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CONCÍLIOS
DA IGREJA
o longo da história do cristianismo, a Igreja sempre convocou con-
cílios para esclarecer questões doutrinárias e solucionar problemas
pastorais e disciplinares. Em diversas ocasiões, esses concílios acabaram
resultando em momentos decisivos para o curso da história cristã.
Este livro é um resumo dos 21 concílios, que tiveram início no ano de 325,
em Niceia, na Ásia Menor. Os concílios foram convocados de tempos em
tempos durante o primeiro milênio e o período medieval, tiveram de enfren
tar a época da Reforma, no século XVI, e continuaram no mundo moderno.
Este texto não oferece um relato do dia a dia dos concílios, mas apresenta
o contexto histórico de cada um deles, os desafios que tiveram de enfrentar,
as realizações e os fracassos, revelando os temas e as tramas que têm em
comum e, ao mesmo tempo, relatando os fatores, as características e os
contextos que fizeram com que cada um deles fosse relativamente singular.
O impulso promovido pelos concílios continua a atuar de forma vivida na di
nâmica da Igreja, na medida em que ela procura responder às necessidades
mais urgentes de sua época.
HISTÓRIA DOS
CONCÍLIOS
21 DA IGREJA
D E NI C E I A A O V A T I C A N O II
Tradução
Cláudio Queiroz de Godoy
E d i ç õ e s L o y o la
Título original:
The General Councils - A History o f the
Twenty-One Church Councils from Nicaea to Vatican II
© 2002 by Christopher M. Belitto
Paulist Press, Inc.
997 Macarthur Boulevard
Mahwah, New Jersey, 07430 USA
ISBN 0-8091-4019-5
ISBN 978-85-15-03719-3
2a edição: 2016
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2010
SUMARIO
A G R A D E C I M E N T O S ............................................................9
LISTA D O S C O N C Í L I O S G E R A IS ................................11
I N T R O D U Ç Ã O ......................................................................13
PARTE UM
2 A FÉ E A P O L ÍT IC A :
N iceia 11 (78/) e C onsian i inopi a IV (869-870).... 51
3 A SU P E R V ISÃ O D A IG R E JA P R IM IT IV A :
Os cânones discipi inari s .............................................. 57
PARTE DOIS
4 O S Q U A T R O C O N C Í L I O S DE LATRÃO
(1123-1215)......................................................................73
5 DISPUTAS DE PODER;
D o C oncilio de Lyon i (1245) ao
C oncilio de V ienne (1311-1312)................................83
PARTE TRÊS
7 CONCÍLIOS V E R S U S PAPAS:
Os CONCÍLIOS DE CONSTANÇA (1414-1418) E DE
BASILEiA' F ERRARA- F[.OREN ÇA* R O M A í 14 31 ~1445) 113
PARTE QUATRO
9 A INFALIBILIDADE PAPAL:
O C oncilio Vaticano 1 (1869-1870)...................159
CONCLUSÃO...........................................................199
10
LISTA DOS CONCILIOS GERAIS
U M A P E R S P E C T IV A G E R A L
O QUE É UM C O N C IL IO ?
B ibliografia
Documentos conciliares
Estudos
27
PARTE UM
OS CONCÍLIOS DO
PRIMEIRO MILÊNIO
urante o primeiro milênio da cristandade, a Igreja reuniu
concílios de diversos níveis diferentes: locais, regionais ou
provinciais, universais ou ecumênicos. A Igreja Católica Romana
reconhece oito dentre os principais encontros como os primeiros
concílios gerais, que vão de N iceia I (325) a Constantinopla IV
(869-870).
Os primeiros seis, que vão de Niceia I a Constantinopla III (680-
681), não podem ser considerados autonomamente. Os desafios que
cada um desses seis concílios gerais tiveram de enfrentar migraram de
concilio para concilio. Os líderes da Igreja se reuniram para realizar
uma tarefa praticamente impossível: a de reproduzir em palavras os
mistérios fundamentais da humanidade e da divindade de Cristo, da
essência da Trindade e o da relação de Maria com Jesus enquanto
D eus e enquanto ser humano. Assim que um concilio chegava a
uma definição da fé e proclamava as suas decisões, novas questões
emergiam, pois toda solução dava origem a novas incertezas.
Os dois últimos concílios gerais do primeiro milênio fogem
a este padrão. O C on cilio de N iceia II (787) abordou de modo
bastante com pleto o iconoclasmo, uma questão relativa ao culto
que tinha implicações teológicas. Já o Concilio de Constantinopla
IV (869-870) abordou sobretudo questões relativas às estruturas, aos
procedimentos e à política interna da Igreja. Portanto, esses dois
concílios se situam à parte dos seis concílios que os antecederam.
A maioria desses oito primeiros concílios gerais tam bém dis
cutiu questões disciplinares, com o a da readmissão de heréticos
arrependidos, da eleição dos bispos, da jurisdição e da independência
episcopal, do papel a ser desempenhado pelos leigos nas questões
relativas à Igreja, do com portam ento moral (e imoral) do clero,
do combate ao m undanismo e à ganância e a da necessidade de
se convocar, com frequência, sínodos provinciais para lidar com
os negócios regulares e extraordinários de uma Igreja em vias de
expansão e de organização.
A ELABORAÇÃO DA DOUTRINA:
Do C o n c il io de N iceia (325)
AO C O N C ÍL IO DE CONSTANTINOTLA UI (680681)
NICEIA I
A E LA B O R A Ç Ã O DA D O U T R IN A :
N enhum bispo ocidental com pareceu ao C on cilio de
n
Constantinopla I em 381, e o papa Dâm aso I sequer enviou
delegados para representá-lo, embora atualmente esse conci
lio seja indiscutivelmente considerado ecumênico tanto pelo
Ocidente quanto pelo Oriente. Mas nem sempre foi assim. A
época alguns objetaram à designação de “ecumênico”, que, ao
que tudo indica, esse concilio havia utilizado para descrever a
si próprio. A carta de 382 apresenta para o papa os pormenores
dos atos do Concilio de Constantinopla I, mas não sabemos se
o papa os aceitou quando, no mesmo ano, reuniu o seu próprio
sínodo em Roma.
