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HISTÓRIA DOS

CONCÍLIOS
DA IGREJA
o longo da história do cristianismo, a Igreja sempre convocou con-
cílios para esclarecer questões doutrinárias e solucionar problemas
pastorais e disciplinares. Em diversas ocasiões, esses concílios acabaram
resultando em momentos decisivos para o curso da história cristã.
Este livro é um resumo dos 21 concílios, que tiveram início no ano de 325,
em Niceia, na Ásia Menor. Os concílios foram convocados de tempos em
tempos durante o primeiro milênio e o período medieval, tiveram de enfren­
tar a época da Reforma, no século XVI, e continuaram no mundo moderno.
Este texto não oferece um relato do dia a dia dos concílios, mas apresenta
o contexto histórico de cada um deles, os desafios que tiveram de enfrentar,
as realizações e os fracassos, revelando os temas e as tramas que têm em
comum e, ao mesmo tempo, relatando os fatores, as características e os
contextos que fizeram com que cada um deles fosse relativamente singular.
O impulso promovido pelos concílios continua a atuar de forma vivida na di­
nâmica da Igreja, na medida em que ela procura responder às necessidades
mais urgentes de sua época.

é doutor em História da Igreja. Além de autor de publicações


acadêmicas, atua como professor, conferencista e comentarista de assuntos da Igreja em
jornais, em revistas, no rádio e na televisão. Também é autor de Renewing Christianity: A
History of Church Reform from Day One to Vatican // (Paulist Press, 2001).
Christopher M. Bellitto

HISTÓRIA DOS

CONCÍLIOS
21 DA IGREJA
D E NI C E I A A O V A T I C A N O II

Tradução
Cláudio Queiroz de Godoy

E d i ç õ e s L o y o la
Título original:
The General Councils - A History o f the
Twenty-One Church Councils from Nicaea to Vatican II
© 2002 by Christopher M. Belitto
Paulist Press, Inc.
997 Macarthur Boulevard
Mahwah, New Jersey, 07430 USA
ISBN 0-8091-4019-5

Preparação: Carlos A lberto Bárbaro


Capa: Walter Nabas
Imagem Museus do Vaticano, Ikona/Carrieri
Diagramação: Miriam de Melo
Revisão: Iranildo Bezerra Lopes

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escrita da Editora.

ISBN 978-85-15-03719-3
2a edição: 2016
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2010
SUMARIO

A G R A D E C I M E N T O S ............................................................9

LISTA D O S C O N C Í L I O S G E R A IS ................................11

I N T R O D U Ç Ã O ......................................................................13

PARTE UM

OS CONCÍLIOS DO PRIMEIRO MILÊNIO


1 A E L A B O R A Ç Ã O D A D O U T R IN A :
Do C oncilio de N iceia (325) ao C oncilio de
C onsia .n i i.nopi.a 11i (.680-681 >........................................33

2 A FÉ E A P O L ÍT IC A :
N iceia 11 (78/) e C onsian i inopi a IV (869-870).... 51

3 A SU P E R V ISÃ O D A IG R E JA P R IM IT IV A :
Os cânones discipi inari s .............................................. 57

PARTE DOIS

OS CONCÍLIOS DA IDADE MÉDIA

4 O S Q U A T R O C O N C Í L I O S DE LATRÃO
(1123-1215)......................................................................73
5 DISPUTAS DE PODER;
D o C oncilio de Lyon i (1245) ao
C oncilio de V ienne (1311-1312)................................83

6 A SUPERVISÃO DA IGREJA NA IDADE


MÉDIA:
OS CÂNONES DISCIPLINARES............................................95

PARTE TRÊS

OS CONCÍLIOS DA ÉPOCA DA REFORMA

7 CONCÍLIOS V E R S U S PAPAS:
Os CONCÍLIOS DE CONSTANÇA (1414-1418) E DE
BASILEiA' F ERRARA- F[.OREN ÇA* R O M A í 14 31 ~1445) 113

8 A REFORMA PERDIDA E RECUPERADA:


Os Concíuos de Latrão V (1512-1517) e de
T rento (1545-1563)...................................................... 133

PARTE QUATRO

OS CONCÍLIOS DA IDADE MODERNA

9 A INFALIBILIDADE PAPAL:
O C oncilio Vaticano 1 (1869-1870)...................159

10 ADMIRÁVEL MUNDO NOVO:


A dmirável novo concilio
O C oncilio Vaticano lí (1962-1965)...................171

CONCLUSÃO...........................................................199

ÍNDICE REMISSIVO............................................. 209


Para o meu tio,
bispo Robert Brucato,
que tem conduzido a mim e à Igreja que ele serve
para mais perto do Reino de Deus.
AGRADECIMENTOS

ostaria de expressar a minha gratidão aos autores das obras


de referência clássicas, das pesquisas, dos relatos históricos e
dos estudos especializados aos quais recorri. Agradeço aos funcio­
nários da biblioteca do Seminário de São José, da Universidade
de Fordham e aos membros do sistema de empréstimos entre
bibliotecas, por haverem me ajudado com a pesquisa e com o
material. Também gostaria de agradecer aos estudantes e ao
público que tiveram acesso a alguns trechos dos capítulos deste
livro por meio dos cursos que eu ministro e de minhas palestras.
As suas perguntas e comentários me ajudaram com frequência
a refletir melhor sobre alguns pontos e a descobrir a presença
de algumas lacunas que precisavam ser preenchidas.
Agradeço especialmente a George Pitula, que com grande
entusiasmo me chamou a atenção para algumas questões con­
CONCILIOS

ciliares e latinas; a Louis B. Pascoe, S. J., orientador do meu


DA IGREJA

doutorado na Universidade de Fordham, que me encorajou a


seguir em frente com o projeto deste livro; ao Rev. Francis J.
Corry, meu primeiro professor de história da Igreja, que leu
todo o manuscrito deste livro, sugerindo que eu fosse o mais
objetivo possível e que fez com que eu, finalmente, optasse
por me concentrar exclusivamente na história dos concílios; a
Kathleen Walsh, que anteriormente já havia publicado o meu
Renewing Christianity pela Paulist Press e que se comprometeu
a publicar este livro que agora apresento antes mesmo que eu o
tivesse terminado; e a Don Brophy, que me ajudou a concluir
o manuscrito. Serei eternamente grato a Kathleen e a D on
pelo seu encorajamento, pela sua crítica positiva e sutil e pela
sua edição primorosa. Finalmente, agradeço a Karen Bellitto,
minha mulher e minha melhor amiga, por ser quem ela é e por
me ajudar a ser quem eu sou.
Ad maiorem Dei gloriam
C. M. B.

