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70 ENSAIO | ESSAY

Rede Básica, campo de forças e


micropolítica: implicações para a gestão e
cuidado em saúde
Basic Healthcare Network, field of forces and micropolitics:
implications for health management and care

Emerson Elias Merhy1, Laura Camargo Macruz Feuerwerker2, Mara Lisiane de Moraes Santos3,
Debora Cristina Bertussi4, Rossana Staevie Baduy5

DOI: 10.1590/0103-11042019S606

RESUMO A proposta deste ensaio é discutir a micropolítica da gestão e do cuidado em saúde na Rede
Básica (RB). Inicia-se pelo que se entende por RB e depois por micropolítica – da gestão e do cuidado.
Analisam-se as forças que estão operando no cotidiano da RB que se instauram nos atos relacionais, nos
encontros, entre gestores e trabalhadores, entre trabalhadores, entre todos esses e os usuários, constituindo
campos de força, que conformam modos de estar no encontro, agenciando processos de subjetivação.
Destacam-se cinco forças-valores centrais para que sejam pensados o dentro e o fora do comum dos
acontecimentos que ocorrem no dia a dia das práticas de cuidado em saúde: a força-valor trabalho, a
força-valor território, a força-valor governo de si e do outro, força-valor clínica-cuidado e a força-valor
trabalho em equipe. A aposta em um modo de cuidar na RB centrado na produção de potências para o
enfrentamento dos desafios do viver com sofrimento, com o adoecimento e seus desdobramentos em
situações diversas e adversas deve contribuir para produção de existências possíveis e favoráveis aos
melhores modos de andar a vida, com todos os seus desafios.

PALAVRAS-CHAVE Assistência integral à saúde. Atenção Primária à Saúde. Políticas públicas de saúde.
Relações interpessoais. Prática profissional.

ABSTRACT The purpose of this paper is to discuss the micropolitics of health management and care in
1 Universidade Federal do the Basic Healthcare Network (RB). It starts by what is understood by RB and then by micropolitics – of
Rio de Janeiro (UFRJ) – Rio
de Janeiro (RJ), Brasil. management and of care. We analyze the forces that are operating in the daily routine of the RB that are
emerhy@gmail.com established in the relational acts, in the meetings, between managers and workers, among workers, among all
2 Universidade
these and the users, constituting fields of force, which shape ways of being in the meeting, managing processes
de São
Paulo (USP) – São Paulo of subjectivation. Five central value forces stand out so that the inside and the outside of everyday events
(SP), Brasil. of health care practices can be thought of: labor force-value, territory force-value, government of self and
3 Universidade
government of the other force-value, clinical-care force-value and teamwork force-value. The bet on a way
Federal
do Mato Grosso do Sul of caring in RB, centered on the production of potencies to face the challenges of living with suffering, with
(UFMS) – Campo Grande illness and its unfoldings in diverse and adverse situations should contribute to the production of possible
(MS), Brasil. and favorable existences to the best ways of walking life with all its challenges.
4 Universidade Municipal
de São Caetano do Sul KEYWORDS Comprehensive health care. Primary Health Care. Public Health Policy. Interpersonal Relations.
(USCS) – São Caetano do
Sul (SP), Brasil.
Professional Practice.

5 UniversidadeFederal de
Londrina (UEL) – Londrina
(PR), Brasil.

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
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Rede Básica, campo de forças e micropolítica: implicações para a gestão e cuidado em saúde 71

Introdução especificidades da luta brasileira pela saúde


como direito de todos e dever do Estado. RB
Este ensaio discute a micropolítica da gestão que não se limita a ser o ‘primeiro nível de
e do cuidado em saúde na Rede Básica (RB). atenção’, pois traz como constitutiva a garantia
Iniciamos apresentando o que entendemos de cuidado contínuo, produzido em rede por
por RB e depois por micropolítica – da gestão diferentes tipos de serviços, de saúde ou não.
e do cuidado – na atenção à saúde. RB que não é simplesmente ‘a porta de entrada’
A RB é uma aposta de fazer chegar o cuidado do sistema de saúde, pois existem várias outras
em saúde aos diferentes territórios em que a entradas, dependendo dos problemas que levam
vida é produzida. Cuidado contextualizado, os usuários a procurar os serviços.
que reconhece a singularidade da produção de RB que vai muito além da atenção primá-
cada existência e também as circunstâncias es- ria em saúde, que se consolidou como uma
pecíficas da vida em cada território, em função proposta de organizar a assistência médica2
de relações que ampliam ou constrangem a capilarizada, produzida por um generalis-
potência das vidas. Ou seja, a RB é uma aposta ta – e que, por isso mesmo, sempre precisa
de organizar o cuidado singular, articulando o estar acompanhada da oferta das chamadas
individual e o coletivo, sendo saúde entendida ações de saúde pública – vacinação, vigilân-
de modo ampliado, não somente referida ao cia epidemiológica etc., ofertadas por outras
corpo biológico e seus adoecimentos. equipes ou serviços3. Nessa RB, tudo isso está
Uma aposta que pede a combinação de múl- articulado nas ações e no cuidado produzidos
tiplos saberes em saúde, tanto os técnicos, das por equipes de saúde. É da produção dessa RB
diferentes profissões, como os produzidos a que vamos falar.
partir da experimentação da vida em diferentes Uma Unidade Básica de Saúde (UBS) é de-
tempos e territórios. Essa é uma RB que pede finida pelas políticas de saúde em um plano
interprofissionalidade e compartilhamento formal, que estabelece sua finalidade, seu
com os usuários, seus saberes e viveres, para desenho básico, os papéis de gestores, trabalha-
poder produzir cuidado capaz de ampliar as dores e usuários. Entretanto, não é só esse plano
potências de vida, de favorecer a produção de formal da política que define o que se passa em
melhores modos de conviver com problemas uma UBS, pois no processo de produção da
que não podem ser resolvidos, de dialogar com política, em diferentes momentos, prosseguem
a diversidade de modos e sentidos que a vida os enfrentamentos entre forças, que marcam
tem para os diferentes viventes a cada momento. mais ou menos definições e práticas.
Essa aposta de organizar a RB como um Ressaltamos que, derrotadas ou vitoriosas na
cuidado territorializado, articulando atenção formulação da política, essas forças continuam
individual e ações coletivas, começou a ser discu- atuantes na construção concreta das práticas,
tida no Brasil no início dos anos 19601, esteve ex- atuando como molaridades4. Por exemplo, a
pressa nos debates da III Conferência Nacional força médico-hegemônica, a biopolítica, as do
de Saúde e teve o sanitarista Mário Magalhães mercado continuam operando e incidindo nos
da Silveira como seu principal formulador. processos de subjetivação, mesmo que as polí-
Movimento interrompido pelo golpe militar, ticas de saúde e seus dispositivos tensionem no
a construção da RB vem sendo experimentada, sentido da ampliação do conceito de saúde, do
com diferentes arranjos, desde meados dos reconhecimento da singularidade na produção
anos 1970, em diferentes lugares do Brasil, das existências, da construção compartilhada
ganhando capilaridade a partir da construção dos projetos terapêuticos4.
do Sistema Único de Saúde (SUS). As forças que estão operando no cotidia-
Essa ideia de RB, assim como a de saúde no constituem campos de disputa, que se
coletiva, é uma formulação que expressa instauram nos atos relacionais do campo da