EFESO
Cirilo deixou bem claro que Jesus era uma só pessoa que
tinha duas naturezas e que a sua natureza divina não sobrepujava
sua natureza humana. Mas essa afirmação acabou levantando
uma nova questão: se a humanidade e a divindade estão unidas
em uma só pessoa, isso significa que a divindade pode sofrer e
morrer? Dessa vez, a próxima questão a ser levantada pela lógica
não teve de esperar algumas décadas até a resposta de um novo
concilio. Apenas algumas linhas depois, Cirilo responde:
CA LCED Ô N IA
n
c
Apesar de todas essas admoestações para que nenhuma ex 2
•49
2
A FÉ E A POLÍTICA:
N iceia II (787) E C o n s tà n tin o p la IV (869'870)
51
N ICEIA II
PRIMEIRO MILÊNIO
OS CONCÍLIOS DO
C O N S T A N T 1 N O P L A IV
55
3
A SUPERVISÃO DA
IGREJA PRIMITIVA:
O S C ÂNONES DISCIPLINARES
57
A READM ISSÃO D O S HERÉTICOS
PRIMEIRO MILÊNIO
OS CONCÍLIOS DO
E N C O N T R O S REGULARES
DISCIPLINARES
de investigar casos de excomunhão. O Concilio de Constan-
tinopla I lembrava a todos os seus participantes da existência
desse cânone estabelecido pelo Concilio de Niceia.
No entanto, o Concilio de Calcedônia, em 451, relatou
que essa exigência determinada pelo Concilio de Niceia I não
estava sendo mais observada e, “consequentemente, muitas
questões eclesiásticas que deveríam ser retificadas estão sendo
negligenciadas”. Ele reiterou a exigência da reunião de sínodos
provinciais duas vezes ao ano e ordenou que todos os bispos que
não comparecessem a eles sem apresentar uma boa desculpa
“deveríam ser fraternalmente censurados” . Já o Concilio de
Niceia II foi menos rigoroso em relação à obrigação da reunião
de dois sínodos ao ano, determinada pelo Concilio de Niceia I.
Ao mencionar a dificuldade de viajar devido à insegurança geral
que imperava na época ou aos custos elevados, esse concilio
determinava que a convocação de apenas um sínodo já seria
o suficiente. O Concilio de Constantinopla IV considerava os
sínodos patriarcais ainda mais importantes do que os sínodos
provinciais e, ao contrário do Concilio de Niceia II, exigia o
comparecimento a múltiplos encontros, independentemente
das dificuldades acarretadas pela observância dessa exigência.
Os padres reunidos no Concilio de Constantinopla IV consi
deravam os concílios patriarcais tão importantes a ponto de
declarar que, se um bispo não comparecesse a esses concílios
sem a devida permissão ou sem apresentar uma razão apropriada,
seria declarado deposto, dispensado e excomungado.
M U N D A N ISM O
BISPOS
para que ele pudesse introduzir esse livro a todos os clérigos subor
OS CONCÍLIOS DO
O PAPA
CÂNONES DISCIPLINARES
o primeiro, mas isso não significava que ele era melhor ou que
ele detinha o poder supremo. Essas foram algumas das razões
pelas quais o Oriente e o Ocidente não adotavam a mesma lista
de concílios e discordavam sobre quais dentre eles poderíam
ser considerados ou não como ecumênicos. Ironicamente, ao
se reunirem para resolver determinados problemas, os concílios
gerais do primeiro milênio acabaram contribuindo, involunta
riamente, para a futura divisão da Igreja.
B ibliografia
67
PARTE DOIS
OS CONCÍLIOS
DA IDADE MÉDIA
D
urante a Idade M édia, o papado exerceu o seu poder em
toda plenitude ao dom inar os concílios gerais e ao im por
uma extensa agenda administrativa a eles, o que representou uma
m udança significativa em relação aos concílios que se reuniram
durante o primeiro milênio, quando os aspectos doutrinários eram
dominantes, Conform e já narramos, os primeiros concílios gerais
foram convocados por imperadores e, no início, os seus trabalhos
transcorreram à margem da liderança papal, pois foi apenas espo
radicamente que um papa, como Leão I, conseguiu influenciar os
concílios de modo decisivo. No entanto, foi na Idade Média que as
preocupações do papa, especialmente com a estrutura organizacional
e com os procedimentos adotados pela Igreja, tornaram-se o tema
dominante dos sete concílios gerais, que vão do Concilio de Latrão
I (1123) ao Concilio de Vienne (1311-1312).
A maior parte dos documentos conciliares medievais se apre
sentam com o declarações papais, nas quais o “nós” majestático
referente ao papa promulga decretos e profere julgamentos. Onde
a Igreja primitiva afirmava “este sagrado concilio d eclara...”, com
frequência os papas medievais convocavam concílios para referendar
as suas próprias declarações que tinham força de lei e apenas em
algumas ocasiões eles acrescentavam a frase “com a aprovação do
sagrado concilio” aos registros dos concílios. D e vez em quando,
esses papas medievais enfatizavam a sua autoridade ao se referirem,
nesses registros, ao poder das chaves entregues a Pedro e aos seus
sucessores. O fortalecimento da chamada “monarquia papal” explica
por que os concílios gerais medievais parecem menos deliberativos
de que os seus predecessores.
Enquanto os concílios do primeiro milênio se distinguiam por
suas explicações teológicas, os concílios medievais se caracteriza
ram sobretudo por sua linguagem legal. Os papas da Idade Média
contribuíram para a elaboração de precedentes e de processos legais
nos concílios gerais que supervisionavam. Durante esses concílios,
bem como durante os intervalos que havia entre eles, funcionários
da Igreja reuniam as declarações e os julgamentos papais em um
único texto ou código de lei canônica, o que acabou dando origem
a uma relação simbiótica, na qual determinado papa confirmava os
atos de seus predecessores em um concilio e, a seguir, acrescentava
os seus próprios atos aos deles ainda no mesmo concilio. Os seus
sucessores podiam fazer algumas observações sobre essas adições, que
um outro papa acabava por reafirmar no concilio seguinte (embora
algumas vezes ele as modificasse ou as revogasse). Desse modo, os
concílios gerais da Idade Média gradualmente contribuíram para a
elaboração da lei canônica. Os Concílios de Latrão IV (1215) e de
Lyon I (1245), por exemplo, acrescentaram extensos pormenores
ao devido processo legal, às apelações e aos procedim entos, ao
passo que o Concilio de Latrão I (1123) elaborou um a legislação
contra qualquer pessoa que falsificasse dinheiro e que espalhasse
dinheiro falso.