10
LISTA DOS CONCILIOS GERAIS

Concílios do Primeiro Milênio


1. Niceia I 325
2. Constantinopla I 381
3. Éfeso 431
4. Calcedônia 451
5. Constantinopla II 553
6. Constantinopla III 680-681
7. Niceia II 787
8. Constantinopla IV 869-870

Concílios da Idade Média


9. Latrão I 1123
10. Latrão II 1139
11. Latrão III 1179
12. Latrão IV 1215
13. Lyon I 1245
14. Lyon II 1274
15. Vienne 1311-1312

Concílios da Época <da Reforma


16. Constança 1414-1418
17. Basileia-Ferrara-Florença-Roma 1431-1445
18. Latrão V 1512-1517
19. Trento 1545-1548/1551
1562-1563

Concílios da Idade Moderna


20. Vaticano I 1869-1870
21. Vaticano II 1962-1965
INTRODUÇÃO

azer uma retrospectiva histórica dos 21 concílios gerais da


F Igreja católica é uma das melhores maneiras de se inteirar
da história duas vezes milenar da cristandade. Os concílios gerais
não abrangem todos os aspectos da teologia e da espiritualidade,
mas, se algum tema se revestia de alguma importância, ele quase
sempre era abordado por um contílio geral, tornando esses 21
principais encontros marcos essenciais da história da Igreja.
A primeira vista, pode parecer estranho falar sobre concílios
na história da Igreja. Eles nos impressionam em seu caráter de
encontros “democráticos” ou “constitucionais” que ocorreram
em uma Igreja altamente hierarquizada presidida por um papa
que alegava possuir uma exclusiva e única autoridade emanada
diretamente de Cristo. Este paradoxo é um dos temas mais
interessantes — e, algumas vezes, o mais controverso — com
o qual os 21 concílios considerados mais importantes tiveram
su o de se defrontar ao longo da história.
°z ~
o< Um outro tema relevante é o do ciclo de contestação-e-
=UÜ
reação que ocorria onde quer que os concílios se reunissem
CN
para enfrentar o problema da heresia, a necessidade premente
de reforma, desafios à autoridade da Igreja e outros temas sig­
nificativos relativos a determinados períodos históricos ou que
foram irrompendo repentinamente ao longo dos dois mil anos
da cristandade. E nos concílios que a Igreja reflete sobre si ao
oferecer o local e a ocasião em que a resolução de problemas,
um processo não raro precedido por décadas ou mesmo sécu­
los de antecipação, pode chegar a seu ponto de massa crítica.
Em um concilio geral, a Igreja estuda como resolver os seus
problemas, estabelece princípios ou regras a serem seguidos e
organiza a implementação destes planos, princípios e regras.
Quase todo concilio segue o mesmo padrão. Primeiro define-se
um motivo específico para a convocação de um concilio geral,
seguido de um período de preparação, depois o próprio concilio
e finalmente da tentativa de implementar os seus objetivos na
prática.
O quadragésimo aniversário das duas marcantes sessões
do Concilio Vaticano II (1962-1965) parece ser o momento
oportuno para se fazer uma retrospectiva dos vinte principais
concílios da história da Igreja, não somente para ficarmos a
par da história específica de cada um deles, mas também para
contextualizar o Concilio Vaticano II e as mudanças e discussões
apaixonadas que gerou. Por volta de 1960, assim que o papa João
XXIII anunciou inesperadamente a convocação de um concilio
geral, as editoras publicaram uma série de livros sobre o tema
para contextualizar o Concilio Vaticano II. A realização do Va­
ticano II fez com que acadêmicos do mundo inteiro editassem
e traduzissem os documentos dos vinte principais concílios que
o precederam, para que pudéssemos compreender melhor a
história, objetivos e atos que os orientaram. No entanto, em­
bora tenham sido publicados diversos estudos sobre o Concilio
14 Vaticano II e sobre os seus próprios documentos conciliares,
INTRODUÇÃO
bastante distintos entre si, não se deu a devida atenção aos vinte
concílios anteriores e seus documentos à luz de nossa própria
experiência do Concilio Vaticano II.
M esm o com todo esse material disponível, ler sobre os
concílios é uma coisa; mas presenciar um concilio e, imbuído
dessa experiência, aprender sobre os concílios anteriores é algo
totalmente diverso. A experiência em primeira mão que muitos
tiveram das consequências do Concilio Vaticano II forneceram às
pessoas de hoje uma percepção e uma perspectiva excepcionais
sobre como funcionavam os outros concílios, condições que
permitem que os cristãos de hoje sejam mais afortunados a esse
respeito do que milhões de cristãos que viveram e morreram
em um período em que nenhum concilio se reuniu, como foi
o caso dos 306 anos que se passaram entre o Concilio de Trento
e o Concilio Vaticano I e dos noventa anos que separaram o
Concilio Vaticano I do Concilio Vaticano II.

U M A P E R S P E C T IV A G E R A L

Este estudo divide os 21 concílios gerais em quatro períodos


tradicionais da história da Igreja: primeiro milênio, medieval,
o da época da Reforma e o da Idade Moderna. Os concílios
se enquadram nesses períodos não apenas devido a algum
capricho histórico, mas também porque, de modo geral, os
concílios situados em cada uma dessas quatro eras formam um
conjunto coerente. Embora este livro os apresente em ordem
cronológica, também será dada a devida atenção a alguns temas
recorrentes.
Grosso modo, os concílios do primeiro milênio foram con­
vocados para estabelecer regras doutrinárias visando combater
a heresia. Os concílios medievais e os que ocorreram na época
da Reforma foram convocados para reformar a Igreja e para
esclarecer algumas questões doutrinárias. Na idade moderna,
os dois concílios do Vaticano foram convocados por razões
bastante distintas: o primeiro para estabelecer urna definição 15
DA IGREJA
CONCÍUOS

