmente
dificultaria a abertura para o trabalho com os processos da ciência na mídia. Assim, busquei dentro
das teorias em jornalismo, algo que considerei próprio da discursividade jornalística supondo que,
dessa forma, pudesse propiciar condições para o trabalho com os processos da ciência.
Com isso, busquei autores bastante conhecidos das teorias do jornalismo que trabalhassem
com a perspectiva de aceitar o jornalismo enquanto narrativa. Com relação ao jornalismo
científico, admiti que este tem sua especificidade, não sendo resultado da soma do científico com
o jornalístico. O funcionamento de processos discursivos complexos e interessantes de serem
observados na produção jornalística inspirada na produção científica me fez refletir sobre como
um referencial do jornalismo poderia contribuir para que não fossem apenas os resultados que a
ciência produz que inspirassem o jornalismo. Esse referencial também poderia propiciar o
diálogo com os estudantes de jornalismo para que eles pensassem na possibilidade de se abordar
os processos da ciência.
Nessa perspectiva, dois estudos teóricos envolvendo o jornalismo e sua expressão
narrativa foram escolhidos para o trabalho com os estudantes: o artigo O real e o poético na
narrativa jornalística de Jorge Kanehide Ijuim e o capítulo Relatar o acontecimento da obra O
discurso das mídias de Patrick Charaudeau. Apesar de referenciais distintos, esses autores
trabalharam com aspectos da discursividade jornalística que considero relevantes para a
percepção do jornalismo enquanto narrativa, um caminho para proporcionar condições para o
trabalho com os processos da ciência.
1
O modo como aspectos relativos à ciência são tratados pelos meios de comunicação já
vem sendo pesquisado por diversos pesquisadores em várias áreas do conhecimento. Trabalhos
como Bueno (1985) e Bertolli Filho (2006) objetivaram definir e delimitar uma área específica
para o jornalismo científico. O primeiro autor citado refere-se a um caso particular de divulgação
científica que é relativo a processos, estratégias, técnicas e mecanismos para a circulação de fatos
que se situam no campo da ciência e da tecnologia pela mídia. Já para o último autor citado,
entende-se por jornalismo científico:
2
“mitologia dos resultados” na divulgação científica. Para ele, em essência, a mitologia dos
resultados consiste em:
Como consequência disso, a autora estabelece que “[...] sem as condições em que foi
produzido, o dizer da ciência perde a historicidade; sem processos de construção visíveis, torna-
se absoluto e difícil de ser internalizado. Dessa forma, destina-se a poucos” (p. 57).
Em Dias (2009) já notava o foco nos resultados em detrimento dos processos constituintes
da ciência em textos sobre física nas revistas Ciência Hoje e Pesquisa Fapesp, o que pareceu
reforçar as considerações de Cascais e Almeida. A pesquisa de mestrado citada teve por objetivo
compreender interpretações de um grupo de estudantes do curso de licenciatura em física ao
3
lerem textos de jornalismo científico sobre física publicados nessas revistas. Um dos licenciandos
justificou a falta de curiosidade em continuar buscando se informar sobre o assunto lido na
revista Ciência Hoje com a assertiva:
Aluno: (…). O texto que eu li aqui, eu não teria curiosidade nenhuma de ler o
que está por trás disso.
Pesquisador: Que texto você leu?
Aluno: Radiação sobre medida. Um que ele muda de cor quando passa uma
radiação. (…) Ele fala que o líquido é polidoismetoxilcincoetil sei lá, aí fica
complicado isso daqui, agora alguém… Meu pai (…) para ler isso daqui, está
me xingando…
Abaixo segue um trecho do texto que esse estudante leu que pude considerar como uma
condição de produção do seu discurso:
Dentre as possibilidades para a ocorrência de situações como essa, uma pode ser a falta de
abordagem de processos de construção da ciência com o foco exclusivo nos resultados
científicos, além de léxicos do discurso dos autores do estudo, causando como consequência a
destinação para poucos como foi mencionado por Almeida (idem). Como já disse, “consideramos
a relevância da abordagem dos aspectos sociais e políticos na práxis do jornalismo científico,
além dos resultados de pesquisas e elaboração de novos produtos que já são fortemente
divulgados na mídia, fugindo da ‘retórica das conclusões’” (DIAS, idem, p. 16).
Para o estudo dos processos da ciência na mídia alguns estudos se detiveram em aspectos
que envolvem a ciência enquanto processo através de relações históricas. Massarani (1998) e
Esteves et. al (2006) pesquisaram aspectos históricos, sociais e políticos em que estavam
envolvidos os meios midiáticos e a própria ciência circulada por tais meios. Vara e Mendoza (2004)
privilegiaram uma abordagem em história da ciência para analisar o estado atual da ciência na
Argentina e como isso seria compartilhado pela comunidade de jornalistas científicos desse país,
tendo por objetivo compreender características do jornalismo científico especiais para países em
1 Furtado (2005).
4
desenvolvimento. Polino (2008), após um estudo que buscou caracterizar e quantificar a cobertura
jornalística sobre pesquisa e desenvolvimento em saúde num grupo de oito jornais provenientes da
Argentina, Brasil, Colômbia e Costa Rica, apontou, dentre outras considerações, como uma
deficiência estrutural que pode funcionar como um fator restritivo à prática jornalística:
Com base nesses autores citados, ressalto a relevância da abordagem dos processos que
permeiam a produção da ciência nas notícias científicas, tendo por objetivo dimensionar a ciência
em um contexto mais amplo e relacioná-la com outras instâncias da sociedade que a constituem.
Para o desenvolvimento dessa perspectiva, julgo adequado o trabalho em cursos de graduação em
jornalismo, em que seja propiciado aos futuros jornalistas condições para a abordagem dos
processos da ciência.
Problematização
5
“Quanto mais positivista a formação – pragmática, objetivista, resultado em detrimento do processo
– mais positivista tende a ser a produção (p. 21)”. Assim, os autores ressaltam a necessidade da
recuperação da dimensão ética e histórica da produção da ciência como processo e da divulgação
em uma perspectiva crítica e analítica. Para os autores: “a formação qualificada nesta perspectiva é
fundamental. Divulgar ciência é, antes de tudo, entrar no mundo da ciência, de sua história, do seu
desenvolvimento, das suas contradições, de seus paradigmas” (p. 21).
Nesses trabalhos os autores se preocuparam com aspectos da formação do jornalista
científico, mas não realizaram atividades práticas em que abordassem os tópicos, que
consideraram basilares, que privilegiassem a filosofia, a sociologia e a história da ciência com
estudantes de jornalismo, tendo por objetivo criar condições para o trabalho nessa perspectiva
crítica que levantaram. Duas investigações que trabalharam atividades em situações de ensino nas
quais alguns desses tópicos foram abordados são Carvalho et. al (2008a) e Almeida e Gama
(2005). As últimas autoras citadas tiveram por objetivo analisar discursos de estudantes
finalizando os cursos de jornalismo e de licenciatura em física sobre relações possíveis entre
jornalismo científico e o sistema de produção científico-tecnológico. Atentei para duas respostas
dos estudantes desse estudo, a primeira de um estudante de jornalismo e a segunda de um
licenciando em física, quando questionados sobre de que forma o jornalismo científico se
relacionaria com o sistema de produção da ciência e da tecnologia:
Ainda penso em ciência como algo distante, produzido por uma comunidade
fechada e que dificilmente chega à população, a não ser quando há uma
aplicação prática para aquilo que foi descoberto e pesquisado.
6
sujeita aos determinantes dessa mesma sociedade. Ou seja, ao mesmo tempo que
parecem questionar a divulgação apenas de resultados como aplicações práticas
ou como curiosidades, esses estudantes não apresentam indícios de preocupação
com a ausência na divulgação da ciência do seu reconhecimento como processo
social (p. 4).
Para o cumprimento desses objetivos, elaborei uma unidade de ensino para ser aplicada
em 20 horas e apliquei-a como parte da disciplina Jornalismo Científico em uma das
universidades federais localizada na região centro-oeste. Escolhi essa instituição pelo fato da
disciplina ser oferecida regularmente e constar no currículo como disciplina obrigatória. A
docente responsável pela disciplina me concedeu grande liberdade para aplicar a unidade de
ensino pelo tempo que eu quisesse, o que foi outro fator incentivador para a escolha dessa
instituição para a aplicação da unidade.
7
8
1. O jornalismo científico
1.1. A pesquisa em jornalismo científico
9
na perspectiva de comparação de aspectos da mídia enquanto transmissora dos frutos da atividade
científica.
Medeiros (2007) analisou as diferenças entre a cobertura geral e a realizada nos espaços
privilegiados para a informação científica em três jornais brasileiros (O Globo, Jornal do Brasil e
Folha de S. Paulo), durante os anos do primeiro grande pico de atenção da mídia em relação aos
organismos transgênicos: 1999 e 2000. Após fazer uma análise de conteúdo e categorizar entre
variáveis como editoria, enquadramento, fontes, citação de periódicos científicos, tipo de matéria,
presença de explicação científica, citação de agências noticiosas e outros meios de comunicação,
a autora concluiu que nos espaços reservados à ciência, tendeu-se a: usar um maior número de
fontes por matéria; abordar os temas por um número mais restrito de ângulos; usar com maior
frequência enquadramentos mais diretamente ligados à ciência; publicar mais reportagens que
outros gêneros; citar periódicos científicos; explicar a ciência subjacente aos fatos e feitos em
discussão; citar agências noticiosas e outros meios de comunicação (jornais, revistas, rádios e
emissoras de TV).
Já Massarani et. al (2005) se preocuparam em mostrar um panorama de como vem sendo
realizada a cobertura de temas da ciência e da tecnologia na América Latina, tendo como estudo
de caso sete jornais de impacto significativo da região: La Nación, da Argentina; El Mercurio, do
Chile; Mural, do México; El Comercio, do Equador; O Globo, Folha de S. Paulo e Jornal do
Commercio, do Brasil. Após coletar 482 textos, os autores concluíram que há certa ênfase nos
benefícios da ciência. Deu-se pouca ênfase às controvérsias da ciência, aspecto considerado
importante pelos autores devido a própria dinâmica do processo científico. Também as incertezas
e os riscos tiveram pouco destaque nas reportagens analisadas.
Nesse grupo de pesquisas comparativas e de conteúdo o que parece ser comum a todas
elas é um diagnóstico do que a mídia vem publicando sobre a ciência. O que chama a atenção dos
10
autores é quais resultados da ciência estão sendo transmitidos e comparações entre seções, jornais
e revistas entre eles, buscando responder questões como: o que eles cobrem? Que espaço
concedem a essa cobertura? Qual ângulo é adotado? Que fontes utilizam? Os conceitos
científicos estão certos ou há enganos? Considero tais pesquisas pertinentes por oferecerem um
mapeamento do que está sendo divulgado pelo jornalismo científico e seus aspectos discursivos.
As críticas dessas pesquisas reforçam a delimitação do problema de pesquisa desta tese, já que os
processos da ciência foram raramente levados em consideração pelas mídias pesquisadas.
Em outra frente de pesquisa, já com o objetivo de apontar problemas ao jornalismo
científico, Bertolli Filho (2010) notou o problema da cultura genetocêntrica que predomina nas
matérias de ciência publicadas na Folha de S.Paulo. Esse autor teve por objetivo focar algumas
estratégias adotadas pelo jornalismo científico publicado em formato impresso e online pelo
jornal Folha de S.Paulo. Optando por questões pertinentes à genética humana, mais precisamente
à biologia molecular, estando ou não as notícias alocadas no caderno dedicado à divulgação das
ciências. Após realizar análise de conteúdo, o autor constatou que a mídia buscou explicar e/ou
justificar não só as dinâmicas do corpo biológico, mas também os fenômenos próprios do corpo
social, como sendo determinados, ou pelo menos influenciados, em alto grau, pela dimensão
genética individual ou dos grandes grupos humanos.
Na perspectiva de tentar resolver o problema da abordagem exclusiva dos resultados da
ciência, Carvalho et. al (2008b) e Passos (2010) detectaram o baixo enfoque nos processos da
ciência e propuseram o jornalismo literário como uma possibilidade de representação mais
complexa da ciência. Carvalho et. al (idem) discutiram o jornalismo literário como meio para a
comunicação pública da ciência por meio da análise da reportagem “The Mountains of Pi”, de
Richard Preston, a partir da hipótese de que o uso de recursos narrativos para descrever processos
de pesquisa constitui um modelo de comunicação dissonante do convencional, operando sob
princípios distintos. Os autores identificaram e caracterizaram algumas expectativas com relação
ao texto:
11
Considerei esses dois artigos relevantes por partirem da assertiva que processos da
pesquisa científica podem ser trabalhados a partir de uma perspectiva narrativa para o jornalismo,
o que reforça a possibilidade em criar condições para o trabalho dos processos da ciência junto a
estudantes de jornalismo utilizando a noção do jornalismo enquanto expressão narrativa.
12
efeitos de dramatização (visada da captação) e de credibilidade (visada da informação). Elas
concluíram que:
13
ciência. O resultado de Fahnestock, que o jornalista só dispõe de dois recursos para atrair os
leitores para os textos, a admiração pela ciência e aplicação de seus resultados, cria obstáculos
para esta pesquisa, já que esse é provavelmente o principal motivo pelo qual a mídia só publica as
aplicações dos resultados. Os processos da ciência não seriam suficientes para atrair os leitores e
só seriam abordados quando uma aplicação com impacto fosse criada ou quando uma pesquisa
que gere admiração, por exemplo a descoberta de um planeta, fosse divulgada. Assim, é esperado
que os estudantes de jornalismo se atentem o máximo possível para as aplicações e resultados.
Entretanto, ao considerar o jornalismo como narrativa dando caráter temporal aos resultados,
acredito que os processos da ciência possam vir à tona e merecer um tratamento jornalístico em
conjunto com as aplicações da ciência.
O autor apontou como raiz dos problemas na interação entre cientistas e jornalistas as
diferenças culturais entre as duas profissões. Ele elencou como distinções culturais os diversos
códigos linguísticos, ausência de semântica e de bases pragmáticas compartilhadas. Além de
14
estereótipos, preconceitos, distintas convenções, normas, definições de papéis e de situações que
fazem parte das respectivas culturas. Todas essas divergências são confrontadas durante a
comunicação intercultural e podem causar um desencontro de expectativas com relação ao
parceiro de interação.
Peters também se ocupou em estabelecer diferenças entre as culturas científicas, cotidiana
e jornalística ao considerar o estudo de tais diferenças relevantes para compreender o
relacionamento entre jornalistas e cientistas. Para o autor, as diferenças entre as culturas científica
e cotidiana levam a:
No que diz respeito às pesquisas com repercussão direta na população, há entre as duas
culturas níveis diferentes de confiança na ciência e tecnologia, assim como modos diferentes
pelos quais as opiniões são geradas e as decisões tomadas. Para Peters, as diferenças mais
importantes entre os que ele chama de especialistas e os jornalistas são:
15
Além disso, segundo o autor, quanto mais político e controverso o contexto, menos
provável é a possibilidade dos jornalistas aceitarem que os cientistas tenham um papel muito
ativo.
Outra pesquisa sobre interação entre jornalistas e cientistas foi a de Reed (2001) que
tentou encontrar uma variedade de maneiras de reduzir a lacuna entre cientistas e jornalistas para
produzir mudanças na comunicação dos resultados da ciência que serão satisfatórios para ambos
os grupos, por acreditar que compreender a base do conflito é um pré-requisito para trabalhar no
sentido de estratégias para sua melhoria. Ela analisou as convergências e divergências na
interpretação, as práticas materiais e sociais e processos organizacionais decorrentes dessas
identidades profissionais concorrentes que moldam a tensão, frustração e conflitos que
caracterizam as interações e relações permanentes entre os jornalistas e a profissão de jornalismo
e, por um lado, os cientistas e a ciência do outro.
A autora realizou nove entrevistas estruturadas e abertas, com três cientistas, três
jornalistas/escritores de ciência e três “jornalistas de notícia”, definidos amplamente como
jornalistas científicos não-especialista, trabalhando em mídia impressa e eletrônica. Os
entrevistados foram solicitados a identificar os três aspectos mais importantes da comunicação da
ciência e como alcançá-los; mudanças para fazer a ponte entre o jornalismo e a ciência; e suas
compreensões do poder, controle, organização e imperativos tecnológicos. Para a autora, a principal
área de interesse gira em torno das estratégias de proteção da identidade de cada grupo profissional.
A primeira análise da autora trouxe como resultado o consenso de que a comunicação da
ciência poderia ser beneficiada se tivesse mais ênfase na acessibilidade, precisão e atenção ao
público. Porém, ela faz a ressalva que essas concordâncias aparentes, no entanto, são nuances que
contêm algumas grandes tensões e frequentes contradições, já que precisão, acessibilidade e
apelo público não são facilmente alcançados.
2 Tradução livre do inglês realizado pelo pesquisador, assim como em todos os outros textos em inglês.
16
O primeiro fator notado pela autora é que jornalistas e cientistas operam com concepções
muito diferentes do tempo. “Na sua forma mais superficial, isto se refere ao imediatismo e prazos
curtos da mídia de notícias diárias em comparação com o ritmo mais lento e acumulativo do
conhecimento científico” (p. 285).
Outro resultado da análise das entrevistas foi que os jornalistas não se contentam em
apenas querer uma chance de representar ideias, mas competem com outros jornalistas e meios de
comunicação para a publicação. Eles também competem com cientistas pelo controle sobre o
conteúdo de suas histórias. Para a autora, alguns jornalistas possuem visões deles próprios como
marginais e conscientes de suas limitações e menor status social em relação aos cientistas.
Além disso, ela também comenta que, cientistas e jornalistas, cada um a sua maneira,
continuam a ser pessoalmente comprometidos com as normas culturais e éticas de suas
profissões. A autora identificou três facetas ligadas às identidades profissionais de cada grupo,
que permanecem controversas e agem como barreiras à interação e comunicação da ciência:
autoria, controle e status. “De muitas maneiras, o que é profissional para um grupo é não
profissional para o outro. Consequentemente, ambos os grupos se engajam em estratégias de
proteção da identidade profissional em interações que levam à suspeita e falta de confiança na
integridade do outro” (p. 288).
Sobre a autoria, a autora concluiu que os cientistas tendem a acreditar que os trabalhos
devem ser apresentados como eles teriam escrito. Eles esperam o reconhecimento pleno de todos
os membros da equipe de pesquisa, instituição e fonte de financiamento. Também questionam o
direito dos jornalistas a fazer perguntas e, em seguida, escrever o que quiserem. Por outro lado,
os jornalistas acreditam que eles são os autores nos meios de comunicação de textos sobre
ciência.
Com relação à propriedade ou controle, os cientistas sentem um forte senso de
propriedade de seus trabalhos, inclusive quando eles estão na área de comunicação pública,
enquanto os jornalistas veem-no como não pertencente ao cientista.
Para a autora, sobre o status, devido à identificação dos jornalistas como membros do, e
intérpretes para, “mundo real” – uma resposta ao baixo status social ligado ao jornalismo comparado
com a maior estima que a ciência tem tido na sociedade moderna – os jornalistas tentam, muitas
vezes sem sucesso, encontrar formas de chamar os cientistas para um espaço mais igualitário.
17
Uma das mudanças sugeridas por Reed (2001) para melhorar a ponte entre o jornalismo e a
ciência foi a educação para a mídia destinada a cientistas. Essa sugestão foi vista, segundo a autora,
como mais relevante do que educação científica destinada a jornalistas. Outra proposta, que
considera concreta para o avanço da comunicação da ciência foi a criação de um banco de dados no
qual os cientistas poderiam registrar seus nomes e especialização.
Considerei tais estudos sobre a interação entre jornalistas e cientistas relevantes para o
trabalho com estudantes de jornalismo, pois uma das mais complexas etapas na discursividade
jornalística é a relação entre jornalistas e fontes. O texto de Peters entrou como leitura obrigatória
da unidade de ensino, tendo por objetivo compreender o relacionamento entre jornalistas e
cientistas e proporcionar meios para a superação dos conflitos. Assim, a revisão bibliográfica foi
relevante também para a montagem da unidade de ensino, já que alguns textos da revisão, como
Peters (2005) e Medeiros (2007), foram lidos pelos alunos da disciplina Jornalismo Científico e
outros foram lembrados por mim durante as aulas.
18
2. Apoios teórico-metodológicos
Leituras da vertente da análise de discurso originada na década de 60 na França por
Michel Pêcheux, principalmente em textos produzidos no Brasil por Eni Orlandi contribuíram
para as reflexões que possibilitaram a realização deste trabalho. Mobilizar a análise de discurso
me pareceu adequada já que considera que a linguagem não é transparente, bem como admite que
a relação entre homem, pensamento e mundo não acontece de forma direta e sim mediada pelo
simbólico. Já a noção de discurso, enquanto efeito de sentidos entre interlocutores, favorece
condições para compreensão dessas relações mediadas. Nessa vertente da análise de discurso,
procura-se compreender a língua fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico e parte do
trabalho social geral, constitutivo do homem e da sua história, concebendo a linguagem como
mediação necessária entre o homem, o social e o mundo natural. Essa mediação, que é o discurso,
torna possível tanto a permanência e a continuidade quanto o deslocamento e a transformação do
homem e da realidade em que ele vive.
A análise de discurso busca compreender os mecanismos que funcionam na construção
dos discursos, sendo que alguns desses mecanismos são as condições em que eles são produzidos.
Para Orlandi (2005), a análise de discurso possibilita a reflexão sobre o trabalho dos processos de
produção da linguagem e não apenas seus produtos. “Podemos considerar as condições de
produção em sentido estrito e temos as circunstâncias da enunciação: é o contexto imediato. E se
as considerarmos em sentido amplo, as condições de produção incluem o contexto sócio-
histórico, ideológico” (p. 30). Isso não significa que as condições imediatas não sejam sócio-
históricas.
A noção de sujeito é considerada um dos pilares da análise de discurso, já que através dela
se estabelecem concepções de discurso, de linguagem e dos seus funcionamentos. Desde as suas
filiações teóricas primordiais baseadas nas releituras de Marx e Freud respectivamente por
Althusser e Lacan, a análise de discurso já estabelecia as suas concepções de sujeito.
Mazière (2007) lembra que um dos aspectos que constituíram a originalidade da análise
de discurso francesa está na ideia do “sujeito assujeitado”, falado por seu discurso, provindo de
19
Foucault, Althusser e Lacan. Essas considerações sobre o sujeito, que não escapa à ordem do
discurso, relacionada com a historicidade de toda enunciação e a materialidade das formas da
língua é que vai constituir a especificidade da análise de discurso na definição da noção de
sujeito. De acordo com Orlandi (1994) a análise de discurso tem seu ponto de apoio na reflexão
que produz sobre o sujeito e o sentido, já que considera que, ao significar, o sujeito se significa,
propondo uma maneira de pensar sujeito e sentido que se afasta tanto do idealismo subjetivista
(sujeito individual) como do objetivismo abstrato (sujeito universal). “A análise de discurso
considera que o sentido não está já fixado a priori, como essência das palavras, nem tampouco
pode ser qualquer um: há determinação histórica do sentido” (p. 56). Assim, ao introduzir a noção
de sujeito e de exterioridade, a análise de discurso se inscreve numa posição epistemológica que
pressupõe o descentramento do sujeito.
Orlandi ainda propõe que a análise de discurso produz suas críticas a duas tendências que
se ligam: “à que propõe o sentido literal (o sentido é um, do qual derivam os outros) e à que, no
lado oposto, diz que o sentido pode ser qualquer um. Ambas posições são a negação da história”
(p. 56).
De acordo com Pêcheux (2009), o caráter material do sentido – mascarado por sua
evidência transparente para o sujeito – consiste na sua dependência constitutiva daquilo que
chama “o todo complexo das formações ideológicas”. Ele especifica essa dependência por meio
de duas teses:
20
referência a essas posições, isto é, em referência às formações ideológicas nas
quais essas posições se inscrevem (p. 146).
2) Toda formação discursiva dissimula, pela transparência do sentido que nela se
constitui, sua dependência com respeito ao “todo complexo com dominante” das
formações discursivas (p. 148).
Pêcheux considera uma formação discursiva como aquilo que, numa formação ideológica
dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado de luta
de classes, determina o que pode e deve ser dito. As palavras, expressões, proposições recebem
seu sentido a partir da formação discursiva na qual são produzidas. O que implica um modo de
ver os indivíduos como interpelados em sujeitos-falantes pelas formações discursivas que
representam na linguagem. O autor também explicita o que seria o “todo complexo com
dominante” da segunda tese a partir da noção de interdiscursividade. A formação discursiva seria
operada pela objetividade material que residiria no fato que algo fala sempre antes, em outro
lugar e independentemente. “O efeito de encadeamento do pré-construído e o efeito que
chamamos articulação (…) são, na realidade, determinados materialmente na própria estrutura do
interdiscurso” (p. 149).
Para Pêcheux, como retoma Orlandi (2005), o interdiscurso é definido como aquilo que
fala antes e em outro lugar.
(…) é o que chamamos memória discursiva: o saber discursivo que torna
possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já-dito que
está na base do dizível, sustentando cada tomada da palavra. O interdiscurso
disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma
situação discursiva dada (p. 31).
(…) a memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que surge como
acontecimento a ler, vem restabelecer os “implícitos” (quer dizer, mais
tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-
transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação
ao próprio legível. (…) A questão é saber onde residem esses famosos
implícitos, que estão “ausentes por sua presença” na leitura da sequência (…) (p.
52).
A análise de discurso, como lembra Orlandi (ibidem, p. 58), considera que tanto os
sujeitos como os sentidos se constituem historicamente, num processo que funciona pela dupla
ilusão de que o sujeito é origem de si e a linguagem é transparente, reflete sentidos “já-lá”, dados.
21
A análise de discurso, desse modo, repõe como trabalho a própria interpretação, o que resulta em
compreender também de outra maneira a história, não como sucessão de fatos com sentidos já
dados, dispostos em sequência cronológica, mas como fatos que reclamam sentidos, cuja
materialidade não é possível de ser apreendida em si, mas no discurso.
Outra noção da análise de discurso que considerei relevante, e que tem a ver com a
perspectiva do sujeito para a análise de discurso, é a de imaginário. Em análise de discurso, não
bastaria ao analista simplesmente descrever com minúcias os traços sociológicos empíricos –
classe social, idade, sexo, profissão – pois são as formações imaginárias, constituídas a partir das
relações sociais que funcionam no discurso, como, por exemplo, a imagem que se faz de um pai,
de um operário, de um presidente etc. “Há em toda língua mecanismos de projeção que permitem
passar da situação sociologicamente descritível para a posição dos sujeitos discursivamente
significativa” (ORLANDI, 1994, p. 56).
De acordo com Orlandi (2005), segundo o mecanismo da antecipação, todo sujeito tem a
capacidade de colocar-se no lugar em que o seu interlocutor ouve suas palavras:
Ele antecipa-se assim a seu interlocutor quanto ao sentido que suas palavras
produzem. Esse mecanismo regula a argumentação, de tal forma que o sujeito
dirá de um modo, ou de outro, segundo o efeito que pensa produzir em seu
ouvinte. (…) Dessa maneira, esse mecanismo dirige o processo de argumentação
visando seus efeitos sobre o interlocutor (p. 39).
Brandão (1991) cita como exemplo o interior de uma instituição escolar, onde há o ‘lugar’
do diretor, do professor ou do aluno, marcados por propriedades diferenciais. No discurso, as
relações entre esses lugares se acham representadas por várias formações imaginárias que
designam o lugar que destinador e destinatário atribuem a si e ao outro. “Dessa forma, em todo
processo discursivo, o emissor pode antecipar as representações do receptor e, de acordo com
essa antevisão do ‘imaginário’ do outro, fundar estratégias de discurso” (p. 36).
Nesta pesquisa, procurei indícios de imaginários visando compreender como os
estudantes produziram sentidos para a unidade de ensino sobre jornalismo científico. Digo
indícios porque concordo com Mazière (2007) quando ela reforça a ideia que o sujeito da análise
de discurso (um “lugar de sujeito”) não pode ser apreendido. Entretanto ela coloca como
condição para a apreensão do sujeito o interior de cada uma das buscas do analista, em função de
seu desígnio interpretativo e de sua posição quanto à língua.
22
2.2. Dispositivo teórico, analítico da interpretação e metodologia da pesquisa
23
finalidade de compreender a produção de significados por estudantes de jornalismo sobre os
processos de construção da ciência e suas possíveis abordagens através do jornalismo científico.
Assim, desenvolvi um dispositivo que contemplou algumas especificidades do discurso
jornalístico e, em particular, do jornalismo científico, aprofundando na compreensão de
especificidades do jornalismo, como a noção de notícia, os critérios de noticiabilidade e os seus
aspectos linguístico/discursivos. Nesse sentido, julguei a pertinência de focalizar estudos que
consideram o jornalismo como narrativa, tendo em vista a ampliação do dispositivo analítico
desenvolvido no mestrado. Coerentemente com essa perspectiva, busquei autores que
privilegiassem a perspectiva histórica. Considerei que esse seria um caminho possível para
abordar aspectos dos processos da ciência no jornalismo científico e não apenas os produtos da
ciência.
Noções da análise de discurso contribuíram para compreender como os estudantes
produziram significados com relação a textos de teóricos do jornalismo em que eles propunham a
fuga do estritamente factual em direção ao encadeamento histórico e social daquilo que é
chamado de fato. Com isso, busquei proporcionar meios para que os estudantes pudessem ver
além dos resultados da ciência, que se relaciona ao dito “fato” e vissem também os processos de
constituição da ciência.
Além das concepções até aqui explicitadas sobre a construção de um dispositivo analítico,
também levei em consideração na sua construção as noções de leitura advindas da análise de
discurso. Para Orlandi (1988) a leitura, se assumido um ponto de vista discursivo, possui alguns
fatores que têm que ser levados em consideração, como a produção da leitura e, com isso, a
possibilidade de ser trabalhada. A leitura, tanto quanto a escrita, faz parte do processo de
instauração de sentidos e o sujeito-leitor tem suas especificidades, sua história e tanto o sujeito
quanto os sentidos são determinados histórica e ideologicamente. Um aspecto importante na
produção da leitura seria a incompletude, noção que é definida pelo implícito e pela
intertextualidade que seria a relação de um texto com outros.
Com essa concepção de leitura, assumi a mesma posição de Almeida et. al (2009) que
fizeram funcionar uma atividade de leitura com licenciandos em física e não intencionaram
apenas obter deles uma possível resposta considerada como certa, “mas sim criar condições de
produção adequadas à manifestação das posições/opiniões dos estudantes visando seu debate e
24
oportunizando a reflexão sobre essas posições/opiniões” (p. 99). Assim, do mesmo modo que
esse trabalho citado, busquei nas leituras propostas aos estudantes de jornalismo como elas
poderiam criar condições de produção para a tomada de posições e para a elaboração de textos
por esses estudantes.
Tentativas em definir o jornalismo vem sendo buscadas por diversos pesquisadores. Zelizer
(2004) afirma que não há consenso na definição do que é jornalismo, sendo que o termo se refere à
formação e experiência de quem o tenta definir. Jornalistas possuem a tendência de pensar o
jornalismo em modos padrões e a partir de um conhecimento tácito que é baseado no hábito e no
costume. A autora indica cinco representações de como os jornalistas vêm o seu trabalho:
25
Tais imaginários levantados por Zelizer são relevantes para se compreender, entre outros,
os discursos dos estudantes de jornalismo, já que, dada a sua formação parece plausível se supor
que eles mantêm diversos desses imaginários ao assumir posicionamentos sobre o jornalismo, o
jornalismo científico e a possibilidade de se abordar os processos da ciência.
A autora também se preocupou em como os pesquisadores em jornalismo veem o
jornalismo. Segundo ela, para a comunidade científica o jornalismo se refere, primeiramente, a
um conjunto de atividades pelas quais alguém se qualifica como um “jornalista”, tais como
normas e valores compartilhados.
Ainda segundo a mesma autora, uma segunda perspectiva para o jornalismo é a existência
de um quadro institucional caracterizado por privilégios sociais, políticos, econômicos e/ou
culturais.
26
(2009). Esse autor rejeita a ideia de “atualidade”, uma das definições do jornalismo. “A
atualidade” são os acontecimentos aos quais têm acesso à mídia e não o que acontece no mundo e
que poderia ser transformado em notícias. Por notícia, o autor a concebe como construção social
da realidade, algo especial pertencente à realidade, sendo a realidade simbólica, pública e
cotidiana. “Os jornalistas são, como todo o mundo, construtores da realidade ao seu redor” (p.
11). Ao afirmar que duas das problemáticas mais polêmicas sobre a produção da notícia são a do
profissionalismo jornalístico e o da objetividade, o autor define o jornalista como um produtor da
realidade social e alerta: “essa concepção bate de frente com o conceito tradicional da
objetividade jornalística. No mundo da mídia, a objetividade continua sendo um dos mitos mais
complexos de serem banidos” (p. 14).
Considero que a noção de acontecimento de Alsina (ibidem) é coerente com a análise de
discurso, já que esse autor o concebe como uma construção social da realidade por parte do
sujeito. Ele dá o exemplo da explosão de uma estrela supernova no século XIII. Tal fenômeno foi
registrado por astrônomos chineses, persas e astecas, porém foi ignorado pelos astrônomos
europeus. A falta de registro do fenômeno se deu pela concepção aristotélica dos cientistas que
acreditavam na imutabilidade das estrelas. “Para os astrônomos da Europa do século XIII,
tratava-se de um acontecimento impossível, portanto não foi um acontecimento” (p. 114). O autor
propõe as seguintes premissas:
a) A variação do ecossistema.
b) A comunicabilidade do fato.
c) A implicação dos sujeitos.
27
Sobre a variação do ecossistema, Alsina (ibidem) afirma que o ecossistema serve de ponto
de referência a partir do qual podemos estabelecer a existência dos acontecimentos. O autor
exemplifica:
Sobre a comunicabilidade do fato, Alsina lembra de países que sofrem censura. Assim,
alguns acontecimentos são a priori incomunicáveis. Por implicação aos sujeitos, o autor divide
em duas perspectivas diferentes. Uma com relação a implicação do destinatário da notícia e o
envolvimento que o produtor da notícia (a mídia) pressupõe no acontecimento.
A implicação do destinatário da notícia se constitui em um dos pontos mais importantes
quando consideramos a ciência na mídia. Para Alsina, existem três graus de maior ou menor
implicação. Implicação direta e pessoal: notícias que atingem a vida cotidiana de alguém.