Do mesmo modo como foi feito na primeira parte deste livro,
esta segunda parte faz um relato de cada um dos concílios em or
dem cronológica. No entanto, esses concílios não foram os únicos
encontros a se reunir durante a Idade Média, pois vários concílios
locais se reuniram, e alguns deles contaram com a presença do
próprio papa, mas foram esses sete concílios que, com o passar dos
séculos, acabaram por ser incluídos na lista dos 21 concílios gerais
da Igreja. Considerados em conjunto, os quatro concílios de Latrão
apresentam evidências significativas do fortalecimento da monarquia
papal e de suas tentativas de exercer uma jurisdição universal. Afinal,
eram os papas que conduziam as principais questões “internacionais”
durante esse período, a nomeação de bispos por autoridades leigas,
as cruzadas, os conclaves papais e as questões relacionadas com os
judeus e com os muçulmanos. No entanto, nos Concílios de Lyon
I e II e no de Vienne, a política com eçou a adquirir um papel pre
dominante: veremos as consequências do envolvimento do papado
em questões seculares. Do mesmo modo que ocorreu no Concilio
de N iceia II, a história dos concílios de Lyon I e do de V ienne
demonstra de modo significativ o o quanto eles foram turbulentos
devido à sua exposição à política nua e crua e à intensidade dos
danos sofridos pelo papado em consequência disso. Mais uma vez,
concluiremos esta parte com a abordagem dos cânones disciplinares
que, com o passar do tempo, fizeram com que esses sete concílios
gerais fossem considerados como um único conjunto.
4
OS QUATRO CONCÍLIOS
DE LATRÃO (1123-1215)
LATRAO II
LATRAO III
LATRAO IV
82
5
DISPUTAS DE PODER;
D o C oncílio de Lyon I (1245) AO
C oncilio de V ienne (1311-1312)
D ISPU TA S DE PO D ER:
do papa, como a invasão de suas terras e o bloqueio dos acessos
n
utilizados pelos bispos para impedir que eles comparecessem a
um concilio em 1241.
Em relação às cruzadas, o papa Inocêncio IV seguiu de
perto as mesmas orientações enunciadas pelo seu predecessor
Inocêncio III no Concilio de Latrão IV, embora tenha acres
centado dois pontos interessantes, que indicavam a necessidade
urgente de reunir dinheiro necessário para o financiamento das O
n
campanhas militares. Primeiramente, ele declarou que os ricos
deveríam diminuir a frequência com que ofereciam banquetes
extravagantes. Para promover a moderação, o papa prometeu
aos ricos que, se eles empregassem o dinheiro que seria gasto
em generosos banquetes no esforço das cruzadas, os prelados
poderíam perdoar os seus pecados. Em segundo lugar, ele es
perava que aqueles que estivessem à morte deixassem alguma
quantia para ajudar as cruzadas. Inocêncio IV se dirigiu aos
prelados e ao seu clero para que
C o n c il io de. Ly o n
Eles deveríam estar completamente reclusos e ser trancados “com
uma chave”, ou seja, cum clave, o que acabou dando origem à
palavra conclave. Para que a eleição ocorresse com rapidez, os
cardeais não poderíam receber qualquer quantia que lhes fosse
I 0245)
devida pelo tesouro papal enquanto durasse o encontro. Se a
eleição não se decidisse em três dias, o suprimento de comida
ao
seria reduzido a um prato duas vezes ao dia e, se mais cinco
C oncIuo
dias se passassem sem que houvesse uma decisão, os cardeais
receberíam apenas pão, água e vinho.
de
V ie n n e
(1311 1312)
V1ENNE
93
6
A SUPERVISÃO DA IGREJA
NA IDADE MÉDIA:
OS CÂ NO NES DISCIPLINARES
O CLERO
M U N D A N ISM O
DISCIPLINARES
que “a aparência exterior do clero deve ser um reflexo de sua
integridade interior” . O C oncilio de Latrão II determinava
qne os sacerdotes deveríam se comportar de modo apropriado,
aparentar santidade e agir com santidade e evitar os excessos
em suas vestimentas. O Concilio de Latrão IV foi ainda mais
específico, ao determinar que os trajes exteriores dos clérigos
deveríam estar fechados e não poderíam ser nem mnito longos
nem muito curtos; suas roupas não deveríam ser vermelhas nem
verdes e as suas mangas não deveríam ser compridas; os seus
sapatos não deveríam ter bordados nem bico fino e as rédeas,
selas, esporas, fivelas e cintos que eles usavam não deveríam
apresentar adornos. O Concilio de Vienne ameaçava os clérigos
com a perda de seus rendimentos em até um ano se eles usassem
roupas listradas ou botas quadriculadas, vermelhas ou verdes
em público e também proibia que eles usassem “uma beca ou
um tabardo [uma túnica sem mangas] que fossem forrados de
peles até as suas bordas e que fossem tão curtas que as roupas
de baixo poderíam ser facilmente vistas”.
Com frequência, os concílios procuravam regulamentar
o com portam ento dos clérigos tanto dentro quanto fora da
Igreja. O Concilio de Latrão II impedia os clérigos de exerce
rem a medicina e de atuarem como advogados na esfera civil.
O Concilio de Latrão IV proibia o clero de praticar qualquer
atividade que implicasse no derramamento de sangue, como
cirurgias, duelos, combates, ordálios, além de impedir que
ordenassem punições físicas ou estivessem presentes durante a
sua execução. Os clérigos também não poderíam participar de
competições que envolvessem o consumo de bebidas alcoólicas
nem caçar e deveríam evitar teatros, tavernas e casas de jogo.
O Concilio de Vienne acrescentava a essa lista a proibição de
exercer a atividade de açougueiro, de administrar albergues e
de participar de qualquer tipo de negócio ou comércio secular,
além da proibição de portar armas.
MONGES, FREIRAS E FRADES
OS CONCÍLIOS DA
IDADE MÉDIA
DISCIPLINARES
O Concilio de Latrão IV havia proibido a criação de novas
ordens religiosas e determinava que os interessados ingressassem
naquelas que já existiam e que já haviam obtido a aprovação da
Igreja. O Concilio de Lyon II repetia essa norma, mas reconhecia
que ela vinha sendo ignorada por muitos grupos sem filiação
que agiam ao seu bel-prazer. Esse concilio dava um tratamento
especial às ordens dos franciscanos e dos dominicanos, embora
elas só houvessem obtido o reconhecimento oficial da Igreja
depois da proibição instituída em 1215 pelo Concilio de Latrão
IV, pois “sua aprovação é testemunho dos evidentes benefícios
que elas têm a oferecer à Igreja Universal”.
No entanto, devido à tensão persistente que havia entre os
sacerdotes diocesanos e os frades mendicantes durante a Idade
Média, esse concilio determinava que os frades somente poderíam
atuar se seguissem certos parâmetros. Os frades podiam pregar em
suas próprias igrejas, mas não nas igrejas das paróquias, a menos
que os párocos os tivessem convidado; os frades foram impedidos
de pregar contra o bispo e de tentar persuadir a congregação
a fazer parte de uma paróquia mendicante. Os frades também
eram obrigados a pedir permissão do pároco para administrar
extrema-unções, rezar missas ou testemunhar matrimônios em
sua igreja. O bispo deveria conceder aos mendicantes uma
permissão específica para que estes pudessem ouvir confissões
dentro de sua jurisdição.