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micropolítica, nas relações de poder, nas re- expressam por meio de valores, mobilizados
lações intersubjetivas. O que quer dizer isso? pelas forças em tensão.
Que é nos encontros, entre gestores, traba- Desse modo, uma análise micropolítica se
lhadores e usuários, nas relações que aí se propõe a pensar os vários acontecimentos
estabelecem, que se instauram os campos de no cotidiano do mundo do cuidado. Por essa
força, que conformam modos de estar no en- dinâmica mutante, de constante disputa e pro-
contro, constituindo processos de subjetivação. dução, não seria possível mapear e apontar
Processos de subjetivação são processos todas as intensividades operando em uma dada
contínuos de tensionamento (produzidos situação. Isso porque o acontecimento não é
pelas forças em disputa) que conformam um dado, mas um acontecendo, singular a cada
os sujeitos no cotidiano da vida; aqui, neste encontro e situação.
debate, no cotidiano do trabalho e do cuidado No entanto, isso não nos impede de apon-
em saúde na RB. Eles são marcados pelas tarmos para algumas intensividades, emble-
molaridades, pelas histórias de vida, pelos máticas, que ganharam visibilidade nas nossas
efeitos da composição das equipes de trabalho experiências no mundo da RB – por meio dos
ou de distintos coletivos, pelos encontros com estudos, pesquisas e de nossas experimen-
a população de um território e sua história, tações no campo do trabalho, da gestão e da
pelas convicções político-religiosas de cada educação permanente em saúde em vários
um e pelo encontro, a cada dia, com os usu- municípios brasileiros5-8.
ários e seus contextos, entre outros4. Nesse âmbito micropolítico, o objetivo deste
Os processos de subjetivação são marcados ensaio é destacar cinco forças-valores centrais
pela imprevisibilidade dos agenciamentos, quer para pensarmos o dentro e o fora do comum
dizer, dos efeitos mútuos que gestores, trabalha- dos acontecimentos cotidianos das práticas
dores e usuários produzem uns nos outros em de cuidado em saúde na RB: as forças-valores
seus encontros. Por isso, preferimos falar dos trabalho, território, governo de si e do outro,
processos de subjetivação, e não dos sujeitos. Os clínica-cuidado e trabalho em equipe.
processos de subjetivação, enquanto processos,
estão em contínuo movimento, são transitórios,
passíveis de mudança. Em contrapartida, sujeito Força-valor trabalho
pode dar ideia de algo dado, fixo, estabelecido,
determinado estruturalmente. As forças-valores que interferem na confi-
Como dissemos, essas forças – estrutu- guração do trabalho em saúde são decisivas
rais ou molares – estão atuando, compondo no desenho e nas apostas da gestão (formal
o campo de forças, sempre em disputa com e informal) e dos arranjos propostos para a
outras forças que tensionam o instituído nas atenção à saúde. Sem a pretensão de esgotar
sociedades capitalistas. Ou seja, uma força só as possibilidades, vamos destacar aqui alguns
existe por existir outra força, intensivamente elementos desse campo de forças.
diferente, atuando no mesmo campo. Onde há As práticas de saúde configuram atos produ-
uma força atuando em um sentido, sempre há tivos, buscam modificar alguma coisa e produzir
outra operando resistência; e, em geral, nos algo novo. São trabalho, pois buscam alterar um
campos de força, há várias forças em tensão, estado de coisas identificado como problema
não somente pares contraditórios. ou como potencial problema de saúde9. Claro
Assim, as resultantes em cada momento que a definição do que é problema já é, em si,
são analisadoras da potência de agenciamento produto das disputas em um campo de forças
das diferentes forças, pois os processos de constituído pela ciência, pelos modos de pro-
subjetivação, apesar das molaridades, são dução econômica e de produção da vida, pelos
provisórios, em permanente movimento e se sentidos da vida, que variam historicamente.