Implicação direta e não pessoal: notícias que atingem o lado emotivo de alguém, mas sem
relevância na vida cotidiana da pessoa, como a vitória do time de futebol que alguém torça.
Implicação indireta: notícias que não atinjam o sujeito (aqui o autor cita uma notícia que
aconteceu em outro país e que o jornalista procura informações que faça com que o sujeito se
sinta implicado). Ausência de implicação, na qual o sujeito se sente indiferente à notícia (o autor
cita o exemplo da queda da cotação de determinada empresa na Bolsa de Frankfurt).
O fator de implicação do destinatário da notícia é relevante para compreendermos o
jornalismo científico porque, tendo em conta o mecanismo de antecipação do público-alvo, o
jornalista tenta evitar que os leitores e telespectadores tenham contato com certa notícia e
pensem: “E eu com isso?”. No caso da pesquisa científica para um público-alvo amplo, a ciência
raramente terá alguma implicação direta na vida das pessoas, como verificado por Vogt et. al
(2001) que apontou que só 1% das matérias de ciência e tecnologia tiveram chamadas na capa em
2000 e 2001. Por isso, sempre que o jornalista se depara com pautas de ciência ele se pergunta
em como isso irá impactar na população, se isso é de interesse público ou não. Para Alicia
Ivanissevich, editora da revista Ciência Hoje, “é preciso evitar notas superficiais sobre estudos
28
pouco significativos” (VILARDO, 2013). Por “pouco significativos” a jornalista se refere a estudos
que não causem impacto na população, que fazem com que as pessoas não se sintam implicadas,
como teorizou Alsina (ibidem).
Outro exemplo foi a recente discussão sobre o programa espacial da Índia. No dia 5 de
novembro de 2013, um foguete indiano lançou um satélite para pesquisas no planeta Marte.
Muitos apontaram para a contradição de um país com 300 milhões de pessoas vivendo com
menos que um dólar por dia e o orçamento da agência espacial indiana de um bilhão de dólares
por ano e o gasto específico de 74 milhões de dólares com o projeto do satélite. Em meio a essa
contradição, os jornalistas se viram no dilema de como fazer com que o lançamento do satélite
pudesse causar impacto na vida dos indianos. Pallava Bagla, jornalista especializado em ciência,
quando entrevistado pela BBC3 afirmou:
A Índia tem que caminhar sobre dois pés. Um que deve retirar pessoas da
pobreza e outro que busca por alta tecnologia. Buscar por mapear os recursos
aquáticos, mapear os recursos terrestres, auxiliar os pescadores para que eles
possam conseguir melhores pescarias nos oceanos. Isso inclui ver quando
ciclones acontecem. Em 1999, a Índia não tinha satélites suficientes, não tinha
radares Doppler suficientes… 10 mil pessoas perderam a vida. Recentemente
quando o ciclone aconteceu em Odisha. Perda de vidas foi em dois dígitos.
Existe um preço para isso?”
29
Como um escritor de ciência do Instituto Nacional de Pesquisa Dental colocou:
“A menos que ele vai custar menos ou doer menos, o público não quer ouvir
sobre isso”. Assuntos em biologia e medicina são naturais para esses apelos e
por isso são desproporcionalmente representados em jornalismo científico.
Assuntos em matemática, química e física são muito mais difíceis de acomodar
(1986, p. 279).
A busca por fazer com que o leitor se sinta implicado pela notícia, que no caso da ciência
procura por resultados que causem impacto decisivo na população, provoca certas tensões em
algumas situações. Quando o físico Roy J. Glauber foi laureado com o prêmio Nobel de física de
2005, por sua contribuição para a teoria quântica da coerência ótica, Salvador Nogueira (2005),
então repórter de ciência da Folha de S.Paulo, o entrevistou. Em praticamente todas as perguntas
podemos notar a tentativa de relacionamento a alguma aplicação para a pesquisa desenvolvida pelo
físico. O próprio título “Área levará a revolução tecnológica, diz vencedor” já foca fortemente na
implicação tecnológica e, com isso, de vasto impacto na população. Segue abaixo alguns trechos:
Folha: Sobre a sua pesquisa, o sr. por algum momento na época imaginou que
pudesse estar fazendo algo que levasse ao Prêmio Nobel?
Glauber: Não. Com toda honestidade, achei que não. Eu sabia que estava
realizando alguns feitos importantes, não 100% novos, mas eram importantes, e
a verdade é que a forma como eu fiz, as ferramentas matemáticas que eu
desenvolvi, após um certo número de anos, acabaram abrindo um campo
completamente novo que é extremamente promissor.
Folha: Imagino que essas aplicações tenham a ver com o que os outros dois
ganhadores fizeram…
Glauber: Sim, eles são grandes amigos meus, e são experimentalistas
fantasticamente brilhantes. John Hall fez experimentos muito inteligentes com
medições precisas. Theodor Hänsch, que eu conheço bem, também.
Folha: E o sr. vê ainda um grande potencial futuro para a física que o sr. ajudou
a desbravar?
Glauber: Bem, nós ainda estamos no começo dela. (Risos) No final das contas,
a nanotecnologia vai depender dela. Na verdade, as ferramentas matemáticas em
que eu trabalhei vão além da escala da nanotecnologia, falam de coisas ainda
menores que isso.
Folha: O sr. poderia falar mais de como seus desenvolvimentos teóricos se
aplicariam à nanotecnologia? Como vai funcionar?
Glauber: Não tenho como dizer como vai funcionar. Pouca coisa foi realmente
obtida até agora, estamos realmente no começo disso tudo. A ideia é que no
futuro átomos individuais possam substituir partes de componentes eletrônicos,
como transistores.
Folha: Mas tem muita gente que diz que, apesar de todo esse entusiasmo recente
com nanotecnologia, essas aplicações mais sofisticadas, se é que são possíveis,
estão num futuro bem distante. O que o sr. acha disso?
Glauber: Olha, eu sou um teórico. Eu faço coisas matemáticas. Eu não estou
preocupado com o lado experimental.
30
Podemos notar o relativo desconforto do físico em ter que, todo momento, imaginar
aplicações práticas para sua pesquisa. O desconforto fica evidente quando diz não estar
preocupado com o lado experimental, ainda que o lado experimental não se refira
necessariamente a aplicações.
As ciências humanas também sofrem do mesmo problema, já que se considera que não há
aplicação imediata das pesquisas. Investigações em humanas só vão para a mídia quando valores-
notícia, que irei discutir com mais profundidade adiante, se reúnem em uma mesma pesquisa,
como, por exemplo, quando alguma celebridade e/ou personagem histórico é pesquisado, ou
quando da função jornalística de buscas por notícias de interesse público, como a situação
precária de determinada comunidade pesquisada pelos antropólogos. Se a causa da precariedade
for algum governo que a mídia está disposta a combater e a solução para a comunidade vier de
grupos que a mídia apoia, então a notícia ganhará mais destaque.
Assim, com base nos estudos descritos parece ser esperado que qualquer estudante de
jornalismo, assim como jornalistas formados, busquem pautas científicas que atendam os
requisitos de impacto na população que as pesquisas científicas possam proporcionar.
Quanto ao envolvimento que a mídia pressupõe no acontecimento, Alsina (ibidem)
resume que, por princípio, quanto mais pessoas se sentirem envolvidas em um acontecimento,
maior será a sua importância. “No entanto, precisamos levar em conta que a mídia é a que
seleciona o acontecimento, partindo do grau de envolvimento que eles têm. A partir daí, podemos
descobrir uma estratégia de envolvimento dos meios de comunicação”, (p. 150).
Outro autor a se preocupar com o estatuto do acontecimento na mídia foi Patrick
Charaudeau em sua obra Discurso das Mídias (2010). Para Charaudeau (2010), o acontecimento
é sempre construído: “O acontecimento nunca é transmitido à instância de recepção em seu
estado bruto; para sua significação, depende do olhar que se estende sobre ele, olhar de um
sujeito que o integra num sistema de pensamento e, assim fazendo, o torna inteligível” (p. 95).
Pelo fato desse autor ter se dedicado longamente ao estudo das mídias, julguei a conveniência de
trabalhá-lo com estudantes de jornalismo.
Para Neveu (2006) a objetividade é uma característica tão importante que auxilia no
31
estudo da história do jornalismo. O autor, a partir de revisão bibliográfica, localiza a Grã-
Bretanha e principalmente os Estados Unidos da América como a origem das práticas
jornalísticas que constituem hoje a norma de referência da atividade.
O autor utiliza o intertítulo: “fatos, fatos, fatos” para ressaltar a importância dada a
objetividade como norma primordial ao jornalismo. “A aparição dos jornais baratos da Penny
Press, simbolizada pelo lançamento do New York Sun em 1833, consagra esse jornalismo
orientado para a coleta do fato” (p. 22). Outro ponto importante está ligado à centralidade do
factual, com a predominância do discurso da objetividade, construída em torno de uma desejada
reconstituição dos fatos, ao separar informação e comentário. O autor faz a ressalva que a crença
na reconstituição dos fatos é uma grande ilusão, mas transformada em norma profissional
produziu efeitos:
Ela estimula uma espécie de olhar objetivo que procura uma descrição clínica
dos acontecimentos, põe os indivíduos e os fatos como objetos de observações
frias, desconfia do comentário, identificado como palavrório. O resultado dessas
orientações é a desvalorização das formas empoladas de expressão, dos registros
polêmicos ou normativos, em nome de uma escrita sóbria e descritiva (p. 24).
32
fundador à atividade.
Ainda de acordo com Neveu a objetividade no jornalismo possui a função de proteger os
jornalistas.
Tuchman convida a pensar essa escrita objetiva não tanto como uma garantia de
veracidade ou de neutralidade política, mas como um dispositivo de proteção
contra as críticas e as perseguições que sofrem os jornalistas. O
desenvolvimento de um conjunto de marcadores de objetividade vem antes de
qualquer coisa manifestar que, mesmo trabalhando com urgência, eles fizeram
de tudo para ir às fontes mais confiáveis e coletar diversos pontos de vista. A
escrita vem de alguma forma sugerir que são os fatos que falam, e não a
subjetividade do redator. (p. 109)
33
Outro autor preocupado com o problema da objetividade e com um livro escrito somente a
partir das suas experiências no jornalismo foi Cláudio Abramo. Para ele, quando um jornalista
entra para um jornal sabe que aquele jornal tem uma determinada linha e salienta que não existe
jornalismo objetivo.
Isso é uma ilusão que se tenta passar para os jornalistas e deve ser expurgada do
espírito dos profissionais. Não existe um jornalismo objetivo, existem vários.
Quando um jornalista vai trabalhar numa empresa, deve perguntar o que é
objetivo, segundo aquele jornal. Porque essa diferença entre o objetivo e o não
objetivo, de acordo com a linha do jornal, se reflete em várias coisas. Mesmo
entre os jornalistas, o que é objetivo para um pode não ser para outro,
dependendo da análise que cada um faz da sociedade em que se vive (1988, p.
117).
Para o autor, no jornal, a notícia tem aquela objetividade que foi optada pela empresa e
cooptada pelo jornalista. Ele utiliza o termo “interpretação” referente ao jargão jornalístico de que
o jornalismo produz notícias sem interpretar, quando só se baseia nas respostas às questões do
lide, ou interpreta quando faz análises. O autor reconhece que o jornalista sempre interpreta:
Apesar de concordar com esses autores no que se refere à crença de que a realidade dos
fatos pode ser expressa em sua completude pelas notícias não se sustenta, o outro extremo
também precisa ser evitado e criticado na pesquisa em jornalismo: a negação da objetividade.
Para Sponholz (2009) a característica principal do jornalismo é a suposta mediação da realidade,
sendo um tipo de processo de conhecimento tanto para os seus produtores quanto para os
receptores da realidade produzida.
34
A posição “objetividade-não-existe” demonstra ser uma farsa e também nem um
pouco realista, já que ela não oferece nenhuma alternativa para os jornalistas
sobre como eles devem agir (…). Esta postura abandona o repórter que precisa
investigar um problema na hora de tomar decisões. No dia seguinte, todos os
leitores de jornal, ouvintes e telespectadores – inclusive aqueles que afirmam
que objetividade não existe – vão cobrar dele que a sua descrição do problema
corresponda à realidade (p. 10).
Concordo com a autora quando ela segue uma concepção teórica de conhecimento que
reconhece que o conhecimento total e absoluto da realidade não é possível. “A aspiração pela
objetividade deve ser entendida como a busca e a aproximação da realidade. Neste sentido, ela
não só é possível como também necessária” (p. 13). Reforço a argumentação de Sponholz
(ibidem) considerando que negar qualquer tipo de objetividade é atender o projeto de manutenção
de poder dos grupos dominantes junto aos dominados. Como questiona Jesús Martín-Barbeiro 4,
“o que, nos dominados, trabalha a favor do dominador?”. Uma das respostas possíveis é a
consideração de que a realidade não existe, nenhuma objetividade para conhecer o real é possível,
então é perda de tempo qualquer tentativa de apreensão do real por parte do jornalismo. Tais
considerações fazem perpetuar a dominação e os grupos de poder político e econômico não
precisariam mais se preocupar com a mídia e os jornalistas, já que só lhes caberia lidar com
ficção.
Uma das consequências do mito da objetividade está na observação o mais fidedigna e
próxima ao evento que se está noticiando possível. Assim como os vulcanólogos arriscam suas
vidas ao se aproximarem de vulcões ativos, a atividade jornalística faz com que seus profissionais
encarem situações de guerra, calamidades e investigações criminais possivelmente para
produzirem enunciados jornalísticos que carreguem um grau de realismo, o que às vezes pretende
ser mais real que o próprio real, como por exemplo, o tira-teima dos lances de impedimentos no
futebol que se valem de aproximação, câmera lenta e gráficos produzidos por computador para
ver o que ninguém, nem o árbitro, viu. Em investigações policiais, como na série “Profissão
Repórter” da Rede Globo, os jornalistas às vezes entram nos lugares com câmeras escondidas
para registrar o momento exato dos crimes. A busca por imagens e sons mais realistas possíveis
transformou a prática jornalística especialmente a partir do final do século XX quando
baratearam as tecnologias digitais de registro de imagem e som, fazendo com que qualquer um
35
que tiver uma câmera e presenciar um evento jornalístico possa se transformar em um
“jornalista”, o que foi pesquisado por Allan (2013).
Em sua exposição de casos em que pessoas comuns produziram materiais que foram
circulados pela mídia, Allan expõe diversos casos em que as pessoas produziram as imagens e o
áudio da matéria. Cada vez mais jornalistas se valem das imagens de pessoas que vivenciaram a
cena. Após a exposição dos casos, concluo que os jornalistas procuram dar o máximo de realismo
às suas matérias. Uma reportagem sobre um fenômeno em que as pessoas registraram imagens
possui grande valor para os meios de comunicação. Assim, na cobertura da ciência, a descoberta
de determinado objeto celeste sempre vem acompanhado da imagem do objeto. Caso ele tenha
sido descoberto de maneira indireta, um time de designers gráficos da redação prontamente irão
elaborar uma figura para representar o objeto. Por isso que dentre as recomendações ao jornalista
científico, Burkett (1990) propõe a ida do jornalista científico ao lugar onde a ciência é
produzida, aos laboratórios, às expedições oceanográficas etc. “Enquanto não ver os aparelhos
utilizados pelos cientistas, vai faltar a sensação exata a respeito de sua escala de operações.
Qualquer experiência ajudará a colocar os assuntos em uma perspectiva melhor (p. 82)”. Assim,
ao montar a unidade de ensino propus que para a atividade final os alunos visitassem os institutos
de pesquisa e entrevistassem os cientistas para a produção dos textos de jornalismo científico que
solicitei como trabalho de conclusão.
A objetividade é um dos dogmas mais cristalizados na prática jornalística e a
compreensão de aspectos do seu funcionamento é fundamental para a investigação de como os
estudantes de jornalismo iriam produzir sentidos com relação à unidade de ensino como um todo,
já que esse mito perpassa basicamente todas as etapas da atividade jornalística.
Além das características do jornalismo elencadas até aqui, outro aspecto de cunho
mercadológico e corporativo e de extrema relevância para a compreensão de grande parte da
discursividade jornalística está na consideração de que as notícias são um produto como qualquer
outro que podemos comprar nos supermercados. Assim como um sabonete ou uma comida
semipronta, as notícias passam por etapas industriais de produção e atendem à lógica e às
exigências do mercado. Para Lustosa (1996) notícia é a informação transformada em um produto
36
de consumo. “Um veículo de comunicação de massa não oferece informações, mas informações
transformadas em notícias” (p. 19).
Para a autora, por ser um negócio, não se pode esperar que a mídia divulgue ciência por
motivos altruístas. Para ser circulada pela mídia, a ciência tem de ser capaz de despertar interesse,
manter a atenção do leitor, ouvinte ou telespectador até o fim do artigo ou programa e ser bem
entendida pelo grande público. Segundo ela, o sucesso das vendas ou a conquista de vários
pontos no Ibope depende, entre outros fatores, de que tipo de informação é transmitida e de que
forma ela é apresentada ao público.
Assim, o que vai determinar quais notícias serão transmitidas não é certamente a
vontade do cientista em divulgar seus resultados, mas o que o editor de TV,
rádio, revista ou jornal – e, às vezes, o que o gerente do setor comercial –
considerar de maior interesse para aumentar a venda de seu produto (p. 14).
Esse é um dos motivos que torna difícil o trabalho em jornalismo científico, já que ciência
muitas vezes é considerada não interessante pela maioria das pessoas, sendo que outros temas
como crimes, celebridades, esporte e política atendem melhor ao quesito mercadológico do
jornalismo. Pensando na unidade de ensino aplicada junto a estudantes do último ano de
jornalismo, também era esperado que eles se preocupassem em produzir uma reportagem sobre
ciência que fosse vendável, já que assumi que enquanto estudantes de jornalismo é isso que se
esperava deles e, consequentemente, dos jornalistas. O que não quer dizer que o fato dos textos
jornalísticos terem que, em princípio, atender os princípios corporativos das empresas de
37
comunicação se resuma em só se divulgar os resultados da ciência. Os processos da ciência
também podem ser considerados interessantes para agregar valor ao enunciado jornalístico que se
está produzindo.
2.6. Noticiabilidade
Por valores-notícia, os autores entendem que são um conjunto subjetivo de critérios que
os jornalistas utilizam para avaliar a noticiabilidade dos acontecimentos ou temas. “Embora
raramente escritas ou codificadas, os jornalistas são requisitados a invocar valores-notícia para
decidir o que merece atenção como notícia” (p. 90). Allan (2004) apontou valores-notícia que têm
sido pesquisados por muitos estudiosos: conflito; relevância; temporalidade; simplificação;
personalização; inesperado; continuidade; composição; referência a pessoas e países de elite;
especificidade cultural e negatividade.
38
Com esses valores-notícia, ao organizar a unidade de ensino me propus a avaliar qual
deles seria proeminente nas reportagens desenvolvidas pelos estudantes de jornalismo como
trabalho de conclusão da disciplina, com o objetivo de investigar quando os processos da ciência
são levados em conta ou não nesses critérios. Admiti que eles proporcionariam condições para a
compreensão de como os estudantes de jornalismo assumem posicionamentos sobre a
possibilidade de incluírem os processos da ciência no jornalismo científico.
O jornalismo tem sido pesquisado à luz de estudos que o consideram como uma narrativa.
Tais estudos partiram do problema provocado pela ideologia dominante dos meios de
comunicação que busca adotar o jornalismo no estilo “hard news”, com suposto foco baseado no
acontecimento em si, sem relação com o contexto e as condições em que o fato ocorreu. Assim,
muitos estudiosos têm se debruçado em caracterizar o jornalismo enquanto narrativa, a fim de
escapar do suposto jornalismo factual5 que predomina nos meios de comunicação. Ijuim (2010)
expõe o controverso diálogo entre literatura e jornalismo:
5 Jornalismo factual aqui entendido como a ilusória tentativa em se basear nos fatos e acontecimentos brutos do
cotidiano.
39
Indo na linha proposta por Jorge Ijuim, também julguei a pertinência da abordagem
narrativa, baseando-me para tal na proposta de Patrick Charaudeau, já que, para esse autor, o
modo narrativo serve para descrever as ações humanas, ou tidas como tais, que se originam em
um projeto de busca. Para o autor, descrever um fato depende, por um lado, de seu potencial de
ser narrado, por outro, da encenação discursiva operada pelo sujeito que relata o acontecimento e,
ao mesmo tempo, constrói uma narrativa. A narrativa, em várias circunstâncias, constrói
totalmente o acontecimento, o inscrevendo num antes e num depois que não aparecem em seu
desenrolar (2010, p. 153).
Tive por objetivo, ao usar a noção de narrativa jornalística desses autores, abordar os
processos da ciência junto aos alunos, já que, ao fugir da ilusão do estritamente factual no
jornalismo, o que considerei que o jornalismo narrativo nos proporciona, podemos considerar os
processos da ciência relevantes para o desenvolvimento de textos jornalísticos. Admiti que a
noção de narrativa jornalística possibilita construir uma ligação entre os processos da ciência e o
jornalismo, já que, dado o atual estado da atividade informativa ligada ao “urgente e efêmero”,
como apontado por Ijuim, os alunos com os quais trabalhei, principalmente por estarem no último
ano do curso de jornalismo e assim supostamente imersos na discursividade jornalística
tradicional, teriam objeções prévias ao trabalho com os processos da ciência, já que os processos
se encontram, muitas vezes, fora daquilo que se considera iminentemente factual. Por isso, me
propus a abordar o jornalismo enquanto narrativa com os estudantes admitindo que assim eles
teriam condições para considerarem os processos da ciência no jornalismo.
Considero o jornalismo científico como uma das editorias do jornalismo que aborda o
universo da pesquisa científica. Sendo que a relação com a pesquisa, no meu entendimento, pode
ser de forma direta, quando são focalizados estritamente processos e resultados da pesquisa ou de
forma indireta, quando o jornalista tem por objetivo noticiar aspectos políticos e econômicos
relativos à pesquisa.
O principal objetivo do jornalismo científico é tornar possível o diálogo entre as
universidades e institutos de pesquisa com a sociedade e vice-versa, fazer com que as posições da
sociedade sejam expressadas no universo acadêmico. Esse diálogo acontece da mesma maneira
40
que o diálogo entre o Congresso Nacional e a sociedade. Da mesma forma que não é possível que
todas as pessoas vão diariamente ao Congresso assistir a uma sessão e conversar com os
políticos, é necessário que o jornalismo realize esse trabalho para que a população tome
consciência do que está acontecendo nas instâncias de poder público. Pensando o jornalismo
científico, este abre um espaço de discussão no qual são abordados os processos da ciência, bem
como seus resultados e aplicações, dando voz aos produtores da ciência e, da parte da sociedade,
os jornalistas, através do mecanismo de antecipação e busca de fazer com que a população se
sinta implicada pela pesquisa, buscam compreender quando questões controversas, sociais e
éticas estão envolvidas na prática científica.
Um dos casos nos quais a mídia se antecipa ao “clamor” da população (e dos leitores e
internautas que conferem audiência aos meios de comunicação) foi o caso da libertação de 186
cães da raça Beagle que eram utilizados em pesquisas em 18 de outubro de 2013. Cientistas
foram questionados pela ação de maus-tratos aos cachorros e políticos foram pressionados para
abrir uma Comissão Parlamentar de Inquérito aos institutos de pesquisa que utilizam cobaias para
pesquisas. Ora ficou a impressão que a mídia atendeu o apelo popular, como o site do Estadão
que deixou por mais de uma semana uma notícia com destaque intitulada “Beleza não pode vir do
sofrimento animal”, ora com defesas a comunidade científica, como a matéria intitulada “Ciência
ainda depende dos testes em animais”. Assim, a mídia estabeleceu um diálogo entre
pesquisadores, políticos e sociedade, tendo o jornalismo científico como campo de discussões.
Os problemas apontados por diversos pesquisadores sobre a prática do jornalismo científico
também acontecem em outras editorias, já que não importa qual especificidade do jornalismo, seja
ele científico, cultural, agrícola, esportivo etc. Por exemplo, muitos dizem que a ciência possui
terminologia técnica e cabe ao jornalista traduzir os termos para uma linguagem cotidiana. Ora,
mesmo em uma revista especializada em skate haverão termos exclusivos ao universo dos skatistas,
o que não dá para dizer que é um problema só do jornalismo científico. Assim, a dificuldade com os
termos técnicos acontece também nas outras editorias do jornalismo, como o jornalismo cultural, o
de política e até mesmo no tradicional jornalismo de crimes, como mencionado nas duas edições do
Seminário Direito para Jornalistas (realizado em um Tribunal de Justiça na região centro-oeste em
2004 e 2005) nos quais magistrados e advogados criticaram a falta de correção do uso de termos
jurídicos pelos jornalistas em situações envolvendo a esfera penal.
41
Para Bueno (1985) o jornalismo científico é um caso particular de divulgação científica.
Apesar de ambas as práticas terem o mesmo objetivo que é fazer com que a produção científica
circule além dos limites do local onde foi produzido, para a sociedade em geral, os modos como
são produzidas essas circulações diferem circunstancialmente. Considero que a divulgação
científica não possui os mesmos fatores restritivos do jornalismo científico, já que não precisa
estar atrelada a atualidade nem a algum acontecimento que a mídia normalmente percebe como
tal.
Uma exposição permanente da ciência na Roma antiga em um museu ou uma noite de
observação das luas de Júpiter na praça da cidade são manifestações em divulgação científica que
não estão atreladas a algo que possa geralmente ser percebido enquanto acontecimento pela
mídia. Para que essas manifestações mereçam um tratamento jornalístico que possa ser abordado
pelo jornalismo científico, um acontecimento, muitas vezes ligado aos critérios de noticiabilidade
e a política editorial das mídias, deve estar atrelado ao que se pretende abordar. No exemplo da
observação astronômica na rua, caso alguma novidade esteja envolvida, como a aproximação de
um cometa, maior é a chance desse grupo de observadores serem entrevistados por algum
jornalista. Ou caso algum jogador de futebol ou a protagonista da atual novela apareçam para
observar o céu com o grupo de astrônomos amadores, maior a possibilidade deles serem notícia.
Um outro exemplo é o texto “Viagens animais: Conheça a história de cachorros, gatos e macacos
que conquistaram os céus” (GARCIA, 2013) publicado no portal da revista Ciência Hoje das
Crianças. A impressão do título é que o jornalista vai simplesmente contar a história dos animais
mandados ao espaço. Porém, logo no primeiro parágrafo, o autor abre o texto com a frase:
“Recentemente, um sapo intrometido ganhou destaque nas notícias sobre exploração espacial: em
meio ao lançamento de uma sonda em direção à Lua, o anfíbio enxerido apareceu voando em
uma das fotos do evento”. É o que no jargão jornalístico é chamado de “gancho”. Aproveitando o
“gancho” da notícia do sapo que acidentalmente foi lançado pelo foguete, o jornalista descreve a
história dos experimentos com animais lançados ao espaço. Assim, uma das diferenças entre
jornalismo científico e a divulgação científica é que se considera que o primeiro deve estar
sempre atrelado a algum acontecimento que é percebido pela mídia. Caso contrário seria
divulgação científica.
A busca pela abordagem das “maravilhas da ciência” embora relevante ao jornalismo
42
científico (FAHNESTOCK, 1986) é mais pronunciada na divulgação científica. Há os que
consideram que compete a essa última fazer com que as pessoas se maravilhem com a ciência,
enquanto o jornalismo científico, a partir das funções públicas relativas ao jornalismo, tem a
abertura de criticar e discutir a ciência, como no recente caso das discussões sobre ética no uso de
animais nas pesquisas científicas já mencionado. Outro objetivo que alguns consideram para a
divulgação científica seria motivar jovens a cursarem disciplinas científicas em níveis técnico e
de graduação, ou simplesmente contribuir para que este possuam uma cultura científica.
Outra distinção entre divulgação científica e jornalismo científico é que o problema desta
pesquisa, o fato do jornalismo abordar só os resultados da ciência, não se aplica à divulgação
científica, já que esta geralmente traz muitas informações referentes aos processos da ciência.
Durante a aplicação da unidade de ensino, foram utilizados vídeos de divulgação científica, tendo
por objetivo abordar os processos da ciência junto aos estudantes.
Do ponto de vista da linguagem do jornalismo científico, muitas pesquisas na área de
linguística vêm produzindo conhecimentos sobre a divulgação científica e o jornalismo científico.
Para Authier-Revuz (1998) a língua dos cientistas se torna, fora dos muros da comunidade
científica, uma língua estrangeira. Com o objetivo da transmissão de um discurso para um novo
receptor, a divulgação científica dá-se como uma prática de reformulação de um discurso-fonte,
no caso o discurso científico que circula em nichos restritos em um discurso-segundo, no caso a
divulgação.
Apesar de rejeitar a ideia de tradução proposta por Althier-Revuz, suas afirmações são
pertinentes para se entender o jornalismo científico como praticado atualmente no Brasil. Ao
restringir a divulgação para determinado grupo social, a autora auxilia na compreensão de como
determinadas revistas procuram não se dirigir à população como um todo, mas sim a determinado
grupo social. Revistas como Pesquisa Fapesp, Ciência Hoje e Scientific American Brasil não têm
por objetivo atingir um público amplo, mas sujeitos já ligados a ciência de algum modo. Por isso,
as “adaptações” feitas por essas revistas pressupõem um público que já lida com ciência a priori.
43
Já para os estudantes de jornalismo, é esperado que eles tenham por público-alvo a população
como um todo, o que aumenta o esforço de adaptação, como proposto por Althier-Revuz.
Zamboni (1997) recusa a ideia de tradução do discurso da ciência para o discurso da
divulgação. Ela defende a concepção de que a atividade de produção da divulgação assume a
natureza de um efetivo trabalho de formulação de um discurso novo, que se articula, sob variadas
formas, com o discurso da ciência, mas não como um mero produto de reformulação de
linguagem. Essa autora pesquisou textos de jornalismo científico e, coerente com os pressupostos
do jornalismo, afirmou que a divulgação, com vida própria, contêm “os ingredientes que toda boa
mercadoria posta a venda supostamente deve se revestir” (p. 10). Orlandi (2001) recusa o
discurso de divulgação científica (e por conseguinte o jornalismo científico) como uma soma de
discursos: “ciência mais jornalismo igual divulgação científica (c+j=dc). Ele é uma articulação
específica com efeitos particulares, que se produzem pela injunção a seu modo de circulação” (p.
22). Para a autora, se trata de um jogo complexo de interpretação e não de tradução.
Esses “sentidos próprios” fazem com que a ciência divulgada pelo jornalismo científico
tenha critérios próprios para julgar o que é relevante para que algum acontecimento da ordem do
discurso da ciência mereça um tratamento jornalístico. Guimarães (2001) pesquisou três revistas
semanais de circulação nacional e notou que nenhuma das revistas noticiou a 50ª reunião anual da
Sociedade Brasileira para Progresso da Ciência (SBPC), apesar de trazerem matérias ditas de
divulgação científica. A reunião da SBPC pareceu ter relevância apenas para a ciência e não para
a mídia. Para o autor, a ciência só é notícia enquanto parte de uma cena em que os fatos narrados
podem ser vistos sob um aspecto utilitário, sendo que há um apagamento dos percursos de
produção de conhecimento.
44
Nas notícias sobre a clonagem, por exemplo, não há nada que defina clonagem,
que coloque a questão da clonagem na história da genética etc. É como se isto
fosse algo que aí está como coisa pura e simplesmente do presente. Assim, o
tratamento da ciência como notícia, ao tomar a ciência como acontecimento e
não como processo de produção de conhecimento, coloca a ciência como um
lugar que pudesse dar respostas presentes para problemas presentes, bastando,
para isso, mobilizar a ciência (p. 20).
Para Guimarães, é notícia para a mídia o acontecimento visto como constituído por uma
decisão tomada pela própria mídia. “Nesta medida, a mídia opera pelo desconhecimento do que é
próprio do acontecimento: ou seja, que ele, enquanto acontecimento, constitui sua temporalidade
e, assim, sua memória” (p. 20). Esse posicionamento reforça a minha hipótese em trabalhar com a
noção de narrativa jornalística com estudantes de jornalismo, tendo por objetivo resgatar a
temporalidade do dito acontecimento que Guimarães aponta como ausente nos textos
jornalísticos.
45
46
3. Unidade de ensino: formulação e aplicação
Segue abaixo um quadro com o que foi proposto para cada aula, bem como seus eixos
temáticos:
Aula Eixo temático Recursos (textos propostos para discussão e vídeos)
1 Jornalismo e jornalismo científico Aula introdutória
2 Filosofia e epistemologia da ciência Textos:
1) LATOUR, Bruno. Quanto mais manipulações melhor. Tradução
e suas relações com o jornalismo
de Ricardo H. A. Dias. In: COOPMANS, Catelijne et. al (org.).
científico Representation in Scientific Practice Revisited. Cambridge: MIT
Press, 2014.
2) CASCAIS, António Fernando. Divulgação científica: A mitologia
dos resultados. In: SOUSA, Cidoval, MARQUES, Nuno e
SILVEIRA, Tatiana (orgs.). A comunicação pública da ciência. São
Paulo: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2003.
Vídeo:
Moutinho et. al. Nasce uma galáxia! Canal de vídeos da revista
Ciência Hoje no YouTube, 2012.
3 Pesquisas sobre jornalismo Textos:
1) PETERSEN, Alan; ANDERSON, Alison; ALLAN, Stuart e
científico
WILKINSON, Clare. Nanotechnology and news. Tradução de
Ricardo H. A. Dias. People & Science, março de 2010.
2) PETERS, Hans Peter. A interação entre jornalistas e especialistas
científicos: cooperação e conflito entre duas culturas profissionais.
In: MASSARANI, Luisa; TURNEY, Jon e MOREIRA, Ildeu de
Castro. Terra incógnita: a interface entre ciência e público. Rio
de Janeiro: Casa da Ciência, 2005.
3) MEDEIROS, Flávia Natércia da Silva. As páginas de ciência de
prestige papers brasileiros na cobertura dos transgênicos em anos de
‘hype’ (1999-2000). Intercom – Revista Brasileira de Ciências da
Comunicação, São Paulo, v. 30, n. 1, 2007.
4 Narrativa jornalística e jornalismo 1) CHARAUDEAU, Patrick. O discurso das mídias. São Paulo:
Contexto, 2010, p. 152-174.
científico
2) IJUIM, Jorge Kanehide. O real e o poético na narrativa
jornalística. Conexão – Comunicação e Cultura, v. 9, 2010.