BISPOS
A IN D E P E N D Ê N C IA D A IG R E JA
L E IG O S
CASAM ENTOS
O C O M B A T E À V IO L Ê N C IA
DISCIlM.INARliS
ou monge ou violasse o princípio do santuário contra ataques
de leigos, que era aplicado àqueles que procuravam refúgio em
uma igreja ou em um cemitério era a de excomunhão.
Dois outros tipos de cânones que visavam combater a vio
lência também são dignos de menção. O primeiro grupo de
cânones com batia as justas e os torneios, presumivelmente
porque desviavam dinheiro, material e homens que deveriam
ser empregados nas cruzadas. Para que esses cânones fossem
obedecidos, os concílios determinavam que, se um cavaleiro
morresse durante um desses festivais, ele perdería o direito a um
enterro na igreja. Um outro cânone, instituído pelo Concilio
de Latrão II, empregava palavras bastante incisivas contra os
incendiários:
B ibliografia
108
P A R T E TRF. S
OS CONCÍLIOS DA
ÉPOCA DA REFORMA
iillg lil
A história dos concílios gerais da Igreja passou por uma série de reviravoltas
interessantes no final da Idade Média e, a seguir, por algumas mais no
século XVI, durante o período das disputas entre católicos e protestantes.
Conflitos sobre a autoridade relativa dos papas e dos concílios gerais ocuparam
quase que totalmente os concílios que se reuniram durante o século XV: o de
Constança (1414-1418) e o de Basileia-Ferrara-Florença-Roma (1431-1445).
Os dois concílios gerais seguintes, o de Latrão V (1512-1517) e o de Trento
(c. 1545-1563) não podem ser considerados fora do contexto inédito das
crescentes demandas por reformas. A persistente resistência da hierarquia às
reformas efetivas, que se faziam urgentemente necessárias, teve como con
sequência os desafios lançados contra a Igreja católica por Martinho Lutero,
João Calvino e outros. Foi em grande medida a esses desafios que o grande
concilio reformador de Trento procurou responder. Na história dos concílios
gerais, esses quatro concílios merecem um capítulo à parte.
7
C O N C ÍL IO S VERSUS PAPAS:
OS CONCÍLIOS DE CONSTANÇA (1414*1418) E PE
B asileia - F errara- F lorença - R oma (1431*1445)
113
ÉPOCA DA REFORMA
O G R A N D E C IS M A
O C ID E N T A L E O C O N C IL IA R IS M O
OS CONCÍLIOS DA
CO N ST A N Ç A
C O N C ÍL IO S V E R S U S PAPAS:
deposto. Mas o Sacro Imperador Romano que havia sido eleito
n
à época, Sigismundo, parecia favorecer João XXIII, de modo
que este poderia contar com a sua reeleição ao papado mesmo
se fosse deposto pelo Concilio de Constança. Com a proteção
n
de Sigismundo, João XXIII, ao que tudo indica, esperava poder O
123
ÉPOCA DA REFORMA
B A S IL E IA -F E R R A R A -F L O R E N Ç A -R O M A
OS CONCÍLIOS DA
C O N C ÍU O S V ER SU S PAPAS:
sessões foi realizada. A última delas se reuniu em 1445, mas
p
sem que houvesse um documento declarando oficialmente o
n
Z
C O N C ÍL IO S V ER SU S PAPAS:
de preparo dos clérigos e bispos interessados em tudo que não
n
C
implicasse ter de zelar pelas suas dioceses. Z
132
8
A REFORMA PERDIDA
E RECUPERADA:
Os C o n c íl io s de Latrão V (1512-1517)
e de T r e n t o (1545-1563)
LATRAO V
C o n c íl io s de Latrão
que houvesse muitas interrupções.
Depois da condenação do encontro de Pisa, a segunda
principal tarefa do Concilio de Latrão V foi a de combater um
diploma legal conhecido como Sanção Pragmática de Bourges.
Promulgada na França em 1438, a Sanção Pragmática apoiava
V (1512-1517)
os princípios conciliares enunciados pelos concílios de Cons-
tança e de Basiléia contidos nos decretos Haec sancta synodus e
Frequens. Ela também restringia o poder do papa para nomear
e de
bispos, abades e outros altos dignitários da Igreja, ao afirmar
T rento
que todos deveríam ser eleitos por aqueles que seriam os seus
subordinados.
(1545-1563)
O Concilio de Latrão V classificou esse documento como
um ataque direto ao papado e ordenou que as cópias da Sanção
Pragmática fossem destruídas. O papado estava tão preocu
pado com o conciliarismo que o Concilio de Latrão acabou
condenando a Pragmática Sanção e a ameaça conciliar que
ela representava não apenas uma, mas duas vezes: sob o ponti
ficado de Júlio II, em 1512, e sob o pontificado de L eãoX , em
1516. A declaração de Leão X, conhecida como Pastor aetemus,
enfatizava o fato de que os concílios gerais deveríam se reunir
e agir apenas sob a aprovação papal e demonstrar um grande
respeito pelo papado.
A agenda do Concilio de Latrão V também incluía a reforma
da Igreja. Os seus membros sabiam muito bem o que precisava
ser reparado, especialmente depois que G iles de Viterbo, o
superior da ordem dos agostinianos, fez um relato franco das
dificuldades que a Igreja enfrentava na abertura do concilio
em 1512. Ele disse aos membros do concilio que o que a Igreja
precisava acima de tudo e imediatamente era de renovação e
que o Concilio de Latrão V era exatamente o ponto de partida
para que isso fosse feito. Conforme suas palavras,
C o n c íl io s de Latrào
anos depois, quando os protestaqtes fizeram um uso eficiente
dessa nova tecnologia para disseminar as suas idéias por meio
da imprensa popular.
O problema não foi a falta de interesse do Concilio de Latrão
pelas reformas, mas o modo como as suas normas foram redigidas.
V (1512-1517)
Um dos principais estudiosos desse concilio menciona o grau
de franqueza demonstrado pelos oradores sobre a situação em
que a Igreja se encontrava, principalmente os de maior nível
e de
hierárquico. Mas esse mesmo estudioso conclui que o concilio
T r in t o
deixou tantas brechas ao abordar essas reformas que as restrições
por ele impostas acabaram se revelando fáceis de contornar. No
(1545-1563)
fundo, o papado, os cardeais e a cúria simplesmente não tinham
nenhum interesse em realizar uma verdadeira reforma, pois os
membros graduados da cúria dependiam demasiadamente de
irregularidades financeiras, de modo que a oposição às reformas
estava firmemente entrincheirada.