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Logo, o trabalho em saúde está tensiona- tecnologia que preside o encontro, maior ou
do pelas ‘necessidades sociais’, interferidas menor será seu potencial cuidador, maior ou
pela estrutura produtiva da sociedade e pelos menor a porosidade para o encontro, maior
desejos e demandas de seus usuários diretos. ou menor a troca e a construção de sentidos
Além disso, nos serviços de saúde, os atos comuns. Ademais, os arranjos do trabalho fa-
de produção e consumo da saúde ocorrem vorecem a presidência de um ou outro tipo de
ao mesmo tempo, com a singularidade de tecnologia, como veremos adiante na discussão
que o produto oferecido varia com a relação das outras forças-valores.
trabalhadores-usuários, pois as duas partes Outro elemento fundamental a ser consi-
se afetam e se modificam, configurando uma derado em relação à força-valor trabalho: ao
relação de interseção. admitir que o trabalho em saúde acontece
Essa interseção, esse mútuo afetamento, em um tipo de encontro em que as partes se
acontece em ato, nos encontros; portanto, o influenciam mutuamente, é fundamental o
trabalho em saúde se dá em ato. Quanto mais reconhecimento da legitimidade dos saberes,
os atos em saúde forem afetados pela singu- valores, desejos que movimentam os diferentes
laridade do encontro, maior a possibilidade tipos de trabalhadores de saúde e os usuários.
de produção de respostas que façam sentido Caso contrário, uns terão voz e outros não. Por
para as duas partes, mais vivo o trabalho. isso, é fundamental compreender o próprio
Quanto menos afetados pela singularidade, trabalho como uma micropolítica, como um
quanto mais orientados por definições a priori campo relacional.
(sobre qual o saber válido, quem é o usuário, Todas as partes chegam informadas e com
quais são seus problemas e como devem ser uma ideia a respeito do que deve ocorrer
entendidos e enfrentados), maior o predo- naquele encontro – a produção de um diag-
mínio do trabalho morto. nóstico, a escuta de uma aflição, uma inter-
O trabalho em saúde é tecnológico – cons- venção que resolva o problema ou diminua
truído com o uso de tecnologias materiais e o sofrimento, a dispensa do usuário, e outros
imateriais10. Entre as tecnologias materiais, – sobre como a produção deve ocorrer e qual
estão todas as ferramentas e instrumentos o papel de cada um. O encontro é carregado
produzidos para serem usados de modo deter- de expectativas, a priori, e de interferências
minado em dadas situações (equipamentos, mútuas, que dão um caráter de imprevisi-
instrumentos). Essas, segundo Merhy11, são bilidade ao produto do trabalho em saúde;
as tecnologias duras. Há dois tipos de tec- e como o encontro acontece em ato, ele é
nologias imateriais envolvidas no trabalho parcialmente incontrolável.
em saúde11: as tecnologias leve-duras, que Existe uma força-valor trabalho que aposta
correspondem aos saberes estruturados das no controle do trabalho vivo, que desenvolve
profissões da saúde – que, em parte, são duras, dispositivos para controlar e padronizar o tra-
porque são produzidas e disponibilizadas a balho segundo critérios a priori, que valoriza
priori, mas, em parte, são leves porque podem determinados saberes, e não outros, que define
ser usadas de modo singular a depender da e fixa lugares e papéis, que considera as normas
situação e do encontro; e há as tecnologias e as prescrições suficientes para a produção
leves que correspondem a tudo que é utilizado das respostas e condutas. O gerencialismo,
para favorecer o encontro – escuta, empatia, que tem imperado nas apostas da gestão em
reconhecimento, porosidade, conhecimentos saúde, é tributário dessa força-valor trabalho,
produzidos a partir da experiência e agencia- produzindo trabalhadores e usuários tensos
dos pelo encontro, entre outros. e insatisfeitos, esmagados e desobedientes,
Tais tecnologias são indispensáveis ao tra- aprisionados e ameaçados.
balho em saúde, mas dependendo do tipo de Existe outra força-valor trabalho que