Vídeo:
PIVETTA et. al. Eta Carinae: além do eclipse. Revista Pesquisa
Fapesp, 2012.
5 Produção em jornalismo científico Aula laboratorial
A unidade de ensino aplicada junto a estudantes de jornalismo teve por objetivo principal
trabalhar noções do jornalismo científico sob a perspectiva de proporcionar aos estudantes a
produção de significados sobre o trabalho com processos que constituem a ciência para além do
trabalho apenas com resultados. Pude dispor de 20 horas/aula da disciplina Jornalismo científico
47
em uma das instituições federais de ensino superior, localizada na região Centro-Oeste durante o
primeiro semestre de 2012. Nessa instituição constatei que a disciplina é obrigatória na grade do
curso, o que não é usual na maioria das graduações em jornalismo, já que normalmente a
disciplina é optativa ou é oferecida como um eixo temático dentro da disciplina Jornalismo
especializado.
Na universidade na qual trabalhei a disciplina é oferecida para o penúltimo semestre do
curso. Assim, na elaboração da unidade, poderia supor que os alunos já deveriam estar
familiarizados com a linguagem e os modos de produção próprios do jornalismo. Como as 20
horas foram divididas em cinco aulas, elaborei a unidade através de cinco eixos que exporei com
maior profundidade no próximo item.
As aulas tiveram cunho expositivo com aspectos dialógicos em alguns momentos, como
na discussão dos textos lidos. Procurei dar abertura para que os alunos me questionassem quando
quisessem, o que ocorreu em alguns momentos. Entretanto, embora o diálogo em sala de aula
com os estudantes tenha ocorrido em alguns momentos durante as aulas, foi necessário que os
estudantes fossem instados a falar, às vezes de maneira incisiva.
Além dos alunos regularmente matriculados, a professora da disciplina assistiu todas as
aulas, fazendo poucas intervenções durante todas as cinco aulas. Além de aplicar a unidade de
ensino na função de professor/pesquisador, também cuidei de algumas questões organizacionais,
como verificação de frequência, atribuição de notas e instalação de equipamento de data show
para as apresentações de slides e vídeos. Também fiquei responsável por gravar as aulas em áudio
e vídeo para a coleta de informações para a pesquisa.
A aplicação da unidade de ensino junto a estudantes de jornalismo contemplou leituras de
textos sobre elementos de jornalismo científico, filosofia e epistemologia da ciência, pesquisas
sobre jornalismo científico e jornalismo enquanto expressão narrativa. As leituras propostas
tiveram por objetivo abordar diversos aspectos da discursividade jornalística, nos quais os autores
utilizaram vários referenciais teóricos para produzir conhecimentos sobre o jornalismo.
Todas as aulas ministradas durante a disciplina Jornalismo científico foram gravadas em
áudio/ vídeo e transcritas. As gravações foram analisadas visando responder as questões de
estudo. Também apliquei uma avaliação, tendo por objetivo o levantamento de informações que
constituiriam dados para a pesquisa. Na aula em que a narrativa jornalística foi trabalhada, os
48
alunos tiveram que responder a duas questões sobre narrativa que também foram parte do corpus
de análise. A avaliação versou sobre três textos trabalhados na disciplina (anexo I). No trabalho
final relativo à unidade de ensino os alunos me enviaram uma reportagem sobre ciência.
49
ciência. O dia a dia do Congresso Nacional não entra na editoria de ciência, mas sim na de
política. Outro exemplo é a meteorologia. Apesar das previsões envolverem pesquisas em um
vasto campo multidisciplinar, elas entram no caderno de cotidiano. Entretanto, se o foco forem as
pesquisas, os processos de produção da ciência climática e não a previsão do tempo em si, os
textos vão para a editoria de ciência. Sem entrar na discussão do que é e do que não é ciência, os
critérios aqui utilizados têm por objetivo os aspectos organizacionais da elaboração de produtos
jornalísticos. O jornalismo, cada vez mais, com base em Neveu (2006), se tornou especializado.
Segundo esse autor, brigas entre editorias já são registradas nas redações dos jornais. Durante a
Guerra do Golfo, no jornal Le Monde o jornalista especializado em questões militares bloqueou
um artigo produzido pela editoria “economia” que conteria informações supostamente incorretas
sobre as vendas de armas para o Iraque. No jornal Ouest-France jornalistas agrícolas foram
integrados às editorias economia e sociedade, dada a supervalorização do caderno agrícola devido
ao grande número de leitores agricultores. De qualquer modo, é bastante difícil separar editorias,
até mesmo devido ao fato de que, apesar da especialização crescente, qualquer acontecimento que
provoque uma notícia nunca envolve apenas um aspecto isolado.
O outro aspecto que me fez escolher pela discussão na interface com outras editorias foi
um ponto de vista, adquirido quando fui aluno dessa disciplina, que geralmente os alunos de
jornalismo não gostariam de ciência e se desinteressariam pela disciplina a priori. A ideia foi
mostrar que assuntos científicos poderiam ocorrer com alguma frequência até em áreas em que
não consideramos que poderiam surgir, como o jornalismo sobre futebol – citei a reportagem
exibida pelo SporTV intitulada: “Nas ondas do cérebro” – e cultura. Assim, enfatizei que a
disciplina teria alguma relevância mesmo para aqueles que veem no jornalismo científico a
última opção de trabalho dentro do campo jornalístico.
Lembrando ainda do tempo de estudante e considerando a mesma suposição, de que os
alunos possuiriam não gostariam de temas científicos, vendo o jornalismo científico como algo
“esotérico” dentro do campo jornalístico, sem nenhuma relação com o jornalismo em si,
posteriormente passei a discutir alguns estudos de teorias do jornalismo, tais como os critérios de
noticiabilidade e os gêneros jornalísticos e elaborei exemplos sobre essas áreas de estudo a partir
de enunciados jornalísticos sobre ciência nos quais podemos identificar elementos dessas teorias
com os produtos jornalísticos.
50
Após procurar relacionar o jornalismo científico com as teorias do jornalismo, elenquei
alguns recursos linguísticos e textuais utilizados no jornalismo científico, tais como analogias,
comparações e metáforas. Para Burkett (1990), no corpo de texto, o jornalista científico pode usar
instrumentos para retratar o que seria invisível para o não cientista ou para uma pessoa treinada
em ciência, mas numa disciplina diferente, sendo que esses instrumentos incluiriam a metáfora e
a analogia. De acordo com esse autor:
51
filósofos e epistemólogos da ciência. Discorri sobre algumas das ideias de Alan Chalmers,
Thomas Kuhn, Karl Popper e Bruno Latour. Isso foi pensado devido ao contato inicial com a
professora da disciplina, no qual ela relatou a dificuldade de alguns alunos entenderem o que é
ciência em alguns anos em que essa disciplina foi oferecida e também por acreditar que esse
estudo poderia propiciar o contato com os processos da ciência que esta pesquisa buscou
trabalhar com os estudantes. Para esse eixo, foram escolhidos os textos Quanto mais
manipulações melhor de Bruno Latour e Divulgação científica: A mitologia dos resultados de
Antônio Fernando Cascais. Dois textos nos quais as relações entre os filósofos e epistemólogos
da ciência se relacionam às práticas da divulgação científica e jornalismo científico.
Cascais realiza uma crítica contundente ao que ele chama de “mitologia dos resultados”
na divulgação científica. Esse conceito consiste em: “representar a atividade científica pelos seus
produtos; resumir os processos científicos à consecução finalista e cumulativa de resultados;
isolar exclusivamente como resultados aqueles que são avaliados a posteriori como êxitos de
aplicação” (2003, p. 67). O que passa implicitamente por ignorar a atividade científica enquanto
processo, que progride de modo não linear, errático e variante. Elimina a historicidade inerente à
ciência e anula o papel do erro produtivo na tomada de decisão e nas escolhas científicas. Além
de assimilar fins a resultados, com a exclusão dos resultados fortuitos, inesperados ou adversos.
O texto de Latour também teve por objetivo discutir criticamente a objetividade na
ciência. Para o autor, o grau de objetividade de uma disciplina científica pode ser definido pela
gama de lacunas e pelo número de passos de transformações necessários para preenchê-los. A
qualidade referencial de uma disciplina, isto é, sua habilidade para alcançar objetos inacessíveis
de outra maneira e transportá-los em um lugar em que eles possam ser acessados por pares é
inteiramente dependente da qualidade desses elos. Quanto mais passos existem entre os objetos e
aqueles que fazem julgamentos sobre eles, mais robustos esses julgamentos serão.
A relação com o jornalismo científico com essa noção de objetividade fica mais clara
quando o autor afirma que assim que os cientistas deixam seus laboratórios, eles caem de volta na
versão senso comum da ciência como a imagem de espelho do mundo.
Eles, de repente, estão mais do que felizes para exibir uma imagem isolada
extraída fora dos elos da “prova definitiva” do fenômeno que pretendem
descrever. Então, mas só então, e somente para fins pedagógicos ou de relações
públicas, são solicitados a ver uma imagem como a cópia de um fenômeno. Mas
52
não importa quão convincente essa imagem possa talvez parecer, outros
profissionais sabem muito bem que com o objetivo de julgar a qualidade de tal
imagem isolada, não se deve tentar compará-lo ao seu “modelo” lá fora, mas
verificar o que o manteve a partir de outra inscrição, antes, e o que ele pode
enviar para outra inscrição, após.8
Assim, falei aos alunos que quando o cientista concede entrevista para os jornalistas, ele
tenta relacionar, o máximo que puder, a imagem com que está trabalhando com um fenômeno
sensível. Após a discussão desses dois textos, passei a apresentar um resumo de algumas ideias de
epistemólogos baseadas na obra O que é ciência afinal? de Alan Chalmers9.
Essa aula foi dedicada ao estudo de algumas das principais tendências da pesquisa que
tomou o jornalismo científico como objeto de estudo. Foi proposto aos alunos que lessem três
textos: Nanotecnologia e notícias de Alan Petersen e colaboradores10; A interação entre
jornalistas e especialistas científicos: cooperação e conflito entre duas culturas profissionais de
Hans Peter Peters11 e As páginas de ciência de prestige papers brasileiros na cobertura dos
transgênicos em anos de ‘hype’ (1999-2000) de Flávia Natércia da Silva Medeiros 12. Apesar de
haverem mais tendências na pesquisa sobre jornalismo científico, como vimos na revisão
bibliográfica desta tese, optei pelo trabalho com dois textos que se debruçaram sobre as relações
entre jornalistas e cientistas (os dois primeiros) e um sobre análise de conteúdo (o último), uma
dos referenciais teóricos mais utilizados nos estudos sobre jornalismo.
Tive por objetivo com a proposição de leitura desses textos abordar como o jornalismo
científico está sendo pesquisado e proporcionar condições para a discussão dos textos. A análise
de conteúdo, que embasa teoricamente e metodologicamente esses textos, é o referencial mais
utilizado em pesquisas em jornalismo.
O texto de Alan Petersen e colaboradores tem apenas uma página e é um resumo de um
artigo maior (PETERSEN et. al, 2009). Esse estudo teve por objetivo investigar como os cientistas,
jornalistas e editores viam a produção de notícias sobre nanotecnologia, explorando o papel da
8 Grifos meus.
9 Chalmers (1993).
10 Petersen et. al (2010).
11 Peters (2005).
12 Medeiros (2007).
53
imprensa em moldar os contornos do debate público. Eles se perguntaram: “como foram as vozes
científicas tratadas nas matérias de nanotecnologia? Como os cientistas que servem como fontes
se sentem sobre o seu tratamento nesse processo? Quais foram as suas opiniões sobre a cobertura
da imprensa que se seguiu?” (p. 18).
Os resultados obtidos pelos autores, através de questionário com 37 cientistas do campo,
bem como 11 entrevistas semiestruturadas com editores, jornalistas e cientistas, sugerem que os
cientistas envolvidos no estudo tinham um bom nível de consciência da cobertura da mídia. A
maioria tinha uma vasta experiência de atuação como fonte e tendiam a considerar a experiência
em termos positivos. Eles interagiriam com a mídia por uma variedade de razões, incluindo um
senso de dever, para ajudar a melhorar a cultura científica e, pelo menos para alguns, para a
autopromoção. Alguns manifestaram preocupações sobre deturpação e imprecisões, assim como
mal-entendidos.
Um dos pontos mais discutidos com os alunos foi a consideração dos cientistas que a
mídia se comporta como uma ‘caixa-preta’ – no qual não seria possível entender como a mídia
funciona – e que alguns deles pensavam a popularização da ciência em termos bastante
simplistas. “Certos cientistas pareciam pensar que os jornalistas devem atuar como líderes de
torcida para a ciência, simplesmente aceitando que os interesses dos cientistas são consistentes
com o interesse público” (p. 18).
Os autores concluíram que os cientistas se beneficiariam de uma maior consciência das
complexidades das interações entre eles e os jornalistas, assim como os jornalistas podem
aprender muito sobre as complexidades da ciência envolvida.
Continuando no estudo dos embates entre jornalistas e cientistas, discuti com os alunos o
texto de Peters (2005), já citado neste texto. Um dos resultados dos autores, que foi bastante
discutido na aula, foi que os cientistas não esperam que o jornalista se prepare tecnicamente para
realizar uma entrevista, dado que surpreendeu os autores. Uma hipótese é que os cientistas não
querem que os jornalistas fiquem no controle do conteúdo.
Também discutimos sobre se os jornalistas devem submeter o texto ao cientista que serviu
como fonte para a reportagem, um dos pontos de maior diferença entre posicionamentos dos
jornalistas e cientistas apontada por Peters (idem).
54
3.4. Narrativa jornalística e jornalismo científico
Esse eixo teve por objetivo trabalhar o jornalismo visto pelo viés dos estudos narrativos.
Viés este que considerei propício para que fossem trabalhados aspectos dos processos da ciência
e não somente os resultados. Optei por esses textos com o único intuito de abordar aspectos
narrativos no discurso jornalístico, mesmo com a utilização de um autor da linha funcionalista
(como Patrick Charaudeau) e outro com um perfil pós-estruturalista (como Jorge Ijuim). Apesar
de referenciais distintos, esses autores trabalharam com aspectos da discursividade jornalística
que considero relevantes para a percepção do jornalismo enquanto construção narrativa da
contemporaneidade, um caminho que admiti como adequado para proporcionar condições para o
trabalho com os processos da ciência. Assim, propus aos alunos a leitura de dois textos: o
capítulo Relatar o acontecimento da obra O discurso das mídias de Patrick Charaudeau e o artigo
O real e o poético na narrativa jornalística de Jorge Kanehide Ijuim.
Charaudeau (2010) compreende o acontecimento relatado como composto de fatos e
ditos. Durante a aula nos concentramos principalmente nos fatos. O fato relatado é objeto de uma
descrição, de uma explicação e de reações. Para o autor, descrever um fato depende, por um lado,
de seu potencial de ser narrado, por outro, da encenação discursiva operada pelo sujeito que relata
o acontecimento e, ao mesmo tempo, constrói uma narrativa. Assim, ao trabalhar com esse texto
tinha por objetivo proporcionar aos estudantes a noção de que o jornalista constrói uma narrativa
a partir do acontecimento dito “bruto”. Tomando-se a ciência na mídia como exemplo, o
jornalista constrói narrativas a partir de acontecimentos científicos. Muitos desses acontecimentos
têm uma temporalidade larga, ao contrário do tempo de produção de enunciados jornalísticos, o
que também pode ser gerador de tensões entre jornalistas e cientistas.
Para Charaudeau a narrativa, em várias circunstâncias, constrói o acontecimento, o
inscrevendo num antes e num depois que não aparecem em seu desenrolar (p. 153). Mas o que
caracteriza o acontecimento, em seu estado bruto, é que se trata de uma ação ou de uma sucessão
de atos dos quais não se conhecem nem a intencionalidade nem a finalidade.
55
vista). É por isso que a narrativização dos fatos implica a descrição do processo
da ação (“o quê?”), dos atores implicados (“quem?”), do contexto espaço-
temporal no qual a ação se desenrola ou se desenrolou (“onde?” e “quando?”) (p.
153).
Durante a minha fala na aula, para exemplificar essa ideia do autor, lembrei os alunos dos
atentados terroristas de 11 de setembro. No começo tínhamos um estado sem intenção, sem
narrador, sem finalidade. Apenas uma das torres soltando uma cortina de fumaça. Lembrei que o
apresentador, sem conseguir construir uma narrativa para aquilo, pensou se tratar de um acidente
aéreo. Após o segundo avião se chocar com a outra torre, a hipótese de atentado ficou mais forte.
A partir daí, uma narrativa do atentado começou a ser construída, buscando os atores envolvidos
e as motivações dos terroristas.
Segundo Charaudeau, o problema que se coloca às mídias é o da autenticidade ou da
verossimilhança dos fatos que descreve. Isso pode ser obtido recorrendo a diversos meios
linguísticos e semiológicos que remetem a três tipos de procedimentos:
- de designação identificadora
- de analogia
- de visualização
Para explicar a designação identificadora, mostrei para os alunos as fotos mais usuais em
jornalismo científico, que contêm os cientistas segurando ou apontando amostras ou tubos de
ensaio. A função dessas fotos é exibir as “provas” de que o fato realmente existiu.
Por analogia, Charaudeau compreende que, quando não se pode mostrar o fato
diretamente, pode-se reconstituí-lo da maneira mais “realista” possível, com profusão de detalhes
na descrição, comparações, reconstituições (através de encenações posteriores). A menos que se
escolha fazer uma descrição subjetiva e sugestiva feita de nomeações oblíquas e de qualificações
metafóricas. Exemplifiquei a partir de um infográfico publicado pela revista Pesquisa Fapesp
sobre a reconstituição da vida de Luzio13, um morador de um sambaqui que viveu há 10 mil anos
no sul do estado de São Paulo. Obviamente não se pode mostrar um fato pré-histórico
“diretamente”14. Por isso, os cientistas devem se basear em indícios para a reconstrução de como
as pessoas viviam e, consequentemente, também o jornalista que pretende divulgar um
13 Pivetta (2011).
14 Assim como nenhum fato. Nenhum fato pode ser mostrado diretamente, já que sempre pressupõe a historicidade
do sujeito que “mostra o fato”.
56
conhecimento baseado em indícios.
Segundo o autor, visualização consiste em fazer ver o que não é visível a olho nu, graças à
imagem: mapas, maquetes, panoramas, closes, esquemas etc. Charaudeau cita o exemplo dos
mapas meteorológicos que precisam ser explicados para que os leitores possam entender como as
figuras representam diversas condições climáticas. Aproveitando o exemplo do autor, mostrei aos
alunos um mapa da península de Yucatán, no México, que, aparentemente, parecia se tratar de um
mapa meteorológico. Depois, expliquei para os alunos que aquele mapa servia para mostrar
indícios da cratera de impacto que teria colocado os dinossauros em extinção. Assim, reforcei aos
alunos a importância da legenda e de explicar as ilustrações ao longo do texto.
Já explicar um fato é tentar dizer o que o motivou, quais foram as intenções de seus
atores, as circunstâncias que o tornaram possível, segundo qual lógica de encadeamento, enfim,
que consequências podem ocorrer. Isso porque toda narrativa se fundamenta não na simples
lógica dos fatos, mas na conceitualização intencional construída em torno de diferentes questões:
a da origem (“por que as coisas são assim?”), a da finalidade (“para onde vão as coisas?”) e a do
lugar do homem no universo (“por que eu sou assim no meio dessas coisas?”). São as respostas,
ou tentativas de respostas, a essas questões que tornam o mundo inteligível e que dão sentido –
mesmo que ilusório – aos destinos humanos. É por isso que dentre os procedimentos necessários
ao relato são esperadas explicações sobre o “por que é assim?” (remetendo à causa e à finalidade
dos fatos) e sobre o “como é possível?” (remetendo à probabilidade e à consequência, real ou
imaginada, dos fatos).
Essas afirmações de Charaudeau precisam ser ponderadas à luz dos objetivos desta
pesquisa. A busca da origem dos fatos é relevante para que os estudantes de jornalismo notem a
ciência além dos resultados e produtos que esta proporciona. Ao buscar a origem dos resultados,
os estudantes poderão ter meios para abordar os processos da ciência, que a unidade de ensino
propõe. Entretanto, a origem absoluta se trata de uma ilusão. Harry Fear, jornalista e ativista que
produz relatos sobre o conflito em Gaza, afirmou em palestra realizada na Universidade de
Bournemouth, em fevereiro de 2013, que nunca saberemos quando o relógio inicia, ou seja, ao
buscar a origem, vemos que ela não é a origem, mas outro acontecimento criou causas para
aquela “origem”. Apesar disso, tendo em vista a superficialidade do jornalismo científico, no qual
quase sempre os resultados são abordados, considerei que fazia sentido defender a busca do que
57
originou aquele resultado junto a estudantes de jornalismo, para depois, posteriormente, abordar
que o que se considera “origem” é, na realidade, parte de um longo processo no qual nunca é
possível detectar a dita “origem”.
Sobre algumas características da narrativa midiática, Charaudeau menciona que todo
sujeito que quer relatar um acontecimento se vê diante do problema da relação entre realismo e
ficção. Mas a instância midiática tem problemas particulares ligados às restrições situacionais do
contrato de informação.
Essas restrições fazem com que a instância midiática não tenha a liberdade,
como na ficção, de inventar uma história. Ela parte de um acontecimento que
tanto pode já estar significado por uma outra instância de informação (agência
de imprensa) quanto se apresentar em estado bruto, sendo portador de
potencialidades significantes múltiplas. Partindo do acontecimento, o jornalista
interpreta e analisa em função de sua própria experiência, de sua própria
racionalidade, de sua própria cultura, tudo isso combinado com as técnicas
próprias a seu ofício (p. 156).
58
O texto O real e o poético na narrativa jornalística, de Jorge Ijuim, foi escolhido tendo
por objetivo continuar as discussões sobre o jornalismo além do estritamente noticioso e pelo
texto conter diversos exemplos de reportagens que utilizaram figuras de linguagem e estética
literária publicadas em meios de comunicação como o jornal O Estado de S. Paulo, revistas Piauí
e Brasileiros e TV Globo.
Ijuim (2010) teve por objetivo compreender como e de que forma as figuras retóricas, ou
figuras de linguagem, podem contribuir para a construção da narrativa jornalística. Para o autor, o
fazer jornalístico não se restringe a noticiar, mas supõe o relato das ações humanas, considerando
mais que fatos, mas fenômenos sociais.
Com base nessas noções das relações entre jornalismo e narrativa o autor exemplifica a
partir de trechos de reportagens dos meios de comunicação. O primeiro exemplo é a coluna de
Dora Kramer no jornal O Estado de S. Paulo. Detendo-se em expressões utilizadas pela autora
tais como “pôr a mão no fogo; bote salva-vidas; lançar o homem ao mar; no cravo e na ferradura;
assistir de camarote; saia justa e corda bamba”, Ijuim faz a ressalva que o virtual coloquialismo
não é simples opção estilística.
Termos que poderiam permear uma conversa de bar aqui são mais que capricho
ou ilustração aos propósitos de Kramer. A crítica da colunista ganha mais que
brilho e atratividade. Ao recorrer às figuras retóricas, sua narrativa torna-se mais
fluida, eleva-se em compreensão, ajuda a expandir o debate público a um
público ainda maior (p. 121).
Isso foi bastante ressaltado por mim durante a aula. Ao utilizar-se de expressões
coloquiais e figuras de linguagem, o jornalista científico não o faria somente para dar um “toque
literário” às matérias científicas, mas o faria, principalmente, para elevar a compreensão dos
conceitos científicos e tornar a leitura mais agradável.
No exemplo que utiliza, retirado do caderno Aliás do Estadão, a repórter Flávia Tavares se
utiliza de hipérboles, comparações e metáforas. Como no trecho: “Os órgãos do animal incluem
59
bobinas de cabo, de mangueira, transformadores, geradores, compressores e esteiras, muitas
esteiras. Elas são como um sistema digestivo, um intestino (…)” (p. 122). O autor nota que a
repórter não quis “abusar da magia das palavras” no uso desses recursos de linguagens, mas ela
utilizou como uma opção para decifrar o indecifrável idioma de técnicos e engenheiros, o que
talvez fosse incompreensível ao leitor médio se a matéria fosse produzida nos moldes
tradicionais. Por outro lado, “tornou o texto muito mais descontraído e, por isso mesmo, ficou
mais atrativo um assunto – científico-tecnológico – que, apesar de curioso, é bastante árido” (p.
122).
Dos exemplos trazidos por Ijuim, esse é o que mais se aproxima dos propósitos de uma
disciplina de jornalismo científico, já que muitas vezes o jornalista que se debruça pelos assuntos
científicos corriqueiramente lida com assuntos a priori incompreensíveis para um leitor que não
compartilha da linguagem que circula somente entre pessoas treinadas em determinada ciência
(KUHN, 1974). Assim, uma abordagem jornalística tradicional poderia produzir um texto também
voltado para um público restrito composto pelos que dominam a linguagem científica.
Apesar da utilização de elementos literários nos textos de jornalismo, ressaltei com os
alunos a consideração do autor que a apropriação dos recursos da poética não configura a
intenção dos repórteres pesquisados pelo autor – na forma simplista e reducionista – criar textos
brilhantes e cheios de adornos inócuos. “As proposições desses escritores-jornalistas visam a
oferecer narrativas ricas em elucidação, esclarecimento, emoção, provocação. Em muitos casos, é
a maneira de tornar compreensíveis os indecifráveis idiomas dos especialistas” (p. 125).
Após a discussão dos textos, assistimos um vídeo de autoria de Marcos Pivetta e
colaboradores (2012) da revista Pesquisa Fapesp intitulado Eta Carinae: além do eclipse. O
vídeo foi escolhido por conter elementos narrativos tais como mudança de cenário, relatos
históricos, cientista como personagem, entre outras características narrativas. Baseada em uma
entrevista com o astrofísico Augusto Damineli, ele começa a narrar como essa estrela começou a
ser estudada, mesmo sendo uma estrela secundária, nem mesmo aparecendo no Almagesto, um
dos primeiros catálogos de estrelas, escrito por Ptolomeu no século II d.C. Essa estrela começou a
ser notada em 1827, quando o naturalista inglês William John Burchell, em viagem ao Brasil,
enquanto observava as estrelas, notou que a então chamada Eta Argos estava com um brilho
exagerado. Ele escreveu para a Inglaterra que acionou o único observatório no hemisfério sul, na
60
África do Sul. Após explicar como a estrela foi evoluindo, através de dados históricos e
conceituais, ele mostra como começou o envolvimento com o objeto celeste. Aspectos narrativos
como fatos inesperados que mudaram as expectativas sobre o objeto de estudo, figuras de
linguagens (uso de metáforas como “periodicidade de relógio” e “colocar a corda no pescoço”),
humor (“astrônomo vive bastante”) e marcação temporal, podem ser notados no trecho da
narrativa do astrofísico:
Meu envolvimento com essa figura celeste começou há muito tempo atrás, era
bem mais jovem que hoje, mais de 20 anos. É uma estrela brilhante, nosso
telescópio era pequeno, então era uma coisa boa para fazer, porque era um alvo
que o nosso telescópio podia observar. Falei: olha tenho um telescópio aqui que
tenho bastante tempo de acesso e tenho uma carreira longa pela frente,
astrônomo vive bastante, peguei um sinal que era indireto do ultravioleta, e me
preparei para ficar 20, 30 anos, mas em pouco mais de dois anos (breve pausa)
ela apagou, ela apagou 60 sóis em uma noite. Fui na literatura, naqueles
porões de observatórios e coletei todas as observações anteriores, e vi que isso
acontecia a cada cinco anos e meio e as pessoas não tinham se dado conta e
que era uma coisa periódica, cinco anos e meio, isso tinha acontecido desde
1945 desde a segunda guerra mundial, estava lá os dados, e que era uma coisa
periódica. Ser periódica, não tem jeito, tem que ter duas estrelas, não existe
outra forma de explicar um fenômeno assim com essa periodicidade de relógio.
Quando eu falei que Eta Carinae era uma estrela dupla o referee do artigo não
queria deixar publicar. Aí o editor falou que é uma coisa muito interessante e
ele está pondo a corda no pescoço e falou que 10 de dezembro de 1997 vai
acontecer novamente e... isso é ciência! Uma coisa testável! O cara põe a corda
no pescoço e a gente tem que publicar. Aí em 10 de dezembro, estava nos EUA,
mas obtive uma observação aqui no sul de Minas e tinha apagado.
61
Esse eixo pode ser considerado como “o ponto alto” da unidade de ensino no objetivo de
proporcionar aos estudantes de jornalismo o trabalho com os processos da ciência ao invés da
elaboração de enunciados jornalísticos em que só são abordados os resultados dessa instituição.
Ao narrar, o jornalista que se depara com temas científicos encontra na ciência um acontecimento
que se desenvolveu em um tempo extremamente dilatado se comparado com a dimensão
temporal na qual constrói seus textos. Em resumo, como comentei na aula, uma pesquisa de 10
ou 20 anos precisa ser contada em dois minutos do espaço da televisão, se se tratar de uma notícia
de ciência em um telejornal diário. Nessa relação temporal é que o jornalista normalmente só se
preocupa com os resultados da ciência. Assim, quando Charaudeau nos diz que o papel da
narrativa é o de construir uma história segundo um esquema narrativo intencional, no qual se
poderá identificar os projetos de busca dos atores e as consequências de suas ações, pretendi
proporcionar aos estudantes a relevância também de se abordar essas questões para trazer
aspectos dos processos de constituição da ciência.
Apesar dos resultados da ciência serem os geradores da notícia, já que é a etapa da ciência
em que entram alguns critérios de noticiabilidade, tais como novidade, relevância, impacto, entre
outros, ao tomarmos por base a explicação de um fato, buscamos também tentar dizer o que o
motivou, quais foram as intenções de seus atores, as circunstâncias que o tornaram possível,
segundo qual lógica de encadeamento, quais consequências podem ocorrer. Dentro da explicação
do fato, podemos incluir diversos aspectos dos processos da ciência naquele resultado que está
sendo divulgado. Tornar o mundo e a ciência inteligíveis, a partir da conceitualização de questões
como: a da origem (“por que as coisas são assim?”), a da finalidade (“para onde vão as coisas?”)
e a do lugar do homem no universo (“por que eu sou assim no meio dessas coisas?”).
No jornalismo científico, assim como todas as outras editorias, o fazer jornalístico não se
limita somente a atividade de noticiar, mas supõe o relato das ações humanas – como vimos no
texto de Ijuim – considerando mais que fatos, que compreendem usualmente os resultados da
ciência, mas fenômenos sociais, que concernem a atividade científica como um processo. A tarefa
do jornalista é a de compreender as ações humanas para poder narrá-las, como vimos ao passar o
vídeo elaborado pela Pesquisa Fapesp sobre a estrela Eta Carinae. Apesar do vídeo se constituir
no relato de um astrofísico, uma equipe de jornalistas foi responsável pela pauta, entrevista,
edição das falas, inserções de infográficos e imagens. Uma reportagem em vídeo que não se
62
restringe unicamente ao fato de um astrofísico brasileiro “descobrir” – verbo tão utilizado por um
jornalismo científico do tipo “breaking news” – que uma estrela era, na realidade, duas, mas que
relata também como começou o envolvimento de Damineli com esse objeto celeste. A
expectativa do cientista em trabalhar lentamente e rotineiramente com uma estrela que era
possível trabalhar com o equipamento disponível e só visível no hemisfério sul, mas que, de
repente, ela se mostrou mais complexa de entendimento com o apagamento. Nesse novo
“cenário”, ele narra como propôs um novo modelo e, pouco usual em uma abordagem do
jornalismo científico que só se preocupa com os resultados, como foi o diálogo com os outros
cientistas, que se mostrou difícil quando ele conta que o editor não queria publicar o artigo.
Após a apresentação dos textos e exibição do vídeo, solicitei aos alunos que respondessem
em uma folha de caderno duas perguntas:
Se você tivesse que contar para alguém o que é narrativa, o que você contaria?
Se você tivesse que contar para os teus colegas de profissão que trabalham com
você o que seria uma narrativa no jornalismo, como você contaria?
Ao elaborar as questões desse modo, pretendi que os alunos não respondessem definições
do tipo: “o que é narrativa?” ou “o que é narrativa jornalística?”, apesar de um dos alunos me
perguntar se as duas questões eram para ser respondidas como as definições citadas acima e que,
como coloquei as perguntas em uma apresentação de slides e solicitei aos alunos que copiassem
as questões para a folha de caderno, transcreveu as questões como definições.
Nessa aula, disse que o eixo temático “produção em jornalismo científico” não ficaria
restrito àquela aula, mas que seria desenvolvida ao longo das atividades práticas da disciplina
(produção de reportagens sobre ciência). Tradicionalmente, na instituição escolhida, em
disciplinas do terceiro e quarto anos, os alunos têm aulas regulares da parte teórica nas primeiras
semanas, sendo que, nas outras, são liberados das aulas regulares para elaborarem enunciados
jornalísticos acompanhados pelo docente responsável pela disciplina. Como não resido na cidade
da instituição, orientei os alunos por e-mail quando eles me enviaram as atividades solicitadas,
como a pauta da reportagem final e a própria reportagem.
Durante a aula concernente a esse eixo, dividi a produção jornalística em quatro etapas:
63
pauta em jornalismo científico e fontes; apuração, redação e produção (edição e diagramação).
Sobre a pauta, um dos primeiros desafios que se impõe a alguém que pretende cobrir o
mundo científico está na escolha dos temas. Muitos meios de comunicação se baseiam
exclusivamente em releases enviados pelas assessorias de comunicação em universidades e
institutos de pesquisa. Expliquei aos alunos os problemas que poderiam acontecer quando
utilizamos somente os releases, já que ficaria difícil para os meios de comunicação se
distinguirem entre si, os quais publicariam as mesmas coisas. Assim, elenquei outras fontes
como: sites de universidades e institutos de pesquisa, agências de fomento, meios de
comunicação de caráter geral (Folha de S.Paulo etc.), mídia especializada, mídia associada a
sociedades e instituições de fomento de caráter científico (Ciência Hoje, Pesquisa Fapesp etc.),
periódicos científicos (Science, Nature etc.), base de dados (Google Acadêmico, Scielo etc.) e
divulgação de relatórios (IPCC, IBGE etc.).
Lembrei aos alunos também da não rigidez da pauta, já que fatos interessantes que não
estavam previstos anteriormente pela pauta podem ocorrer durante uma entrevista e que merecem
ser abordados na notícia.