da infalibilidade papal; o segundo para renovar a Igreja, que,


H I STORI A DOS

durante muito tempo, se defasara em relação aos desenvolvi­


mentos contemporâneos.
Alguns concílios retomavam as discussões que haviam sido
fN
abordadas pelo concilio anterior, ao passo que outros procuravam
resolver um problema que o concilio anterior havia sido incapaz
de resolver inteiramente. Os oito primeiros concílios, que vão
do de Niceia I (325) até o de Constantinopla IV (869-870),
foram convocados em uma sequência relativamente rápida,
pois o credo ou afirmação fundamental sobre a fé enunciados
por um concilio sempre levantavam novas questões que, por
sua vez, também não poderíam deixar de ser abordadas. Alguns
concílios se seguiram quase imediatamente após o outro para
abordar um mesmo problema persistente, com os concílios que
se sucediam resolvendo o problema de um modo mais satisfatório
e completo do que os anteriores. Quatro concílios lateranenses
foram convocados sucessivamente nos anos de 1123, 1139,
1179 e 1215 com o objetivo de reformar a Igreja. Em outras
ocasiões, concílios posteriores concluíam os trabalhos iniciados
por concílios anteriores que, devido a algumas dificuldades
circunstanciais, não puderam ser concluídos. Talvez esta seja
a melhor descrição da relação existente entre os concílios de
Trento, Vaticano I e Vaticano II, embora com frequência estes
três concílios sejam classificados como opostos entre si.
Este estudo não tenciona oferecer um relato do dia a dia
dos 21 principais concílios, mas terá cumprido o seu objetivo se
conseguir apresentar de modo satisfatório aos estudantes e leitores
em geral o contexto histórico de cada um destes concílios, suas
principais incumbências, realizações e fracassos e a sua tentativa
geral de reagir a determinados e persistentes desafios. Com o
este livro é uma síntese geral, ele não inclui notas de rodapé,
mas, ao final de cada um dos capítulos, há uma lista de estudos
especializados (dando-se preferência àqueles em língua inglesa)
nos quais este livro se baseou. Procurei revelar os temas e as tra­
16 mas que esses 21 concílios gerais têm em comum e, ao mesmo
tempo, relatar os fatores, as características e os contextos que
fizeram com que cada um deles seja relativamente singular.

O QUE É UM C O N C IL IO ?

Os concílios gerais são encontros convocados pelo papa


(embora nem sempre tenha sido este o caso) em que se reúnem
os bispos da Igreja (embora possa haver outros participantes). Os
concílios não são convocados de modo regular e em uma data
preestabelecida, mas sim na medida em que se fazem necessários
para que a Igreja, representada pelos membros do concilio (com
frequência chamados de “padres”) possa abordar os principais
temas que se apresentam em determinado momento (tipicamente
religiosos, mas algumas vezes políticos também).
Por exemplo, quando anunciou a convocação do Concilio
de Latrão IV, o papa Inocêncio III declarou que havia alguns
temas muito importantes a serem abordados. Ele havia decidido
que, “tendo em vista que estes temas afetam a situação de todo
o corpo de fiéis, deveriamos, de acordo com o antigo costume
instituído pelos santos padres, convocar um concilio geral —
este concilio deverá se reunir no momento oportuno e dizer
respeito apenas à saúde espiritual das alm as”. E continuou,
detalhando o grande número de temas que seriam abordados
pelo concilio:

[...] erradicar os vícios e sem ear a virtude, corrigir abusos e


reformar a moral, eliminar as heresias e fortalecer a fé, acabar com
as diferenças e estabelecer a paz, suspender as perseguições e esti­
mular a liberdade, persuadir os príncipes e os povos cristãos a prestar
auxílio e apoiar tanto os clérigos quanto os leigos na Terra Santa,
e por outras razões as quais seria fastidioso enum erar aqui.

Ele também instruiu os arcebispos, bispos, abades e priores


a quem havia enviado esta carta a se apresentarem em Roma
dois anos e meio depois dessa convocação. “Nesse meio tempo”,
DA 1GRE)A
CONCÍLIOS

prosseguia, “tanto pessoalmente quanto por meio de agentes


H I S T Ó R I A DOS

secretos, informem-se de modo preciso sobre todos os problemas


que pareçam clamar por correção e reformas e, escrevendo um
r—' relatório bastante pormenorizado, remetam-no para o escrutínio
^ do concilio sagrado”.
Desde o início da história da Igreja, os cristãos costumavam
recorrer a esse tipo de grandes encontros, para comparar as suas
anotações e para resolver problemas. O Concilio de Constança
(1414-1418), bastante controverso por tentar impor a todos os
concílios vindouros uma agenda regular — em grande medida
para assegurar a sua pretensão de possuir uma autoridade superior
à do papado —, observou em 1417: “A convocação regular de
concílios gerais é um modo preeminente de se cultivar o patri­
mônio do Senhor, pois eles extirpam as sarças, os espinhos e os
cardos das heresias, dos erros e dos cismas, corrigem desvios,
reformam o que está deformado e produzem um a colheita
abundante e fértil das vinhas do Senhor” (grifo meu).
Embora o Concilio de Constança não tenha conseguido fazer
com que a convocação dos concílios gerais fosse usual e regular,
nenhum membro da Igreja jamais duvidou de sua importância
crucial. Cinco anos antes de Lutero divulgar as suas 95 Teses,
John Colet, o deão da catedral de São Paulo em Londres, que
também era amigo de Erasmo, pregou um sermão exortando o
clero de toda a Inglaterra a se reunir em um encontro. Ciente
de que a Igreja precisava convocar urgentemente um concilio
para discutir o estado crítico em que ela se encontrava, Colet
declarou categoricamente, em 1512, que “nada poderia ser
mais prejudicial à Igreja de Cristo do que a não convocação de
concílios, tanto gerais quanto provinciais”.
Os concílios gerais se reúnem por uma série de razões, e
com frequência se tem dito que o Concilio Vaticano II foi o
primeiro concilio que se reuniu sem que houvesse uma questão
doutrinária importante como ponto principal de sua agenda.
Talvez haja um pouco de exagero nesta afirmação, tendo em
vista que nem todo concilio anterior ao Vaticano II se reuniu
18 especialmente para abordar questões doutrinárias, mas não há
INTRODUÇÃO
dúvida quanto à singularidade deste concilio. O papa Paulo VI
reconheceu este fato em sua encíclica E cclesiam Suam, ao dar
carta branca ao Concilio Vaticano II para que continuasse os
seus atos inovadores:

Quantas vezes, nos séculos passados, a determinação de incentivar


reformas aparece associada à realização dos Concílios Ecumênicos!
Pois que assim seja mais uma vez, e desta vez não com viés de extirpar
determinadas heresias que dizem respeito à Igreja ou consertando
desordens gerais — pois esse tipo de desordem, graças a D eus, não
se destacaram entre nós —, mas com o objetivo de infundir novo
vigor espiritual ao Corpo Místico de Cristo considerado com o uma
sociedade visível, para purificá-lo dos defeitos de m uitos dos seus
m embros e o instar à obtenção de nova virtude.