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reconhece que, apesar das relações de poder, diferentes forças, em distintos momentos, no
todos governam o trabalho em saúde em alguma interior de determinados campos discursivos,
medida, pois todos interferem, todos entram apropriam-se da questão e produzem valores
no encontro com suas apostas, criando e dis- diferentes. Não somente campos de saberes
putando determinados valores e produções. e práticas disciplinares, pois, para os povos
Segundo essa força, para governar o tra- originários, por exemplo, território se define
balho em saúde, reconhecendo que todos go- pela inseparabilidade da constitutividade dos
vernam e todos disputam projeto, é preciso viventes e da Terra-Mãe.
criar espaços de conversa e escuta, colocar o Interessa-nos aqui explorar a força-valor
trabalho em análise para recolher os efeitos território como campo de tensões que atraves-
produzidos sobre os envolvidos; é preciso sa as práticas de saúde na RB – fundamental,
tensionar os a priori e criar situações que fa- pois a RB foi pensada como possibilidade de
voreçam a abertura para os desafios que as cuidado territorializado.
singularidades nos impõem. Segundo essa A saúde coletiva e as políticas de atenção
força, o trabalho em saúde, para favorecer a básica evocam a formulação de Milton Santos13,
produção do cuidado, precisa ser construído de que indica o espaço geográfico como uma
modo coletivo e compartilhado, e estar sempre mediação entre o mundo e a sociedade, um
em questão. A gestão micropolítica do trabalho conceito indispensável para a compreensão
e do cuidado em saúde é constitutiva dessa do funcionamento do mundo. Entretanto, há
segunda força-valor trabalho. uma força-valor território operando na RB
que levou a que o conceito de território no
cotidiano ficasse reduzido a território adscrito,
Força-valor território desde as primeiras experiências municipais.
Território entendido como delimitação espa-
O conceito de território tem sido utilizado e cial, conhecido a partir de dados demográficos,
desenvolvido em diversos campos de saberes geográficos, econômicos, sociais, culturais e
e práticas, inclusive na saúde coletiva brasilei- epidemiológicos.
ra, com múltiplas dimensões e sentidos. Essa Há uma força-valor território que mobiliza
polissemia pode ser observada nas diferentes as equipes a mapear o território geográfico e
experimentações no campo da RB. Isso adquire social dos grupos que serão objeto de cuidado
muita visibilidade na disputa entre a tentativa como se esses fossem lugares ‘físicos’. Lugares
de impor uma ideia de território como mapas estes que podem ser plenamente conhecidos
dos lugares – que definem como distintos co- a priori, sem a participação efetiva do outro,
letivos devem ser tratados – e o modo como os mediante o uso de certas ferramentas que su-
usuários e movimentos se posicionam – con- postamente permitem conhecer sobre onde
siderando que território corresponde aos seus e como vivem. Esse conhecimento unilateral
processos singulares de construir e de viver frequentemente usado como base para o pla-
suas vidas como Redes Vivas Existenciais12. nejamento de ações de saúde programáticas é
O território não se reduz à sua dimensão limitado para a produção do cuidado em saúde.
material; ele é um campo de forças, uma teia ou Tal força agencia subjetivações que auto-
rede de relações. É construído historicamente, rizam o agir programático sobre a população
remetendo a diferentes contextos, intensivi- adscrita, já que os territórios cobertos pela
dades e escalas: o si mesmo – como produção RB, sobretudo na Estratégia Saúde da Família
de si (territórios existenciais)7 e os lugares de (ESF), são marcados pela vulnerabilidade
produção da vida (a casa, a rua, o trabalho, o social, como pobreza, infraestrutura precá-
bairro, a cidade, a região, a nação, o planeta). ria, acesso muito limitado a bens e serviços
Território é um conceito polissêmico porque de todas as ordens. Vulnerabilidade esta que

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fabrica os que ali vivem como ‘carentes’, ‘por- de estratégias para viver (não somente sobre-
tadores de necessidades’, desprovidos de po- viver), apesar das dificuldades e restrições a
tência. Ainda, essa força-valor agencia o medo que são submetidos.
e o preconceito, porque a cidade, inclusive Pensadores como Milton Santos13, Suely
trabalhadores da saúde, fecham as janelas dos Rolnik e Felix Guattari16 discutem os processos
carros, gradeiam ruas, militarizam-se, enquan- de territorialização e desterritorialização que
to os jornais falam de guerra nos morros, nas se inscrevem na produção dos territórios do
periferias, nas favelas. Pouco as conhecem, mas viver. Foucault14 marca esse campo como polí-
temem seus moradores e os responsabilizam tica das existências. Campo em que se disputa
pela violência urbana. o viver como obra de arte, como criação e in-
Há outra força-valor território que agencia venção de si e dos outros para si, sempre no
no mesmo sentido, que mobiliza o ‘conhecer campo das relações micropolíticas. Lugares
sobre’ para disciplinarizar e controlar com- de enfrentamentos de uma multiplicidade de
portamentos, modos de viver14. Essa direção forças saberes-poderes-devires. Lugares de
está presente quando, por exemplo, utiliza-se invenção de modos de viver que potenciali-
inadequadamente os mapas de risco ambiental, zem mais viveres. Lugares de uma guerra por
tais como aterro sanitário, depósito de lixo, territórios enquanto devires-vidas.
áreas sujeitas a deslizamento, soterramento
ou inundação, fonte de poluentes, barreiras
geográficas, entre outros. Essa força-valor, Força-valor governo de si e
mesmo sem desejar, acaba por constranger, do outro
culpabilizar e produzir preconceitos em
relação à população moradora dessas áreas, A saúde é um campo de práticas e saberes
que, muitas vezes, vivem nesses espaços por constituído em cada país de modos e em
não terem outras opções. tempos distintos, como parte dos dispositivos
Essa é uma marca da ESF, construída prio- de disciplinarização dos corpos e depois de
ritariamente a partir do campo da vigilância regulamentação da vida14. Saúde passa a ser
à saúde, segundo a qual, além da vigilância um assunto de política pela necessidade de
direta sobre as casas, a ação no território ficou disciplinarizar corpos e pela ocupação das
muito voltada ao ambiente15, sem reconhecer cidades, além de produzir novos valores, como
que, sim, os modos de viver nesses territórios higiene, trabalho, família. Nessa perspecti-
são produtores de sofrimentos, mas também va, o Estado ‘cuida’ da saúde segundo certos
de potências e modos próprios de relações que interesses, e a população e os trabalhadores
precisam ser reconhecidos e trabalhados em passam a tensionar os limites e sentidos desse
sua singularidade. Singularidade que ‘as ações cuidado. Sempre que estamos falando de saúde
coletivas’, majoritariamente de educação e estamos no campo de forças governo da vida
orientação, não conseguem contemplar. Esse dos outros – governo de si17 em uma tensão
agenciamento, mais tarde, foi ainda agravado a constitutiva que vai além do campo formal
partir das metas gerencialistas de intervenção do governo e da gestão.
sobre a população adscrita. Na RB – cuidado territorializado, o mais
Essas forças-valores território têm sido am- próximo de onde a vida é produzida (não só
plamente vencedoras no tensionamento com nas casas) – essa questão se coloca de modo
outra força-valor território que reconhece os veemente. Estar próximo, conhecer a vida,
modos de viver da multiplicidade de coleti- entender as relações e os movimentos podem
vos que habitam esses espaços. Coletivos que servir, ao mesmo tempo, para cuidar melhor
se constituem singularmente em territórios e para melhor controlar. A tensão está posta
existenciais, portadores de saberes, desejos e o tempo todo.