Nessa parte da aula, disse que, embora numa pesquisa publicada em periódicos
internacionais, tais como Science e Nature, faltasse o “ângulo local”, o jornalista pode procurar
um pesquisador da universidade local para falar sobre determinada pesquisa de abrangência
mundial que pode ter implicações a nível local.
Outra fonte de pauta para o jornalista científico são os eventos científicos. Eles são uma
boa oportunidade para encontrar muitos pesquisadores num lugar só e ter muitas ideias. Além de
serem um gancho para colocar a ciência nas páginas dos noticiários. “Os pesquisadores
apresentam e discutem novas ideias, resultados e conclusões, e algumas vezes fazem
recomendações com impacto na vida da sociedade – até para atrair a atenção da mídia”
(CLAYTON, 2008).
Outra etapa jornalística discutida com os alunos foi a entrevista e a preparação para a
mesma. A forma de contato com o pesquisador e as informações básicas para que ele possa se
preparar. Ele também precisa ser informado do ângulo, mesmo quando for uma matéria de
denúncia, como diz Christina Scott (2008), no curso online de jornalismo científico publicado no
portal SciDev.net.
64
O momento da elaboração da pauta e da entrevista também pode resultar em um texto
jornalístico com foco maior nos processos da ciência, ao desenvolver uma pauta do cientista
como personagem ou um perfil, buscando questões históricas que envolvam o pesquisador como
um todo. Exemplifiquei com base em uma entrevista que realizei com um astrofísico do
IAG/USP, Eduardo Janot Pacheco, que envolveu dados históricos de como o pesquisador
conseguiu inserir o Brasil em um projeto de satélite para busca de planetas extrassolares:
(…) o convite feito aos cientistas brasileiros foi decorrência de uma crise
financeira no CNES, na qual eles tiveram que buscar parceiros para colaborar
com o projeto. Assim, no final de 1999, a pessoa encarregada da missão e
cientista-chefe do CNES fez o convite diretamente a Pacheco, que se encontrava
em Paris no momento. “Ela me perguntou se o Brasil não gostaria de participar
do projeto e eu respondi que sim, pois sempre é interessante participar de um
satélite, mas ela ressaltou que seria preciso arrumar um milhão de dólares”,
lembra Pacheco. “A partir desse momento saí contatando colegas e, no começo
de 2003, aconteceu uma reunião (…)” (DIAS, p. 5, 2007).
65
66
4. Alguns resultados
Neste capítulo, faço algumas análises de dados obtidos a partir das informações coletadas
no trabalho com a unidade de ensino junto aos estudantes. Na construção dos dados utilizo as
seguintes fontes de informação: os discursos dos estudantes e meus enquanto
professor/pesquisador gravados em áudio/vídeo, a avaliação final e a reportagem que foi o
trabalho de conclusão de curso. As falas foram mantidas sem modificações e o uso de pronomes
no gênero masculino se refere aos dois gêneros.
Como expus no capítulo três, durante a primeira aula discorri sobre aspectos introdutórios
ao jornalismo científico. Notei que ocorreram poucas interações com os alunos, já que estes
fizeram poucas perguntas e quase nenhum comentário sobre a aula.
Após abordar algumas características usuais do jornalismo científico, como a informação
persistente de fatos, personalidades e acontecimentos relacionados ao campo da ciência,
mobilizados pelos meios de comunicação de massa e transmitidos em linguagem acessível ao
grande público, me dediquei a discutir as interfaces com as outras editorias.
67
naturais, já que considerei uma pesquisa histórica sobre o trem do Pantanal como pauta científica.
A seguir, mostrei para os alunos a intersecção com a editoria de ambiente ao abordar o problema
do lixo e uma pesquisa sobre quantos aterros necessários seriam necessários para atender a
demanda da cidade. O problema do lixo em si fez com que a matéria fosse para a editoria de meio
ambiente, mas há relação com a editoria de ciência, já que uma pesquisa foi feita para o cálculo
dos aterros sanitários. Também lembrei aos alunos de um colega, que na época trabalhava na
assessoria de um órgão público do poder legislativo, que cobriu um eclipse lunar em um parque
da cidade. Em outro momento, fiz a seguinte assertiva:
Para essa aula tinha sido proposta a leitura antecipada de dois textos, sugeridos na aula
anterior: o artigo Quanto mais manipulações melhor de Bruno Latour e Divulgação científica: A
mitologia dos resultados de Antônio Fernando Cascais. Nessa aula os estudantes participaram
mais, com diversas discussões sobre a natureza da prática científica e sua relação com o
jornalismo científico. Esse diálogo foi facilitado por ter disposto as carteiras em círculo e por ter
começado a aula já questionando os alunos sobre o que eles tinham achado do texto, o que diferiu
da aula anterior na qual praticamente só eu falei.
Começamos com o texto de Cascais. A questão de se publicar os erros da ciência logo foi
um ponto de discussão:
68
Estudante A: Quando se fala em ciência, ela está relacionada à ideia de
milagre. Se a ciência falha, não consegue resolver os erros, eu acho que o
jornalista assume esse… nem tudo tem jeito.
Estudante B: Papel de carrasco, concordo com ele. Concordo que deveria ser
noticiado, mas acho que talvez o jornalista que faz isso faz o papel de carrasco.
Tipo: “esse cara aí é muito crítico. Está questionando o poder da ciência”.
Professor/pesquisador: Às vezes não é culpa só do jornalista, mas também da
própria ciência, que tem esse imaginário.
Estudante C: Eu acho que é questão dos critérios de noticiabilidade mesmo,
sabe, a ciência falhar faz parte do processo, quando dá certo que é notícia, você
não vai falar essa padaria não foi assaltada essa semana, só quando ela foi
assaltada.
Estudante B: Ou se ela foi assaltada em uma semana e na outra não.
Professor/pesquisador: (…) Aí que entra você escapar dos resultados, porque
às vezes a notícia não estará no resultado, o resultado deu erro, mas a notícia
estará no processo, ele usou uma metodologia diferente para aquele
determinado resultado que deu errado, mas aquela metodologia que ele criou
foi diferente, o que pode ser notícia. Não só a metodologia, mas a questão
histórica, algum assunto histórico... que pode ser notícia... o resultado deu erro,
mas o lado histórico daquilo, talvez...
Estudante C: Foi o primeiro uso de alguma coisa.
Professor/pesquisador: Talvez isso.
Estudante C: Como o LHC, não deu resultado até agora, mas o primeiro uso é
histórico.
Estudante B: Mas se você fazer uma matéria sobre o Instituto fica aquela
pressão de que eles tenham que dar certo. Porque já noticiou, fica aquela
pressão, não agora eles estão lá…
Estudante C: Mas as pessoas esquecem. A cura do câncer está sempre há 10
anos. Sempre está 10 anos.
Estudante A: Só tem interesse de divulgar o erro, quando é matéria de ataque.
Mídia quer atacar mídia ou mídia quer atacar empresa. Ninguém criticou a
ciência ou a pesquisa. A culpa foi diretamente sobre a empresa, não sobre os
pesquisadores. Ou quando um jornal divulga que tal pesquisa é inovadora, daí
outro jornal faz uma matéria dizendo que não é bem assim, outro jornal surge
com um erro para atacar a outra mídia, para tirar a credibilidade da
concorrência. E não mostrar um erro do método, ou que é obsoleto.
69
meios de comunicação e um obstáculo ao trabalho com os processos da ciência. O poder da
ciência, para o estudante, não deve ser questionado pela mídia, já que esse poder se constitui em
um julgamento final de todos os litígios. Tal imaginário, construído pela própria produção
científica, como apontei para o estudante, também se constitui em um obstáculo para a
divulgação dos erros da prática científica.
Nota-se nos discurso desses estudantes, devido a interpretações dos textos propostos para
leitura, ou devido a interpretações anteriores, evidências de reflexão sobre como a ciência e o
papel do jornalista são vistos na sociedade. Inclusive, na última do estudante A pode-se notar a
busca por justificativas para o que ele admite ocorrer quando são publicados erros, o ataque entre
diferentes mídias.
Já o estudante C evocou os critérios de noticiabilidade para defender que os processos da
ciência, como o erro, não deveriam se transformar em notícias. O estudante C evidencia ao
participar do diálogo ter refletido sobre o assunto com base nos critérios de noticiabilidade, com
os quais provavelmente já havia tido contato em sua história como estudante de jornalismo. Os
valores-notícia presentes, apesar de não mencionados pelo estudante, seriam o inesperado, já que
os erros são esperados por fazerem parte da normalidade da ciência e os resultados são
inesperados ou novos (outro critério de noticiabilidade). Outro valor-notícia presente aqui é a
negatividade, já que, no exemplo dado pelo aluno, enquanto a padaria funciona tranquilamente
ela não é notícia, mas apenas quando algo ruim, um assalto, acontece. Se usarmos a mesma
metáfora para a ciência, esta só seria notícia na grande mídia, seguindo o raciocínio desse
estudante, quando algo ruim acontecesse.
Após a minha tentativa em considerar relevante a abordagem de aspectos metodológicos e
históricos que fazem parte dos processos da ciência, o estudante A novamente apontou outro
argumento para a não abordagem dos erros. Os erros que acontecem na produção científica só
serviriam para atacar a mídia rival ou outra empresa quando estas divulgam alguma pesquisa e
não para aumentar a cultura científica dos leitores do jornal. Em situações normais, erros na
ciência raramente seriam divulgados. A fala desse estudante também evidencia a relevância dos
bastidores da produção da notícia que, nesse caso, são mais importantes do que a própria
“realidade objetiva” que os meios de comunicação tanto aludem, já que os jornalistas
considerariam apenas acontecimentos para se transformar em notícia tendo o objetivo de atacar
70
grupos que a mídia é contra, seja outra mídia ou empresas.
Nesse grupo de respostas também fica evidenciado que o texto proposto para leitura foi
condição de produção para os discursos dos estudantes, já que este aponta o problema em não se
tratar dos erros da ciência no jornalismo científico. Mesmo que, parte do que os estudantes
disseram já fizesse parte de interpretações ocorridas em suas histórias de vida, a atividade
proposta, leitura do texto foi uma das condições imediatas que geraram esse diálogo, no qual os
estudantes puderam se posicionar expondo suas posições sobre o tema tratado. Para Cascais, uma
das consequências da mitologia dos resultados na mídia é:
Continuando a discussão sobre os limites da ciência, lembrei que muitas vezes o jornalista
reforça a ideia da ciência enquanto “salvadora do mundo”. Citei também o exemplo das disputas
jurídicas que são resolvidas pelo exame de DNA das partes. Antes de abordar os limites desse
imaginário, fui interrompido por um dos estudantes:
Estudante: As pessoas esquecem que o DNA não é 100% confiável, porque tem
pessoas que são quimeras, porque tem dois ou três dnas dentro dela, nada é
100% confiável.
Professor/pesquisador: Interessante isso que você falou. Algumas empresas de
seguros estão baseando o cálculo das apólices com relação a genética da
pessoa. Aí existe tal probabilidade para determinada doença. Dependendo da
probabilidade, sua apólice fica mais cara. E isso é extremamente
desconfortante… Mas pode haver o efeito contrário. Por exemplo, algumas
mulheres tinham uma propensão maior geneticamente para o câncer de mama.
Só que na verdade tem o efeito inverso, porque quando alguém descobre que
tem uma probabilidade maior de ter câncer de mama ela começa a tomar
atitudes para evitar o câncer. Tem outra pesquisa que fala que uma dieta rica
em gordura aumenta a possibilidade de câncer de mama. Aí pessoas que
geneticamente tem essa possibilidade de ter câncer de mama elas vão diminuir
o consumo de gordura. Aí tem outra pesquisa que fala que mulheres que fumam
tem maior chance de ter câncer de mama. Daí essas pessoas que já têm essa
propensão genética param de fumar também. Assim é o contrário. As mulheres
que geneticamente tem a possibilidade de ter câncer de mama são as que não
tem a doença. Este é só um exemplo que a questão genética não é tão
determinante.
71
Nesse conjunto de falas, procurei desmistificar a ideia da ciência enquanto juiz final de
todas as questões, combatendo o determinismo da ciência. Uma ciência extremamente precisa,
que pode colocar um ponto final em todos os impasses humanos, neutra e assim imparcial é o que
é normalmente expressa em jornais, sites e programas de rádio e televisão em todo o mundo. O
jornalismo, como asserta Fahnestock (2005), procura ser mais exato que a própria ciência.
Recentemente, na notícia de que a espécie humana quase se dividiu em duas, Marcelo Leite abre
o texto com a frase: “Já se sabia que neandertais e humanos conviveram por milhares de anos na
Europa e na Ásia e aí se acasalaram” (LEITE, 2014). O cruzamento entre neandertais e homo
sapiens é um dos assuntos mais controversos dos estudos do gênero homo. Recentemente com a
decifração do genoma neandertal pelo grupo liderado por Svante Pääbo a hipótese do cruzamento
ganhou força, mas ainda gera polêmica entre os cientistas. Já a frase que abre o texto sugere o
oposto, que já é, usando um jargão jornalístico muito usado, “fato”. Os resultados da ciência se
congelariam e o processo de discussão, que faz parte dos procedimentos da ciência que esta tese
procura abordar com os estudantes de jornalismo, seria encerrado. Para Fahnestock, como já citei
no capítulo da revisão bibliográfica, o motivo que leva a esse deslocamento, usar léxicos que
exprimem certeza, é o desejo de aumentar a relevância do assunto. Complemento afirmando que
aumentar a relevância do assunto significa colocar mais credibilidade ao texto jornalístico, já que
sentenças usadas em artigos científicos como “os resultados parecem sugerir” não passam a
impressão de algo acabado e assim sem credibilidade para leitores e internautas que buscam a
“verdade”.
O estudante pode, neste caso, estar dando indícios de que não acredita na existência de um
DNA. Ou talvez esteja apenas confundindo DNA com gene, este sim com a existência de mais de
um em um organismo, já que genes são partes do DNA. Ele pode estar confundindo DNA no
sentido de probabilidade maior ou menor de determinadas pessoas terem certas doenças. É
possível também que o estudante tenha anteriormente lido algo sobre quimerismo genético, o que
evidencia a importância de termos em conta as condições de produção históricas dos estudantes.
Na continuação da conversa com os estudantes, um deles me surpreendeu defendendo a
ideia que o jornalista não é um mero tradutor da ciência, o que é coerente com as pesquisas em
análise de discurso e jornalismo, como Orlandi (2001), mas que não tinham sido discutidos com
os alunos até então:
72
Estudante: Você acha que o jornalista tem que aprofundar na pesquisa dele ou
o cientista tem que tornar a linguagem dele mais acessível? Porque o jornalista
pode virar um mero tradutor e ele não é só um tradutor. Ele mexe com uma
coisa que tem a ver com a sociedade que tem interesse social.
Professor/Pesquisador: O jornalista até pode ter consciência disto que estamos
falando (aponto para o texto de Cascais). De nós escaparmos da mitologia dos
resultados. Mas e na prática, quando ele vai entrevistar o cientista. E aí?
Estudante: O cientista não vai querer fugir disso, sair de só falar dos
resultados.
Professor/Pesquisador: Muitas vezes o jornalista vai querer esconder os
processos. Às vezes na entrevista podemos conversar com ele e pedir para que
ele fale dos processos. Porque tem cientista que está tão acostumado a falar
com os cientistas, e os jornalistas perguntam sobre os mesmos aspectos, que ele
já está disciplinado a falar só aquilo. E o cientista pode querer esconder por
uma coisa econômica. Patentes. Uma ciência que pode gerar patentes e ele
pode querer esconder aquele processo para não passar o segredo para os
concorrentes. E isso acontece, porque os determinantes econômicos da ciência
são muito fortes.
A pergunta desse estudante tem a ver com o diálogo entre jornalistas e cientistas na
produção de textos em jornalismo científico. Ela poderia ser resumida na questão: O jornalista
teria que se aprofundar no levantamento dos conhecimentos envolvidos na pesquisa que pretende
noticiar, falar no mesmo nível do cientista e depois “traduzir” para a linguagem comum, ou o
cientista, já quando fala com os jornalistas, teria que tornar a linguagem acessível sem que o
jornalista realize o trabalho de aprofundamento na pesquisa? O posicionamento desse estudante
rejeita o papel do jornalista enquanto mero tradutor e enfraquece a tese de Althier-Revuz que
propunha o trabalho de tradução para o jornalista. Esse estudante vai mais além ao apontar o
problema da transformação do jornalista-tradutor da linguagem científica ao lembrar da
responsabilidade social dos jornalistas, como vimos em Zelizer (2004) que referencia o
jornalismo como um serviço de interesse público e em conjunção com as necessidades de
cidadania. Isso não seria cumprido ao apenar traduzir a ciência para a linguagem comum.
Ao responder a questão com o lançamento da polêmica que mesmo que o jornalista queira
abordar os processos, questionando como isso funcionaria na prática, na entrevista e na produção
do texto, ressalto o caráter dialógico da aula. O fato de perguntar “E aí?”, o que pode soar non-
sense responder a um questionamento com outra questão, teve por objetivo fazer com que os
outros alunos participassem da discussão e pensassem sobre se a fuga da mitologia dos resultados
fosse apenas um verbalismo teórico sem fundamento prático ou se poderia ser posta em prática
73
no cotidiano dos jornalistas. No desenrolar da discussão, fui aos poucos demonstrando que a
etapa da preparação para entrevista e apuração pode ser intensa e aprofundada. Assim, demonstrei
que o jornalista tem, sim, que aprofundar na pesquisa que pretende noticiar.
Nesse momento a discussão prosseguiu na questão do uso de terminologia técnica e o
problema dos jornalistas ao lidar com o jargão da ciência, suscitado pela questão anterior sobre
“tradução”. Continuando na resposta ao questionamento do estudante, mencionei a importância
da etapa da apuração na prática jornalística e apontei para o problema dos jornalistas irem para
uma entrevista sem ter lido nada a respeito da pesquisa em questão. Nesse momento a professora
regular da disciplina pela primeira vez participou da discussão.
Professora da disciplina: Tem que ter noção básica da pesquisa para ir falar com
o pesquisador. Você não vai chegar no cara e perguntar o que é DNA mesmo?
Estudante A: Qualquer especialização do jornalismo. Se você vai para o
jornalismo cultural e vai se especializar em cinema, você chega para uma
entrevista com um cara e não entende nada de termos técnicos do cinema, vai ser
a mesma coisa você chegar no cientista e não entender nada dos termos técnicos
do científico. Existem vários campos.
Estudante B: Uma pesquisa prévia.
Estudante: A impressão que eu tenho, quando faço pesquisa para uma matéria
de ciência e ambiente, é que sua pesquisa só serve para aquela matéria. Depois
esquece. Diferente de uma matéria de política que você sempre tem um contexto
histórico de como aconteceu o processo. Não sei se isso acontece com uma
pesquisa jornalística sobre ciência. É mais ou menos assim?
Pesquisador: Não. É aqui que o Cascais vai mostrar no texto. Por um lado os
resultados dão uma ideia fechada da ciência. E os procedimentos dão uma ideia
aberta. Quando a gente pega os procedimentos nós conseguimos adquirir uma
base para nós usarmos em matérias futuras.
74
Sem perceber, de maneira inconsciente e assim relacionado ao campo ideológico, o
próprio estudante apontou como problema para o desenvolvimento de textos de ciência a falta do
contexto histórico de como aconteceu o processo, que, segundo ele, acontece apenas em matérias
de política. A abordagem estrita dos resultados acarretaria em uma falta de conexão entre os
diversos resultados da pesquisa científica que são divulgadas pela mídia. Por isso, as informações
levantadas, que se baseiam só nos resultados, só serviriam para aquela matéria e depois cairia no
esquecimento.
Uma pausa deve ser realizada aqui para a discussão metodológica. A análise de como os
estudantes produziram sentidos não ficou restrita ao momento da escrita da tese, mas aconteceu
também durante a própria aula, a partir das posições dos estudantes, como podemos notar no
diálogo acima. Para responder os questionamentos dos estudantes, procurei relacionar às
condições de produção dos seus discursos para elaborar as respostas. No exemplo acima, durante
a aula notei que esse estudante se identificou com uma forma fechada de ciência, na qual a
abordagem só dos resultados faria com que cada matéria demandaria vasta pesquisa. Com uma
abordagem aberta da ciência, que inclui os processos, que foi o objetivo da unidade de ensino,
todos esses resultados seriam interligados, o que não requereria uma pesquisa extensa.
Na continuação da discussão, discorremos sobre o porquê da escassa produção de
produtos jornalísticos envolvendo a ciência.
75
pesquisadores, querem falar, me procuraram... Não é só que a universidade está
quebrada, ruim, tem que sair alguma coisa daqui, avisando tal pesquisa assim,
essa do superchip é uma coisa que é manufaturada no Brasil, que é fabricado
aqui. E não é um projeto de agora...
Estudante A: Casa da Ciência, tem n projetos sendo feitos, oficina pega
material reciclável para fazer para as crianças carentes, herbário, clube de
astronomia, filmes, palestras toda semana, observação em locais propícios,
ninguém fica sabendo disso. Eles não trabalham com jornalismo, dever do
jornalista de caçar a pauta e olhar para o estado e ver que isso existe.
Estudante B: Todos reclamam que não tem pauta aqui, e não é porque tem
pauta quente toda hora que você não pode pegar pautas mais frias, em ciência
geralmente é fria, nossa fala de núcleo da ciência, salvo três ou quatro
matérias... não tem uma inserção que o jornalista vê, a assessoria daqui quando
manda é quando é negociada antes, tipo globo universidade, são coisas muito
pontuais, o jornalismo precisa descobrir que as pesquisas são uma fonte
inesgotável de pauta, daí tem pauta do cachorro atropelado, não é justificável
quando você não procurar, a universidade tem culpa, mas o jornalista não
procura.
Professora da disciplina: Não é pauta que você publicar hoje e amanhã não
serve. Se você pega hoje e publicar semana que vem você vai publicar.
Professor/pesquisador: Dificilmente na ciência teremos pautas muito quentes.
Professora da disciplina: Exatamente.
76
pessoas possam imediatamente gratuitamente16 adquirir o remédio. Em jornais locais, mais do
que nos nacionais, o jornalista assume definitivamente o papel de “cão de guarda” da sociedade.
No exemplo do mato que avança as casas, o jornalista prontamente procurará as autoridades
competentes para questionar os motivos da falta de cuidado com o mato. Normalmente ele irá
exigir uma solução rápida do problema e, se este não for resolvido, outra notícia sobre o descaso
das autoridades será elaborada. Quando finalmente a prefeitura enviar trabalhadores para cortar o
mato, o jornalista poderá acompanhar o trabalho, tirar fotos e elaborar outra notícia com o
desfecho. Dificilmente essa história poderia ser contada em um jornal nacional, já que outros
temas precisam ser abordados para abranger mais pessoas.
Pelo fato de não haver meios de comunicação de cunho nacional na cidade em que a
universidade está localizada, os alunos de jornalismo dificilmente conseguem imaginar as
pesquisas desenvolvidas pela universidade publicadas nas mídias locais, só quando há um crime,
um esquema de corrupção que superfatura as obras da universidade, pode ser transformado em
notícia. Outra distinção realizada pelos estudantes foi entre “pautas quentes” e “pautas frias”. Na
discussão reconheci que em ciência geralmente não teremos “pautas quentes”, ou seja,
acontecimentos como a divulgação dos ganhadores do prêmio Nobel, a libertação de cobaias por
grupos ativistas ou a votação de uma lei que facilite o uso de materiais proibidos em pesquisa no
Congresso Nacional. Em ciência temos mais “pautas frias”, o que pode ser verificado nas
editorias de ciência de todos os sites dos meios de comunicação, nos quais a mesma capa com as
mesmas notícias perdura por várias semanas, o que é um sinal das chamadas “pautas frias”, ou
seja, demoram a perder o caráter da atualidade, o que não acontece em matérias de política
quando outras matérias “tomam o lugar” da antiga com mais rapidez.
Outro problema abordado pelos alunos foi a investigação de quem seria responsável pela
fraca abordagem em jornalismo científico pela mídia. A universidade que não divulga as suas
pesquisas para fora dos muros da universidade, através das suas assessorias de imprensa? Ou os
jornalistas que não buscam tratar das pesquisas desenvolvidas pela universidade? Ou um
somatório dos dois? Para o estudante C a responsabilidade seria da universidade que não divulga
as pesquisas, mas para o estudante A seria dever do jornalista ir atrás das notícias da universidade
16 O uso de tantos advérbios é proposital, já que para um acontecimento merecer um tratamento jornalístico
precisa ter muitos advérbios. Nesse exemplo poderiam ser inclusos outros advérbios: “facilmente”, “felizmente”
etc.
77
sem precisar esperar que os pesquisadores ou a assessoria de comunicação da universidade
soltasse o release para depois fazer a matéria.
Após a discussão, passei a apresentar o texto Quanto mais manipulações melhor de Bruno
Latour. Tive por objetivo trabalhar a noção de que na ciência as imagens não correspondem
necessariamente ao mundo sensível, mas se referem a outras imagens formando uma cadeia de
imagens que se referem a outras imagens sucessivamente. Só quando o cientista vai falar com o
jornalista, é que os elos dessa cadeia são deixados de lado, dando a ideia de referência direta entre
o fenômeno e a explicação do fenômeno17. É claro que não existe nenhum fenômeno fora da
explicação deste, mas como é muito comum a mídia passar a ideia termo a termo entre ciência e
natureza, indiquei esse texto para os alunos e mostrei um vídeo produzido pela revista Ciência
Hoje.
Outra pausa para análise merece ser feita. O título do texto de Bruno Latour já sugere algo
que cria arrepios em jornalistas e estudantes de jornalismo: “manipulação”. Em sua grande parte,
profissionais da área de jornalismo rejeitam veemente a acusação de que manipulam a realidade.
Nos protestos de julho de 2013 em várias cidades brasileiras, carros da mídia e jornalistas foram
atacados sob o pretexto de que os jornalistas manipulam e distorcem a realidade. Entretanto, as
pessoas que criticam a mídia por manipular a realidade imaginam que seria possível não
manipular de maneira alguma, o que seria algo impossível. Caso os estudantes tenham uma boa
compreensão da manipulação exercida pela mídia, estes notarão quando essa manipulação está
em prol de grupos que trabalham pela dominação e manutenção do poder e quando estão a
serviço da democracia e do interesse público da população. Eles terão condições para diferenciar
uma mentira de algo que, apesar de sofrer manipulação, se refere a realidade social, mesmo que
sem relação termo a termo entre realidade e jornalismo.
Tendo por base a profusão de imagens astronômicas nos meios de comunicação,
assistimos ao vídeo Nasce uma galáxia!18 pertencente ao canal de vídeos da revista Ciência Hoje
no YouTube em que são mostradas as etapas de construção dessas imagens. Várias regiões do
espectro, tais como ultravioleta, visível e infravermelho, são sobrepostas para a formação da
17 O texto de Latour contêm uma charge na qual dois cientistas estão observando um mapa com imagens
astronômicas. Um cientista diz para o outro: “Claro que isto são cores falsas. As vermelhas são realmente verdes,
as verdes são vermelhas, as azuis são laranjas e as laranjas são azuis”. O outro responde: “Faz sentido”. A charge
pode ser vista no anexo II.
18 Moutinho et. al (2012).
78
imagem. Momentos antes do vídeo, discutimos a questão das imagens astronômicas:
Como já expus anteriormente, para Allan (2013) o jornalismo sempre busca um alto grau
de realismo em tudo que publica em jornais e revistas ou exibe na televisão. Por isso, a
descoberta de um planeta fora do Sistema Solar por inferência indireta, seja diminuição de luz da
estrela, como comentada por um dos estudantes, seja por perturbações gravitacionais na estrela,
dificilmente ganhará um tratamento pela mídia caso não haja fotos do planeta no espectro visível.
Como a detecção de planetas no visível é tecnologicamente difícil, geralmente os designers
gráficos das assessorias de comunicação dos laboratórios previamente preparam uma
representação artística do planeta, baseado nos dados conhecidos, como massa e distância da
estrela. Quando não há representação artística feita pela assessoria do laboratório, o próprio meio
de comunicação, com o seu time de designers e chargistas, irá produzir uma imagem do planeta.
No caso das galáxias, as imagens são o conjunto de vários filtros e regiões do espectro e não
apenas a “foto” da galáxia. Por dizer que não eram reais, o aluno ficou decepcionado, tendo em
vista a busca incessante pelo real em todas as notícias jornalísticas. Após notar que esse mesmo
79
aluno estava discutindo com os outros sobre a completa falta de identificação entre as imagens
astronômicas e a realidade, disse que as imagens não são tão irrealistas. As imagens se referem
sim as galáxias, os astrônomos conseguem produzir vastos conhecimentos usando essas
manipulações, como a descoberta da expansão acelerada do Universo. Mas esse grau de
referência não é direta como pensam os jornalistas, assim como em nenhuma outra produção
jornalística. Essa parte da aula sintetiza toda a tensão gerada entre “realidade” e “realidade
construída pelo jornalista”. Da mesma forma que, em casos normais, o jornalista não mente, não
dá para dizer que ele diz a verdade absoluta.
Essa aula foi fundamental para a investigação de como os estudantes de jornalismo
produziram sentidos com relação às leituras que propõe a abordagem das condições de produção
da ciência. A possibilidade da abordagem dos erros da prática científica gerou muitos
posicionamentos dos estudantes, que expuseram os motivos que o jornalismo não se preocupa
com os erros, já que cabe ao jornalismo o papel teleológico. Só quando a ciência evolui a partir
dos seus sucessos é que a ciência merece receber um tratamento jornalístico. Entretanto, expus
aos alunos que os erros podem contribuir para a compreensão dos fenômenos que estão sendo
estudados.
Também expus os limites da prática jornalística que só vê nos resultados a possibilidade
do trabalho de produção do texto. Essa imagem restrita faz com que cada vez que o jornalista se
depara com um assunto ele tem que pesquisar sobre aquilo para desenvolver a matéria, sendo que
a abordagem dos processos, que sugere uma ciência aberta como proposta por Cascais (ibidem),
proporciona uma óptica abrangente da ciência e que cada texto produzido auxilia na produção do
seguinte. Esse discurso só veio à tona a partir do questionamento de um dos estudantes, o que me
permite concluir que a unidade de ensino foi efetiva em aflorar assuntos emblemáticos do
jornalismo científico em pontos relativos a abordagem dos processos da ciência pelo jornalismo
científico.
Essa aula também foi relevante para explorar as contraposições entre posicionamentos que
sustentam a prática jornalística tradicional e a unidade de ensino que questionou essa prática. Isso
gerou conflito de ideias, ora os alunos defenderam a prática jornalística tradicional ora foram
coerentes com a unidade de ensino. Quando os estudantes compararam o problema do jargão
técnico do jornalismo científico com o cinema, esses estudantes foram coerentes com a aula
80
anterior que mencionei que o jornalismo científico não é algo a parte do jornalismo. Muitos dos
problemas do jornalismo científico, como fazer com que um discurso que circula em linguagem e
práticas próprias como a ciência pode ser abordada pelo jornalismo que circula em linguagem
comum e possui práticas distintas da ciência, também ocorreria em outras áreas, como no cinema
e na cultura. Esses estudantes também conseguiram questionar o determinismo da ciência e
discutir a falta de interesse da mídia no cotidiano da universidade, apesar de dificilmente se
imaginarem abordando os acontecimentos que não se resumem ao sucesso da ciência, já que não
cumpririam os critérios de noticiabilidade. Assim, a unidade cumpriu o seu objetivo de investigar
os sentidos produzidos pelos estudantes de jornalismo e criar condições para o trabalho desses
sentidos.
Essa aula foi dedicada ao estudo da pesquisa em jornalismo científico. Era esperado que
os alunos tivessem lido três textos, sendo que um tinha apenas uma página. Uma pesquisa sobre
transgênicos na mídia (MEDEIROS, 2007), em que foi utilizado o referencial mais tradicional para
a pesquisa em jornalismo que é a análise de conteúdo e dois textos (PETERSEN et. al, 2010 e
PETERS, 2005) sobre as relações entre fontes (cientistas) e jornalistas.
De início, após resumir brevemente os três textos perguntei para os alunos se havia
alguma dúvida. Um deles prontamente começou a comentar os textos:
81
em dar entrevista e concorda inclusive em acontecer escândalos e gere
polêmicas, porque para ele quanto mais debate tiver, mais fácil a pesquisa vai
evoluir em um futuro próximo.
Parece que é seu papel de professor que geralmente gera essa atitude positiva (de
abertura à comunicação) Em um estudo sobre os motivos que levam cientistas
norte-americanos a conceder entrevistas para a mídia DiBella, Ferri e Padderud
descobriram que a motivação de educar o público é a razão mais importante pela
qual os cientistas concordam em ser entrevistados (p. 140).
82
não é saudável. Esse posicionamento ajuda na compreensão do discurso anterior sobre a
mobilização que a mídia consegue gerar na população. Se as pessoas deixam de consumir um
produto por conta de enunciados jornalísticos que afirmam que pesquisas confirmaram a
possibilidade desses alimentos causarem doenças, a técnica em questão perderia apoio político e
sofreria restrições legislativas caso os parlamentares decidam se unir ao grupo de pessoas que são
contra o uso dessa técnica na produção dos alimentos. Assim, uma das conclusões desta tese é
que a própria mídia faz parte dos processos da ciência. Além das esferas políticas, sociais,
econômicas, metodológicas e conceituais, a própria mídia participa nessas esferas e também pode
ser considerada como parte do processo de constituição da ciência.
Na continuação da discussão, outro ponto de cumprimento dos objetivos da unidade de
ensino foi que, logo após essa discussão das discussões éticas do desenvolvimento de
determinadas ciências, novamente o cuidado com a ilusão da exatidão da ciência foi aludido:
Estudante: O que esses textos falam também é tomar cuidado com a exatidão
científica. Ele toma por verdade absoluta, porque é científico e tal, verdade
absoluta, exatidão, mas toda pesquisa pode ser refutada, cuidado que tem que
ter.
Professor/pesquisador: Temos que fugir da ideia da pesquisa pronta e acabada.
Divulga a pesquisa e aquilo acabou. Aquilo sempre vai estar em aberto para ser
refutado. Como jornalistas temos que passar a ideia da ciência como processo.
Nunca colocar um ponto final.
83
embates entre cientistas e jornalistas de que trata o texto de Peters (2005) que os alunos leram.