Paulo VI estava se referindo ao Concilio Vaticano II, o 21°


e mais recente concilio geral. Mas que concilio geral poderia
ser considerado como o primeiro?
Em bora o “C oncilio de Jerusalém ” não conste na lista
dos 21 concílios considerados “gerais” ou “ecumênicos”, este
encontro entre Pedro, Tiago, Paulo e Barnabé, dentre outros,
é com frequência considerado como o concilio modelo. Em
553, por exemplo, o Concilio de Constantinopla II observou
explicitam ente a importância desse exemplo dos apóstolos
reunindo-se em confabulação para tomar alguma decisão. O
Novo Testamento nos oferece duas narrativas desse encontro:
At 15 e G1 2,1-10. Esse “concilio” provavelmente se reuniu no
ano 49 ou 50, pois menos de duas décadas depois da ressurreição
de Jesus, os cristãos se viam às voltas com a seguinte questão:
“será que alguém deve ser judeu para que possa ser cristão?”
Na prática, essa questão dizia respeito à obrigatoriedade ou não
da circuncisão masculina e da observância ou não por todos os
fiéis de uma dieta baseada nas leis judias.
Uma característica importante de todos os concílios que se
sucederam é citada nos primeiros versículos de At 15: “Decidiu-se
que Paulo, Barnabé e alguns outros subissem a Jerusalém para 19
DA IG RE)A
CONCÍLIOS

entrevistarem-se com os apóstolos e os anciãos a respeito dessa


DOS

contenda. A Igreja de Antioquia proveu a viagem deles”. Este


H IST Ó R IA

padrão fundamental constantemente se repete: líderes das mais


t—i diversas e distantes localidades viajam para um único local como
^ representantes de suas comunidades para discutir um problema
que afeta a todos e a sua solução. Nesse primeiro caso, todas as
partes interessadas se reuniram em Jerusalém para discutir uma
questão e chegar a um veredicto sobre ela. Tiago propôs um
compromisso do tipo “a cada um cabe o direito de decidir”, o
que, fundamentalmente, significava que os homens gentios não
precisavam ser circuncidados para que pudessem ser seguidores
de Cristo. Em seguida, criando mais uma vez um importante
precedente, aqueles que se encontravam reunidos publicaram
uma carta pormenorizando a sua decisão, enfatizando com
maior destaque a fonte de sua autoridade (At 15,28): “Pois esta
decisão pareceu boa ao Espírito Santo e a nós”.
De acordo com a versão de São Paulo, narrada em sua carta
aos Gálatas, aqueles que estavam reunidos expressaram a sua
concordância com um aperto de mão, fazendo com que este
gesto desse a impressão de que todos haviam participado do
encontro em pé de igualdade. No entanto, segundo os Atos dos
Apóstolos, Tiago ouviu o que todos os participantes tinham a
dizer sobre a questão e, em seguida, decidiu sozinho: “Irmãos,
escutai-me [...] sou de parecer que [...]” (At 15,13.19). No
entanto, o uso do pronome “nós”, na carta que foi publicada,
indica que todos aqueles que estiveram presentes no encontro
concordaram com a decisão de Tiago. Existe uma aparente dis­
crepância entre os Atos dos Apóstolos, que indica que a decisão
coube a uma só pessoa, que em seguida obteve a concordância
de todos os participantes, e a Carta de São Paulo aos Gálatas,
que nos dá a impressão de que esta decisão se baseou em um
consenso entre todos aqueles que estiveram reunidos. Essa
situação ilustra uma tensão entre os papas (no exercício de sua
primazia) e os bispos (enfatizando a colegialidade e as ações em
conjunto), que se repetirá por várias vezes durante os concílios
20 gerais, ao longo dos séculos.
INTRODUÇÃO
O atual C ódigo de Direito C anônico (de 1983) aborda
este relacionamento crucial entre o papa e os bispos durante
um concilio geral. O Código descreve o funcionamento dos
concílios gerais e a sua autoridade, especialmente em relação
ao papa, em um a seção dedicada especialmente ao colégio
episcopal (cânones 336 a 341). Esta seção coincide com a da
Lumen Gentium (n° 22), documento publicado pelo Concilio
Vaticano II, que emprega praticamente os mesmos termos.
O C ódigo reconhece o colégio episcopal, juntam ente
com o papa, como a autoridade máxima da Igreja: “O colégio
episcopal, encabeçado pelo Sum o Pontífice [...] juntamente
com o seu representante máximo, e nunca sem a sua presença,
também é detentor do poder supremo e absoluto sobre toda a
Igreja” (c. 336). O papa e os bispos permanecem estreitamente
unidos, especialmente na ocasião de um concilio geral, e não
devemos nos esquecer de que o próprio papa também pertence
ao colégio episcopal, como representante da diocese de Roma.
No entanto, a ênfase reiterada que se dá ao papel do papa como
“representante máximo” do colégio episcopal, que possui auto­
ridade suprema “juntamente com o seu representante máximo,
e nunca sem a sua presença” é de importância fundamental.
N o que diz respeito aos concílios, o C ódigo determina
que “o colégio episcopal detém o poder sobre toda a Igreja de
modo solene em um concilio ecum ênico” (c. 337). Embora
de certo modo o papa seja, na qualidade de bispo de Roma,
apenas mais um membro do colégio episcopal, na posição de
papa sua autoridade é exclusiva em determinados assuntos:
“Compete exclusivamente ao Pontífice Romano convocar um
concilio ecumênico, presidi-lo pessoalmente ou por meio de
seus representantes, transferi-lo, suspendê-lo ou dissolvê-lo, e
aprovar os seus decretos” (c. 338). O mesmo cânone determi­
na também que compete exclusivamente ao papa organizar a
agenda e determinar os regulamentos de um concilio, mas os
demais membros podem acrescentar outros tópicos, se estes
obtiverem a aprovação do papa.
O atual Código de Direito Canônico determina qne um con­
cilio ecumênico não pode existir se não estiver sob a autoridade
CONCÍLIOS
DA IGREJA
do papa. No entanto, durante o primeiro milênio, imperadores
e uma imperatriz convocaram e algumas vezes presidiram al­
guns concílios, embora na maioria das vezes o fizessem com o
t—( conhecimento e as bênçãos do papa. Além disso, nem sempre os
^ papas estiveram presentes em concílios gerais. Nessas ocasiões,
enviavam legados que falavam em seu nome.
Os decretos de um concilio geral não são considerados
obrigatórios nem têm validade antes de serem aprovados e
publicados pelo papa. E interessante observar quais são os
termos empregados pelo Código a este respeito: “Os decretos
de um concilio ecumênico não têm força obrigatória, a menos
que tenham sido aprovados pelo Pontífice Romano e pelos
padres do concilio, confirmados pelo papa e promulgados por
sua determinação” (c. 341). Segundo estas palavras cuidadosa­
mente escolhidas, o papa aprova os decretos juntamente com
os membros do concilio, mas cabe apenas a ele o direito de
confirmá-los e de determinar que eles sejam comunicados a
todos os membros da Igreja.
Porém, um concilio geral não se resume apenas às decisões
do papa. Os bispos são os seus principais participantes, e pela
lei canônica somente eles têm direito de voto nas deliberações
conciliares, e este voto é obrigatório para referendar as decisões
do concilio, e não uma mera opinião passível de ser descartada.
O papa também pode convidar outros participantes e determi­
nar de que modo eles participarão de um concilio (c. 339). Foi
exatamente isso que ocorreu no Concilio Vaticano II, onde se
concedeu o direito de voto aos superiores das ordens religiosas
e se ouviu os conselhos de diversos especialistas e observadores
(clérigos e leigos, homens e mulheres, católicos e não católicos),
especialmente nas sessões dos comitês, nas palestras públicas e
nos seminários privados.
Até agora, as expressões “concilio geral” e “concilio ecumê­
nico” foram empregadas em um sentido mais ou menos vago.
Já é hora de definir o seu significado da maneira mais precisa
possível. Ecumênico quer dizer universal em grego. Tecnicamente,
22 um concilio “ecumênico” é aquele que reúne representantes
INTRODUÇÃO
da Igreja do mundo inteiro. Baseados nessa definição, os sete
primeiros principais concílios são considerados ecumênicos,
conforme o Concilio de Calcedônia se autonomeou em 451.
A esses sete primeiros concílios (de Niceia I em 325 ao de Ni-
ceia II em 787) compareceram bispos tanto da parte ocidental
quanto da parte oriental do Império Romano (à época conside­
rado “o mundo inteiro”), embora apenas alguns poucos bispos
ocidentais tivessem de fato se apresentado em alguns deles. O
Concilio de Niceia I, por exemplo, contou com a participação
de 220 bispos, mas apenas alguns dentre eles tinham vindo do
Ocidente. O Concilio de Constantinopla I (381) contou apenas
com a presença de bispos orientais, e estes eram majoritários
nos concílios de Efeso (431), Calcedônia (451), Constantinopla
II (553) e Constantinopla III (680-681).
Enquanto a Igreja Ortodoxa Oriental considera apenas os
primeiros sete concílios como ecumênicos, a Igreja Católica
Romana reconhece 21 como concílios m odelares e os tem
chamado de “ecumênicos” ou “gerais”, ainda que o Oriente não
tenha sido representado na maioria dos concílios gerais que se
reuniram ao longo do segundo milênio. O Concilio de Latrão
I (1123) acertadamente se autodenominou geral ao invés de
ecumênico, pois nenhum bispo oriental havia participado dele.
Já o Concilio de Basileia-Ferrara-Florença-Roma (1431-1445)
autodenominou acuradamente ecumênico/universal, pois foi
nesta ocasião que os bispos ocidentais e orientais discutiram
sobre a reunificação da Igreja.
Conforme já havíamos observado, Paulo VI descreveu o
Concilio Vaticano II como ecumênico no Ecclesiam Suam, pois
realmente havia a presença de bispos orientais nesse concilio.
Mas em 1974, quando o papa comemorou os setecentos anos
do Concilio de Lyon II (1274), ele foi preciso ao dizer que esse
“havia sido o sexto concilio geral que havia se reunido no mun­
do ocidental”. Basta fazer as contas: se reconhecermos os oito
primeiros concílios como ecumênicos por haverem se reunido
em cidades localizadas na metade oriental do Império, então
Lyon II realmente foi o sexto concilio geral da Idade Média,
pois todos eles se reuniram na Europa Ocidental.
CONCÍLIOS
DA IGREJA