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Por outro lado, como trabalho produzido colocar no centro do cuidado as singularidades
na micropolítica do encontro, há um emara- e multiplicidades que pulsam nas vidas e nos
nhado de relações, em que todos os envolvi- territórios existenciais e geográficos.
dos com a produção do cuidado exercem, em Em muitas situações, portanto, a RB pode
alguma medida, o governo de si e o governo operar mais como um dispositivo disciplina-
do outro. No complexo e multifacetado mundo rizador dos corpos do que como um disposi-
do cuidado, “todos governam: gestores, traba- tivo que ofereça elementos para os usuários
lhadores e usuários”9(68). viverem suas vidas, enfrentando com potência
Os gestores, por meio de políticas insti- ampliada os seus problemas de saúde.
tucionais, almejam governar os serviços, os As forças biopolítica e biopoder atraves-
trabalhadores e a população. Os trabalhadores, sam permanentemente os arranjos e os modos
entretanto, têm seus corpos marcados por de produzir cuidado nos serviços de saúde.
conceitos, concepções, interesses e modos No campo da biopolítica, o corpo biológico
de estar no mundo, que interferem na condu- é um poderoso ponto de governo dos outros
ção de suas práticas, além de serem afetados, por meio da regulamentação da vida19. No
dos mais diversos modos, pelo encontro com campo do biopoder, um certo saber-fazer
os usuários. Assim, no trabalho vivo em ato, dos trabalhadores da saúde agencia modos
exercem o governo de si, com alto grau de de fazer no sentido da dominação sobre a
autonomia, apesar dos desígnios da gestão vida do outro, prescrevendo modos de viver
e dos desejos e demandas dos usuários. Já e produzindo valores para reorientar hábitos
os usuários exercem seu autogoverno incor- e comportamentos.
porando ou não as prescrições terapêuticas Nesse processo de governar e disciplinari-
estabelecidas, ou, ainda, buscam governar os zar o usuário, vale trazer para a cena elementos
serviços e trabalhadores disputando, a partir que intensificam a força-valor ‘governo do
de seus desejos e concepções de cuidado, os outro’ na dobra governo da vida. Os traba-
modos de operar os serviços e os encontros. lhadores orientam suas práticas levando for-
Nesse contexto em que todos governam, há temente em conta o corpo biológico, e suas
forças e tensões permanentemente em disputa, ‘anormalidades’. O que são essencialmente
em busca da hegemonia de seus projetos, da valorizados para a definição das práticas de
autonomia, do controle. As forças operam cap- saúde e projetos terapêuticos são o diagnóstico
turando ou agenciando o cuidado, com todos clínico e a busca do ‘normal’ preconizados
disputando como as práticas de saúde devem para os diferentes grupos populacionais20
ser operadas em distintas circunstâncias. seja por meio de mecanismos de cura para o
Em experiências de pesquisa, gestão e corpo doente, seja mediante tratamentos para
cuidado na RB, vimos em acontecimento a o corpo saudável não adoecer18.
força-valor governo de si e governo do outro Uma das forças nesse campo busca agenciar
agenciando gestores, serviços e trabalhadores gestores, trabalhadores da saúde e usuários
no sentido das ações de saúde como “práticas com base em protocolos, procedimentos e
disciplinares ou de controle”18(300), a partir de prescrições concebidos a partir dos mais
atos prescritivos e protocolos definidos, a priori, recentes avanços científicos e tecnológicos,
por marcadores da clínica e da epidemiologia. com medicamentos, equipamentos e com-
Essas práticas, ao produzirem projetos tera- portamentos que prometem produzir a cura
pêuticos que medicalizam e normatizam as ou, ainda, evitar que a doença acometa os
vidas (individual e coletivamente), cerceiam corpos biológicos dos indivíduos e coletivi-
as ações cuidadoras agenciadas no encontro, dades18. É uma força atuante nos serviços de
no campo das tecnologias leves, das afetações saúde e na sociedade, empoderada pela saúde
mútuas, do trabalho vivo em ato, que podem pública, como uma maneira de categorizar