Para ele, esse conflito acontece também em outras editorias do jornalismo, como tinha exposto
nas duas aulas anteriores. Para esse estudante, o jornalismo cultural cobre as pautas culturais de
maneira superficial, da mesma forma como a ciência é tratada pelo jornalismo científico. Essa
identificação entre editorias do jornalismo foi ressaltada por mim em diversas vezes na disciplina
e foi condição de produção para esse posicionamento.
A fala desse estudante reforça o pressuposto que não há uma grande especificidade no
jornalismo científico, já que os mesmos problemas referentes a este ocorrem também em outras
editorias, como, no exemplo desse estudante, no jornalismo cultural. A limitação do jornalismo
em cobrir só a agenda dos artistas, só quando um espetáculo acontece, pode ser imaginada
também no jornalismo científico, no qual só uma parte da ciência, os resultados, é digna de
merecer um tratamento jornalístico. Com base na fala desse estudante, há uma forte correlação
entre os shows e os resultados da ciência. No caso do jornalismo cultural, nenhum jornalista
aprofunda no processo criativo dos artistas, esperando que um evento aconteça. No jornalismo
científico, nenhum jornalista aprofunda nos processos da ciência, esperando que os resultados
sejam publicados nos periódicos internacionais. Na minha fala, propus que o jornalista vivencie
84
um pouco a experiência dos artistas e o seu momento criativo, indo além só dos eventos. Do
mesmo modo que na unidade de ensino propus que o jornalista vivencie um pouco a experiência
dos cientistas e os processos da ciência, indo além dos resultados.
Continuando a discussão, mais uma vez não vendo diferenças entre as editorias, o
estudante se preocupou com os conflitos entre jornalistas e fontes, já que nunca é possível
elaborar um texto baseado em uma entrevista que seja 100% fidedigno ao que a fonte falou, o que
gera grandes embates. Para o estudante, o texto de Peters ajuda a superar esse embate ao propor
um diálogo entre jornalistas e cientistas que tente suprir, o máximo possível, as expectativas de
ambos.
Explorando os embates entre jornalistas e cientistas, expus aos alunos as diferenças entre
os modos de funcionamento das práticas do jornalismo e da ciência. A comunidade científica não
vê com bons olhos cientistas que divulgam seus resultados através de jornalistas antes do artigo
ser aprovado pelo periódico. Entretanto, para a prática jornalística, quanto mais rápido aquilo for
publicado melhor, já que pode se tratar do que os jornalistas chamam de “furo”. Comentei que
alguns periódicos científicos cancelam a avaliação de artigos que os resultados foram divulgados
em jornais e sites de notícia, o que ocasiona problemas profissionais para os cientistas, já que
estes dependem do número de artigos publicados para conseguir financiamento para as pesquisas
e aumentar o “status” acadêmico. Citei a polêmica do Miguel Nicolelis, que afirmou adotar a
política do “meio a meio”. Para o neurocientista, uma parte das pesquisas será divulgada através
de jornalistas e outra parte atenderá os trâmites acadêmicos de avaliação. Com a polêmica em
curso, questionei os alunos o que eles fariam nessa situação:
19 A pausa na fala deveu-se a minha própria reflexão que seria impossível uma ratificação 100% só porque uma
pesquisa foi publicada nos periódicos.
85
ganhar o prêmio Nobel, eu se fosse o jornalista preferiria acompanhar a
pesquisa dele e anunciar isso como um texto jornalístico, mas em algum
momento enfatizar que está ainda em processo de revisão por pares. Soltaria a
notícia.
Estudante A: Não daria o furo se fosse em reportagem ou notícia, mas
colocaria facilmente dentro de uma entrevista, daí eu coloco nas falas dele
aquela informação, que eu acho mais interessante, dou um título com a fala
dele, para deixar bem claro que a responsabilidade do que está sendo
informado, é do cientista, nesse caso não tem nem como ele confirmar nem eu
apurar, acho que daria ênfase que as falas são deles.
Estudante B: Eu faria em qualquer formato, é aquela questão de processo que
estávamos falando anteriormente, deixar claro que a ciência é um processo,
depende do momento que ela estava pode ser noticiada, faria em qualquer
formato, o cuidado que você tem que ter é na descrição, não colocar isso
espetacularizado, uma descoberta...
Estudante A sussurra algo para Estudante B que acha importante dizer em voz
alta.
Estudante B: Ele disse: “tenho medo de divulgar nesse momento”.
Estudante A: Depois se der errado, alguém contesta...
Estudante B: Você faz outra falando que contestaram. É a essência. É da
maneira como você escreve.
Devido ao fato dos alunos não responderem, dado o silêncio de 30 segundos, eu mesmo
tomei a questão e assumi o posicionamento. O que foi positivo, já que com isso dois alunos
entraram no debate e trouxeram muito mais do que simplesmente dizer se soltariam ou não a
notícia, mas me ajudaram a compreender o imaginário desses estudantes com relação ao discurso
científico. A fala do estudante A reforça a ideia da objetividade enquanto instrumento para tirar a
responsabilidade do jornalista quando ele lida com assuntos polêmicos e sujeitos a retratação das
fontes. Colocar “dentro de uma entrevista” (aqui possivelmente no estilo “pergunta-resposta”) e
não em uma reportagem faz com que a responsabilidade sobre a questão se refira única e
exclusivamente ao cientista que está sendo entrevistado. O uso de citações diretas, inclusive no
título, que o aluno defende serve para tirar a responsabilidade do jornalista.
Essas falas são relevantes para se compreender como os jornalistas lidam com o processo
da atividade científica. O estudante B possui um imaginário da ciência enquanto processo. Já o
estudante A possui um imaginário da ciência enquanto acumulação de resultados prontos e
acabados. Os dois alunos estavam sentados lado a lado e extrapolaram a discussão entre eles. Já
que o estudante A acredita na ciência enquanto resultados definitivos, ele daria a notícia só
quando a pesquisa tivesse passado pelo crivo dos pares e assim se tornasse a verdade universal
86
absoluta, sem nenhuma possibilidade de refutação posterior que colocasse o meio de
comunicação, e a sua carreira de jornalista, em crise. O estudante B discorda dele, já que a
essência da ciência é a contestação, sendo parte do processo da ciência. Ele comenta que o
jornalista deve “deixar claro” que a ciência é um processo.
O estudante B aponta para um problema que merece uma análise mais cuidadosa, com o
objetivo de se analisar as possibilidades da cobertura dos processos da ciência pela mídia. Ele, de
maneira implícita a sua fala e não consciente para ele, mostra que o problema do meio de
comunicação ficar sem credibilidade após a refutação de determinada pesquisa está na maneira
como ele divulga, de forma espetacularizada e de descoberta. Por exemplo: “Tal cientista
descobriu uma coisa revolucionária etc.”. Quando essa pesquisa é por ventura refutada, a mídia e
o jornalista que divulgou perderiam credibilidade já que apostavam em uma grande descoberta.
Entretanto, se o jornalista criar condições para que os leitores produzam sentidos com relação a
ciência de forma que esta possa ser refutada integralmente ou parcialmente, dando a ideia de
processo, caso ela venha a ser refutada, o jornalista e a mídia não cairiam em descrença. Porém, a
mídia procura expor as coisas de maneira sensacionalista para aumentar as vendas do seu
produto, fazendo mais sentido apresentar a ciência espetacularizada. Tal característica da mídia
proporciona condições para compreender o posicionamento cauteloso do estudante A.
Pelo diálogo entre esses dois estudantes pude concluir que os sentidos que eles
produziram na unidade de ensino foi diverso e por vezes contraditório. Se por um lado o
estudante B pareceu produzir sentidos coerentes com a proposta da unidade de ensino, com as
minhas mediações e com os textos lidos, o estudante A pareceu imaginar muitos obstáculos para
um posicionamento coerente com a unidade pelo imaginário da prática jornalística tradicional
que vigora nos meios de comunicação. Entretanto, apesar da resistência do estudante A, a unidade
favoreceu condições para que ele refletisse sobre a prática jornalística tradicional, o que não seria
possível em um ensino de jornalismo que reforçasse essa prática tradicional, na qual não haveria
espaço para discussão.
Nessa aula houve mais discussões do que nas duas aulas anteriores. O aspecto dialógico
da aula proporcionou condições para o posicionamento dos estudantes quando foram requisitados
a responder questões polêmicas elaboradas por mim enquanto professor/pesquisador. Apesar do
desconforto de alguns alunos na parte dialógica (como registrada na câmera), já que eles
87
geralmente esperam ficar em uma posição passiva na qual só o professor fala, esse tipo de aula
criou melhores condições para o levantamento de dados para esta tese e para o aprendizado de
professor e estudantes sobre o jornalismo científico.
88
Professor/pesquisador: Quando você tem experiência daquilo, você também
consegue detectar as mudanças, você só consegue detectar mudanças ao longo
dos fenômenos da história, dos acontecimentos, você só detecta mudanças a
partir da nossa experiência também, além do filtro que você (estudante)
colocou, a gente também consegue ficar mais acurado e detectar essas
mudanças. Mas a técnica é igual para nós todos.
Nesse diálogo, novamente toquei no ponto crucial para a prática jornalística que é a ilusão
da imparcialidade e neutralidade do jornalista perante os fatos, que supostamente procura a
objetividade total dos acontecimentos. Os textos de Ijuim e Charaudeau questionam essa prática
ao defenderem que os jornalistas devem, sim, utilizar a própria experiência para se posicionarem
perante o que chamam de fatos. Para Charaudeau, partindo do acontecimento, o jornalista
interpreta e analisa em função de sua própria experiência, de sua própria racionalidade, de sua
própria cultura, tudo isso combinado com as técnicas próprias a seu ofício (2010, p. 156). Já o
imaginário consolidado da profissão pressupõe que o jornalista não interprete com a própria
experiência, mas que deixem os fatos dizerem por si próprios, o que é uma situação absurda para
a análise de discurso, tanto para Michel Pêcheux quanto para Patrick Charaudeau. O estudante
conseguiu notar esse absurdo, o que foi o objetivo da unidade de ensino. Apesar das diferenças
teóricas entre a análise de discurso desenvolvida por Michel Pêcheux que embasa as análises
desta pesquisa e da análise de discurso de Patrick Charaudeau, que um fragmento de sua obra
sobre a mídia foi utilizada na unidade de ensino, o texto de Charaudeau foi condição de produção
para a rejeição desses estudantes em considerarem que o jornalista seria um profissional
absolutamente imparcial e neutro perante os fatos, o que é requisitado pelos manuais de redação
dos jornais e sites brasileiros. Durante a fala, ressaltei que com essa experiência adquirida a partir
do aprofundamento no assunto que se está noticiando, o produto jornalístico resultaria em um
texto também aprofundado, já que as mudanças no tempo seriam detectadas e trabalhadas pelo
jornalista. A detecção das mudanças no tempo proporcionariam condições para o trabalho com os
processos da ciência, o que é um dos objetivos desta pesquisa.
Após a apresentação dos dois textos, exibi o vídeo Eta Carinae: além do eclipse
produzido pela revista Pesquisa Fapesp. O vídeo tem duração de 10 minutos e foi escolhido por
conter elementos narrativos que foi apresentado nos textos de Charaudeau e Ijuim. Logo após a
exibição, questionei os alunos:
89
Professor/pesquisador: Vocês conseguiram ver os elementos narrativos dessa
história? Ele falou primeiro do envolvimento dele com aquela estrela. Tinha 20
anos, astrônomo vive muito... mostra questões históricas, viu aquele fenômeno e
depois foi para revisões bibliográficas, porões de observatório. Todo momento
ele está narrando, lembrando coisas que foram importantes para construir o
que se conhece hoje sobre esse astro. E depois o fechamento da narrativa, que é
você tentar prever as consequências para o futuro, essa estrela pode explodir a
qualquer momento ou milhões de anos.
Estudante: Parece que foi combinado com o professor. Parece ele não cita, dos
efeitos, o ano, aquela coisa chata. Ela conta de um jeito que fica tão gostoso. É
o que você falou, nos textos, meio que um contador de histórias mesmo. A gente
abraça, acolhe, o fechamento ele leva no bom humor. Um contador, de alguma
maneira, parece que ele foi direcionado, faça dessa maneira.
Professor/pesquisador: Há uma equipe de jornalistas, que deve ter instruído ele
a fazer isso e ele já tem um histórico forte com divulgação científica, ele tem
uma naturalidade para falar. Então são as duas coisas, essa equipe de
jornalistas que estava com ele e ele tem esse lado de contador de histórias. Não
foi uma coisa que o jornalista entrou no meio e fez passagem e tal.
A minha pergunta: “Vocês conseguiram ver os elementos narrativos da história?” teve por
objetivo fazer com que os alunos refletissem sobre as mudanças na trajetória da pesquisa
desenvolvida por Damineli durante o tempo em que pesquisou (e ainda pesquisa) a estrela Eta
Carinae. Com essa percepção dos elementos narrativos, tive por objetivo proporcionar condições
para que os alunos notassem os processos da ciência, o que fica mais fácil de visualizar com os
elementos narrativos do discurso de Damineli. O estudante ressaltou também a maneira mais
prazerosa de se abordar a ciência utilizando esse viés narrativo. Ao comentar que “pareceu que
foi combinado”, fiz a ressalva que, apesar de só a fala de Damineli aparecer no vídeo, uma equipe
de jornalistas deve ter instruído ele a fazer isso, já que a linguagem tradicional de televisão é a já
batida fala gravada do jornalista, passagem (quando ele fala no local do acontecimento) com
sonora (quando o entrevistado fala). Assim, a maneira tradicional jornalística, além de não
proporcionar a abordagem dos processos da ciência, também não contribui para o prazer de se
assistir ou ler sobre ciência na mídia.
Apesar dos alunos terem falado pouco, eles foram instados a assumir posicionamentos
sobre narrativa em uma atividade escrita.
Essa atividade não teve caráter avaliativo, o que foi responsável pelos estudantes se
90
expressassem sem a possibilidade da atividade ser levada em consideração para o cálculo da
média final. Era esperado que eles assumissem posicionamentos referente à aula, já que foi
realizada minutos após terem sido apresentados os textos de Charaudeau e Ijuim, além do vídeo
da estrela. Alguns alunos responderam favoravelmente às ideias propostas na aula, até se
baseando em falas minhas. Outros alunos manifestaram desconforto com a ideia de conceber o
jornalismo enquanto narrativa, expondo posicionamentos contrários ao que foi proposto na aula.
Isso ocorreu devido ao fato da proposta de narrativa jornalística desnaturalizar, trazer à tona,
pontos polêmicos do jornalismo que são naturais aos estudantes de jornalismo, como a
objetividade e imparcialidade, além das técnicas que padronizam a escrita jornalística, como o
lide e a pirâmide invertida, na qual os assuntos principais da notícia vêm sempre antes das
informações secundárias.
Certas posições dos estudantes nessa atividade apontam para o desafio em se introduzir
algo inovador no jornalismo. Nesse caso, os estudantes estavam no último ano e, possivelmente,
já teriam construído um imaginário sobre a prática jornalística mais usual, durante três anos de
curso de jornalismo, ou mesmo antes nas suas histórias de vida em que a mídia é concebida pela
sociedade de determinada maneira. Entretanto, também ocorreram casos em que verifiquei a
ocorrência de dificuldades na interpretação da noção do que seria a narrativa. É fato, segundo a
análise de discurso, a que me referi num capítulo deste trabalho, que não podemos esperar uma
interpretação única da leitura de um texto, mas ela também não pode ser qualquer uma. Neste
caso, nos discursos de alguns alunos, notei que a sugestão de leitura dos textos de Charaudeau e
Ijuim e a aula sobre o assunto não foram suficientes para que ocorresse uma interpretação,
semelhante à que esperávamos, da noção de narrativa contida nesses textos, como pude notar nas
duas respostas apresentadas por um aluno:
91
No exemplo que apresentou e ao apontar o cronológico como característica fundamental
da narrativa, o estudante manifesta produções de significados para a narrativa bastante distintas
das que esperava que produzisse ao escolher os textos de Charaudeau e Ijuim para comporem a
atividade. Através dessas respostas, com fortes posicionamentos contrários ao que havíamos
discutido antes, fui checar se se tratava dos alunos que dormiam, não iam nas aulas, não faziam
as atividades ou chegavam atrasados na sala de aula. Surpreendentemente, esse foi o único aluno
que participou de todas as atividades e frequentou as aulas regularmente. Em diversos momentos
discutimos sobre a impossibilidade de narrar um fato independente do ponto de vista do
jornalista, que a compreensão narrativa não precisa necessariamente estar atrelada a cronologia e
que, com base em Ijuim, o uso de adjetivos (que o estudante critica) enriquece a descrição da
narrativa. Pude concluir que, apesar da unidade de ensino ter proporcionado condições para que
alguns alunos superassem as perspectivas tradicionais do jornalismo, para esse estudante a
unidade não foi suficiente para descristalizá-las. Outras estratégias deveriam ser tomadas para
que esse estudante abandonasse a ilusão de que é possível que “os olhos dos jornalistas não
influenciem o texto”. Para esse estudante a perspectiva narrativa para o jornalismo é ainda mais
eficaz para reforçar a neutralidade do jornalista perante os acontecimentos, o que foi o extremo
oposto do que foi trabalhado na unidade de ensino, já que a perspectiva pressupõe os olhos do
jornalista para justamente proporcionar condições para a compreensão além do fato, para as
condições de produção do dito “fato”.
Nas respostas abaixo, os estudantes pareceram ser mais coerentes com a unidade. Vários
deles notaram o papel da narrativa em aprofundar os temas abordados pelo jornalismo, às vezes
usando os mesmos argumentos que usei durante a aula, como a metáfora dos peixes de águas
rasas e de águas profundas:
Nessa resposta podemos notar os vários aspectos que a perspectiva narrativa traria ao
jornalismo, como proporcionar um maior aprofundamento nos temas, enriquecendo em
informações, mas sem esquecer da melhoria na compreensão dos leitores.
92
1) Narrativa, na minha opinião, é a mistura de diversos fatores fundamentais.
Para a narrativa, é necessário a apuração dos fatos, as informações, além
disso, une-se a reflexão e o conhecimento de mundo de quem narra. Em outras
palavras, a narrativa é o relato do locutor mediante o fato, acrescido de seu
conhecimento de mundo, o que causará reações (positivas, negativas ou
indiferentes) dos leitores.
2) A narrativa no Jornalismo é a união do trabalho do repórter (pauta,
apuração, fontes, entrevistas) aliado à sua perspectiva do mundo, sua visão dos
fatos e da sociedade. Em uma boa narrativa jornalística, não necessariamente
deve-se seguir o padrão da “imparcialidade”, afinal, em toda e qualquer ideia
pessoal existe influência ou palavras de outros, o que, necessariamente, tira a
imparcialidade da narrativa.
Nessa resposta podemos notar o caráter controverso da perspectiva narrativa, já que essa
colide com o ideal da imparcialidade que o discurso jornalístico propõe. Apesar de negar a
possibilidade da imparcialidade, esta parece ser uma preocupação desse estudante, já que ao se
preocupar em negar você pressupõe que a imparcialidade estaria presente na prática jornalística
corrente. Ao afirmar que a narrativa no jornalismo seria a união do trabalho do repórter aliado a
sua perspectiva do mundo, poderíamos supor que para ele haveria o trabalho do repórter que não
alie a sua perspectiva do mundo. Ele pareceu realizar o caminho que a narrativa romperia a
barreira da neutralidade do jornalista perante os fatos, o que foi o objetivo da unidade de ensino.
A humanização dos textos jornalísticos e sua perspectiva narrativa foram mencionadas por
um dos estudantes:
Esse estudante pareceu ter realizado um trabalho de relacionamento com o texto de Jorge
Ijuim lido para a aula e discutida momentos antes, assumindo os mesmos posicionamentos desse
autor relativo a narrativa jornalística: humanizar os textos e suscitar emoções à audiência. Outro
estudante pareceu fazer o mesmo exercício: “Uma narrativa busca usar detalhes para descrever a
situação, utiliza personagens para humanizar a notícia, além de transformar a notícia em uma
história”. Para esses estudantes, a unidade de ensino pareceu ter sido levada em consideração nos
posicionamentos assumidos por eles, com respostas coerentes com o discutido em sala de aula e
com os textos propostos.
93
Deixar o texto mais atrativo foi outro papel da narrativa jornalística, como defendido por
um dos estudantes:
1) Para explicar o que é uma narrativa, iria utilizar exemplos como as próprias
histórias, contar cada detalhe do que acontece e exemplificar que narrar um
fato, contar uma história, um acontecimento do seu ponto de vista é uma
narrativa.
2) Para adicionar o texto narrativo e explicar para os colegas de profissão o
que é, tentaria convencer com argumentos de que para o jornalismo o texto
literário torna mais interessante e atrativo a informação. Fazer narrativas
detalhando o que se vê e tentando captar com os 5 sentidos o que é ambientar o
leitor com a notícia. Isso faz transmitir de maneira mais clara e pode tornar o
que é corriqueiro em algo mais interessante.
4) Com base na leitura do texto, destaque trechos nos quais o autor se utilizou de
características narrativas na divulgação do novo observatório chileno.
94
jornalismo, narrativa e processos da ciência no jornalismo científico, o que é o objetivo principal
da unidade de ensino e desta pesquisa. Notei que vários deles enumeraram diversas relações entre
narrativa jornalística e processos da ciência, o que, na minha perspectiva, abriria a possibilidade
para o trabalho com os processos da ciência através da noção de narrativa jornalística outras
vezes que a disciplina Jornalismo científico – ou alguma outra disciplina que trabalhe com a
abordagem da ciência – fosse oferecida.
Como o primeiro objetivo da pesquisa foi compreender o funcionamento de uma unidade
de ensino sobre aspectos teóricos e práticos do jornalismo científico em que sejam abordados
processos da ciência, julguei a relevância em classificar como a abordagem do jornalismo, visto
através do viés narrativo, acarretaria na maior possibilidade em se abordar os processos da
ciência.
A maioria das respostas a primeira questão assumiu que é difícil divulgar a ciência para
um público amplo através do jornalismo, sendo que o viés narrativo para o jornalismo poderia
auxiliar nesse trabalho de circulação da ciência na sociedade. Muitos alunos lembraram dos
termos técnicos que poderiam ser explicados pela narrativa e muitos deles usaram o conceito de
“tradução”, como nos moldes de Althier-Revuz, para compreender o papel do jornalismo
científico. Bastaria ao jornalista traduzir o discurso científico para o discurso jornalístico. Apesar
de termos discutido em sala de aula que o papel do jornalista não é o de um mero tradutor, muitos
estudantes mantiveram esse posicionamento na avaliação.
95
ela, combatendo, inclusive, a possibilidade de que ela se sirva de “sensacionalismos” e
“bizarrices” com intuito de maior audiência. Por “tradução” o estudante compreende que os fatos
difusos não propiciam o entendimento para os leitores, da mesma maneira que uma língua
estrangeira não é compreendida por pessoas que não dominam essa língua. O jornalista deveria
assim trabalhar para “traduzir” os fatos transformando-os em uma narrativa e, só assim, os
leitores iriam compreender o que se está divulgando. O que é relevante para os propósitos desta
pesquisa é que esse estudante trocou a palavra narrativa por processo, possivelmente
estabelecendo uma relação entre a busca pelo processo dos fatos e o encadeamento desses fatos
na transformação de uma narrativa.
Ao afirmar que “a finalidade ou consequência não completam sozinhas a narrativa
jornalística” para esse estudante o jornalismo em geral se ocupa das consequências, do impacto
que tal fato irá repercutir na sociedade. O jornalismo científico seria caracterizado pelos mesmos
aspectos, a perspectiva teleológica da ciência na qual os processos seriam esquecidos e só os
resultados de sucesso mereceriam receber um tratamento jornalístico. Esse posicionamento pode
estar relacionado com o trecho do texto de Cascais que fez parte da avaliação. Para esse
estudante, a finalidade, os resultados, não se caracterizariam por uma narrativa, sendo que, para
construir uma narrativa, os processos da ciência deveriam ser mobilizados pelo jornalista.
Novamente o estudante insiste na ideia de tradução, ao afirmar que o jornalismo científico
necessita “traduzir” a linguagem dos especialistas. Essa tradução é um desafio para os jornalistas,
porque eles devem proporcionar a compreensão do fato e considerarem a pesquisa científica
como processo ao invés de meros resultados. Essa tradução pode estar relacionada à circulação da
ciência na sociedade que o jornalismo propõe e, nesse percurso de tradução, os processos da
ciência poderiam ser abordados, o que foi o objetivo da unidade de ensino.
Também podemos notar no encerramento da resposta uma relação do jornalismo enquanto
produto mercadológico, já que a notícia é vista como um produto que deve objetivar o ganho de
audiências para o efetivo consumo do público. A narrativa e a abordagem dos processos da
ciência, para esse estudante, não devem se desgarrar do objetivo maior do jornalismo que é
ganhar audiências.
O papel do jornalista enquanto tradutor apareceu em várias respostas: “Em suma, o
jornalismo seria tradutor desse complexo idioma usado pelos especialistas, não só na ciência, mas
96
em outras áreas como por exemplo: a economia. O jornalismo científico elimina o
‘cientifiquês’.”; “As palavras usadas no meio científico fogem ao entendimento de uma pessoa
não ligada a esta área. Cabe ao jornalista ‘traduzir’ tais ideias e torná-las atrativas ao público”. “O
uso da narrativa e da poética, defendidas por Ijuim e discutidos por Charaudeau é uma ferramenta
utilizada por jornalistas para a produção de pautas científicas, com a justificativa de simplificar e
traduzir a linguagem científica para o entendimento do público-geral”. Muitas outras respostas
insistem no papel “tradutor” do jornalista, o que é coerente com as abordagens tradicionais do
jornalismo, que vê no jornalista apenas como um “veículo”, um ser transparente com linguagem
também transparente, que “transpõe” discursos de uma esfera, seja criminal, política, economia
para os produtos jornalísticos. Essa foi uma das falhas da unidade de ensino, já que o jornalista
não é um mero tradutor, mas um sujeito que produz um discurso relativo à ciência com público-
alvo e motivações distintas de um cientista que produz artigos para periódicos. Discutimos isso
na disciplina, mas faltou enfatizar mais essa posição e apresentar textos que pudessem discutir
isso com mais profundidade.
Não só o papel de tradutor da ciência foi ressaltado pelos alunos de jornalismo nas
respostas à questão um da avaliação. Na resposta do estudante transcrita abaixo, há um inter-
relacionamento dos textos de Ijuim e Charaudeau:
Assim, não bastaria apenas utilizar recursos linguísticos, como figuras de linguagem, para
enriquecer a narrativa jornalística, mas buscar o contexto daquela ciência junto a sociedade como
defende Charaudeau. Os dois argumentos se complementam na busca em compreender o
jornalismo enquanto expressão narrativa e sua relação com o jornalismo científico.
Contextualizar o fato também foi lembrado por outro estudante:
97
além do trivial, do que é feito massivamente pelos veículos de mídia. É preciso
ir além do urgente, do imediato para abordar o importante. O jornalista precisa
ir além da simples divulgação de pesquisas científicas, oferecendo ao público,
especializado ou não, uma visão global, contextualizada do fato (da pesquisa,
descoberta científica), oferecendo a ele a oportunidade de refletir e de ser
verdadeiramente influenciado – ou provocado, pela narrativa.20
Jornalismo lida com histórias, e diferente da ficção, que devem ser transmitidas
de maneira fiel e verossímil ao fato. Uma pauta de jornalismo científico que
pode parecer complexa ou sem atrativos, quando contextualizada, colocada
dentro de uma narrativa (causas e consequências) e escrita de modo a causar
identificação com o público, é mais fácil de ser absorvida pelo público.
Sabemos que todo processo de comunicação é motivado tanto pelo emissor
quanto pelo receptor. Quem comunica tem uma motivação, assim como quem
recebe a mensagem. A motivação do cientista pode ser tanto promover suas
pesquisas quanto instruir o público; o jornalista tem o objetivo de tornar a
mensagem atraente aos leitores.
O começo de sua resposta pode ser remetido a consideração de Allan (2002) que a ciência
normalmente é considerada pouco interessante já que falta-lhe o drama necessário para animar as
manchetes de jornais e sites. Assim, a ciência considerada complexa e sem atrativos pode ser
transformada em uma narrativa para causar identificação do público. Podemos notar que esse
estudante acredita na motivação dos jornalistas e cientistas na comunicação, sendo uma
motivação não neutra, já que o cientista pode procurar a mídia em busca de promoção das suas
pesquisas. Entretanto, apesar do posicionamento crítico desse estudante, o que aconteceu poucas
vezes com outros alunos, o papel do jornalista ficaria bem reduzido ao ficar restrito a deixar a
“mensagem atraente”. Ao jornalista, para esse aluno, só competiria deixar o texto bonito e não
98
uma atitude crítica em relação a ciência, como a busca dos processos da ciência e das
controvérsias que podem propiciar o debate nas relações entre ciência e sociedade.
Outro estudante também viu a forte relação entre o jornalismo científico e a proposta
narrativa para o jornalismo:
Para esse estudante, com base no trecho do texto de Charaudeau, o jornalista que se vale
da narrativa pode ir além dos fatos, buscando as causas e consequências daquele fato. Pensando o
jornalismo científico, esse estudante faz um exercício de historicidade ao relacionar o texto que
fica estritamente no fato ser relacionado só aos resultados da ciência, sendo que o jornalista
poderia ir além dos fatos e resultados da ciência para buscar as intenções da pesquisa científica, o
que tem a ver com os processos. Com a resposta, posso concluir que a unidade de ensino cumpriu
o objetivo em apresentar os processos da ciência, indo além só dos resultados, ao abordar o
jornalismo enquanto expressão narrativa da contemporaneidade, que foi o objetivo desta
pesquisa. A unidade de ensino funcionou junto aos estudantes no sentido de fazer com que eles
vissem o jornalismo científico muito além dos resultados. Entretanto, para alguns alunos, como
na resposta transcrita abaixo, a perspectiva tradicional permaneceu.
Aqui o tradicional é mantido porque o jornalista só em casos raros poderia refletir sobre a
99
ciência, sendo que na maioria das vezes ele só levaria em conta o discurso científico, já que esse
seria imbuído de autoridade. Entretanto, apesar de manter as ideias tradicionais no jornalismo, o
uso de parênteses para dizer que a precisão seria inalcançável, esse estudante pareceu repensar o
seu posicionamento tradicional referente à prática jornalística. Assim, nas respostas a primeira
questão da avaliação, houve respostas que pareceram coerentes com a unidade de ensino, como a
busca de ir além dos fatos e resultados da ciência para abordar o contexto em que os fatos
ocorrem e com isso tratar dos processos da ciência e respostas não coerentes com a unidade,
porém válidas para a compreensão de como os estudantes produziram sentidos quando leram
textos em que as condições de produção da ciência foram abordadas. As respostas não coerentes
com a unidade, como o papel neutro do jornalista, sem poder refletir e um mero tradutor da
ciência para deixá-lo pronto para ser consumido pela audiência se relacionam a várias décadas de
formulação do discurso jornalístico. De modo inconsciente, e assim relacionado a ideologia que é
condição para a constituição de si como sujeito que assume discursos, os alunos reproduziram
posicionamentos que começaram a ser defendidos no fim do século XIX e persistem no presente,
quando o jornalismo assumiu o ideal positivista de neutralidade e isenção perante os
acontecimentos.
Tive por objetivo nessa questão levantar possíveis posicionamentos dos alunos sobre
como ir além da perspectiva tradicional no jornalismo e instá-los em um assunto polêmico, já que
o próprio texto de Ijuim lembra que, nos moldes tradicionais, a atividade informativa aponta mais
para o efêmero, o passageiro, o circunstancial. O jornalismo em geral nega recursos literários
como as figuras de linguagem em busca da já dita objetividade. Ao ler um texto que, sim,
recursos literários podem ser usados em textos jornalísticos, era esperado que os alunos
refletissem sobre a prática jornalística atual.
Nessa questão, no geral, os alunos consideraram a tradução de termos técnicos e facilitar a
leitura de assuntos difíceis como a finalidade principal da utilização de figuras de linguagem no
jornalismo. Como nas respostas: “As figuras de linguagem, segundo Ijuim, são utilizadas pelos
jornalistas para tornar compreensíveis os idiomas dos especialistas”. “Elucidar, esclarecer,
emocionar e provocar. Podendo ir além do que é urgente, abordando o que realmente importa em
100
busca do essencial humano”. “As figuras de linguagem tornam o texto científico algo mais suave
e gostoso de ler, mas sem deixar de esclarecer as informações necessárias. Deixando o texto mais
‘redondo’ e interessante de ler”. “As figuras de linguagem podem ser utilizadas segundo Ijuim
para o enriquecimento da narrativa facilitando a compreensão do texto e criando uma conexão
entre o real e o poético.”. Esses estudantes cumpriram o que era esperado como resposta a essa
questão, já que Ijuim propõe que as figuras de linguagem não serviriam apenas para deixar o
texto esteticamente bonito, mas para proporcionar a compreensão do que está sendo tratado. Indo
além do que é urgente, poderia fazer com que os alunos imaginassem a ciência além dos
resultados, já que a busca do urgente se esquece dos processos da ciência. Na resposta abaixo, o
estudante reforça a ideia do autor de fuga do estético:
Na resposta do estudante abaixo, podemos notar que ele vai além de simplesmente afirmar
que as figuras de linguagem auxiliam na compreensão do texto que o texto de Ijuim já aponta,
mas realiza um exercício de crítica:
101
fluidez literária. Novamente, este é um meio pelo qual jargões e linguagens
especialistas se transformam em algo palatável e compreensível à grande
massa, além de transcenderem a tradicional forma de construção do texto
jornalístico.
102
contato com temas científicos, especialmente para aqueles que já saíram da escola e optaram por
carreiras não ligadas à ciência e a tecnologia diretamente.
Apesar de sugerir uso de narrativas ricas em elucidação, esclarecimento, emoção e
provocação, Ijuim rejeita o sensacionalismo, já que os jornalistas citados por ele “conquistam
audiências não só através de apelos sensacionalistas ou dramalhões do ‘mundo cão’, mas pela
inteligência e lucidez do bom uso da linguagem – comum à literatura e ao jornalismo, comum ao
real e ao poético” (p. 125). Foi o que lembrou um dos alunos:
Para esse estudante, o uso das figuras de linguagem faz que o jornalismo aborde além do
estritamente factual, humaniza as notícias ao transformar as pessoas em personagens e provoca
reações no leitor. Ele também reforçou a ideia que o uso desses recursos literários não poderia ser
de maneira sensacionalista, o que vários meios de comunicação fazem para conquistar audiências
a todo custo.