Sem dúvida, os termos “universal”, “ecumênico” e “geral”


H I S T O R I A DOS

costumam ser empregados de modo impreciso (este livro empre­


gará o termo “concilio geral” em reconhecimento à ausência do
Oriente na maior parte dos encontros que ocorreram depois do
rM primeiro milênio). Além disso, os 21 concílios gerais da Igreja
Católica Romana não foram assim denominados por decreto, mas
sim pelo costume, e a sua denominação variou algumas vezes
ao longo do tempo. O Concilio de Calcedônia (451) elevou o
Concilio de Constantinopla I (381) à categoria mais elevada
ao colocar o seu credo em pé de igualdade com o do Concilio
de Niceia I (325). Mas passaram-se vários séculos antes que o
Ocidente reconhecesse o Concilio de Constantinopla IV (869-
870) do mesmo modo que reconhecia os seus sete predecessores,
0 que muitos no Oriente jamais haviam feito.
Além disso, pode gerar confusão o fato de que Paulo VI
tenha usado a palavra “sínodo” ao invés da palavra “concilio”
para descrever o Concilio de Lyon II, mas, na maioria das vezes,
“sínodo” e “concilio” se referem ao mesmo tipo de encontro
nos registros históricos. No entanto, existe uma diferença entre
os encontros gerais, universais ou ecumênicos, de um lado, e os
encontros locais, regionais ou provinciais, de outro. Diversos
concílios (ou sínodos) provinciais ou locais se reuniram durante
os três primeiros séculos da Igreja, especialmente no século III,
para lidar com problemas disciplinares e doutrinários. Em certo
sentido, esses primeiros encontros da Igreja primitiva na África
do Norte, em Roma, na Gália, na Ásia Menor e na Península
Ibérica acabaram abrindo caminho para o Concilio de Niceia I,
que foi o primeiro concilio geral. Além disso, durante a Idade
Média, houve vários encontros locais, sendo que alguns dentre
eles chegaram a contar com a presença de papas ou de seus
representantes, que não foram considerados como concílios
gerais medievais, diferentemente dos de Latrão I a IV, os de Lyon
1 e II e o de Vienne. Sínodos episcopais regionais continuam a
se reunir até os dias de hoje, algumas vezes em Roma, muitas
vezes por região (como foi o caso do “Sínodo das Américas”)
e, com frequência, em seus países natais com o sínodos ou
24 conferências nacionais.
INTRODUÇÃO
Finalmente, o tempo transcorrido entre cada um dos 21
sínodos gerais, a duração e o número de pessoas que participaram
de cada um deles varia consideravelmente. A primeira vista, o
número 21 nos dá a falsa impressão de que os concílios gerais
costumavam se reunir uma vez a cada século ao longo dos dois
mil anos de história da Igreja. Na verdade, a frequência com que
os concílios gerais se reuniram foi esporádica e em bloco, com
longos períodos de tempo nos quais absolutamente nenhum
concilio geral se reuniu.
A cristandade teve de esperar três séculos, ou seja, até o seu
reconhecimento pelo Império Romano, para que o seu primeiro
concilio geral pudesse ser reunido. A seguir, oito concílios gerais
reuniram-se em um espaço de 545 anos entre o de Niceia I (325)
e o de Constantinopla IV (869-870). Em seguida, passaram-se
mais de dois séculos e meio antes que os sete concílios gerais da
Idade Média se reunissem em um espaço de 189 anos entre o de
Latrão I (1123) e o de Vienne (1311-1312). A seguir, passou-se
outro século inteiro antes que se reunissem mais dois concílios
gerais que se prolongaram por três décadas: o de Constança
(1414-1418) e o de Basileia-Ferrara-Florença-Roma (1431-
1445). O concilio de Latrão V reuniu-se sessenta anos depois
e o Concilio de Trento se reuniu em três estágios ao longo do
século XVI, tendo se concluído em 1563. Mais de três séculos
se passaram antes que o próximo concilio, o Vaticano I (1869-
1870) se reunisse, o qual, por sua vez, ocorreu quase um século
antes do Concilio Vaticano II (1962-1965).
Os concílios gerais podiam durar de apenas uma única
semana (Latrão II, 1139) a até três anos e meio de atividade
ininterrupta (Constança, 1414-1418). Entretanto, uma duração
mais prolongada não significa necessariamente uma importân­
cia maior ou um número maior de realizações. O Concilio de
Latrão IV durou apenas vinte dias, embora tenha sido o mais
impressionante dos concílios medievais reformadores. Tecnica­
mente falando, o Concilio Vaticano II se reuniu por 281 dias,
divididos em quatro temporadas de outono, mas, como em todos _
os concílios, boa parte dos trabalhos se deu nos bastidores, antes
CONCÍLIOS
DA IGREJA