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as multidões, buscando intensamente gerir a É importante destacar que, ainda que o


vida dos outros, agir sobre seus corpos e seus ‘diagnóstico clínico’ seja o mesmo, o viver
modos de viver20. o adoecimento é singular a cada vivente; as
Na RB, esse componente disciplinarizador marcas, as histórias e os contextos que cada
é potencializado pelo predomínio de usuá- um vivencia interferem nos modos de con-
rios socialmente vulneráveis. Geralmente são duzir suas existências. Uma mesma condição
tomados como indivíduos ou coletivos com de saúde é incapaz de produzir “serialização
pouco ou nenhum poder de vocalização e de subjetivante no modo de desejar e produzir a
reivindicação sobre seus desejos e projetos de vida”18(295). Entretanto, muitas equipes operam
cuidado; ou como máquinas desejantes equi- um modelo autoritário de atenção, fundamen-
vocadas, muitas vezes nem reconhecidos como talmente prescritivo, previsível e normativo19,
desejantes. Nesse contexto, com pouca escuta sem admitir possibilidades outras de cuidado,
e sensibilidade às demandas das vidas que cujos sentidos seriam construídos no encontro.
buscam o cuidado nas equipes, predominam as Na micropolítica dos encontros entre os
forças operadas para o controle sobre os modos trabalhadores e usuários, não há nada decidi-
de andar a vida dos usuários, e sobre escolhas do de antemão, há sempre uma disputa entre
dos projetos de cuidado, os quais agenciam a quem cuida e quem é cuidado. A força-valor
captura do trabalho vivo e a diminuição da governo de si e governo do outro é aconte-
porosidade para o encontro. cimento, permanentemente atravessada por
A pouca porosidade acontece quando as forças outras em tensão no mundo da vida
equipes, tragadas por ofertas de ‘cuidado’ e do cuidado.
estabelecidas a priori, com agendas progra-
madas disparadas pela política, gestores ou
pela própria equipe, por protocolos e metas Força-valor clínica-cuidado
a serem cumpridas, não encontram espaço
para os desejos e questões trazidas pelos usu- Existe um campo de forças clínica-cuidado,
ários que não sejam consideradas ‘priorida- muito importante no encontro entre trabalha-
des’ para o serviço. Mesmo espaços potentes dores e usuários na RB, que tem a ver com os
para o encontro, como as visitas domiciliares, saberes reconhecidos como legítimos ou não
podem ser capturados e transformados em e com a possibilidade ou não de construção
procedimentos mecânicos ou em momentos compartilhada de um projeto terapêutico, de
de disciplinarização intensiva. modo que ele faça sentido para o usuário e
Nesse contexto, o usuário tem duas opções: sirva para enriquecer seu viver, apesar dos
‘encaixa-se’ no ‘cardápio’ de ações ofereci- problemas e sofrimentos com que eventual-
das ou exerce de outra maneira a força-valor mente precise viver ou enfrentar.
governo de si e do outro e, a partir de seus Como já dito, a base da clínica das várias
processos de agenciamento, assume seu profissões da saúde é o saber técnico hege-
cuidado e adota estratégias próprias para mônico, com pretensão de verdade produzida
atender suas questões e para fazer uso das a partir da ciência, que toma o corpo como
ofertas do sistema. Os usuários adaptam as uma máquina biológica dada, definida, fixa,
prescrições, desprezando o que não lhes faz deslocada das intensidades do viver. Saber
sentido, incorporando ações cuidadoras que técnico produzido de modo fragmentado, em
tenham alguma conexão com suas existências, função das especializações. Essa força-valor
possíveis de serem operadas em suas vidas. clínica é alimentada por várias outras forças
Criam/acionam Redes Vivas Existenciais12 que contribuem para sua legitimação como
para os ajudarem nesse processo de cuidar de verdade – campo de forças do mercado, das
si e dos seus, disputando projetos terapêuticos. indústrias de equipamentos, de remédios, de