Além disso, esses mem bros graduados da cúria, que 11a
maioria dos casos eram bispos italianos, dominaram o concilio
de tal modo que o Concilio de Latrão V dificilmente poderia
ser chamado de ecumênico. No entanto, havia uma notável
exceção: pela primeira vez na história dos concílios gerais, um
bispo representava o “Novo M undo” que Cristóvão Colombo
havia descoberto há apenas duas décadas. Ele era bispo de Santo
Domingo, no Caribe. Mas era também italiano.
Os membros do Concilio de Latrão V, que deixaram Roma
na primavera de 1517, não imaginavam que, antes mesmo que
esse ano acabasse, Martinho Lutero iria desencadear uma série
de idéias, emoções e movimentos que iriam mudar a cristandade
de um modo como nunca havia ocorrido antes. No entanto,
devemos nos lembrar das razões pelas quais o debate iniciado por
Lutero tornou-se virulento com tanta rapidez: a Igreja Romana
havia deixado de abordar questões importantes e se recusava a
reconhecer a gravidade dos problemas que enfrentava. As refor
mas haviam estado ausentes por mais de um século, e as tensões
resultantes dessa ausência foram se acumulando, formando uma 137
ÉPOCA DA REFORMA
bolha de descontentamento cada vez maior que acabaria por
explodir de vez com a publicação das 95 Teses de Lutero.
OS CONCÍLIOS DA
O CO N TEX TO D O PROTESTANTISM O
de
Latrào
Apóstolos alguns precedentes sobre um modo mais participativo
de governar a Igreja, que tendia ao conciliarismo medieval que
V (1512-1517)
havia atingido o seu apogeu durante o Concilio de Constança.
Portanto, o desafio da autoridade papal pelo conciliarismo no
século XV, especialmente durante o Concilio de Constança
f. df
e entre os seus defensores mais radicais durante o Concilio
T rento
de Basiléia também se tornou parte integrante do contexto do
protestantismo.
(1545-1563)
E m consequência disso, durante o século XVI a Igreja
Romana teve de enfrentar objeções às suas principais idéias e
estruturas em diversas frentes. Lutero, Calvino e outros ques
tionavam os próprios alicerces da Igreja Romana. Era como se
as pessoas fossem compelidas a repensar o que era exatamente
a Igreja cristã, no que ela acreditava e como os seus membros
deveríam praticar a sua fé. Algumas questões fundamentais
surgiram naturalmente depois dos pontos de partida de Lutero
haverem sido apresentados. Quais eram as fontes da autorida
de: as escrituras, a tradição, ou ambas? E o que era a tradição:
as obras dos padres da Igreja, os concílios gerais, os decretos
papais ou todas essas alternativas? Quantos sacramentos havia,
qual era o significado de cada um deles e para que fim eles se
destinavam? Q uem é que decidia sobre essas questões e em
quais argumentos essas decisões deveríam se basear? Com o a
Igreja deveria ser administrada e como ela deveria celebrar as
suas crenças liturgicamente?
TREN TO
d v La t r à o
e à implementação de reformas que fossem vantajosas para a
Igreja, mas também deveriam explicar de um modo completo,
V (1512'1517)
cuidadoso e efetivo os ensinamentos da Igreja Romana sobre
os assuntos fundamentais que os protestantes haviam questio
nado (especialmente a questão da autoridade, da tradição e dos
e df.
sacramentos). E muitas dessas discussões ocorreram enquanto
T ren io (1545-1563)
guerras religiosas e políticas estavam sendo travadas por toda a
Europa. Por exemplo, quando a segunda fase do concilio sus
pendeu os seus trabalhos em 1552, os bispos haviam decidido
se reunir novamente depois de um intervalo de dois anos, mas
tiveram de esperar uma década inteira para que o Concilio de
Trento se reunisse novamente.
Ao analisarmos os debates e as decisões do Concilio de Trento,
devemos ter em mente que cada uma das três fases do concilio
teve uma dinâmica própria, suas próprias controvérsias e suas
próprias narrativas. No entanto, para os nossos propósitos, é mais
interessante reunir em nina só seção as principais questões que
ocuparam as três fases do Concilio de Trento. Devido ao elevado
grau de contenciosidade presente em diversos tópicos, algumas
vezes as decisões finais eram adiadas de uma fase para a outra.
Neste livro, examinaremos as quatro principais questões: a da
autoridade das escrituras e da tradição, a do papel dos bispos, a
da doutrina e dos sacramentos e a das reformas.
A primeira dentre as principais questões enfrentadas pelo
Concilio de Trento dizia respeito à autoridade das escrituras e da
tradição. Nesse ponto, os católicos e os protestantes discordavam
essencialmente uns dos outros porque tinham diferentes respostas
para uma questão crucial: “Qual é a definição de autoridade e
quem tem o poder de defini-la?” Essa diferença fundamental a
respeito da autoridade exclusiva das escrituras e da autoridade
tanto das escrituras quanto da tradição tinha prioridade sobre
todas as demais discussões. Todas as explicações referentes à
ÉPOCA DA REFORMA
doutrina (e, na verdade, a todas as questões da Igreja) devem ser
atribuídas a alguma autoridade. Se os dois lados discordassem
OS CONCÍLIOS DA
de
Latrào V (15121517) i de T re n t o (1545-1563)
Concilio de Trento fizeram isso ao enfatizar continuamente que
os seus ensinamentos baseavam-se nas escrituras e na tradição,
especialmente quando essa tradição era proveniente dos padres
da Igreja e dos concílios e transmitida por eles.
Devido à importância fundamental que a Palavra de Deus
desempenhava tanto para a reforma protestante quanto para
a reação católica, o Concilio de Trento recorreu à Bíblia em
latim, também conhecida como Vulgata. Depois de listar os
livros que constavam na Vrdgata, os padres do C oncilio de
Trento determinaram que fosse preparada uma nova versão
para a Bíblia em latim. Além disso, eles também lograram o
seu intento ao declarar que somente a Igreja Romana, ao invés
de cada cristão individualmente, poderia interpretar essa nova
versão da Bíblia com autoridade final.