Neste item resumi as respostas dadas pelos estudantes a questão 3 da avaliação. Era
esperado que os estudantes notassem o problema em se deter só nos resultados da prática
científica com base no texto de Cascais e vissem a possibilidade em resolver esse problema com
o auxílio do viés narrativo para o jornalismo proposto por Charaudeau e Ijuim. Detive-me
também em como os alunos viram a possibilidade em escapar da mitologia dos resultados,
proposta por Antônio Cascais, através da noção de narrativa jornalística.
Escolhi a justificativa mais proeminente dos 22 alunos, dos 32 que fizeram a prova, que
conseguiram estabelecer as relações entre jornalismo narrativa e processos da ciência sobre o que
103
eles acreditam que o viés narrativo para o jornalismo científico poderia proporcionar condições
para o trabalho com os processos da ciência no jornalismo ou para melhoria do jornalismo em
geral. Cada afirmação corresponde a uma resposta. Os resultados seguem abaixo:
As justificativas dadas pelos estudantes para a utilização do viés narrativo proposto para o
jornalismo científico foram bem diversificadas. Muitos veem a possibilidade em abordar mais
claramente o universo científico, que, às vezes, é muito árido para o leitor leigo, como dito por
Ijuim no trecho lido pelos alunos e trabalhado por mim em sala de aula. Como na resposta
abaixo:
104
assuntos densos para linguagem clara e atrativa. Cascais confirma isto em sua
obra, ressaltando que, mesmo prevalecendo a mídia convencional, baseada na
mitologia dos resultados, na última década uma cobertura mais abrangente,
justa, menos focada em grandes resultados práticos, tem contemplado a ciência
e seus especialistas.
Esse estudante utilizou o dizer de Cascais, como no trecho, “em que a cobertura
jornalística se baseia em resultados e que ignora a ciência como processo”, mas se inscreveu em
outro discurso advindo do texto A interação entre jornalistas e especialistas científicos:
cooperação e conflito entre duas culturas profissionais, de Hans Peter Peters, que fez parte da
unidade de ensino, quando ele mencionou o hiato entre jornalistas e cientistas. Quando o
estudante defendeu que o viés narrativo proporciona “traduzir assuntos densos para linguagem
clara e atrativa”, podemos remeter esse discurso ao trecho de Jorge Ijuim e aos diálogos que
tivemos em sala de aula. O trecho de Ijuim reproduzido na avaliação também propõe a utilização
da narrativa para abordar assuntos densos: “As proposições desses escritores-jornalistas visam a
oferecer narrativas ricas em elucidação, esclarecimento, emoção, provocação. Em muitos casos, é
a maneira de tornar compreensíveis os indecifráveis idiomas dos especialistas” (IJUIM, 2010, p.
125). Assim, esse estudante utilizou os textos de Cascais e Ijuim, reproduzidos na avaliação, para
formular a sua resposta, mas utilizou sua memória discursiva ao lembrar o conflito entre as duas
profissões, proposto por Peters e as intervenções do professor/pesquisador sobre a utilização da
narrativa ocorridas em sala de aula.
Alguns alunos fizeram a relação entre narrativa jornalística e processos da ciência
evocando o papel do jornalista de chamar a atenção do público. Essa justificativa pode ser
encontrada nos exemplos:
O jornalismo científico precisa mostrar além dos resultados. Para deixar de ser
tão simplista, o jornalismo tem que achar formas de publicar além disso. Vale
então o esforço em chamar atenção do leitor. E muito mais do que chamar
atenção, manter o leitor interessado de uma maneira simples, mas não
reducionista. Uma dessas formas é através da narrativa, usando figuras de
linguagem não para enfeitar o texto, mas para de fato, elucidar o leitor.
105
Esses dois alunos conseguiram cumprir a relação proposta, já que assumiram o
posicionamento que vê como problema o foco exclusivo do jornalismo científico aos resultados
da ciência e consideraram o conceito de narrativa jornalística como um meio para se abordar os
processos da ciência. Podemos remeter esse posicionamento ao que foi discutido em aula, já que
reforcei a ideia de Ijuim que as narrativas não serviriam para “enfeitar” o texto de jornalismo
científico, mas com o intuito de proporcionar uma maior compreensão do que está sendo
divulgado, como na minha fala durante a aula:
Dentre as características de um texto jornalístico com caráter narrativo que podem ser
úteis para a abordagem dos processos da ciência está na descrição das intenções, objetos e
construir um cenário para aquele resultado da ciência que está sendo noticiado. Outro estudante
reforçou a importância em criar um ambiente para o leitor. Possivelmente com o objetivo de
inserir o leitor dentro do texto para que ele dê sentido para aquilo que está sendo divulgado.
106
Utilizando-se da narrativa, o jornalismo científico escaparia da “mitologia dos
resultados” no momento em que criaria um ambiente ao leitor. Expor a
pesquisa apenas pelo seu resultado, sem o uso da narração, criaria uma
barreira entre o jornalista, o pesquisador e o público, onde o público poderia
não entender os demais aspectos e a importância da pesquisa.
Assim, para esse estudante, a narrativa serviria para aumentar a precisão dos textos e
traduzir conceitos científicos difíceis de serem entendidos para um público amplo. Apesar de não
usar o termo “tradução” dos termos científicos, mencionei várias vezes em sala de aula a
melhoria da compreensibilidade dos textos jornalísticos a partir do viés narrativo.
Esse estudante também entrou na controvérsia dos limites entre divulgação científica e
jornalismo científico. Ele recusou a ideia de que o jornalismo pudesse ser uma forma de
divulgação, já que a divulgação simplesmente reproduz o discurso da ciência sem propiciar o
entendimento e sem questionar a ciência. O jornalismo poderia cobrir os fatos científicos dando a
ideia de processo para a atividade científica e a narrativa poderia ser uma aliada nesse caminho
de tornar a ciência menos superficial, ao mostrar o contexto do dito acontecimento, como
proposta pela unidade de ensino.
Outro estudante também defendeu o uso da narrativa para proporcionar uma linguagem
mais acessível ao grande público.
107
O aperfeiçoamento das técnicas narrativas no jornalismo científico permite a
descrição dos processos utilizados em toda as pesquisas científicas de forma
mais clara e sem a utilização de tantos termos específicos, em uma linguagem
mais acessível. Até mesmo os erros produtivos seriam mais agradáveis de serem
explicados em uma linguagem mais suave. A narrativa não seria mais tão
objetiva, tendo seu caráter interpretativo acentuado.
Ao dizer que a narrativa “não seria mais tão objetiva”, aparentemente esse estudante
defendeu que todo texto jornalístico é uma forma de narrativa, sendo que reproduz um dos mitos
do jornalismo “interpretativo”. As matérias não teriam interpretação já que seriam simples
respostas a estrutura do lide (respostas as questões: O que? Quem? Quando? Onde? Como? Por
que?) e outras matérias, como no gênero reportagem, teriam interpretação, já que se
preocupariam em ir além da estrutura do lide. Assim, ao se abordar os processos da ciência
através da narrativa, o “jornalismo interpretativo” seria alcançado.
Outro estudante analisou criticamente os motivos dos jornalistas não saírem da “mitologia
dos resultados”:
Esse estudante também conseguiu fazer o relacionamento entre o viés narrativo proposto
como um meio de abordagem dos processos da ciência e depois se preocupou em discorrer sobre
os motivos que o jornalismo científico só se ocuparia dos resultados. Os critérios de
noticiabilidade “atualidade (ou novidade)” e “impacto” foram evocados para a não abordagem
dos processos da ciência, já que estes não correspondem a esses critérios. O fato dos jornalistas
“colocarem a culpa nos receptores da mensagem” não foi explicitamente esclarecido pelo
estudante, mas aqui, aparentemente, se refere ao mecanismo de antecipação dos jornalistas com
108
relação aos leitores, sendo que eles só teriam interesse nos resultados da ciência que geram
impacto. Os critérios de noticiabilidade foram discutidos em sala de aula e podem ter sido
referência na fala desse estudante.
Outro posicionamento desse estudante interessante para a compreensão do discurso do
jornalismo científico está na responsabilidade dos cientistas e das instituições científicas que
focariam exclusivamente nos resultados da ciência e não tanto dos jornalistas. Em um exercício
de historicidade, ele lembrou dos órgãos responsáveis que promovem competições que cobrariam
resultados da prática científica. Os bastidores da comunidade científica foram evocados por esse
estudante, demonstrando que possui um imaginário da ciência que vai muito além dos resultados
e aplicações da ciência. Seu posicionamento foi coerente com a unidade de ensino e permite-me
concluir que a unidade foi responsável pela consciência da ciência enquanto processo que
engloba os vários determinantes que constituem a ciência. As discussões sobre esse aspecto do
jornalismo foram pertinentes para compreender os posicionamentos desses estudantes sobre as
possibilidades de se abordar os processos da ciência no jornalismo.
Alguns estudantes perceberam a narrativa como um meio de alcançar a “totalidade”, um
dos outros mitos que ainda persistem no jornalismo, já que segundo esse mito, haveria a
possibilidade em se abordar “tudo” sobre determinado assunto, todos os lados de uma história.
Pesquisadores em jornalismo, como Karam (1997), defendem que o jornalista deve mostrar tanto
aquilo que “humaniza” quanto aquilo que “desumaniza” o homem. “Deve mostrar tanto a
singularidade do movimento cotidiano dos indivíduos quanto os comportamentos particulares dos
grupos e culturas e a conexão universal entre cada indivíduo e grupo com a totalidade social” (p.
94). Podemos notar a busca de “todos os lados” da história através da narrativa nos três
exemplos:
109
como as tentativas, os erros, as mudanças de plano ou resultados fortuitos.
Seria possível apresentar como se chegou ao resultado, o que poderia agregar
mais valor a informação e, talvez, torná-la mais atrativa ao público do que nos
casos onde só se apresenta os resultados.
Uma matéria produzida com este viés narrativo responderia melhor as questões
que o público em geral poderia ter. Com este tipo de recurso, pode-se da
atenção ao processo que é a atividade científica, dar valor a sua temporalidade
e a problemática da situação. Se preocupando com (nas palavras de
Charaudeau) o “por que é assim?” e o “como é possível?” o jornalista deixa
de 'simplificar' a pauta e passa a ter um esforço mais concreto que leva a
analisar de todos os ângulos o fato. Desta forma, uma pesquisa científica seria
considerada do princípio ao fim, e não apenas seu produto, seus resultados
positivos (em detrimento de resultados inesperados e adversos).
Assim, aqui os alunos veem a narrativa como um meio de alcançar a “totalidade” de uma
história, a busca de todos os lados do fato, o que é uma das recomendações ao trabalho
jornalístico. O mito da totalidade advém da ilusão da completude, na qual “os fatos” seriam
somatórios de pontos de vista, deixando de lado a ideologia que é inerente à linguagem. Apesar
de compartilharem o mito da totalidade, nas três respostas podemos notar que defenderam a
possibilidade de fugir da mitologia dos resultados através da percepção do jornalismo enquanto
narrativa, que foi o objetivo da unidade de ensino.
Além de considerar a opção narrativa como uma opção para tornar a matéria mais
abrangente, dois estudantes assumiram o posicionamento que, ao mostrar os processos da ciência
a partir da narrativa, estes permitiriam a desmistificação da ciência.
110
O verbo desmistificar poderia estar atrelado à busca dos processos da ciência, uma vez
que desmistificar aqui aparentemente tem por sentido retirar o mistério da ciência. Pela
construção da narrativa jornalística pode-se retirar a ideia de que a ciência produz sempre
resultados perfeitos assim aproximando a ciência do público.
Esses estudantes conseguiram fazer relações satisfatórias entre a importância em se
abordar os processos da ciência e viram os problemas em se deter só nos resultados. Eles também
conseguiram apontar como o jornalismo narrativo poderia criar condições para a cobertura dos
processos da ciência, elencando diversos fins que a narrativa poderia oferecer ao jornalismo,
como chamar a atenção dos leitores, alcançar uma suposta totalidade do assunto que está sendo
noticiado, desmistificar a ciência e facilitar o entendimento da ciência para um público amplo. O
problema em só se abordar os resultados e a adoção de um jornalismo com características
narrativas com o objetivo de abordar os processos da ciência foi mencionado por mim em
diversos momentos da disciplina. No começo da aula dedicado ao estudo de aspectos narrativos
no jornalismo, introduzi dizendo:
111
quadrado menor que a unha do polegar. O material entre seus dedos é uma
amostra de grafite ultrapura, que apenas sob certas condições comporta-se
como metal”.
Estudante: A impressão que dá quando leio esse texto, não sei se é frequente,
parece que ele usa um pouco de literatura na forma de escrever, na
padronização do cenário, ele fala “debruçado sobre uma fórmica branca”,
lembra muitas narrativas literárias quando tem esse efeito descritivo, de
natureza, de ação, do que a pessoa está fazendo, isso é comum quando se fala
de ciência ou é só esse aí?
Professor/pesquisador: Nós encontramos muitas notícias com aberturas mais
diretas. Mas alguns jornalistas recebem abertura para isso.
Estudante: Dá impressão que eles querem mexer com a imaginação. Maioria
das publicações da ciência fazem. Nesse tipo de narrativa, parece que eles usam
para funcionar mais, deixar mais interessante, mexer com o imaginário das
pessoas. Tenho essa sensação que é mexer com o imaginário, a descoberta,
como se facilitasse a visualização.
Professor/pesquisador: Facilitar para a pessoa a aridez da ciência. Às vezes a
ciência é muito árida. Você vai falar de átomo por exemplo. Passar uma
imagem menos árida da ciência. É difícil chamar a atenção do leitor para a
ciência, por isso têm essas aberturas mais literárias.
112
texto. A maioria dos alunos grifou as passagens dos trechos no corpo do texto. Um dos alunos
escreveu os trechos, explicou porque considerou como narrativa e tentou justificar a escolha
do jornalista:
A maioria dos estudantes somente grifou frases no texto. Esse estudante, entretanto, foi
além. Considerou a descrição enquanto recurso literário e ponderou se não seria uma tentativa em
chamar o leitor para o texto na abertura, o que foi mencionado por mim durante o primeiro dia de
aula.
Ao defender que o texto tenta “inserir o leitor no dia e local exato em que o fato científico
acontece” e considerar que é uma estratégia para elucidar o assunto que está sendo abordado,
podemos lembrar a nossa discussão sobre ambientação do cenário e que esses recursos não
seriam “adornos inócuos” como expressado por Ijuim, mas têm por objetivo melhorar a
elucidação do que está sendo divulgado.
Esse estudante também aludiu a três figuras de linguagem: metáfora, comparação e
113
paralelismo. Assim, manifestou indícios da compreensão do texto de Jorge Ijuim e foi além ao
listar as figuras de linguagem e buscar exemplos no texto.
Outro estudante também notou a abertura e os recursos descritivos e de comparação:
O autor começa o texto como uma narrativa. O astrônomo com alguns cliques
do mouse, entre um gole e outro de chimarrão, dá as coordenadas no seu
telescópio. Ele também descreve a sala de controle, com seus relógios, “uma
espécie de fuso horário das estrelas”.
Quando o autor faz a descrição dos telescópios ou quando descreve o
funcionamento do “Flames”.
“Transformam a paisagem do norte chileno em um oásis para a astronomia
mundial.”
A comparação com “Guerra nas Estrelas” ou lentes fotográficas.
Além de chamar a atenção para a evocada humanização das fontes, esse estudante
também lembrou da animação do inanimado, uma das figuras de linguagem citadas por Ijuim no
texto lido durante a disciplina, ao identificar a “humanização do próprio equipamento”. Assim
como os outros dois estudantes citados, ele também destacou aspectos descritivos e de
comparação.
Um dos estudantes realizou um exercício de análise no destaque dos trechos do texto. Ele
colocou letras nos parágrafos e a letra correspondente em uma folha de A4 que acompanhou a
avaliação. Na transcrição, troquei as letras pelos parágrafos correspondentes:
114
Primeiro parágrafo: Estabelece uma intimidade com o leitor, que agora está
inserido imageticamente no observatório e vê o cientista como uma pessoa
comum que toma chimarrão. É interessante perceber a ausência de
características olimpianas e maior humanização da fonte. A descrição do
ambiente e da ação não científica da fonte cria expectativa e curiosidade. A
descrição do local é retomada e o leitor compreende como se inicia o trabalho
do cientista com a noção de tempo oferecida.
Segundo parágrafo: Através da ambientação (em continuidade à narrativa) o
jornalista consegue explicar a diferença entre o tempo do leitor e o tempo das
estrelas. O recurso usado é a comparação. É retomada a característica humana
na ação da fonte, que por consequência oferece a ideia de que o resultado não é
imediato. A noção de etapas é estabelecida na narração da pesquisa.
Terceiro parágrafo: Normalmente o fragmento seria excluído de um texto
jornalístico, no entanto, ao ampliar a descrição para o ambiente externo ao
telescópio, a narrativa permite que o leitor se localize e localize onde a
pesquisa é feita.
Quarto parágrafo: Na frase há um esforço de tradução da finalidade do
aparelho científico, sem interromper a narrativa. A finalidade está presente
como parte do texto, não como acessório.
Sexto parágrafo: É retomada a ambientação externa ao telescópio, como
recurso de referencialização, e recurso para explicar de forma traduzida, como
a luz chega e porquê o telescópio foi instalado na localidade.
Oitavo parágrafo: Utilizando o recurso de comparação a uma obra popular de
ficção, é possível estabelecer a ideia de grandeza e da dimensão do telescópio,
mais uma vez justificando o local onde esse último foi instalado.
Nono parágrafo: A explicação do fato e do funcionamento das lentes é
complementada e popularizada pela comparação com as lentes de uma
máquina fotográfica.
Décimo parágrafo: Com a última frase, que normalmente seria excluída de um
texto jornalístico, o autor oferece a ideia de processo a algo finalizado. Explica-
se como se formam as estrelas, mesmo que a informação do fato poderia
encerrar em “galáxias”.
Décimo-primeiro parágrafo: Os dois períodos introduzem a ideia de contexto a
pesquisa realizada no telescópio. Implicitamente está a alocação limitada de
recursos para financiar maior número de pesquisas. Também reforça-se a
importância do projeto brasileiro em meio a tão concorrida seleção. Nestas
justificativas o jornalista justifica sua própria matéria e o porquê de sua
publicação.
115
que só se ocupam com a pesquisa científica e não possuem sentimentos humanos. Os aspectos
descritivos e de comparação, assim como os outros estudantes, também são lembrados na análise
desse aluno.
Quando esse estudante afirmou que “a ideia de que o resultado não é imediato. A noção de
etapas é estabelecida na narração da pesquisa”, reforçou a minha tentativa em buscar solucionar a
falta da abordagem dos processos da ciência pelo jornalismo científico através do viés narrativo
para a abordagem jornalística da ciência. Ao narrar as etapas da pesquisa e passar a ideia que o
resultado não é imediato, a noção de processo da ciência é tratada pelo texto jornalístico que
possui aspectos narrativos. Uma abordagem jornalística padrão talvez não se ocupasse em lidar
com as etapas da pesquisa, o que é mencionado duas vezes pelo estudante, quando ele afirma que
“o fragmento seria excluído de um texto jornalístico”.
Esse aluno também lembrou que a narrativa não se apresenta como um “acessório”
inócuo, mas, em suas palavras, tem por finalidade “traduzir” o funcionamento do instrumento,
aumentar a compreensão da ciência envolvida, como discutimos em sala de aula.
No penúltimo parágrafo esse estudante remeteu a “ideia de processo a algo finalizado”.
Esse “algo finalizado” se refere ao telescópio e a ideia de processo aos futuros estudos que serão
desenvolvidos no telescópio.
Esses estudantes conseguiram realizar um exercício de análise do texto jornalístico de
ciência com aspectos narrativos, tendo por base os textos lidos durante a disciplina, as interações
entre professor/pesquisador e alunos e os próprios trechos dos textos reproduzidos na avaliação.
A produção de sentidos desses estudantes com relação ao exercício de destacar trechos nos quais
o autor utilizou características narrativas concede indícios do funcionamento da unidade de
ensino e do cumprimento dos objetivos desta pesquisa. Os outros estudantes também
conseguiram identificar perfis dos personagens, ambientação do cenário, abertura com
características literárias, descrição, uso de comparativos, entre outros recursos. As indicações dos
estudantes aos aspectos narrativos do texto de Herton Escobar mostram que a unidade de ensino
foi condição de produção para os seus posicionamentos e indícios do funcionamento da unidade
de ensino na atividade de leitura durante a avaliação.
No próximo item, veremos como os alunos desenvolveram as reportagens que foram
equivalentes ao trabalho de conclusão da disciplina.
116
4.6. Reportagem
No trabalho final da disciplina, solicitei aos alunos que me enviassem por e-mail uma
reportagem sobre ciência. Logo após o recebimento, corrigi os textos e fiz alguns comentários e
sugestões. Como eles puderam escolher os temas, pude verificar o que os alunos consideravam
relevante para uma reportagem de ciência. O tema mais explorado foi a saúde. Aqui,
aparentemente eles consideraram as pautas sobre saúde as mais relevantes entre as opções para o
trabalho com ciências, o que é coerente com a revisão bibliográfica sobre o jornalismo científico.
Os títulos nessa área foram:
Outro tema bastante explorado foi o meio ambiente, com foco nas soluções tecnológicas
para a sustentabilidade. Essa é uma área do jornalismo científico com bastante impacto para a
população:
Algumas reportagens têm um forte ângulo de agronegócios, o que está relacionado com o
117
foco regional, já que a economia do estado onde se situa a universidade onde a pesquisa foi
realizada gira em torno da agropecuária. Os títulos relacionados com essa editoria foram:
21 Local omitido para preservar o anonimato dos sujeitos de pesquisa e das fontes que eles entrevistaram.
118
jornalismo nas reportagens desenvolvidas na disciplina Jornalismo científico.
Em um texto sobre uma pesquisa sobre o uso de imagens de satélite como auxílio à
prevenção de inundações, um tema bastante polêmico no Brasil principalmente no verão quando
as chuvas aumentam e alguns lugares inundam. A abertura do texto já dá o tom controverso dos
impactos ambientais a partir das atividades humanas:
Em dois textos podemos notar o foco no conflito por conta do estresse. Um sobre as
condições de trabalho dos servidores públicos quando eles desenvolvem doenças relacionadas ao
estresse e o outro com conceitos do que é o estresse e como escapar desse mal.
No texto H1N1: a doença volta a atacar em 2012!, já podemos notar o foco no conflito
quando uma doença que causou muitas mortes em 2009 poderia causar problemas de saúde
pública durante o período que a disciplina foi oferecida. No outro texto com foco em saúde, um
vírus da AIDS de outro tipo foi detectado no Brasil e o fechamento da matéria dá o tom
controverso e de crítica as autoridades brasileiras:
Despreparado para diagnósticos dos casos, o Brasil deixa para trás a chave para
o tratamento correto dos soropositivos. Bem preparado em medicamentos
destinados a esses pacientes, o Brasil espera não ter de usá-los e através da
preservação eficaz, evitar a disseminação desse turista indesejado em nosso país.
Em uma reportagem de cunho local, sobre o lago que fica localizado dentro da
universidade, o conflito fica por conta da falta de cuidados que faz com que o lago não seja
aproveitado para pesquisas e atividades de ensino pela universidade.
No texto sobre Leishmaniose canina, a controvérsia fica por conta do procedimento
adotado quando a Leishmaniose é diagnosticada nos cães, como o próprio estudante escreve:
119
Com a referência a esses textos, pretendi pontuar como o critério de noticiabilidade
conflito e controvérsia foi levado em conta por grande parte dos textos desenvolvidos pelos
estudantes. Como eles puderam escolher sobre qual tema desenvolveriam para a reportagem,
notei como os conflitos foram escolhidos pelos estudantes quando eles tiveram que desenvolver
uma reportagem sobre jornalismo científico. Como afirmou Allan (2002):
Ciência, muitas vezes é dito, gera uma má imprensa. Explicações para esse
aparente problema, na opinião de alguns jornalistas, pelo menos, tendem a girar
em torno da alegação de que a maioria dos tipos de ciência falha no teste de
noticiabilidade. A rotina científica, eles tendem a acreditar, é realmente um
pouco chata. Falta-lhe o material de drama necessário para provocar manchetes
animadas dos jornais (p. 69).
Sobre as matérias sobre saúde, elas têm por objetivo dar o foco humano aos textos. De
acordo com Hansen o interesse humano “ajuda a explicar o domínio significativo da cobertura
em medicina e ciências relacionadas a saúde, que tem invariavelmente sido encontrada em
análises de conteúdo da cobertura de ciência pela mídia” (p. 115). Também Fahnestock acredita
que os temas de saúde são mais fáceis de serem transformados em notícias do que matemática,
física e química, uma vez que eles apresentam aplicações da ciência.
120
Notícias sobre saúde abrangem um vasto público, ávido por melhores condições de vida,
terapias menos invasivas e mais eficazes e drogas com menos efeitos colaterais. Dentre as
matérias de saúde, as doenças que mais são noticiadas são justamente as de maior incidência na
população, o que é relacionado com o fator impacto. Dentre as matérias dos estudantes, as
patologias escolhidas também são de grande incidência na população, como asma e estresse no
trabalho, ou de grande repercussão na mídia internacional, como a gripe suína e a AIDS.
A partir desses posicionamentos dos estudantes e a relação com pesquisas sobre
tecnologias emergentes, pude confirmar a pertinência do dispositivo analítico baseado nos
critérios de noticiabilidade para compreender o imaginário desses estudantes quando eles
decidem o que é e o que não é notícia, como abordar os temas que eles consideram o que é
notícia e com qual tom.
Neste item, pretendi realizar uma classificação das reportagens produzidas pelos
estudantes em grandes temas. Essa classificação não é o objetivo da pesquisa, mas auxiliou na
organização dos textos para discuti-los em qual grau os processos da ciência foram levados em
consideração pelos estudantes.
Nesse grupo, os enunciados fazem sentido com relação às audiências bem amplas, já que,
dentro do jornalismo científico, a pesquisa em saúde gera impacto em um público amplo, o que
reconheci no primeiro dia de aula, no qual expus aos alunos que as pautas científicas com relação
à saúde se enquadram no critério de noticiabilidade “impacto”, exemplificando o caso da dengue.
Como a saúde e o bem-estar são necessidades humanas vitais, os estudantes poderiam estar se
inscrevendo nesse assunto científico por ele ter relevância para um público amplo. No texto
Campanha de vacinação terminou na última sexta-feira: Vacina imuniza contra a gripe suína e
outros dois tipos de influenza podemos notar o uso do termo “impacto direto” na diminuição dos
casos de infecções:
121
A vacina da campanha é trivalente, ou seja, protege contra Influenza A e
influenzas sazonais (H3N2 e B), os três principais vírus que circularam no
hemisfério sul em 2011. Segundo o Ministério da Saúde, a vacina proporciona
impacto direto na diminuição dos casos de infecções secundárias, internações
hospitalares e mortalidade. O efeito de proteção leva aproximadamente 15 dias
para começar a agir, e se estende por cerca de um ano.
Aqui, além da imunização contra a gripe suína, que foi uma doença que trouxe transtornos
em escala global, o estudante evidenciou que a vacina diminui outros problemas de saúde
relacionados à gripe. No desenrolar da matéria, ele pareceu continuar se inserindo em um
discurso de impacto global desse mal.
A gripe H1N1, também chamada de Gripe Suína, foi detectada pela primeira vez
no México e nos Estados Unidos, em abril de 2009, fazendo com que a OMS
(Organização Mundial de Saúde) alertasse toda a população mundial. O vírus se
espalhou rapidamente pelo mundo, causando uma pandemia (epidemia de
grandes proporções). Somente em agosto de 2010 a OMS declarou a pandemia
encerrada. No entanto, o vírus continua a circular no mundo inteiro, produzindo
surtos localizados. Até o último dia 24, havia 25 casos confirmados deste tipo de
gripe na cidade, sendo que dois deles levaram à morte.
Após a notícia da vacinação contra o vírus Influenza, esse estudante utilizou um parágrafo
inteiro para alertar que o vírus já causou pandemia e ainda faz mortes na cidade. Em outro texto
sobre o tema – H1N1: A doença volta a atacar em 2012! – o estudante explorou com maior
intensidade a amplitude da doença: “Em abril de 2009, a Organização Mundial de Saúde (OMS)
recebeu informes de infecções de um novo vírus da influenza A (H1N1) no México e nos Estados
Unidos. Rapidamente, o vírus se propagou para diversos países da Europa, Américas e Extremo
Oriente”. Em outro trecho:
Além da tentativa em deixar a matéria o mais ampla possível, para que mais pessoas deem
sentido ao texto, já que se a doença fosse rara, de difícil contágio e que não levasse a morte (o
oposto da gripe suína) não faria sentido para um público amplo e assim desconsiderada para o
trabalho de jornalismo científico, o estudante focou também em um grupo de risco: “A pesquisa
feita em 2009, quando surgiram os primeiros casos de surto no Brasil, revela que grávidas entre o
122
4º e o 7º mês são quatro vezes mais suscetíveis a hospitalizações do que o resto da população.
Além disso, tem um significativo aumento na taxa de mortalidade”.
Outra doença de escala global foi explorada no texto “HIV-2: O Brasil está pronto?”. Nele
também encontramos alertas que causam preocupação, como no trecho:
Em dois textos sobre estresse, também podemos verificar o foco no bem-estar e saúde
para um público amplo, como na abertura do texto intitulado Estressados e vulneráveis:
123
Expressões como “a grande causa” e “as principais causas de internação” e números altos
de internações e mortes são indícios da busca com que a matéria faça sentido para muitas
pessoas, já que, mesmo quem não tem asma pode ter alguém na família ou amigo que tenha e que
possa auxiliá-los quando alguma crise ocorrer. No fechamento do texto, mais dados “alarmantes”:
“Segundo o Ministério da Saúde, 10% da população brasileira tem asma. Destes, apenas 7% tem
a asma controlada, evitando as crises. No mundo todo, existem de 100 a 150 milhões de pessoas
com a doença, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS)”.
Em mais um texto sobre saúde e bem-estar, o foco é a reabilitação após traumas. Como
afirmou o editor da revista de divulgação científica citado por Fahnestock (1986), uma terapia
que dói menos, mais eficaz e que, nesse caso, ainda diverte. Intitulado Fisioterapeutas começam
a usar Nintendo Wii como instrumento de reabilitação demonstra como pacientes em reabilitação
pós-traumatismo de algum osso podem ser beneficiados por uma terapia que usa videogames.
Jogar videogame pode ser mais que uma diversão se você tiver um Nintendo
Wii. Artigo científico feito por João 22, fisioterapeuta graduado pela UNESP,
revela, através de pesquisas, que o uso de videogames que utilizam de
dispositivos de interação física com o usuário pode ser muito útil para a
fisioterapia.
O fato da fisioterapia poder ser divertida, faz sentido para muitas pessoas, já que muitas
pessoas possivelmente já precisaram se submeter a algum procedimento fisioterápico e sabem
que pode ser muito entediante. O problema de alguns fisioterapeutas é fazer com que o paciente
se envolva com a terapia, como o estudante mencionou a partir da fala de um profissional da
área: “Vitor sublinha a importância do paciente estar envolvido com a causa e à vontade. ‘O fato
de ele estar gostando de fazer a fisioterapia e estar fazendo em sua casa, onde é sua zona de
conforto, facilita na recuperação. Ela passa mais rápido para ele’. Preocupado em saber como a
terapia funciona, o estudante/jornalista entrevistou um dos pacientes, que se empolgou em falar
sobre o tratamento: “‘Quando percebi, a fisioterapia já estava acabando e meu braço estava
fazendo todos os movimentos normais sem dores novamente. E o melhor de tudo é que o
tratamento foi divertidíssimo. Saiu melhor que a encomenda’, finalizou Luiz”.
Na última matéria produzida com foco em saúde e bem-estar, dessa vez o tema é saúde
animal, mas sobre uma doença que, em casos raros, pode ser transmitida para humanos (o que o
22 Para proteção das fontes, as pessoas entrevistadas pelos estudantes foram trocadas por nomes fictícios.
124
estudante ressaltou na abertura do texto). Além disso, com base em Dal-Farra (2004), cresce o
número de textos da mídia impressa com representações das relações entre humanos e animais de
estimação, o que torna a reportagem desenvolvida pelo aluno como produtora de sentidos para
um vasto número de pessoas que mantém cães, gatos e outros bichos de estimação em casa.
Assim, é possível que a preocupação tenha sido o de fazer com que a reportagem conseguisse
atingir um grande número de pessoas preocupadas com o bem-estar dos seus animais de
estimação.
Nesse grupo de textos agrupados na categoria saúde e bem-estar interessei-me em
verificar se os estudantes/jornalistas se detiveram nos processos da ciência ao invés dos
resultados, o que é o objetivo desta pesquisa. Entretanto, não é possível afirmar objetivamente
que a unidade de ensino foi condição de produção na elaboração das reportagens, já que outras
condições de produção estão presentes nesses discursos. Não é uma relação termo a termo, como
se os alunos fossem “inoculados” pelas discussões da unidade de ensino e agora aptos a produzir
reportagens que levem em consideração os processos da ciência, como se suas mentes fossem
alteradas de um dia para outro.
Como o foco dos textos é se dirigir ao máximo de pessoas possíveis, escolhendo um tema
tão vital quanto a manutenção da nossa saúde e, por conseguinte, das nossas vidas, fazem sentido
a abordagem de como prevenir e profilaxia das doenças. Algumas definições e conceitos das
patologias, como no trecho: “A asma é a inflamação crônica dos brônquios, acarretando o
estreitamento das vias aéreas e dificultando a passagem do ar. Essa obstrução pode ser revertida
espontaneamente ou com o uso de medicamentos”. Os protocolos médicos para o tratamento das
doenças e os remédios empregados, como nesse, um tanto exaustivo, trecho:
Os remédios ofertados pelo programa “Saúde Não Tem Preço” são o brometo de
ipratrópio (em apresentações de 0,02 mg e 0,25 mg), dipropionato de
beclometasona (em apresentações de 200 mcg/dose, 200 mcg/cápsula, 250 mcg
e 50 mcg) e sulfato de salbutamol (em apresentações de 100 mcg, 5 mg/ml, 2 mg
e 2mg/5ml).