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aparatos tecnológicos, que socialmente ajudam Dentro das próprias equipes, esse confronto
a construir certas verdades sobre saúde, doença de forças muito comumente deslegitima o
e os modos de proteger uma e livrar-se da outra. saber dos agentes comunitários em relação
Há outro tipo de saber sobre saúde na força- ao que deve ser considerado problema e aos
-valor cuidado que é o saber produzido a partir modos de enfrentar as situações. Outrossim,
da vida, do viver. Esse é um saber do corpo. atravessa as disputas por hegemonia entre
Tem a ver com sentir-se bem e mal, com e sem as diferentes profissões da saúde, além de
forças, com e sem vontade, com reconhecer alimentar a desresponsabilização de um e de
algo como sofrimento, dor, prazer, como re- outro em relação a problemas não considera-
conhecer o que lhe faz bem e mal, que tem dos ‘próprios’ de seu campo ou pertinentes ao
a ver com experimentações da vida em sua escopo da atenção básica.
multiplicidade em diferentes situações. Esse A força-valor clínica opera no sentido de
saber a partir das experimentações do corpo tensionar as relações na equipe e no encontro
é subjetivante e singular. com os usuários, pois a clínica pertence a uns, e
A força-valor cuidado, por se constituir a não a outros; a clínica de uns é mais valorizada
partir da experimentação da vida, atravessa que a de outros. Em um diálogo produzido
a todos, pois, a qualquer momento, um gestor tendo a clínica como base, mesmo que ela seja
ou um trabalhador pode se transformar em ‘ampliada’, uns estão dentro, outros estão fora.
usuário. Por isso, essa força agencia implicação As expectativas de cada um nesse en-
com o outro, solidariedade com o sofrimento contro também são diferentes e aumentam
humano, compreensão com as fragilidades, a tensão. Uns, agenciados pela força-valor
maior sensibilidade às singularidades e mul- clínica, querem que a doença ocupe lugar
tiplicidades existenciais de cada usuário. central na organização da vida, e os saberes
Enquanto a força-valor clínica mobiliza o técnicos determinam o que deve ser realizado.
usuário como objeto da ação dos trabalhadores, Outros, agenciados pela força-valor cuidado,
a força-valor cuidado agencia o usuário como querem ajuda para continuar a viver do modo
protagonista na produção de sua existência e mais potente e prazeroso possível, apesar do
como legítimos seus modos de sentir e enfrentar problema/doença/sofrimento21.
sofrimentos, problemas e dificuldades. Agencia Por pertencer ao mundo da experiência de
o reconhecimento das intensidades do viver todos, a força-valor cuidado pode favorecer a
que, naquele momento, estão atravessadas pela negociação. O cuidado pertence a todos, não é
possibilidade de adoecer, pela doença ou por nem exclusivo da saúde, pois família, amigos,
um sofrimento sem nome definido pela ciência. professores cuidam. Portanto, a força-valor
Assim, nos encontros entre trabalhadores cuidado agencia a conversa e os encontros a
da saúde e usuários, movidos por essas duas partir do trabalho vivo em ato, favorecendo a
forças, há várias possibilidades de disputas, articulação de saberes que pertencem à mole-
conflitos e confrontos. Para começar, na de- cularidade do mundo da vida e não estão apri-
finição/reconhecimento da legitimidade do sionados pela razão instrumental da clínica.
que é apresentado como problema de saúde, Tensionados pelas próprias experimen-
do que é reconhecido como sofrimento. tações, intensificadas pelos encontros, os
O olhar cientificamente armado pretende trabalhadores, com os usuários, podem in-
definir tecnicamente o que são os problemas de terrogar a clínica das profissões a partir dos
saúde legítimos e os modos de enfrentá-los. Os problemas que ‘não encaixam’. Ao invés de
problemas referidos pelos usuários são, então, serem rejeitados ‘por não fazerem parte do
julgados e catalogados como ‘verdadeiros’ ou escopo de ação das profissões ou da RB’, esses
não, adequados ou não ao tipo de serviço que problemas favorecem a invenção de novas
se oferece na atenção básica, por exemplo. estratégias e manejos a partir da composição

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de todos os saberes – da equipe e dos usuários. de saúde. No início, sua experimentação foi
Favorecem que os próprios saberes da clínica com equipes multiprofissionais amplas (con-
sejam operados de maneira leve, podendo ser tando com até dez diferentes profissões), e
úteis no manejo dos problemas. Interrogados outras não tão amplas, contando com três es-
e modificados pelas singularidades, agregando pecialidades médicas, enfermagem, psicologia,
possibilidades, produzem interferências que serviço social.
podem ser decisivas para o bem-estar. Com a expansão da ESF, mesmo com a
A clínica, subsumida ao cuidado, passa a ser equipe mínima (médico, enfermeiro, técni-
elemento importante na construção comparti- cos de enfermagem, agentes comunitários
lhada – entre todos – de projetos terapêuticos de saúde inicialmente; depois odontólogo e
que ampliem a potência de vida, realmente a técnico de saúde bucal, além de trabalhado-
serviço do melhor enfrentamento das situa- res administrativos, limpeza e segurança), já
ções. A tensão produzida entre as forças-valores estava envolvida na RB uma equipe mais ampla
clínica e cuidado produz efeitos completamente do que a APS oferece na maior parte dos países.
diversos a depender do predomínio de uma Com a incorporação, a partir de 2008, dos
sobre a outra. A questão não se resolve aban- Núcleos de Apoio à Saúde da Família, mesmo
donando uma ou outra. Com os efeitos do en- que na modalidade matriciamento, está en-
contro e as tecnologias leves na centralidade do volvida uma diversidade ainda maior de
cuidado, a partir da singularidade dos usuários, trabalhadores. Isso sem falar em outros ma-
os saberes estruturados acerca do corpo podem triciamentos em rede, como na saúde mental
ser apresentados como oferta, e não como im- e com outros especialistas, que também se
posição e única referência. multiplicam pelo País. Isso reflete uma
Na gestão micropolítica do trabalho em aposta, do movimento da Reforma Sanitária
saúde, é preciso tensionar o instituído – a força- Brasileira e do SUS, de que, para operar a
-valor clínica e a centralidade das tecnologias saúde de modo ampliado e no território, em
duras e leve-duras na condução do encontro oposição ao modelo hegemônico, seria impor-
com os usuários. É preciso interrogar o insti- tante contar com equipes multiprofissionais.
tuído a partir das próprias experimentações No entanto, para trabalhar em equipe,
de vida de gestores e trabalhadores, a partir da não basta reunir em um mesmo espaço uma
ampliação da escuta e do encontro com a sin- diversidade de trabalhadores, nem atribuir a
gularidade da vivência/existência dos usuários. eles tarefas que se entrecruzam, tampouco
Assim, os encontros intensivos entre pro- estabelecer normativamente que se deve
fissionais–usuários podem se tornar relações trabalhar em equipe e até reservar um tempo
entre viventes, com histórias e experiências para que se reúnam. Equipe, assim como
de vida diferentes. Favorecem a construção de rede, é uma construção ativa, que implica
espaços de escuta e reconhecimento do outro, enfrentar diferenças, relações de poder e a
e a produção de arranjos e manejos singulares, construção de um comum21.
que, mesmo que não ‘resolvam’ o problema, Existe uma força-valor trabalho em equipe
possibilitem que ele seja vivido pelos usuários que mobiliza encontros apenas no plano
da melhor maneira possível. formal e da hierarquia, com baixa potência
para superar tensões e diferenças, levando à
produção de conflitos e burocratização.
Força-valor trabalho em Existe outra força-valor trabalho em equipe
equipe que agencia o diálogo entre os núcleos de
saber, em uma certa lógica de matriciamen-
A RB se destaca como o lugar do cuidado to. Todavia, como já discutido na força-valor
povoado por uma diversidade de profissionais trabalho e na força-valor clínica-cuidado, cada