A segunda principal questão a ser abordada pelo Concilio
de Trento era uma consequência direta da primeira: a da auto
ridade doutrinária dos bispos enquanto membros da hierarquia
da Igreja. Essa questão era particularmente importante à luz
do questionamento dos protestantes sobre a necessidade da
existência do papa e dos bispos. Esse questionamento provocou
a reação mais enérgica do Concilio de Trento contra o desafio
protestante e ajudou a transformá-lo em um concilio eminen
temente episcopal. Os bispos tiveram uma participação muito
mais acentuada do que haviam tido nos concílios do século
XV. Em algumas ocasiões, durante os concílios de Constança
e de Basileia-Ferrara-Florença-Roma, os teólogos não episcopais
e os especialistas em direito canônico chegaram a eclipsar os
bispos. Em contrapartida, no Concilio de Trento o direito de
voto foi concedido apenas aos bispos, aos superiores das ordens
religiosas e aos representantes dos monastérios. Embora os bispos
pudessem trazer consigo teólogos para atuar como consultores
e nomear substitutos para representá-los, tanto esses teólogos 143
ÉPOCA DA REFORMA
quanto esses substitutos não podiam votar em seu próprio nome
ou em nome do bispo a quem eles serviam ou substituíam.
OS CONCÍLIOS DA
de
Latrão V (1512-1517) e de T r e n t o (1545 1563)
reais, soberanos e barões, tanto dentro quanto fora da igreja, e
agiam com se fossem seus hum ildes servidores perante o altar,
concedendo a eles não apenas um a precedência im erecida, mas
tam bém agindo até m esm o com o se fossem seus criados.
CoNCfi.ios
Além disso, o Concilio de Trento determinou que os bispos de
veríam supervisionar a tradução dos rituais latinos referentes aos
sacramentos para as línguas locais e se certificar se os sacerdotes
df Latrâo
e os bispos explicavam o seu significado em conformidade com
as definições elaboradas pelo concilio.
V (1512-1517)
A última das quatro principais questões abordadas pelo Con
cilio de Trento dizia respeito às amplas reformas que se faziam
necessárias e que os concílios anteriores não haviam conseguido
f de T
delinear e implementar de modo satisfatório, se é que haviam
re n t o
conseguido implementar alguma. Essas reformas afetavam de
alto a baixo quase todos os aspectos da vida da Igreja.
(1545-1563)
Um grupo destacado de reformas dizia respeito aos sacerdotes
e às pessoas a quem serviam. O Concilio de Trento reafirmou
a importância da pregação e determinou que os sacerdotes de
veríam pregar todo domingo e em todos os dias festivos. Foram
tomadas providências para melhorar o conhecimento que os
sacerdotes tinham das escrituras para que pudessem dividi-lo
adequadamente com os seus paroquianos; essas providências
também seriam muito bem-vindas para aqueles sacerdotes que
ainda lutavam contra o analfabetismo. O Concilio de Trento
permitiu aos bispos que suspendessem os ministros que eram
“inadequados ou incompetentes” e em três ocasiões fazia um
alerta contra os pregadores itinerantes que recusavam sujeitar-
se à autoridade de qualquer bispo ou a de superiores de ordens
religiosas. Os bispos foram orientados a organizar sínodos
diocesanos anualmente, e grupos de bispos da mesma diocese
deveríam se reunir em sínodos provinciais uma vez a cada três
anos. Eles também deveríam aumentar o número de visitas
que faziam por sua diocese. Essas normas nos remetem aos
primeiros concílios, que também desejavam que os encontros
entre os bispos e as suas comunidades se reunissem com mais
frequência para que os problemas, tanto no nível paroquial
quanto no nível episcopal, pudessem ser enfrentados antes que
piorassem. Os sínodos diocesanos e episcopais também eram o
local mais adequado para dar início à imposição, à implemen-
ÉPOCA DA REFORMA
tação e ao monitoramento do programa de reformas instituído
pelo Concilio de Trento.
OS CONCÍLIOS DA
D E P O IS DE T R E N T O
C o n c í i .io s de Latr Ao V
diferentes ou inéditos a tudo o que fora decidido por Trento. A
instituição desse grupo de trabalho centralizado, que acabou se
tornando conhecido como a Congregação sobre o Concilio, foi
uma medida inédita na história dos concílios gerais. Segundo
estudos recentes, essa congregação mais restringiu alguns dos
(1512-1517)
aspectos inovadores do Concilio de Trento do que ajudou a
disseminar as suas idéias. Essas tendências de longo prazo (o
ensino ministrado nos idiomas locais e suas diversas reformas
e de.
pastorais e espirituais) foram substituídas ao longo do tempo
T ren to
por um rigorismo que não era condizente com as intenções
dos bispos de Trento, mas que acabou manchando a reputação
(1545-1563)
do concilio.
De fato, nossa interpretação atual de Trento tem sido objeto
de uma nova onda de revisionismo, especialmente à luz do
Concilio Vaticano II. A recente redescoberta do Concilio de
Trento como ele realmente foi, e não como uma caricatura,
constitui um importante passo para a história dos concílios
gerais. Antes de concluirmos nossa análise sobre o Concilio
de Trento, devemos abordar a atual reavaliação que foi feita
sobre esse concilio, que muitas vezes tem sido colocado em
oposição ao Concilio Vaticano II. Na verdade, o Concilio de
Trento pode ter sido o menos compreendido e o mais atacado
dos 21 concílios gerais da Igreja.
A descrição popular desse concilio com frequência o retrata
de modo bastante negativo devido ao emprego da ressonante
frase anathema sit (“que seja anatematizado”), que significava
que qualquer pessoa que tivesse uma opinião contrária aos en
sinamentos católicos deveria ser excomungada. Essa frase dá a
impressão de que os membros do Concilio de Trento passavam o
dia inteiro sentados sem fazer nada além de refutar de imediato
as idéias protestantes, que consideravam heréticas.
De fato, a frase anathema sit realmente aparece com alguma
frequência nos documentos do concilio, mas Trento não iniciou
suas atividades distribuindo condenações. Ao invés disso, o con
cilio primeiro abordou os ensinamentos da Igreja católica sobre \5 1
ÉPOCA DA REFORMA
C o n c íl io s de Latrâo
sobre questões essenciais da fé cristã e da prática católica de
um modo conclusivo, sistemático e preciso como nunca havia
sido feito antes. O Concilio de Trento também foi inovador
e aberto ao fundar seminários e ao endossar o aum ento do
emprego das línguas locais na catequese. Considerado desse
V (1512-1517)
ponto de vista, o Concilio de Trento não foi uma mera reação
ao protestantismo, embora evidentemente houvesse se reunido
em grande medida para reagir às idéias, aos questionamentos e
e de
às críticas dos protestantes.