125
jornalístico, tiveram notas baixas por conta do foco exclusivo em saúde. O que não quer dizer que
desconsidero a saúde como parte integrante do jornalismo científico. Na reportagem intitulada
HIV-2: O Brasil está pronto?, a saúde também foi trabalhada pelo estudante e pode ser
considerada como jornalismo científico, já que tratou de uma pesquisa na área. O texto trouxe o
resultado de uma pesquisa desenvolvida pelo Instituto Oswaldo Cruz que anunciou que o
retrovírus humano HIV tipo 2 já fazia vítimas no Brasil, sendo que até então ele só era
encontrado em outros países em sua maioria africanos. Após discorrer sobre o anúncio, esse
estudante trouxe diversos aspectos conceituais e históricos do desenvolvimento da AIDS, que
fazem parte do processo de construção do conhecimento sobre o vírus, o que não é comum em
uma abordagem jornalística tradicional.
Assim, esse estudante foi além de mostrar fatos e resultados e se preocupou em mostrar a
origem da AIDS e sua evolução até os dias de hoje, o que discutimos durante a disciplina. Indo na
mesma direção, o texto intitulado H1N1: A doença volta a atacar em 2012! trouxe alguns dados
sobre a doença, deu dicas de como evitar o contágio e explicou o resultado da pesquisa que
comprovou que grávidas são mais suscetíveis à doença. Além de lidar com essas informações
padrões de um texto de jornalismo científico, assim como o estudante citado anteriormente, ele
foi além. Ele entrevistou uma grávida que tomou a vacina e a citou no texto: “Grávida de seis
126
meses, Joana conta que já tomou todas as providências necessárias para se prevenir contra a
H1N1. ‘Fui ao posto e fiz tudo o que o médico me indicou na gravidez. Acho importante a mãe se
preocupar e proteger a criança o quanto der’, revela”. Além de buscar a origem das doenças,
como fez o estudante que escreveu sobre a chegada de uma nova cepa viral do HIV, esse aluno
buscou um personagem para representar o grupo pesquisado na divulgação do resultado. Nós
discutimos isso na disciplina, já que o jornalista científico, assim como todas as outras editorias,
poderia humanizar os textos escolhendo personagens que representem determinada comunidade
ou grupo atingido.
No texto sobre recuperação de pacientes através da fisioterapia que usa videogames, o
estudante procurou compreender como o criador da técnica desenvolveu-a, mesmo em situações
inusitadas como ele afirma em seu texto:
Assim como o pesquisador que bebe chimarrão tranquilamente e da astrônoma que vibra
com as condições atmosféricas do observatório do texto que os estudantes leram na avaliação, o
fisioterapeuta ri com o fato do sobrinho ajudar no desenvolvimento da pesquisa e de ter que jogar
videogame o que não é comum em uma matéria tradicional de jornalismo científico na qual os
cientistas só “afirmam”, “sugerem” e “descobrem”. Essa ciência mais humanizada e narrativa,
como proposta pela unidade de ensino, traz mais informações sobre os processos da ciência que
não estariam presentes em uma matéria jornalística tradicional.
Na reportagem sobre a leshmaniose canina, os processos da ciência abordados são de
outra natureza, já que concernem a entraves legais para a aplicação do protocolo de tratamento da
doença elaborado pelo cientista.
127
efetivas” comenta André. Enquanto as drogas aprovadas pelo Ministério da
Saúde tem a efetividade de 80 a 90 por cento, as manipuladas pelo pesquisador
tem efetividade de 60 a 70 por cento. No entanto, com a administração de um
protocolo diferenciado, a partir de um coquetel de drogas, juntos, a efetividade
desses medicamentos sobem de 60 para 90 por cento.
Assim, esse estudante foi além em divulgar o sucesso da pesquisa no tratamento dos
cachorros infectados pelo protozoário e noticiar também os obstáculos legais que a pesquisa
encontrou e que fazem parte dos processos da ciência. Os entraves legais foram discutidos na
disciplina, sendo que já tínhamos debatido sobre a relevância da mídia em ser um campo de
debate na qual haja condições para a tomada de decisões no desenvolvimento de leis que
envolvem aspectos científicos sejam aprovadas ou não no Congresso.
A reportagem intitulada Estressados e vulneráveis se preocupou em inserir a pesquisa
divulgada em uma narrativa mais ampla, como proposta pela unidade de ensino. Após a
divulgação de uma pesquisa desenvolvida por “pesquisadores da Universidade da Califórnia
(UCLA) que descobriram que a forma como reagimos ao estresse pode influenciar o sistema
imunológico e fazer mal à saúde, causando inflamações e outras doenças 23”, o estudante procurou
em outro texto, de autoria de Moisés Evandro Bauer, do Instituto de Pesquisas Biomédicas da
PUC-RS, para a revista Ciência Hoje, a origem da relação entre estresse e enfraquecimento das
defesas imunológicas.
23 Palavras do estudante.
128
A narrativa jornalística procura a lógica de encadeamento dos fatos e não a simples
exposição deles. Esse estudante não ficou satisfeito só com a “notícia da descoberta de tal coisa
de uma universidade norte-americana”, mas foi atrás de uma pesquisa similar desenvolvida no
Brasil, buscou na literatura a origem da pesquisa em estresse e ainda entrou em contato com uma
nutricionista da cidade para buscar a compreensão de como evitar o estresse a partir da
alimentação:
129
apesar de não considerar a relação termo a termo como se esses estudantes pensassem: “Agora que
o professor disse da importância dos processos da ciência, iremos fazer isso!”.
Os estudantes que escreveram sobre a nova técnica de fisioterapia que usa videogames e
sobre o protocolo de tratamento da leshmaniose canina também trouxeram aspectos concernentes
aos processos da ciência, apesar de um grau menor que os dois textos sobre estresse. Os textos
sobre vacinação e distribuição de medicamentos podem ser considerados como equívocos por
parte desses estudantes, já que fogem do escopo da disciplina de jornalismo científico.
Entretanto, são relevantes para se entender a confusão entre editorias que acontece em vários
jornais, como explicitado por Neveu (2006). O que vale a pena ressaltar é que pesquisas em
saúde são realmente parte da editoria de ciência, mas nem toda pauta sobre saúde merece um
ângulo restrito de jornalismo científico. Se assim fosse, todas as produções jornalísticas sobre o
programa Mais Médicos do governo federal, que vêm aparecendo nos noticiários desde que foi
lançado em 2013, deveriam entrar na editoria de ciência, o que não está acontecendo.
4.7.2. Sustentabilidade
130
Nesse trecho podemos notar como características narrativas, como a pontuação temporal e
mudança de cenário, quando o pesquisador mudou os rumos da pesquisa, podem ser propícias
para a abordagem dos processos da ciência, já que a ideia de processo surge conforme o texto
jornalístico ganha contornos narrativos.
Em Solo-cimento: uma alternativa barata e sustentável na construção de casas, o
estudante citou diversas melhorias que um centro de pesquisa vem tentando desenvolver para
fazer com que as casas sejam construídas com materiais mais baratos e que produzam menos
resíduos.
No país onde foi realizada a Rio +20, conferência que reuniu vários líderes
mundiais para desenvolver políticas públicas relacionados ao meio ambiente,
não é nada mal ter uma alternativa como o solo-cimento se mostra além de
sustentável por reduzir o número de resíduos que são jogados no meio ambiente
abaixa o custo da construção civil.
Do ponto de vista da abordagem dos processos da ciência, esse texto se mostrou com um
grande grau de aprofundamento. Nos dois primeiros parágrafos, o estudante contou como foi o
processo histórico do desenvolvimento dessa ciência até a popularização do material nas
construções:
131
Assim como o texto de mapeamento do desperdício de água, a utilização de marcação
temporal, característico da concepção de narrativa jornalística, contribui para a abordagem dos
processos da ciência, explicitando como foram feitas as estradas com solo-cimento e as pesquisas
desenvolvidas pelo IPT para baratear o produto e assim popularizar a inovação. A descrição do
laboratório também pareceu incomum a um texto jornalístico tradicional, mas de extrema
relevância para se compreender os processos da ciência:
Esse texto possui uma distinção de outros textos elaborados pelos outros estudantes. Esse
aluno se preocupou em tirar duas fotos. Uma do laboratório com uma pilha de tijolos feitos de
solo-cimento e da pesquisadora em seu escritório. As fotos estão no meio do texto, diagramado
em pdf. Possivelmente elas têm por objetivo aumentar o grau de realismo da reportagem, dando a
entender que o estudante visitou o laboratório e entrevistou a cientista em sua sala com sua mesa
bagunçada por plantas de construção, o que é coerente com a ideia de realismo concernente à
prática jornalística. As fotos também ajudam na visualização dos processos da ciência, já que dão
ideia de como a ciência funciona.
Em outro texto com foco ambiental, com o título Pesquisa aponta uso de imagens de
satélite como auxílio à prevenção de inundações, já começou com um tom alarmante:
132
potencialmente interessantes para determinados empreendimentos (turismo,
agricultura, pecuária etc.), invadidas pela expansão urbana desordenada, ou
então áreas com sérios riscos ambientais (inundações, deslizamentos, etc.),
usadas como moradias.
Esse texto vai além de simplesmente expor fatos sobre enchentes, mas procurou detectar
os motivos que causam as enchentes, como a falta de planejamento urbano. Ao mencionar que as
pesquisas serviriam para orientar os governantes, esse estudante mostrou que a ciência não
existiria em si mesma, mas as esferas políticas são decisivas para a determinação da prática
científica, o que tem a ver com a consciência da ciência enquanto processo que foi trabalhado
durante a disciplina.
Nessa categoria, assim como nos textos sobre saúde, os estudantes pareceram se dirigir a
um vasto público ávido por medidas e soluções para a redução dos impactos ambientais,
diminuição e aproveitamento dos recursos naturais, construção de materiais baratos e sustentáveis
e preocupação com o meio ambiente em escala global. Nesse caso, os processos da ciência
fizeram sentido para que os leitores tivessem mais argumentos para adotarem posicionamentos
sustentáveis e serem contrários a atitudes que destruam o meio ambiente.
Nessa categoria predominaram alguns textos com forte cunho rural e que, da mesma
maneira que os dois textos sobre saúde que não abordaram pesquisas, um texto não focou em
133
nenhuma pesquisa e assim não podem ser considerados como parte de uma editoria de ciência,
fugindo da proposta de uma disciplina de Jornalismo científico. O texto poderia ser publicado no
caderno agrícola e não na editoria de ciência, sendo que existe uma disciplina específica para
textos agrícolas (Comunicação rural). Essa disciplina é oferecida no mesmo período na
instituição que foi feita a pesquisa o que poderia ter facilitado a confusão dos alunos. Entretanto,
isso não quer dizer que a temática rural não possa ser considerada como parte da editoria de
ciência. Caso sejam feitas pesquisas no setor, os textos podem ir para a editoria de ciência, como
aconteceu com os demais textos produzidos pelos alunos nessa categoria.
Como a economia do Estado gira fortemente em torno da agropecuária, especialmente a
criação de gado de corte, alguns textos só fazem sentido para produtores rurais, como podemos
notar no trecho, extraído do texto intitulado Hipotermia e a preocupação dos criadores: “Com o
surto de hipotermia que aconteceu no estado em junho de 2010, onde quase 3000 cabeças de gado
morreram, os criadores estão mais atentos aos cuidados, já que a morte de um rebanho assim
acarreta um prejuízo de mais de um milhão de reais”. Aqui, explicitamente podemos notar para
quem o texto se dirige (os criadores de gado), o que se opõe fortemente aos textos de saúde e
ambiente que buscaram se dirigir para um vasto público. Alguns termos como “pastagem bucha”,
“gado p.o.” e “hipóxia” que podemos encontrar nesse texto, só fazem sentido para profissionais
que lidam com o manejo bovino. Esse texto não pode ser considerado como jornalismo científico,
já que não trouxe nenhuma pesquisa.
Em outro texto com foco rural, mas que trouxe pesquisas da área, intitulado Programa de
melhoramento genético da Embrapa restaura características da raça Caracu, também
encontramos indícios do interlocutor composto por profissionais do setor primário:
134
O que diferiu esse texto do anterior é a busca em tratar aspectos históricos que
constituíram os processos da ciência de melhoramento genético bovino que normalmente são
esquecidos em textos jornalísticos da área rural, como no trecho abaixo:
Para esse estudante, o texto não começou no “fato” da raça Caracu ter problemas para a
produção extensiva e como os pesquisadores estão trabalhando para produzir carne com a raça,
mas a partir da história da inserção da raça Zebu que fez com que a raça Caracu fosse destinada
apenas a produção de leite. Esse deslocamento do foco exclusivo nos resultados aos processos da
ciência foi evidenciado em sua produção do texto jornalístico, sendo que a unidade de ensino
pode ter proporcionado condições para o trabalho com esses aspectos da ciência.
No texto Você está pronto para investir?: Confinamento torna-se boa opção para o abate
precoce de bovinos pelo próprio título já podemos notar que só faz sentido para pessoas que já
criam gado, já que são os únicos que podem investir através do confinamento. Para os demais,
não faz sentido algum, já que não há gado para ser confinado. Porém, através da análise de
discurso, não existe sentença que não faça sentido, mas só nesse contexto semântico faz o sentido
135
buscado pelo estudante, mesmo que eles possam ser vários em outros contextos. Por exemplo, em
um grupo no qual ambientalistas se comunicam e dão sentido aos textos, a opção de
confinamento de gado poderia ser vista como maléfica ao bem-estar dos animais, mas do ponto
de vista dos produtores rurais, o sentido dado ao confinamento é visto como benéfico para o
retorno do investimento e altos lucros, como podemos notar no trecho transcrito:
Nesse texto, os processos da ciência ficam por conta da esfera econômica, já que as
pesquisas são feitas visando o aumento dos lucros no setor, como podemos notar no trecho:
Assim, não somente aspectos históricos e sociais foram lembrados pelos estudantes
enquanto processos da ciência, mas também os aspectos econômicos que são determinantes para
qualquer pesquisa científica. Em outro texto de cunho rural, intitulado Pesquisa e
comercialização da Mandioca, também podemos notar o tom econômico logo no título. Após a
divulgação das pesquisas de uma engenheira agrônoma, que mostrou como a opção em colher a
mandioca depende do preço “bom” (que só faz o sentido “bom” para os produtores), o estudante
foi até o centro de abastecimento e entrevistou um comerciante de mandioca, sendo coerente com
o foco econômico e voltado para os profissionais do setor primário adotado na reportagem
científica e que fazem sentido nesse grupo semântico:
136
no centro de abastecimento, a caixa sai a 10 reais. O preço pode variar durante o
ano. (…) “A gente acorda 4 horas da manhã para trabalhar, vai até as oito da
noite. Mesmo com sol, chuva, vento. Se vendermos tudo que arrumarmos na
roça, vamos gastar: 500 reais com funcionários e frete mais 400 reais em 100
caixas direto do produtor. Normalmente sobra 100, 110 reais por dia, pros
comerciantes, mas isso só se vendermos tudo.” (…) Claro que no ramo da
comercialização tudo varia, como por exemplo, no ano passado a produção foi
mais escassa, então o preço estava mais elevado. É a lei da oferta e procura. “Aí
esse ano todo mundo plantou e o preço foi lá em baixo, e aqui agora todo mundo
se vê obrigado a trabalhar de graça.”
Nessa categoria, ao contrário das matérias de saúde e ambiente que se esforçaram para
fazer com que a ciência divulgada fizesse sentido para o máximo de leitores possíveis, os textos
buscaram o diálogo com profissionais envolvidos com o setor primário (gado e mandioca). As
sequências discursivas só fazem o sentido esperado pelos estudantes quando pessoas envolvidas
com o ramo interagem com os textos, afinal o preço só é “bom” para os produtores; o
investimento com confinamento só é possível para quem já tem gado. As esferas histórica e
econômica foram mencionadas pelos estudantes o que fazem parte dos processos da ciência que
foram discutidos em sala de aula. A unidade de ensino pode ter sido condição de produção para
que os alunos pudessem trabalhar os processos da ciência além de resultados como melhorar
raças bovinas e aumentar a produtividade da mandioca. Esses estudantes foram além dessas
informações para construir uma narrativa jornalística na qual os aspectos históricos e econômicos
foram abordados nos textos.
Alguns textos não puderam ser agrupados como os anteriores, já que se referiram a um
tema isolado, como os intitulados Arqueologia em (...) – Pesquisas e um sobre pesquisas que
necessitam de obtenção de imagens que o estudante esqueceu de criar um título. Este último
talvez seja o mais emblemático de todas as reportagens produzidas, já que não tem por objetivo
uma determinada área da ciência, mas áreas que necessitam de aumento de imagem. O estudante
entrevistou três representantes de profissões díspares como um dermatologista, um estudante de
medicina veterinária e um astrônomo. Já na abertura podemos notar o enfoque metodológico, que
faz parte dos processos da ciência, já que as imagens auxiliam na produção de conhecimento de
várias áreas:
137
Imagine se o ser Humano pudesse estender o seu olhar até além dos alcances
naturais. Em casos que a fotografia se une a ciência, essa capacidade de estender
o poder do olho humano deu ao conhecimento científico novos patamares de
estudo: desde capturar uma outra galáxia até congelar no tempo um órgão para
análise.
A biologia, a medicina, e as demais ciências biológicas, cada vez mais lançam
mão das técnicas fotográficas em seus trabalhos e pesquisas cotidianas.
Após introduzir sobre como essas ciências se beneficiam com as imagens, esse estudante
cita um dermatologista que se vale das imagens para o diagnóstico e de um estudante de medicina
veterinária que estuda as etapas de necropsia:
138
A origem do povoamento humano no Brasil é um fato arqueológico que cabe a
ciência buscar explicações satisfatórias. Perguntas relacionadas a origem dos
primeiros seres humanos que chegaram ao território atual do estado, como
viviam, quais foram as transformações culturais que ocorreram nos milênios
seguintes à chegada dos primeiros homens, são alguns questionamentos que o
estudo da arqueologia procura responder.
Durante décadas, o potencial arqueológico do centro-oeste ficou despercebido
pelos pesquisadores brasileiros, acarretando prejuízos para a construção de um
modelo explicativo sobre as origens do homem no Brasil.
Por muito tempo, a região aparecia na cartografia apenas como uma área
desabitada, onde os processos de povoamento humano seriam relativamente
recentes, próximos ao contexto colonial.
No entanto, as evidências de que esse modelo não era consistente estavam
disponíveis na documentação produzida por viajantes e naturalistas estrangeiros
no século 19. Esses cronistas já haviam notado a existência de inscrições
rupestres no Pantanal (...). Foi somente durante a década de 1970, que ocorreram
as primeiras iniciativas acadêmicas visando ao desenvolvimento de pesquisas
arqueológicas sistemáticas nos estados integrantes da região central do Brasil.
No estado, os estudos começaram com o estudo dos petróglifos no Pantanal.
No trecho selecionado, podemos notar o caráter narrativo pelo uso de locuções que
denotam temporalidade e ruptura, como “por muito tempo”, “no entanto” e “foi somente durante
a década...”. O estudante continuou pontuando historicamente nos trechos “Na década de 1980, o
professor (…) da Universidade (…) estabeleceu um projeto para iniciar as pesquisas no centro-
oeste”. “Em 1986, (…) começou a participar como professor da universidade de projetos de
levantamento intensivo”.
Além da perspectiva histórica, o estudante também se preocupou em explicar o campo de
atuação da disciplina, como no trecho:
139
Assim, o processo de como a ciência em arqueologia foi produzida é abordado pelo
estudante, já que as pesquisas na região foram possíveis pela construção do gasoduto Bolívia-
Brasil, uma obra de impacto que gerou a necessidade de estudos arqueológicos na região (a
arqueologia preventiva como explicada pelo estudante). Ele apontou a consequência dessa
necessidade: “Segundo a professora, com a construção do gasoduto Bolívia – Brasil, (…), a
Petrobras contratou a Fundação (…) e a partir de então, o professor (…) coordenou um projeto de
levantamento para buscar os sítios arqueológicos na região onde passa o gasoduto.”
Em outra obra de impacto, a construção de uma hidrelétrica, o estudante ressaltou que o
interesse da pesquisadora pelo estudo da área próxima ao rio Paranapanema adveio de sua
familiaridade anterior com a região, o que faz parte do processo da ciência:
Em junho deste ano, foi lançado o segundo livro dos pesquisadores (…) o livro
sintetiza as informações obtidas por meio das pesquisas com uma característica
de divulgação científica, pela forma que ele foi escrito e editado, apresentando
os resultados dessa pesquisa na região (…).
140
Com a análise desses textos, pude concluir que existe a possibilidade em se abordar os
processos da ciência junto com os resultados que já ganham grande destaque na mídia. Mesmo
sob a pressão de produzir um texto que faça com que todos os leitores se sintam implicados e
pela prática jornalística usual que apaga a temporalidade dos acontecimentos e, assim, apaga os
processos da ciência, esses estudantes foram capazes de produzir textos em que os resultados da
ciência foram abordados conjuntamente com o processo que os constituíram.
141
142
Considerações finais
Para discutir os resultados, retomo os objetivos e questões de estudo desta tese. Objetivos:
Questões de estudo:
143
contemporaneidade, tendo por objetivo desnaturalizar a ideia de que só os resultados da ciência, a
ponta da pirâmide da ciência, mereceriam receber um tratamento jornalístico. As outras partes da
pirâmide também merecem ser abordadas pelo jornalismo científico, se o objetivo é propiciar a
melhoria da cultura científica dos leitores, telespectadores e internautas.
O trabalho com textos de epistemologia da ciência e suas relações com o jornalismo
científico, como os textos de Cascais (2003) e Latour (2011) foram relevantes para a abordagem
dos processos da ciência. Os alunos foram instados, por exemplo, a reconhecer a importância de
tratar também os erros da atividade científica e também questionar o determinismo da ciência.
Eles foram capazes de notar que as imagens produzidas pela ciência não correspondem ao que
normalmente consideravam como a realidade, mas são frutos de muitas manipulações, assim
como em toda prática científica. Nas discussões, os alunos confessaram a dificuldade em abordar
os acontecimentos que não se resumiriam aos sucessos da ciência, já que não cumpririam os
critérios de noticiabilidade. Entretanto, as leituras, discussões e exibição do vídeo sobre como são
produzidas as imagens das estrelas, criaram condições para que eles refletissem sobre a
possibilidade de abordar aspectos da ciência que são esquecidos pela mídia, tanto os benefícios
dessa abordagem quanto os seus desafios.
Durante uma das aulas, um dos estudantes de maneira não consciente reconheceu o
problema em só se deter nos resultados da ciência, já que cada matéria jornalística que fosse feita
na perspectiva em só se divulgar os resultados requereria uma nova pesquisa para a elaboração da
pauta. Ao contrário de matérias de política que contém aspectos do contexto histórico e que, por
isso, facilita o trabalho dos jornalistas que não precisariam fazer pesquisas para cada pauta. As
informações levantadas, que se baseiam só nos resultados, só serviriam para aquela matéria e
depois cairiam no esquecimento, já que dão uma ideia fechada da ciência e não aberta, como
aponta Cascais.
A aula sobre pesquisas em jornalismo científico trouxe vários posicionamentos dos
estudantes. Trabalhar com pesquisas atuais, com o apontamento dos problemas de pesquisa e
como os pesquisadores solucionaram os problemas, fez com que os alunos assumissem diversos
posicionamentos referentes ao jornalismo científico. Os alunos puderam notar a importância das
instâncias políticas e legislativas da prática científica, o que são relacionadas com os processos da
ciência que esta pesquisa procurou trabalhar com os estudantes. Puderam notar o papel da mídia
144
como parte do processo da ciência, o que foi um resultado importante desta pesquisa. Além das
esferas políticas, sociais, econômicas, metodológicas e conceituais, a própria mídia participa
dessas esferas e também pode ser considerada como parte do processo de constituição da ciência.
A unidade de ensino também proporcionou condições para que os estudantes assumissem
posicionamentos sobre o conflito entre jornalistas e cientistas. Eles puderam ver que esse conflito
acontece também em outras editorias do jornalismo, o que foi coerente com a minha proposta de
que a disciplina poderia auxiliá-los no entendimento de outras editorias do jornalismo. Na
polêmica sobre as especificidades dos campos do jornalismo e da ciência, “cutuquei” os alunos
com a proposta do neurocientista Miguel Nicolelis de divulgar os resultados de suas pesquisas
parte através de jornalistas e parte através do trâmite tradicional da ciência de avaliação dos pares
para publicação em periódicos. A ida de cientistas diretamente a jornalistas é vista com maus
olhos pela comunidade científica, já que etapas relevantes para a ciência estariam sendo deixadas
de lado. Essa polêmica fez com que dois estudantes debatessem sobre se o jornalista deveria ou
não publicar uma matéria científica que não tenha passado pelo peer-review. Um afirmou que não
soltaria a matéria porque ela poderia estar errada, mas outro estudante rebateu dizendo que a
essência da ciência é a retratação e a contestação dos outros cientistas. Uma ciência enquanto
processo que foi o objetivo da unidade de ensino e desta pesquisa.
Na aula sobre aspectos narrativos do jornalismo, julguei a pertinência do uso de textos de
dois teóricos da comunicação que consideraram o jornalismo para além do dito “factual” para
pensarem o jornalismo enquanto processo narrativo, a história e o contexto imbuídos naquilo que
os jornalistas consideram enquanto “fato”. Isso teve por objetivo fazer com que os alunos vissem
além dos resultados da ciência e aceitassem a possibilidade de se abordar também os processos da
ciência na prática jornalística. Os dois textos não se baseiam na análise de discurso que foi
mobilizada para a compreensão de como os alunos produziram sentidos. Entretanto, os textos
foram eficazes em fazer com que os estudantes assumissem posicionamentos referentes ao
problema de se limitar só ao dito “fato”, ideia que é pregada em manuais de redação dos jornais e
aceito como norma profissional. Os fatos devem dizer por si mesmos, em um asséptico texto que
só responde às questões do lide. Os artigos de Jorge Ijuim (2010) e Patrick Charaudeau (2010)
questionam esse relato frio dos jornalistas ao defenderem que os jornalistas devem, sim, utilizar a
própria experiência para se posicionarem perante o que chamam de fatos. Como expus, quando
145
os jornalistas têm experiência daquilo que estão escrevendo, eles também conseguem detectar as
mudanças de posicionamento das pessoas envolvidas e as mudanças na direção da trajetória dos
acontecimentos. Os processos da ciência são mais fáceis de serem notados a partir dessa
perspectiva narrativa do jornalismo, como mostrei na análise das reportagens produzidas pelos
estudantes de jornalismo. Eles mobilizaram características narrativas, como a pontuação temporal
e mudança de cenário, quando o pesquisador mudou os rumos da pesquisa. Tais marcas podem
ser propícias para a abordagem dos processos da ciência, já que a ideia de processo surgiu
conforme o texto jornalístico ganhou contornos narrativos. Os estudantes jornalistas tornaram a
ciência mais humanizada e narrativa, como proposta pela unidade de ensino, trazendo mais
informações sobre os processos da ciência que não estariam presentes em uma matéria
jornalística tradicional, na qual os cientistas só “afirmam”, “sugerem” e “descobrem”.
Um dos estudantes reconheceu que o jornalista, e todo ser, é um filtro. Isso é um passo
importante para os estudantes de jornalismo, já que eles, em geral, imaginam que o jornalista seja
um profissional absolutamente isento perante os ditos acontecimentos, como um dos alunos que
defendeu o uso da narrativa no jornalismo para “relatar o acontecido” sendo que o contrário
“permite que seus olhos influenciem o texto”. A unidade de ensino cumpriu para alguns o seu
papel em trabalhar e propor a superação dessa ilusão no jornalismo, apesar de alguns alunos
terem mantido essa ilusão.
Na atividade sobre narrativa e narrativa jornalística, alguns alunos responderam
favoravelmente as ideias propostas na aula, como a humanização dos textos de jornalismo
científico, trazendo aspectos narrativos para os textos e outros manifestaram certo desconforto
com a ideia de conceber o jornalismo enquanto expressão narrativa da contemporaneidade,
expondo posicionamentos contrários ao que foi discutido em sala. Isso ocorreu provavelmente
devido ao fato da proposta de narrativa jornalística desnaturalizar, trazer à tona, pontos polêmicos
do jornalismo que são naturais para os estudantes de jornalismo, como a objetividade e
imparcialidade, além das técnicas que padronizam a escrita jornalística, como o lide e a pirâmide
invertida, na qual os assuntos principais da notícia vêm sempre antes das informações
secundárias. A atividade demonstrou o grande desafio em se introduzir algo inovador ao
jornalismo, tendo em conta o fato dos estudantes estarem no último ano e terem tido a
oportunidade de cristalizar a prática jornalística tradicional durante três anos, ou mesmo antes do
146
início do curso. Entretanto, muitos estudantes assumiram posicionamentos referentes à
possibilidade em transformar a notícia em uma história, pontuando características narrativas o
que foi o objetivo da unidade de ensino. A possibilidade de encadear historicamente a notícia
através da narrativa foi percebida pelos estudantes o que reforçou a proposta desta tese em
ampliar a restrita e limitada perspectiva do jornalismo ao dito “acontecimento”. Essa ampliação
de abrangência favorece o trabalho com os processos da ciência, já que estes não estão atrelados
ao que normalmente a mídia considera como acontecimento diretamente.
Na avaliação, apesar das condições de produção intrínsecas a uma avaliação, as quais
permitem que os alunos respondam só o que o professor deve aceitar, os estudantes conseguiram
fazer relações satisfatórias entre a relevância em se abordar os processos da ciência e notar o
problema em se deter só nos resultados e apontarem como o jornalismo narrativo poderia criar
condições para a cobertura dos processos da ciência, enumerando diversas consequências que a
narrativa poderia oferecer ao jornalismo, como chamar a atenção dos leitores, alcançar maior
amplitude do assunto que está sendo noticiado, desmistificar a ciência, facilitar o entendimento
da ciência para um público amplo e desenvolver técnicas narrativas como descrição, uso de
figuras de linguagem e ambientação do cenário. Considerei como pelo menos uma das condições
de produção desses discursos as aulas e os textos lidos da unidade de ensino, o que evidencia o
funcionamento da unidade nos posicionamentos assumidos pelos estudantes de jornalismo. Esses
posicionamentos abrem a perspectiva para que o jornalismo científico conte com os processos da
ciência e não só com os resultados, o que responde positivamente às questões de estudo desta
pesquisa.
Os estudantes assumiram que é difícil divulgar a ciência para um público amplo através
do jornalismo, sendo que o viés narrativo auxiliaria o jornalismo nesse trabalho de circulação da
ciência na sociedade. Essa perspectiva foi coerente com o que defendi em sala de aula com base
no texto de Jorge Ijuim (2010), que o uso de aspectos narrativos e de figuras de linguagem devem
sempre estar atrelados à melhoria da compreensão dos assuntos abordados. Entretanto, muitos
alunos usaram o conceito de “tradução”, como nos moldes de Althier-Revuz (1998), para
compreender o papel do jornalismo científico. Bastaria ao jornalista traduzir o discurso científico
para o discurso jornalístico. Apesar de termos discutido em sala de aula que o papel do jornalista
não é o de um mero tradutor, muitos estudantes mantiveram esse posicionamento na avaliação.
147
Esse resultado não está de acordo com as ideias de Zamboni (1997) e Orlandi (2001) que
recusaram o papel do jornalista enquanto tradutor e é mais coerente com o proposto por Althier-
Revuz (1998).
Apesar de Orlandi afirmar que a divulgação científica não é tradução porque acontece no
mesmo idioma, o discurso científico, quando imaginado pelos estudantes de jornalismo, seria
constituído de uma metalinguagem tão específica e com termos técnicos, que, sim, seria como se
fosse apresentar um texto jornalístico em inglês ou alemão para a grande massa de brasileiros que
esses alunos imaginam enquanto leitores de textos de jornalismo científico. Além desse
imaginário dos leitores, a ideia de tradução que esses alunos trazem também é indício de suas
posições tradicionais do jornalismo, já que o jornalista não pode ter um papel crítico perante os
assuntos e só traduzir ciência.
Um dos estudantes mostrou que o jornalismo enquanto expressão narrativa da
contemporaneidade, auxiliaria na “tradução” de todos os fatos, que estão desconexos e difusos,
em processo. Para esse estudante, os resultados não favoreceriam a construção da narrativa
jornalística, sendo que, para construir uma narrativa, os processos da ciência deveriam ser
mobilizados pelo jornalista. Assim, ele relacionou a narrativa pelo processo da ciência,
possivelmente estabelecendo uma relação entre a busca pelo processo dos fatos científicos e o
encadeamento desses fatos na transformação de uma narrativa, o que foi a proposta da unidade de
ensino e objetivo desta tese.
Alguns estudantes foram capazes de notar além do imediato, dos resultados da ciência, e
imaginar a abordagem também do contexto, dos processos da ciência, uma perspectiva global
daquele fato/resultado que já é vastamente tratado pela mídia tradicional.
Esses estudantes foram coerentes com a unidade de ensino quando assumiram
posicionamentos sobre o uso de aspectos narrativos para a abordagem de um jornalismo além do
urgente sem cair no sensacionalismo e na estética banal. Ijuim (2010) propõe que as figuras de
linguagem não serviriam apenas para deixar o texto esteticamente bonito, mas para proporcionar
a compreensão do que está sendo tratado. Indo além do que é urgente, os alunos questionaram a
forma tradicional do jornalismo, baseada em um relato asséptico dos acontecimentos, sendo que
essa maneira tradicional poderia não favorecer a compreensão do que está sendo divulgado. Ao se
inserir esse viés literário, os textos de jornalismo cumpririam melhor o papel de proporcionar
148
elucidação e esclarecimentos dos temas que tratam. Esse posicionamento dos alunos favorece o
trabalho com os processos da ciência, já que o foco no urgente só vê os resultados como
acontecimentos relevantes para o jornalismo.
Eles também conseguiram identificar aspectos narrativos em uma atividade de leitura de
um texto que trouxe processos da ciência com aspectos narrativos no texto jornalístico. Eles
destacaram trechos nos quais o autor utilizou figuras de linguagem, descrição, recurso
comparativo e ambientação de cenário como estudado na unidade de ensino através dos textos
lidos e discutidos em sala de aula. Um dos estudantes afirmou que o resultado não é imediato,
sendo que a noção de etapas foi estabelecida na narração da pesquisa escrita por Escobar. Isso
reforça a minha tese em solucionar a falta da abordagem dos processos da ciência pelo jornalismo
científico através do viés narrativo para a abordagem jornalística da ciência. Ao narrar as etapas
da pesquisa e passar a ideia que o resultado não é imediato, a noção de processo da ciência é
estabelecida pelo texto jornalístico que possui aspectos narrativos. Assim, as indicações dos
estudantes dos aspectos narrativos do texto de Herton Escobar e a análise que alguns estudantes
fizeram do texto é uma certa evidência de que a unidade de ensino pode ter sido condição de
produção para os seus posicionamentos e indícios do funcionamento da unidade na atividade de
leitura durante a avaliação.