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profissional de saúde quando vai atuar mobi- núcleo profissional – cuidado, favorecendo
liza saberes do núcleo profissional e saberes que os trabalhadores
da experiência. De modo geral, apesar das
disputas entre as profissões, em quase todas posicionem suas verdades como secundárias
o saber técnico está fortemente baseado em a uma outra mais importante: a defesa da
um saber centrado no corpo biológico, estando vida nos seus vários planos de produção, nas
o potencial cuidador de todas empobrecido. apostas que o outro faz para se produzir23(3).
O diálogo disparado a partir dos núcleos
profissionais exclui os usuários, tende a tomá- Outro plano de tensão produzido por essa
-los como objeto, pois quem predomina é a terceira força-valor trabalho em equipe tem a
força-valor clínica. Além disso, essa força- ver com o reconhecimento de que todos gover-
-valor trabalho em equipe tende a produzir nam e, portanto, toda a construção da dinâmica
relações que não são de cooperação, mas de do trabalho em saúde precisa ser feita de modo
transmissão de conhecimentos técnicos, em compartilhado. Entretanto, isso não acontece
que uns sabem e outros aprendem. Os núcleos espontaneamente. Ao contrário, as relações de
profissionais estão estabelecidos como “ilhas poder e as disputas de projeto tendem a pro-
de competência que não param de operar sua duzir fragmentação e desresponsabilização.
máquina através das especialidades e dos es-
pecialismos cada vez maiores, fabricando e
alargando novas incompetências e desautori- Considerações finais
zações de produzir cuidado”22(93), instituindo
um campo em que a força de um movimento A RB pode ser um espaço privilegiado de
para o cuidado, muitas vezes, fica obstruída aproximação aos distintos territórios em que
pela força do núcleo profissional. se produzem as vidas em multiplicidade, em
Há, contudo, ao menos, uma terceira que o cuidado em saúde pode ganhar sentido,
força-valor trabalho em equipe, dependente sendo produzido de modo compartilhado e
da força-valor cuidado e da força-valor tra- capaz de ampliar as potências de viver. No
balho, que reconhece que todos governam. entanto, pode ser também o lugar da captura
Essa força tensiona os núcleos de saber de mais cruel das existências, produzindo vidas
cada profissão, colocando a singularidade das tristes e serializações medicalizadas. Tudo
situações vividas pelos usuários no centro da depende do modo como trabalhamos o en-
interação para conformar um comum. Desse contro, organizamos o governo, favorecemos
modo, partindo do encontro com o usuário e ou não a invenção e a produção de sentidos
suas questões, pode-se chegar a problemas que compartilhados.
são novidade para os núcleos profissionais, A educação permanente em saúde, abrindo
ou seja, que vão exigir a produção de novas espaço para reflexões e trocas, é fundamental
respostas, vão impor desafios à construção/ para agenciar outra dinâmica. Todos aprendem
composição do agir tecnológico das profis- pela experiência, então é preciso que o façam
sões. Não há mágica, há que se abrir espaço coletivamente, o que enriquece muito a pos-
de escuta ampliada ao usuário e suas questões. sibilidade de interrogar, de colocar o trabalho
Esse comum, produzido a partir da com- produzido e seus efeitos em análise24. Como
plexidade e singularidade das situações, dá o meu trabalho afeta o outro? Como o que eu
visibilidade à pobreza e ao limite das respostas desejo interfere no modo do outro trabalhar ou
isoladas de cada núcleo de saber técnico. Esse viver? Como conseguimos cuidar do usuário
comum pede composição, não somente entre X, e não do usuário Y? Muitas perguntas e
os trabalhadores, mas com os usuários. Desse provocações, singularmente produzidas a
modo, é agenciada uma inversão nessa tensão partir das situações vividas, possibilitam abrir

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outras visibilidades para o trabalho e trazer a importantes e comuns do cotidiano do trabalho


complexidade das vidas para a cena. na RB e, assim, provocar reflexões e inter-
As políticas nacionais de atenção básica e rogações sobre como produzimos o cuidado
de educação na saúde não privilegiam esse em saúde, potencializados pela micropolítica
trabalho vivo de interrogação e reflexão. Com dos encontros. Nesse sentido, será necessário
raras exceções, estão centradas na atualização realizar pesquisas com esse objetivo.
do saber técnico25. Então cabe aos gestores, tra-
balhadores e usuários dos espaços locais/mu-
nicipais a produção desse tipo de movimentos. Colaboradores
A gestão micropolítica do cuidado abre
espaços para a potência, mas dá trabalho, nos Merhy EE (0000-0001-7560-6240)*,
desafia e coloca diante das incertezas. Cabe Feuerwerker LCM (0000-0001-6237-6167)*,
a todos nós nos posicionarmos diante desses Santos MLM (0000-0001-6074-0041)*,
importantes desafios. Bertussi DC (0000-0003-3138-7159)*, Baduy
Finalmente, não pretendemos fechar este RS (0000-0003-4914-653X)* contribuíram
debate, mas trazer para análise aspectos igualmente na elaboração do manuscrito. s

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