ou depois das sessões propriamente ditas. O Concilio de Latrão


V reuniu-se por quase cinco anos completos (1512-1517), mas
muito pouco foi nele realizado.
Em termos de participação, um grupo tão reduzido quanto
fN
o de apenas doze participantes esteve presente durante deter­
minado período do Concilio de Constantinopla IV (869-870)
e apenas dezessete pessoas participaram de determinada sessão
do Concilio de Trento (1551-1552). Esses números apresentam
forte contraste com a presença de 2.540 pessoas que lotaram
a Basílica de São Pedro, durante a sessão de abertura do Con­
cilio Vaticano II em 1962. O período histórico em que um
concilio geral se reuniu também não influi necessariamente
em seu número de participantes. Não obstante as dificuldades
de locomoção e de comunicação da Antiguidade e da Idade
Média, cerca de seiscentas pessoas compareceram ao Concilio
de Calcedônia (451), mais de quatrocentas compareceram ao
Concilio de Latrão IV (1215) e quase novecentas ao Concilio
de Constança (1414-1418).
Independentemente da singularidade de cada um deles,
os concílios gerais apresentam algo em comum: eles procura­
ram reagir às necessidades mais prementes de seu tempo. Ao
concluir esta introdução geral da história e dos acontecimentos
conciliares, é chegado o m omento de saber como cada um
destes 21 concílios gerais da Igreja reagiram aos seus desafios
específicos.

B ibliografia

Documentos conciliares

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dres /W ashington, Sheed & Ward / Georgetown University Press,
1990. 2 vis. Todas as citações são provenientes desta coleção, que
inclui documentos conciliares traduzidos de seus idiomas originais
26 em suas páginas de rosto.
INTRODUÇÃO
Os textos conciliares são de ALBERIGO , Giuseppe, et al.
(eds.). Conciliorum oecomenicorum decreta. Bolonha, Istitnto
per le scienze religiose, 1973.

Estudos

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Paris, Les Éditions du C erf, 1994, vl. 1.

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T A N N E R , N orm an P. The councils of the Church : a short history.


New York, Crossroad , 2001.

27
PARTE UM

OS CONCÍLIOS DO
PRIMEIRO MILÊNIO
urante o primeiro milênio da cristandade, a Igreja reuniu
concílios de diversos níveis diferentes: locais, regionais ou
provinciais, universais ou ecumênicos. A Igreja Católica Romana
reconhece oito dentre os principais encontros como os primeiros
concílios gerais, que vão de N iceia I (325) a Constantinopla IV
(869-870).
Os primeiros seis, que vão de Niceia I a Constantinopla III (680-
681), não podem ser considerados autonomamente. Os desafios que
cada um desses seis concílios gerais tiveram de enfrentar migraram de
concilio para concilio. Os líderes da Igreja se reuniram para realizar
uma tarefa praticamente impossível: a de reproduzir em palavras os
mistérios fundamentais da humanidade e da divindade de Cristo, da
essência da Trindade e o da relação de Maria com Jesus enquanto
D eus e enquanto ser humano. Assim que um concilio chegava a
uma definição da fé e proclamava as suas decisões, novas questões
emergiam, pois toda solução dava origem a novas incertezas.
Os dois últimos concílios gerais do primeiro milênio fogem
a este padrão. O C on cilio de N iceia II (787) abordou de modo
bastante com pleto o iconoclasmo, uma questão relativa ao culto
que tinha implicações teológicas. Já o Concilio de Constantinopla
IV (869-870) abordou sobretudo questões relativas às estruturas, aos
procedimentos e à política interna da Igreja. Portanto, esses dois
concílios se situam à parte dos seis concílios que os antecederam.
A maioria desses oito primeiros concílios gerais tam bém dis­
cutiu questões disciplinares, com o a da readmissão de heréticos
arrependidos, da eleição dos bispos, da jurisdição e da independência
episcopal, do papel a ser desempenhado pelos leigos nas questões
relativas à Igreja, do com portam ento moral (e imoral) do clero,
do combate ao m undanismo e à ganância e a da necessidade de
se convocar, com frequência, sínodos provinciais para lidar com
os negócios regulares e extraordinários de uma Igreja em vias de
expansão e de organização.
A ELABORAÇÃO DA DOUTRINA:
Do C o n c il io de N iceia (325)
AO C O N C ÍL IO DE CONSTANTINOTLA UI (680681)