Durante a produção da reportagem as condições de produção do discurso mudam, como
um dos estudantes afirmou na avaliação: “o principal argumento dos jornalistas para sustentar
essa mitologia está nos critérios de noticiabilidade: atualidade e impacto social”. Jornalistas são
treinados para se dirigirem às massas. Em última instância, sem esquecer que o jornalismo é um
produto como qualquer outro, que no atual sistema capitalista deve proporcionar lucro para os
donos dos meios de comunicação, como qualquer outra empresa, os jornalistas são treinados
desde os primeiros momentos da graduação a elaborarem produtos jornalísticos que possam ser
comprados pelas pessoas em bancas de jornal, assinatura ou que aumentem a audiência televisiva
ou da internet. Esse é o principal motivo que faz com que os estudantes produzam textos de
jornalismo científico com temas que impactam a vida de milhões de pessoas, como saúde e meio
ambiente. Nesses textos, o ângulo adotado também dá indícios da tentativa em se dirigirem para
grande parte da população, com soluções imediatas para os seus problemas, como profilaxia das
doenças, remédios gratuitos, como construir casas mais baratas, como prevenir inundações e
149
reduzir o consumo de energia.
Outro critério de noticiabilidade levado em conta pelos estudantes foi o valor-notícia
“controvérsia ou conflito”. Muitos textos exploraram controvérsias científicas, como ameaça à
saúde pública, gestão dos recursos naturais e manejo de ecossistemas. Assim, dois critérios de
noticiabilidade foram predominantes nos textos: “impacto humano” e “controvérsia”. Pude
mostrar que os alunos tentaram fazer com que os prováveis leitores não sentissem ausência de
implicação, na qual o sujeito se sente indiferente à notícia, como teorizado por Alsina (2009). No
caso da ciência, fazer com que o leitor se sinta implicado é um enorme desafio, já que, em grande
parte, a ciência não traz implicação direta ou indireta à população.
As reportagens produzidas pelos estudantes foram além de meramente expor os resultados
da ciência e trouxeram aspectos históricos, sociais, econômicos e conceituais em que estão
envolvidos esses resultados. A abordagem desses aspectos foi possível com o uso de elementos
narrativos, como marcação temporal (uso de locuções que denotam temporalidade e ruptura),
mudança de cenário e uso de personagens. Isso me permite reforçar a tese de que trabalhar com
aspectos narrativos do jornalismo abre a possibilidade para a abordagem dos processos da ciência
no jornalismo científico. O modo tradicional da prática jornalística fica preso ao dito “fato” e
assim preso aos resultados da ciência. Essa prática foi questionada durante a unidade de ensino a
partir das aulas e dos textos lidos pelos estudantes o que favoreceu condições para que os textos
produzidos por eles contivessem elementos narrativos e assim com aspectos dos processos da
ciência.
O dispositivo teórico-analítico composto por elementos da teoria do jornalismo se
mostrou pertinente para a análise das interpretações dos estudantes. Alguns princípios da análise
de discurso permitiram a elaboração de uma unidade de ensino coerente com esses princípios,
apesar de, às vezes, ter recorrido a pesquisas em jornalismo que divergissem da matriz teórica da
análise de discurso, mas com o objetivo de mostrar aos alunos a multiplicidade na qual o
jornalismo é pesquisado. Houve algumas tensões entre as crenças tradicionais que ainda
persistem na mídia (e que repercutem na produção acadêmica da pesquisa em jornalismo) e a
análise de discurso. Tais crenças da prática jornalística assertam a desvinculação entre o sujeito
do objeto de conhecimento, considera algo ideológico como mau jornalismo (como se pudesse
existir um discurso sem ideologia), acredita na transparência da linguagem e que os fatos dizem
150
por si mesmos, além dos mitos da objetividade, neutralidade e imparcialidade que acontecem nas
redações e que atravessam a pesquisa em jornalismo. Mesmo com essas tensões, adotei dois
desses autores (Jorge Ijuim e Patrick Charaudeau) para o trabalho com estudantes de jornalismo.
Pelos alunos considerarem o trabalho com os processos da ciência e notarem o papel da
perspectiva narrativa no jornalismo neste trabalho, como exposto nos resultados desta tese,
considero que o uso desses autores parcialmente incoerentes com o referencial teórico da análise
de discurso não prejudicou a pesquisa. Mesmo assim, procurei evidenciar partes dessas tensões
durante o texto e pretendi aprofundá-las na discussão dos resultados.
Optei por não utilizar textos específicos sobre análise de discurso e suas relações com a
mídia pela própria condição da aplicação da unidade de ensino. 20 horas-aula distribuídas em
cinco encontros foram suficientes para se abordar aspectos que os alunos já tinham alguma
familiaridade, como as teorias de jornalismo e os critérios de noticiabilidade que os próprios
alunos confirmaram que fizeram parte do currículo em anos anteriores e não havia sido novidade
para eles e avançar em aspectos novos da discursividade jornalística como a consideração de sua
expressão narrativa. Para se trabalhar com textos de análise de discurso com profundidade, mais
aulas deveriam ser concedidas para se trabalhar temas polêmicos sem deixar os alunos a deriva
no campo jornalístico e, ainda mais, frustrados com a escolha profissional. A análise de discurso
asserta que os textos da mídia não oferecem a realidade, mas são uma construção que permite ao
leitor produzir formas simbólicas de representação da sua relação com a realidade concreta
(GREGOLIN, 2007, p. 16). Tal assertiva poderia encontrar forte resistência junto aos alunos, já que
o jornalismo pressupõe o contato com a realidade “nua e crua”, o que faz os jornalistas se
aventurarem e arriscarem suas vidas para estarem próximo aos acontecimentos, como nos casos
de calamidades e conflitos armados. Entretanto, trabalhei essa ilusão utilizando textos de
pesquisadores em comunicação e jornalismo de uma maneira menos enfática e contundente.
Um dos outros conflitos, foi a questão da especificidade do jornalismo científico. Na tese,
assumo a posição que o grau de abrangência do jornalismo científico abrange a pesquisa
científica, seja ela das ciências exatas, biológicas, de saúde, ambientais e humanas. A própria
pesquisa em si, seus resultados e processos podem ser abordados pela editoria de ciência.
Questões sociais, éticas, políticas e econômicas que envolvem a pesquisa também são pautas da
editoria ciência dos meios de comunicação. Já assuntos que sofrem influência da pesquisa
151
científica não necessariamente precisam ser enquadrados pela editoria de ciência. Por exemplo, o
problema da superlotação dos hospitais vai para a editoria de política e geral e não para a editoria
ciência. O que não quer dizer que não considero essa pauta importante ou que “saúde não seja
ciência” e seja rapidamente tachado de “cientificista”. Esse recorte precisou ser feito para auxiliar
os alunos na organização editorial de um jornal, o que é um dos requisitos básicos da profissão.
Caso esse recorte não fosse explicitado aos alunos, assuntos com “toque científico”, como, por
exemplo, o novo corte de cabelo de determinado artista que usou um secador de cabelo iônico
deveria ser considerado como jornalismo científico, além do perigo das pseudociências 24, como o
avistamento de discos voadores, também deveria fazer parte da editoria, o que ocorreu algumas
vezes em que cursei a disciplina como estudante. Assim, justifico o recorte realizado e procuro
afastar as críticas de cientificismo.
Outro ponto de conflito está nas separações dicotomizadas realizadas por mim enquanto
pesquisador e pelas teorias do jornalismo como um todo. Para a análise de discurso, da mesma
forma que não faz sentido separar conteúdo e forma, também não faz sentido separar a ciência
enquanto “processos” e “resultados”. Os resultados de uma pesquisa se referem aos processos,
sendo que estes, sejam metodológicos, históricos e econômicos, produzem resultados coerentes
com esses aspectos do processo, como podemos conferir em estudos em epistemologia da ciência
como Kuhn (1974). Porém, dado a onda neopositivista que impregna a prática jornalística, ainda
é necessário discutir com os alunos a suposta diferenciação entre conteúdo e forma, objetividade
e subjetividade e processos e resultados da ciência. Mesmo a separação entre jornalismo e
literatura existe por conta do pensamento cartesiano e o imaginário positivista que se
encarregaram de delimitar e disciplinar campos que não têm de estar isolados (IJUIM, 2010).
Apesar de ser absurdo, do ponto de vista da análise de discurso, acreditar que ora o jornalista é
objetivo ora é subjetivo, já que em toda manifestação da linguagem ele é objetivo e subjetivo ao
mesmo tempo, ainda é necessário discutir essas instâncias com os alunos para criar condições
para a superação dessas dicotomias. A ideia é trazer os pontos polêmicos para, discutindo, criar
condições para superá-los.
Uma outra problemática que mereceria uma pesquisa em educação em jornalismo seria as
concepções de ciência do jornalismo e como trabalhar essas concepções com estudantes de
152
jornalismo. Em uma disciplina que dure um semestre, com mais que as 20h que trabalhei com os
alunos, poderiam ser incluídos eixos específicos relacionados às grandes áreas da ciência e suas
epistemologias, como exatas, biológicas, saúde, geociências e humanas. Esses eixos teriam por
objetivo demonstrar que todas essas áreas produzem conhecimentos com implicação direta na
sociedade e não apenas saúde e ambiente que os alunos consideraram como “de impacto” na
população.
Como a unidade de ensino produziu deslocamentos em direção a uma perspectiva mais
realista da prática científica, com a abordagem dos processos da ciência junto aos resultados, um
deslocamento que não é usual no jornalismo, já que os resultados possuem mais critérios de
noticiabilidade, fica aberta a possibilidade também de se trabalhar com a produção de
significados de textos de análise de discurso junto a estudantes de jornalismo. Esse trabalho em
salas de aula de graduação em jornalismo teria por objetivo a tentativa de superação de ilusões
que se cristalizaram no jornalismo, como a de que os fatos devem dizer por si próprios e de que o
jornalista deve ser neutro perante o que são considerados acontecimentos merecedores de receber
tratamento jornalístico. A concepção de linguagem da análise de discurso pode oferecer
condições para que os estudantes tenham consciência da linguagem em movimento, no dia a dia
dos acontecimentos, na ideologia das fontes entrevistadas e na historicidade do que consideram
“fato”. Uma pesquisa futura poderá ser feita visando compreender como estudantes de jornalismo
produzem sentidos com a leitura de textos de análise de discurso e compreender como eles vêm o
relacionamento da análise de discurso com o jornalismo.
153
154
Referências
ABRAMO, Cláudio. A Regra do Jogo. São Paulo: Companhia das Letras, 1988
ALLAN, Stuart. Media, Risk and Science. Buckingham: Open University Press, 2002.
____________. News culture. Berkshire: Open University Press, 2004.
____________. Citizen Witnessing: Revisioning Journalism in Times of Crisis. Cambridge:
Polity, 2013.
ALLAN, Stuart e ZELIZER, Barbie. Keywords in News and Journalism Studies. Berkshire:
Open University Press, 2010.
ALMEIDA, Maria José Pereira Monteiro de. O texto escrito na educação em física: enfoque na
divulgação científica. In: ALMEIDA, Maria José Pereira Monteiro de e SILVA, Henrique César
da (orgs.). Linguagens, leituras e ensino da ciência. Campinas: Mercado de Letras, 1998.
_______________. Discursos da ciência e da escola: ideologia e leituras possíveis. Campinas:
Mercado de Letras, 2004.
_______________. Um dispositivo analítico de leituras nas ciências da natureza. Enseñanza de
las Ciências: Número Extra VIII Congreso Internacional sobre Investigación en Didáctica
de las Ciencias, Barcelona, 2009.
ALMEIDA, Maria José Pereira Monteiro de e GAMA, Liliane Castelões. Licenciandos em física
e estudantes de jornalismo: posições sobre divulgação científica. Atas do XVI Simpósio
Nacional de Ensino de Física. Rio de Janeiro, RJ, 2005.
ALMEIDA, Maria José Pereira Monteiro de; NARDI, Roberto e BOZELLI, Fernanda Cátia. A
diversidade de interpretações como fator constituinte da formação docente: leitura e observação.
Educar em Revista, Curitiba, n. 34, 2009.
ALSINA, Miquel Rodrigo. A construção da notícia. Petrópolis: Vozes, 2009.
AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Palavras incertas: as não-coincidências do dizer. Campinas:
Editora da Unicamp, 1998.
BELDA, Francisco Rolfsen. Jornalismo científico na graduação: um relato de experiências e
resultados. Atas do II Encontro Estadual de Professores de Jornalismo. São Paulo, SP, 2006.
BERTOLLI FILHO, Claudio. Elementos fundamentais para a prática do jornalismo científico.
Biblioteca On-line de Ciências da Comunicação. 2006.
_______________. Jornalismo e cultura genetocêntrica: o caso da Folha de S. Paulo.
Communicare – Revista do Centro Interdisciplinar de Pesquisa – Faculdade Cásper Líbero,
São Paulo, v. 10, n. 1, 2010.
BRANDÃO, Helena Hathsue Nagamine. Introdução à análise do discurso. Campinas: Editora
da Unicamp, 1991.
BUENO, Wilson da Costa. Jornalismo Científico no Brasil: Uma relação de dependência.
Tese (Doutorado em Comunicação) – Escola de Comunicação e Artes, USP, 1985.
BURKETT, Warren. Jornalismo científico: como escrever sobre ciência, medicina e alta
155
tecnologia para os meios de comunicação. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990.
CALDAS, Graças; SOUSA, Cidoval Morais de; ALBERGUINI, Audre e DINIZ, Augusto. O
desafio da formação em jornalismo científico. Anais do XIV Encontro Anual da Compós.
Niterói, RJ, 2005.
CARVALHO, Juliano Maurício de, PASSOS, Mateus Yuri Ribeiro da Silva e NERING, Érica
Masiero. Ciência em construção e jornalismo literário: as montanhas de Pi. E-Compós, Brasília,
v. 11, n. 3, 2008b.
CARVALHO, Juliano Maurício de; MASIERO, Érica Nering e PASSOS, Mateus Yuri. As
relações de poder no discurso de divulgação científica. Anais do XXXI Congresso Brasileiro de
Ciências da Comunicação. Natal, RN, 2008a.
CASCAIS, Antônio Fernando. Divulgação científica: A mitologia dos resultados. In: SOUSA,
Cidoval, MARQUES, Nuno e SILVEIRA, Tatiana (orgs.). A comunicação pública da ciência.
São Paulo: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2003.
CHALMERS, Alan Francis. O que é ciência, afinal? São Paulo: Brasiliense, 1993.
CHARAUDEAU, Patrick. O discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2010.
CLAYTON, Julie. Encontrando e avaliando notícias científicas. Curso Online de Jornalismo
Científico. WFSJ e SciDev.Net. Gatineau e Londres, 2008.
CUNHA, Fernando. Quando os jornalistas falam sobre ciência. Agência FAPESP, São Paulo,
2013
DAL-FARRA, R. A. Representações de animais de companhia na cultura contemporânea: uma
análise na mídia impressa. Semiosfera, v. 3, n. 7, 2004.
DIAS, Ricardo Henrique Almeida. Satélite com participação brasileira buscará exoplanetas e
estudará interior das estrelas. Revista Macrocosmo.com, São Paulo, n. 31, 2007.
_______________. A física nas revistas Ciência Hoje e Pesquisa Fapesp: leituras de
licenciandos. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Unicamp, 2009.
ESCOBAR, Herton. Do deserto chileno, astrônomos estudam o DNA das estrelas. Disponível
em: <http://bitly.com/1ndoiVc>. Estadão.com.br, 2012.
ESTEVES, Bernardo; MASSARANI, Luisa e MOREIRA, Ildeu de Castro. Ciência para Todos e
a divulgação científica na imprensa brasileira entre 1948 e 1953. Revista da Sociedade
Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, 2006.
FAHNESTOCK, Jeanne. Accommodating Science : The Rhetorical Life of Scientific Facts.
Written Communication, v. 3, n. 3, 1986.
__________________. Adaptação da ciência: a vida retórica de fatos científicos. In:
MASSARANI, Luisa; TURNEY, Jon e MOREIRA, Ildeu de Castro (orgs.). Terra incógnita: a
interface entre ciência e público. Rio de Janeiro: Casa da Ciência, 2005.
FIORAVANTI, Carlos. O frio e o calor que vêm dos ímãs. Pesquisa Fapesp, São Paulo, n. 110,
2005b.
__________________. As longas asas dos neurônios. Pesquisa Fapesp, São Paulo, n. 118,
156
2005a.
FLORES, Natália Martins e SILVEIRA, Ada Cristina Machado da. A formulação discursiva no
jornalismo científico: construção da visada da captação em um diário popular. Em Questão,
Porto Alegre, v. 16, n. 1, 2010.
FURTADO, Fred. Radiação sob medida. Ciência Hoje, Rio de Janeiro, n. 218, 2005.
GARCIA, Marcelo. Viagens animais: Conheça a história de cachorros, gatos e macacos que
conquistaram os céus. Ciência Hoje das Crianças Online, Rio de Janeiro, 2013.
GOMES, Isaltina Maria de Azevedo Mello. A ciência nos jornais. Galáxia, São Paulo, v. 1, n. 3,
2002.
GREGOLIN, Maria do Rosário. Análise do discurso e mídia: a (re)produção de identidades.
Comunicação, mídia e consumo. São Paulo, v. 4, n. 11, 2007.
GUIMARÃES, Eduardo. O acontecimento para a grande mídia e a divulgação científica. In:
GUIMARÃES, Eduardo (org.). Produção e circulação do conhecimento: estado, mídia,
sociedade. Campinas: Pontes Editores, 2001.
HANSEN, Anders. Journalistic practices and science reporting in the British press. Public
Understanding of Science, v. 3, n. 2, 1994.
IJUIM, Jorge Kanehide. O real e o poético na narrativa jornalística. Conexão – Comunicação e
Cultura, v. 9, 2010.
IVANISSEVICH, Alicia. A mídia como intérprete: como popularizar a ciência com
responsabilidade e sem sensacionalismo. In: VILAS BOAS, Sérgio. Formação & informação
científica. São Paulo: Summus Editorial, 2005.
JORGE, Thaïs de Mendonça. Por uma didática da notícia: experiência extraclasse na construção
de grande reportagem. Revista Brasileira de Ensino de Jornalismo, Brasília, v. 1, n. 1, 2007.
JURBERG, Cláudia e MACCHIUTE, Bruno. Um olhar sobre as revistas: o caso da divulgação
em câncer. Intercom – Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, São Paulo, v. 29, n. 2,
2006.
KARAM, Francisco José. Jornalismo, ética e liberdade. São Paulo: Summus, 1997.
KUHN, Thomas S. A função do dogma na investigação científica. In: DEUS, Jorge Dias de (org.)
A crítica da ciência. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1974.
LATOUR, Bruno. Quanto mais manipulações melhor. Tradução de Ricardo H. A. Dias. In:
COOPMANS, Catelijne et. al (org.). Representation in Scientific Practice Revisited.
Cambridge: MIT Press, 2014.
LIMAYE, Yogita. India's space ambition takes off. BBC News. Vídeo disponível em:
<http://www.bbc.com/news/business-24769183>. London, 2013.
LUSTOSA, Elcias. O texto da notícia. Brasília: Editora da UnB, 1996.
LUZ, Lia Hecker. A pílula da longevidade à venda nas páginas da revista Veja. Intercom –
Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, São Paulo, v. 33, n. 1, 2010.
157
LEITE, Marcelo. Dna indica que espécie humana quase se dividiu em duas. Disponível em:
<http://folha.com/no1404886>. Folha de S.Paulo, 2014.
MACEDO, Mônica. Ensino de jornalismo científico no Brasil: evolução e perspectivas. In:
DUARTE, Jorge e BARROS, Antônio Teixeira de (orgs.). Comunicação para a ciência, ciência
para comunicação. Brasília: Embrapa Informação Tecnológica, 2003.
MARQUES DE MELO, José. Impasses do Jornalismo Científico. Comunicação & Sociedade,
São Bernardo do Campo, v. 4, n. 7, 1982.
MASSARANI, Luisa; AMORIM, Luis; BUYS, Bruno e VENEU, Fernanda. Science journalism
in Latin America: A case study of seven newspapers in the region. JCOM – Journal of Science
Communication, Trieste, v. 4, n. 3, 2005.
MASSARANI, Luisa. A divulgação científica no Rio de Janeiro: algumas reflexões sobre a
década de 20. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) – Instituto Brasileiro de
Informação em Ciência e Tecnologia e Escola de Comunicação, UFRJ, 1998.
MAZIÈRE, Francine. A análise do discurso: história e práticas. São Paulo: Parábola Editorial,
2007.
MEDEIROS, Flávia Natércia da Silva. As páginas de ciência de prestige papers brasileiros na
cobertura dos transgênicos em anos de ‘hype’ (1999-2000). Intercom – Revista Brasileira de
Ciências da Comunicação, São Paulo, v. 30, n. 1, 2007.
MONTEIRO, Maria da Graça M. de França. Duelo ou dueto? A controvertida relação entre
cientista e jornalista. In: DUARTE, Jorge e BARROS, Antônio Teixeira de (orgs.). Comunicação
para ciência, ciência para comunicação. Brasília: Embrapa Informação Tecnológica, 2003.
MOURA, Mariluce. Jesús Martín-Barbero: As formas mestiças da mídia. Pesquisa Fapesp, São
Paulo, n. 163, 2009.
MOUTINHO, Sofia et. al Nasce uma galáxia. Ciência Hoje Online. Vídeo disponível em:
<http://www.youtube.com/watch?v=AB3JRuTObTM>. Rio de Janeiro, 2012.
NEVEU, Érik. Sociologia do jornalismo. São Paulo: Edições Loyola, 2006.
NOGUEIRA, Salvador. Área levará a revolução tecnológica, diz vencedor. Folha de S.Paulo,
2005.
OLIVEIRA, Mariella Silva de; PAIVA, Lucia Helena Costa; COSTA, José Vilton e PINTO-
NETO, Aarão Mendes. Imprensa e saúde da mulher: a abordagem das revistas semanais
brasileiras. Intercom – Revista Brasileira de Ciências da Comunicação. São Paulo, v. 32, n. 1,
2009
ORLANDI, Eni Puccinelli. Discurso, imaginário social e conhecimento. Em Aberto, Brasília, n.
61, 1994.
____________. Discurso e leitura. São Paulo: Cortez; Campinas: Editora da Unicamp, 1988.
____________. Divulgação científica e efeito leitor: uma política social urbana. In:
GUIMARÃES, Eduardo (org.). Produção e circulação do conhecimento: estado, mídia,
sociedade. Campinas: Pontes Editores, 2001.
158
____________. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2005.
PASSOS, Mateus Yuri. Jornalismo literário e a pirâmide: implicações discursivas na comunicação
pública da ciência. Intercom – Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, São Paulo, v.
33, n. 2, 2010.
PÊCHEUX, Michel. Papel da memória. In: ACHARD, Pierre (org.). Papel da memória.
Campinas: Pontes, 1999.
________________. Semântica e discurso: uma crítica a afirmação do óbvio. Campinas:
Editora da Unicamp, 2009.
PECHULA, Marcia Reami. A ciência nos meios de comunicação de massa: divulgação de
conhecimento ou reforço do imaginário social? Ciência & Educação, Bauru, v. 13, n. 2, 2007.
PETERS, Hans Peter. A interação entre jornalistas e especialistas científicos: cooperação e
conflito entre duas culturas profissionais. In: MASSARANI, Luisa; TURNEY, Jon e MOREIRA,
Ildeu de Castro (orgs.). Terra incógnita: a interface entre ciência e público. Rio de Janeiro:
Casa da Ciência, 2005.
PETERSEN, Alan; ANDERSON, Alison; ALLAN, Stuart e WILKINSON, Clare . Opening the
black box: Scientists’ views on the role of the news media in the nanotechnology debate. Public
Understanding of Science, v. 18, n. 5, 2009.
______________. Nanotechnology and news. People & Science, março de 2010.
PIVETTA, Marcos. Carbono em gotas. Pesquisa Fapesp, São Paulo, n. 109, 2005.
_______________. A dieta de Luzio. Pesquisa Fapesp, São Paulo, n. 188, 2011.
PIVETTA, Marcos et. al. Eta Carinae: além do eclipse. Pesquisa Fapesp. Vídeo disponível em:
<http://revistapesquisa.fapesp.br/2012/03/08/eta-carinae-alem-do-eclipse/>. São Paulo, 2012.
POLINO, Carmelo. La investigación en salud en diarios de América Latina: reporte de un estudio
comparativo. In: MASSARANI, Luisa e POLINO, Carmelo (orgs.). Jornadas Iberoamericanas
sobre la ciencia en los medios masivos: los desafíos y la evaluación del periodismo. Santa
Cruz de la Sierra: AECI, RICYT, CYTED, SciDevNet, 2008.
PONTE delicada. Pesquisa Fapesp, São Paulo, n. 115, p.45, 2005.
REED, Rosslyn. (Un-)Professional discourse?: Journalists' and scientists' stories about science in
the media. Journalism, London, v. 2, n. 3, 2001.
SAGAN, Carl. O mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no
escuro. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
SCOTT, Christina. A entrevista. Curso On line de Jornalismo Científico. WFSJ e SciDev.Net.
Gatineau e Londres, 2008.
SPONHOLZ, Lirian. Jornalismo, conhecimento e objetividade: além do espelho e das
construções. Florianópolis: Editora Insular, 2009.
THIOLLENT, Michel. Jornalismo científico e suas funções no conjunto da comunicação social.
Comunicarte, Campinas, n. 2, 1983.
159
VARA, Ana María e MENDOZA, Diego Hurtado de. Comunicación pública, história de la
ciencia y ‘periferia’. In: WOLOVELSKY, Eduardo (org.). Certezas y controversias. Apuntes
sobre la divulgación científica. Buenos Aires: Libros del Rojas, 2004.
VILARDO, Isadora. Jornalismo de ciência desafiado. Ciência Hoje On-line. Rio de Janeiro,
2013.
VOGT, Carlos et. al C&T na mídia impressa brasileira: tendências evidenciadas na cobertura
nacional dos jornais diários sobre ciência e tecnologia (biênio 2000-2001). In: Guimarães,
Eduardo (Org). Produção e circulação do conhecimento: política, ciência, divulgação.
Campinas: Pontes Editores, 2001.
ZAMBONI, Lilian Márcia Simões. Heterogeneidade e subjetividade no discurso da
divulgação científica. Tese (Doutorado em Linguística) – Instituto de Estudos da Linguagem,
Unicamp, 1997.
ZELIZER, Barbie. Taking journalism seriously: news and the academy. Thousand Oaks: Sage
Publications, 2004.
160
Anexo I – Avaliação aplicada durante a disciplina Jornalismo Científico
Avaliação escrita
• ignorar a atividade científica enquanto processo, que, ao mesmo que procede pelo cumprimento
protocolar de critérios a priori de rigor metodológico da investigação, progride de modo não
linear, errático e tenteante – que o mesmo é dizer, branquear a revisibilidade intrínseca a todo o
conhecimento científico e a historicidade inerente ao perseguir de interesses cognitivos, variáveis
temporal e espacialmente, a ponto de se tornarem incompatíveis ou mutuamente exclusivos;
• anular o papel do erro produtivo na tomada de decisão e nas escolhas científicas, de tal modo
que o sucesso da obtenção de resultados é atribuível ao rigor da concepção metodológica – o que
implica a necessária eliminação do resto (o racionalmente inexplicável, o estatisticamente
excepcional) que excede o domínio de rigor delimitado pelo método, tido por subproduto espúrio
dele, em vez de marca dos seus limites de validade;
• assimilar fins a resultados, assim definidos – aqueles – em função da eficácia a posteriori da
empresa científica, com a exclusão dos resultados fortuitos, inesperados ou adversos.
Explicar um fato é tentar dizer o que o motivou; quais foram as intenções de seus atores; as
circunstâncias que o tornaram possível; segundo qual lógica de encadeamento; que consequências
podem ocorrer. Isso porque toda narrativa se fundamenta não na simples lógica dos fatos, mas na
intenção construída em torno de diferentes questões: a da origem (“por que as coisas são
assim?”), a da finalidade (“para onde vão as coisas?”) e a do lugar do homem no universo (“por
que eu sou assim no meio dessas coisas?”). São as respostas, ou tentativas de respostas, a essas
questões que tornam o mundo inteligível e que dão sentido aos homens. É por isso que dentre os
procedimentos necessários ao relato são esperadas explicações sobre o “por que é assim?”
161
(remetendo à causa e à finalidade dos fatos) e sobre o “como é possível?” (remetendo à
probabilidade e à consequência, real ou imaginada, dos fatos).
O relato das ações humanas advém dos esforços do jornalista em observar e refletir sobre os
fenômenos para, percebendo-os, poder expressá-los. Se é assim, narrar é construir uma realidade
pela atribuição de significados, de sentidos – socialmente compartilhados –, que possam
colaborar não só para que a audiência tenha informação, mas proporcionar situações para que
essa audiência possa ser afetada, provocada.
A apropriação dos recursos da poética não configura a intenção desses repórteres de – na
forma simplista e reducionista – criar textos brilhantes e cheios de adornos inócuos. As
proposições desses escritores-jornalistas visam a oferecer narrativas ricas em elucidação,
esclarecimento, emoção, provocação. Em muitos casos, é a maneira de tornar compreensíveis os
indecifráveis idiomas dos especialistas. Por isso mesmo, conquistam audiência não só através de
apelos sensacionalistas ou dramalhões do “mundo cão”, mas pela inteligência e lucidez do bom
uso da linguagem – comum à literatura e ao jornalismo, comum ao real e ao poético.
Nos esforços de “recriação de uma nova dimensão às coisas”, tais narrativas também
podem ir além do urgente (fatos) para abordar o importante (fenômenos sociais), transcendem o
passageiro e o circunstancial na busca do essencial humano, porque adquirem “vigor e
permanência à sua obra” (narrativas).
De acordo com o que foi visto na disciplina, e recortado nesses três textos, responda às seguintes
questões:
1) Qual a relação entre o jornalismo científico e o jornalismo visto por este ângulo narrativo de
acordo com Charaudeau e Ijuim?
3) Como o jornalismo científico, com base nesse viés narrativo, escaparia à “mitologia dos
resultados” proposto por Antônio Cascais?
Texto 4 – Do deserto chileno, astrônomos estudam o DNA das estrelas de Herton Escobar
Do deserto chileno, astrônomos estudam o DNA das estrelas
Cada minuto de uso dos disputados telescópios nos Andes tem alto valor científico
22 de janeiro de 2012
162
Com alguns cliques do mouse, entre um gole e
outro de chimarrão, o astrônomo Alvaro Alvarez
dá as coordenadas para que o telescópio UT-2,
instalado a 2,6 mil metros de altitude nos Andes
chilenos, aponte para o objeto NGC 2264, um
aglomerado de estrelas a 2,6 mil anos-luz da Terra,
na constelação de Unicórnio. Em poucos minutos,
uma imagem do aglomerado aparece na tela, à
medida que as partículas de luz que viajaram 2,6
mil anos no espaço são refletidas pelo espelho do
telescópio e redirecionadas para um instrumento
capaz de separar a luz de mais uma centena de
Dvulgação . Vista do complexo de telescópios do Observatório estrelas em fibras óticas individuais,
Paranal, do ESO, nos Andes chilenos
simultaneamente.
163
anos, monitora os três instrumentos e gerencia a fila de observações do UT-2, enquanto sua
colega, Karla Aubel, controla os movimentos do telescópio. Outras duplas fazem o mesmo para
os outros telescópios.
Luz. Paranal é apenas um dos três centros de observação do Observatório Europeu do Sul (ESO,
em inglês), um consórcio de 14 países ao qual o Brasil pretende se juntar em breve (mais
informações nesta página). A organização, por enquanto, é 100% europeia, mas os observatórios
ficam no Chile por causa das condições atmosféricas, climáticas e geográficas únicas da região.
O ar limpo e seco do Deserto do Atacama, combinado com a altitude dos Andes (que reduz a
espessura e a densidade da camada de atmosfera que a luz precisa atravessar para chegar aos
telescópios) e o isolamento geográfico (que reduz a poluição luminosa), transformam a paisagem
do norte chileno em um oásis para a astronomia mundial.
Ao norte de Paranal, em condições ainda mais inóspitas, fica o observatório Alma, um conjunto
de antenas supersofisticadas, feitas para observar ondas de luz em frequências milimétricas e
submilimétricas, na faixa do infravermelho ao rádio (invisíveis para o olho humano). O projeto,
orçado em 1 bilhão, prevê a instalação de 66 antenas, que poderão funcionar simultaneamente
como se fossem um único telescópio gigantesco, de até 15 quilômetros de diâmetro. Dezesseis já
estão em operação, produzindo, cada uma, 96 gigabites de informação por segundo, 24 horas por
dia.
As antenas, com 20 metros de altura e pesando 100 toneladas cada uma, parecem saídas de um
filme da série Guerra nas Estrelas. Uma impressão realçada pela aparência “extraterrestre” do
Altiplano de Chajnandor, a 5 mil metros de altitude, que poderia se passar por um deserto
marciano. “Não há lugar melhor no mundo para radioastronomia”, vibra a astrônoma Alison
Peck, diretora de projetos científicos do Alma.
Apesar do tamanho, as antenas são móveis, podendo formar diferentes configurações. Assim, os
cientistas podem optar por colocá-las bem separadas, para focar em objetos específicos, ou
colocá-las mais próximas umas das outras, para ampliar o campo de visão e enxergar mais longe -
como se faz com as lentes de uma câmera fotográfica.
A vantagem da radiação submilimétrica é que ela não é bloqueada pelos gases e poeira do meio
interestelar, como a luz visível, permitindo, ironicamente, que os astrônomos enxerguem mais
coisas com os radiotelescópios do que com os próprios olhos. As principais aplicações do Alma
serão no estudo da formação de estrelas, planetas e galáxias, que ocorrem em meio a gás e muita
poeira.
Interessados em respirar o ar seco do deserto para isso não faltam. Mas falta tempo para tanto
interesse. Cerca de 900 projetos de pesquisa já foram submetidos ao Alma para 2012. Mas só 100
poderão ser escolhidos.
4) Com base na leitura do texto, destaque trechos nos quais o autor se utilizou de características
narrativas na divulgação do novo observatório chileno.
164
Anexo II – Charge contida no texto de Bruno Latour (2011) lido pelos estudantes
165