T rento
O concilio de Trento ainda é considerado como um marco
da Igreja Católica, por haver sido o último concilio a se reunir
(1545-1563)
antes dos tempos modernos. O intervalo entre a conclusão
do Concilio de Trento em 1563 e o início do concilio geral
seguinte, o Vaticano I, em 1869, durou 306 anos. Esse é o
intervalo mais longo que já ocorreu entre dois concílios gerais
na história da Igreja, nm intervalo tão longo quanto o tempo
transcorrido entre a morte e a ressurreição de Jesus e a convoca
ção do primeiro concilio geral, o de Niceia I, em 325. Portanto,
independentemente de julgarmos suas prolongadas sessões sob
uma ótica favorável ou não, ou de as considerarmos ativas ou
reativas, conservadoras ou progressistas, não podemos negar que
o Concilio de Trento marcou profundamente a Igreja durante
os séculos que se seguiram.
B ibliografia
153
ÉPOCA DA REFORMA
L IN D B E R G , Carter. The european reformations. Oxford, Blackwell,
1996.
OS CONCÍLIOS DA
154
I’ A R T E Q.UATRO
OS CONCÍLIOS DA
IDADE MODERNA
D urante os três séculos que se passaram entre o C oncilio de
Trento e o Concilio Vaticano I, o mundo se expandiu significa
tivamente em muitos aspectos. Mesmo antes de Lutero e do Concilio
de Trento, os encontros cada vez mais frequentes com civilizações
até então desconhecidas ao redor do mundo obrigou a Europa a
ampliar os seus horizontes. Nos dois séculos que se passaram desde
o recesso do Concilio de Trento em 1563, a Revolução Científica
e o lluminismo colocaram a fé em segundo plano e desafiaram a
religião recorrendo ao racionalismo, ao secularismo e a uma men
talidade mais individualista. No final do século XVIII, as revoluções
americana e francesa atacaram monarquias e aristocracias. Os tradi
cionalistas defendiam as suas posições recorrendo ao direito divino
e ao sangue azul, enquanto os revolucionários desejavam instaurar
democracias soberanas e repúblicas baseadas em liberdades civis.
Durante o século XIX, o nacionalismo varreu a Europa e passou a
competir com a filiação e a identidade religiosa com o a lealdade
final de cada cidadão. E não seria nenhum exagero afirmar que
o século XX testemunhou os desenvolvimentos mais avançados e
vertiginosos em tecnologia, imprensa, economia, educação, política
e no status social que o planeta jamais havia visto.
Embora vivesse em meio a essa realidade cambiante, a Igreja
tendia a se afastar dos desdobramentos modernos que poderíam
ameaçá-la. Na pior das hipóteses, essa atitude era percebida como
se a Igreja estivesse se escondendo do mundo, temerosa das rápidas
mudanças que ocorriam na indústria e na política e, de um modo
geral, descrente da modernidade. Essa impressão não correspondia
inteiramente à verdade, pois uma renovação litúrgica, espiritual e
teológica se processava de um modo bastante salutar e excitante no
âmbito das paróquias e das dioceses. Porém, a descrição de Roma
e de sua cadeia de comando curial como intransigentes não estava
totalmente destituída de fundamento.
A Igreja não havia convocado nenhum concilio geral entre a
conclusão do Concilio de Trento em 1563 e a abertura do Concilio
Vaticano I em 1869. Pelo menos no início, a ausência da convocação
de um novo concilio poderia ser atribuída ao fato de que a Igreja
ainda se encontrava avaliando minuciosamente as decisões tomadas
pelo Concilio de Trento e as implementando, o que sem dúvida era
uma tarefa intimidadora, tanto em termos de liturgia e de doutrina
quanto geograficam ente falando. N o entanto, com o passar do
tempo, esse intervalo entre os concílios gerais também poderia ser
atribufdo à evolução política, pois o princípio do constitucionalismo
passou a ameaçar as monarquias de forma permanente na Europa
desde o início da Idade Contemporânea.
A soberania popular e a igualdade social relativa eram idéias
governamentais e sociais de vanguarda que afetavam os assuntos da
Igreja. Pouco tempo antes de o Concilio de Trento haver se reunido,
o conciliarismo já havia favorecido uma representatividade mais
am pla e um poder maior de decisão sobre a Igreja. A história do
conciliarismo talvez tenha levado alguns a considerar um concilio da
Igreja como algo equivalente aos parlamentos seculares que se popu
larizavam. Portanto, os defensores do constitucionalismo atacavam
a Igreja como instituição, especialmente em Roma, pelas mesmas
razões que haviam combatido as outras monarquias e aristocracias.
No entanto, nem sempre os monarcas se uniam para ajudar uns aos
outros. As ameaças de Napoleão proferidas contra os papas Pio VI
e Pio VII no início do século XIX tornaram-se famosas, e Pio VII
chegou até mesmo a ser aprisionado por Napoleão. Para o papado,
a época estava longe de ser propícia à convocação de concílios.
Porém, depois de se passar mais de três séculos sem que a Igreja
convocasse um concilio geral, o papa Pio IX mais conhecido por
seu nome italiano Pio Nono, convocou o Concilio Vaticano I com o
objetivo principal de enfrentar uma importante questão que se devia
a essas repercussões políticas e sociais. Acima de tudo, ele desejava
que a infalibilidade papal fosse definida e proclamada durante esse
encontro. Na sua opinião, tal declaração seria uma mensagem bem
clara para aqueles que consideravam a Igreja como uma república
e o papado como uma monarquia qualquer. A declaração de infa
libilidade papal é importante por si mesma, mas os comentaristas
com frequência não dão a devida importância às deliberações que
foram necessárias para aperfeiçoar a sua definição. Esses debates
nos informam muito mais sobre a situação dos concílios gerais, da
autoridade papal e da colegialidade episcopal no século XIX, além
de nos revelar que o Concilio Vaticano I não conseguiu resolver
todos os aspectos referentes a esses tópicos.
Do mesmo modo que os concílios gerais do primeiro milênio,
quando boa parte deles havia abordado questões que haviam sido
examinadas apenas em parte pelos concílios anteriores, o Concilio
Vaticano II retomou algumas questões que não haviam sido solu
cionadas pelos concílios de Trento e Vaticano I. M as o C oncilio
Vaticano II não se resum iu à retom ada das questões que ainda
permaneciam em aberto, pois foi um concilio geral muito diferente
que foi convocado para resolver uma questão muito diferente em
um mundo muito diferente.