Igreja esperou por quase três séculos, a partir do “Concilio


de Jerusalém” (ca. 50), antes de convocar o seu primeiro
concilio geral. Esse adiamento se deveu sobretudo ao fato de
o cristianismo ter permanecido ilegal até ser legitimado por
Constantino, que, como imperador romano, concedeu liberdade
de culto aos cristãos via o Edito de Milão, em 313. Mas ainda
havia questões profundas dividindo essa nova fé. Constantino
não queria que o cristianismo am eaçasse a unidade e a paz
de seu império; na verdade, ele pode ter decidido favorecer
o cristianismo porque acreditava que essa fé, ao contrário do
paganismo, ajudaria a transformar o Império Romano em uma
sólida comunidade.
O estopim dessa divisão foi a teologia proposta por Ario, um
sacerdote que enfatizava a humanidade de Jesus às expensas de
sua divindade. Ao longo dos próximos 350 anos, utilizando-se
PRIMEIRO MILÊNIO
OS CONCÍUOS DO

da teologia de Ário como ponto de partida, outros aplicaram


os seus princípios às questões relativas à cristologia e à teologia
trinitária. Em reação a essas idéias, os teólogos que se opunham
a Ario e aos seus seguidores defendiam vigorosamente a divin­
dade de Jesus, mas acabavam às vezes pecando pelo excesso,
cometendo o mesmo tipo de erro no outro extremo, pois, ao
enfatizarem excessivamente a divindade de Jesus, muitas vezes
o faziam em detrimento de sua humanidade. A sequência de
argumentos e contra-argumentos relativos a essa questão pro­
porcionou o ímpeto necessário que levou à convocação de um
concilio geral após o outro, entre o de Niceia I (325) e o de
Constantinopla III (680-681).

NICEIA I

Na primeira tentativa de se resolver a disputa relativa à


posição defendida por Ario, e com isso restaurar a paz social e
religiosa, Constantino convocou os bispos de todo o Império a
se reunirem no Concilio de Niceia I. Ele exerceu forte liderança
nesse primeiro concilio geral, pois, além de o haver convocado,
presidiu o seu início, realizou-o em seu próprio palácio (na
atual Turquia), dirigiu-se diretamente aos seus membros e, ao
final do encontro, confirmou e promulgou os seus decretos.
O papa Silvestre I não compareceu ao concilio, mas enviou
dois legados para representá-lo. Esse precedente de supervisão
imperial caracterizou boa parte dos outros concílios gerais que
se reuniram durante o primeiro milênio da Igreja.
O primeiro concilio geral foi consequência de acontecimen­
tos anteriores a ele. Essa relação de “causa e efeito” estabelece
um padrão que foi seguido, com frequência, pelos concílios
gerais subsequentes. Por algum tempo, Ário havia sustentado
que Jesus não era eterno nem incriado como Deus Pai. Para a
consternação de Alexandre, que era o seu bispo, Ário pregou
que “havia um tempo em que [Jesus] não era” na existência.
A E LA B O R A Ç Ã O DA D O U T R IN A :
Esse princípio teve im plicações teológicas, pois se Jesus e o S?
seu Pai não eram coeternos, concluía-se que Jesus havia sido 9
criado pelo Pai, e portanto teria de ser inferior a Deus. Mesmo 'é
se Jesus fosse superior a todos os outros seres hum anos, ele s
não seria divino, a menos que tivesse sido adotado por Deus i
Pai, mas mesmo nesse caso a natureza divina de Jesus não se ~
equipararia à de seu Pai. Por extensão, o Espírito Santo teria sü
de ser ainda menos divino que Jesus. A teologia ariana ainda °
acarretava uma outra conclusão perturbadora: se apenas Deus |
pode salvar os seres hum anos, logo Jesus não havia salvado 8
nenhum ser humano. n
Alexandre e mais uma centena de bispos repreenderam, 5
excomungaram e exilaram Ario em um sínodo que se reuniu por 3
volta de 320 no norte da África. Mas isso não bastou para deter §
Ário, pois os seus discípulos organizaram o sen próprio sínodo =
para se opor ao de Alexandre. Depois da reunião de mais alguns g
concílios locais em 324 e 325, Constantino, para resolver de vez g
essa questão, reuniu o seu concilio geral em Niceia I, atraindo w
para lá entre 220 e 250 bispos. A tradição afirma que 380 bispos
compareceram ao concilio, número igual ao dos ajudantes de
Abraão (Gn 14,14), e os concílios posteriores, como o de Cal-
cedônia, fazem referência à fé professada pelos 318 membros
do Concilio de Niceia I. Praticamente, todos esses bispos eram
oriundos da metade oriental do Império Romano.
Cerca de uma dúzia de bispos arianos compareceu ao Con­
cilio de Niceia I, mas a grande maioria dos outros bispos rejeitou
a sua interpretação da fé cristã. Liderado pelo diácono do bispo
Alexandre, Atanásio (que mais tarde o sucedería como bispo de
Alexandria), o encontro resultou em uma declaração que, entre
outras coisas, se referia especificamente à igualdade entre Jesus e
seu Pai. Por fim, o concilio acabou empregando a palavra homo-
ousios para definir o fato de que Jesus e seu Pai eram “um no
ser”, ou “do mesmo ser” ou “da mesma substância”. O concilio
acrescentou a essa profissão de fé vinte cânones disciplinares e
uma carta explicando os seus atos à Igreja no Egito.
No entanto, a controvérsia ainda persistiu, e esse resultado
insatisfatório do Concilio de Niceia I foi apenas o “primeiro” a
seguir um padrão que se repetiu em quase todos os 21 concílios
PRIMEIRO MILÊNIO
OS CONCÍLIOS DO