9
A INFALIBILIDADE PAPAL:
O C o n c íl io V atican o I (1869-1870)
A IN F A L IB IL ID A D E E A J U R IS D IÇ Ã O PAPAIS
170
ADMIRÁVEL M UNDO NOVO:
A dm irável novo c o n c íl io
O C o n c íl io V atican o II (1962-1965)
O ATO DE ABERTURA
O
C o n c il io V a u c a n o
ele afirmou que o Concilio Vaticano II deveria trazer a Igreja
para o século XX e combater uma mentalidade de que a Igreja
era uma instituição que se encontrava sob ameaça, o que aca
bara fazendo com que ela desse as costas ao mundo. De um
modo ainda mais direto, fez um alerta contra os “profetas do
II (1962-1965)
juízo final” que tinham uma visão negativa do estado em que
o mundo se encontrava e do lugar que a Igreja ocupava neste
mundo. João XXIII deixou bem claro que caminho o concilio
deveria seguir.
No entanto, não foi fácil para o velho papa colocar a cúria
em segundo plano. A primeira tarefa do concilio era a realiza
ção de uma votação que iria escolher aqueles que presidiriam
as comissões episcopais que discutiríam determinados tópicos.
Os membros da cúria haviam preparado as suas próprias listas
de bispos favoritos, a maioria dos quais era composta de mem
bros dos comitês que haviam sido responsáveis pela preparação
do Concilio Vaticano II. Eles esperavam que os membros do
concilio simplesmente copiassem os nomes desses bispos, que
a cúria considerava confiáveis e simpáticos à sua agenda, plano
que podería ter funcionado sem problemas, pois simplesmente
não havia nenhum meio de os membros do concilio conhecerem
suficientemente bem os 160 bispos indicados (dezesseis para
cada uma das dez comissões) para tomar uma decisão acertada
sobre qual seria o bispo mais adequado para cada tarefa. A cúria
estava certa de que o concilio aprovaria as suas escolhas, mas
acabou acontecendo algo inteiramente diferente.
Em um momento tão dramático quanto as palavras ousadas
que haviam sido proferidas alguns dias antes por João XXIII, o
Cardeal Liénard, bispo de Lille, sugeriu que essa votação fosse 179
adiada por alguns dias para que os bispos pudessem conhecer
z melhor nns aos outros. Desse modo, poderiam tomar decisões
OS CONCÍLJOS DA
A IGREJA E O M U N D O
O Q U E É A IG R EJA?
LEIGOS E EDUCAÇAO O
<>;
As palavras empregadas pela Lumen gentium para se referir aos z
LITURGIA E ESCRITURAS
BIS P O S E S A C E R D O T E S , F R E IR A S E IR M Ã O S
CATÓLICOS, CRISTÃO S
E AS TRA D IÇÕ ES DE OUTRAS FÉS
194
>o
A D M IR Á V E L M U N D O N O V O :
O A P E L O U N IV E R S A L 2
O concilio estava mapeando um novo rumo ao procurar
alcançar as outras fés. Ao mesmo tempo, preocupava-se tam
b
bém em vivenciar e espalhar a sua própria fé em três contextos z
D E P O IS D O C O N C Í L I O V A T IC A N O I I
B ibliografia
198
CONCLUSÃO
207
ín d ic e r em issiv o
NDICE REMISSIVO
47, 52
João C alvin o / calvinism o 111,
monotelitismo 4 8 ,4 9
138
muçulmanos 71, 75, 78, 81, 84,90,
João de Antioquia 4 0 ,4 1 ,8 7
95, 126, 177,201
João Paulo II, papa 121
João VIII, papa 55
João XXIII, papa conciliar ou pisano N
(século XV) 14,118-120,122, não cristãos (ver também judeus,
123, 171-176, 179, 180, 182 muçulmanos) 81,93
João X X III, pap a (Â ngelo Ron- Napoleão 157
calli) Nestório e nestorianism o 39-41,
judeus 7 1 ,8 1 ,9 5 , 104, 105, 177, 4 5 ,4 6 ,4 8 , 87
194, 201 Nicolau I, papa 54
Júlio II, papa 134,135 Nicolau II, papa 77
Justiniano, imperador 46, 47 Nicolau V, papa 129
L
O
Leão I (o Grande), papa 43,44,48,
ordens religiosas 22,79,100-102,
66, 70, 87, 164, 192, 202
143, 147, 178, 191
Leão II, papa 49
Leão III, papa 86
P
Leão X, papa 134,135
leigos 1 7 ,2 2 ,3 1 ,6 4 ,7 4 ,7 5 ,7 7 ,9 2 , Paulo VI, papa 19,23,24,180,181,
96, 9 8 ,1 0 0 ,1 0 2 ,1 0 3 ,1 0 5 ,1 0 7 , 186, 192, 193, 197, 202
136, 140, 144, 174, 176, 181, Pádua e Siena, Concilio de 124
184, 185, 187, 188, 191, 193, peregrinação e peregrinos 73, 75,
195, 197, 200 84, 90, 106, 107, 149, 185, 203
Lutero, Martinho 18, 82,111, 132, Pio II, papa 130,168
133,137-140, 149, 156, 203 Pio IV, papa 150,19 6 ,1 9 7
Pio VI, papa 157
M Pio VII, papa 157
Pio IX (Pio Nono), papa 157, 205
Marciano, imperador 44
Pio XII, papa 171
Maria e mariologia 31, 39-41, 45,
Pisa, Concílios de 117, 118, 122-
4 7 ,5 1 ,5 2 , 149, 203
124, 134, 135,204
Martinho V, papa 1 2 3 ,1 2 4 ,1 2 9 ,
pluralismo 6 1 ,9 8 ,1 3 0 ,1 4 8
130
prim azia papal 86, 87, 127, 128,
matrimônio 95,98, 105, 146
186
Melquíades, papa 73
Miguel III, imperador 54
R
Miguel VIII Paleólogo, imperador
86 relíquias 53, 82, 148, 149, 203 211
DA IGREJA
S
CONCÍLIOS
Teodora, imperatriz 46
Teodoreto de Cyr 46, 47
sacerdotes 60-63,96-101,106,131,
145, 147, 148, 190, 191 Teodoro de Mopsuéstia 46, 47
S an ção P ragm ática de Bourges Teodósio 38
135 Teodósio II, imperador 40, 44
CN
Sigismundo, imperador 119,121, transubstanciação 81, 146
122, 203 “três capítulos” 46, 47
Silvestre I, papa 34 trindade 98
simonia 6 0 ,6 1 ,9 8 ,1 3 0 ,1 3 1 ,1 3 6 ,
148 U
“ Sínodo do Latrocínio” de Efeso
44 união hipostática 41, 44, 202
sínodos (locais, regionais e provin Urbano II, papa 75
ciais) 2 4 ,2 5 ,3 1 ,4 0 ,4 5 ,4 8 ,5 5 , Urbano VI, papa 114
58,59, 147, 200, 204 usura 95, 103, 104, 136
Sisto III, papa 41
V
T
212