gerais. Independentemente da precisão de suas declarações, os


concílios gerais e os seus atos muitas vezes tiveram de enfrentar
obstáculos depois de concluídos. Uma reviravolta particularmente
inusitada ocorreu depois do Concilio de Niceia. Devido a um
complexo conjunto de rivalidades políticas e religiosas, alguns
grupos aclamaram o herético e condenado Ario como um herói,
enquanto Atanásio era exilado por várias vezes de sua sede
episcopal em Alexandria. Em um dado momento, o próprio
Constantino, que havia supervisionado a derrota de Ario no
Concilio de Niceia I, em grande parte devido ao empenho de
Atanásio, acabou por exilar Atanásio definitivamente em Trier,
na atual Alemanha.
O credo de Niceia I esclareceu algumas questões, mas, invo­
luntariamente, levantou outras, relativas à cristologia e à teologia
trinitária. Como definir o Espírito Santo e qual era a sua relação
com o Pai e com o Filho? Se Jesus é totalmente divino e a sua
divindade é superior à sua humanidade, seria correto afirmar que
a humanidade de Jesus foi completamente absorvida pela sua
divindade? Essas questões foram exacerbadas pela persistência
do arianismo, que, apesar das condenações nicenas, foi de tal
magnitude que São Jerônimo, o tradutor da Bíblia para o latim,
ainda se queixava quarenta anos depois do Concilio de Niceia I:
“o mundo inteiro gemeu ao se descobrir ariano”.
A terminologia teológica e o vocabulário técnico acabaram
se tornando uma questão espinhosa durante os concílios do
sécido IV. Depois do Concilio de Niceia I, os teólogos procura­
ram encontrar um modo de expressar um mistério em palavras:
o de que Jesus era humano e divino ao mesmo tempo. Além
disso, apesar de ser completamente humano e completamente
divino, ainda assim Jesus era uma única pessoa, ao invés de
duas pessoas distintas. Além do mais, o Concilio de Niceia I
não chegou a esclarecer por completo como D eus poderia
ter uma única natureza e ao mesmo tempo se dividir em três
pessoas distintas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Portanto,
desde o início havia um grande obstáculo: a tentativa de seres
A ELA B O R A ÇÃ O DA D O U T R IN A :
humanos imperfeitos de empregar uma linguagem imprecisa §*
para definir o que, em última análise, não poderia ser explicado q
em termos humanos. |
A principal barreira era que o Oriente, literalmente, falava |
uma linguagem diferente (o grego) da que era usada no Ociden- ã
te (o latim). Cada uma dessas línguas possuía as suas próprias g
nuanças, que não podiam ser traduzidas com exatidão para a >
outra. Nem todo bispo ou teólogo oriental de fala grega podia Q
compreender e falar o latim fluentemente, e vice-versa. De vez §
em quando, o Oriente e o Ocidente falavam um para o outro, g
e não um com o outro. Nunca existiu um verdadeiro diálogo =
entre eles (um exemplo atual desse problema ocorre quando |
os diplomatas que participam de debates nas Nações Unidas, §
usando fones de ouvido, algumas vezes não compreendem a t.
sutileza de uma frase de algum tratado, devido ao fato de não s;
haver uma tradução precisa, digamos, de uma palavra em chinês %
para uma palavra em alemão). “
Não obstante as consequências trazidas pelo Concilio de
Niceia I, os arianos continuavam a afirmar que Jesus não era
completamente divino. Alguns deles, conhecidos como semia-
rianos, adicionavam um “i” à palavra homo-ousios, fazendo
com que ela se transformasse em uma outra expressão grega,
homoi-ousios, que significava que Jesus tinha essência seme­
lhante à do Pai (mas não a mesma essência). Para esses semia-
rianos, Jesus era “como” Deus, mas não era Deus. Outras he­
resias também floresceram depois do Concilio de Niceia I. Um
grupo negava a divindade do Espírito Santo, pois os seus mem­
bros haviam chegado a essa conclusão partindo do pressuposto
de Ario de que Jesus não era divino. Para combater essas here­
sias, um teólogo chamado Apolinário enfatizou a divindade de
Jesus de um modo tão exagerado que ele acabou por afirmar
que Jesus era completamente divino mas não completamente
humano. Mesmo os defensores do Concilio de Niceia I acaba­
vam se afastando da ortodoxia.
37
CO N ST A N TIN O PLA I
PRIMEIRO MILÊNIO
OS CONCÍUOS DO

C om o não havia mais dúvidas de que o Concilio de Ni-


ceia I não havia conseguido resolver essa questão, um outro
concilio se fazia necessário. O imperador Teodósio, o Grande,
do mesmo modo que Constantino, considerava-se o guardião
da fé. Mas se o Edito de Milão de Constantino instituía a tole­
rância ao cristianismo, em 380 e 381 Teodósio fez com que o
cristianismo se tornasse a única religião permitida em todo o
Império Romano e passou a considerar como heresias todas as
idéias que não estivessem em conformidade com o “credo de
Niceia”. Com o parte de seu plano para estabelecer a unidade
e a paz, Teodósio convocou um segundo concilio geral, pois
muitos bispos vinham lhe pedindo para que tomasse essa ini­
ciativa. Ao final deste concilio, Teodósio aprovou e promulgou
os seus documentos a pedido dos próprios bispos. Nenhum dos
decretos do concilio de 381 sobreviveu até os nossos dias, mas
ainda temos uma carta de um sínodo que se reuniu no ano
seguinte em Constantinopla que faz um relato dos atos e das
declarações do concilio de 381.
Os padres reunidos em Constantinopla I (atual Istambul)
estavam cientes de que os arianos não só haviam perdurado,
mas até mesmo florescido, não obstante os atos de Niceia I. Na
verdade, a própria persistência do arianismo foi uma das razões
pelas quais Constantinopla I abordou o que o concilio anterior
havia deixado de lado. Ele reafirmou o credo niceno ao mesmo
tempo em que empregou de modo mais explícito a fórmula
homo-ousios ao Espírito Santo. Em 325, os padres nicenos ha­
viam afirmado apenas a sua crença no Espírito Santo, sem que
fosse aplicada nenhuma fórmula para descrever a relação do Pai
e do Filho com o Espírito Santo. Constantinopla I colocou o
Espírito Santo no mesmo patamar que Deus Pai e Deus Filho.
Os bispos reunidos nesse concilio proclamaram a sua crença
“no Espírito Santo, nobre e revigorante, emanado diretamente
do Pai, que deve ser cultivado e glorificado juntamente com o
38 Pai e o Filho”.
p

A E LA B O R A Ç Ã O DA D O U T R IN A :
N enhum bispo ocidental com pareceu ao C on cilio de
n
Constantinopla I em 381, e o papa Dâm aso I sequer enviou
delegados para representá-lo, embora atualmente esse conci­
lio seja indiscutivelmente considerado ecumênico tanto pelo
Ocidente quanto pelo Oriente. Mas nem sempre foi assim. A
época alguns objetaram à designação de “ecumênico”, que, ao
que tudo indica, esse concilio havia utilizado para descrever a
si próprio. A carta de 382 apresenta para o papa os pormenores
dos atos do Concilio de Constantinopla I, mas não sabemos se
o papa os aceitou quando, no mesmo ano, reuniu o seu próprio
sínodo em Roma.

EFESO

Mesmo depois do Concilio de Constantinopla I, não para­


ram de surgir novas questões cristológicas. Como se explicaria o
fato de Jesus ser uma única pessoa, humano e divino ao mesmo
tempo? Seria Jesus de fato duas pessoas distintas e, ao mesmo
tempo, uma fusão dessas duas pessoas em uma só? Será que ele
era humano em algumas ocasiões e divino em outras? Quais
seriam as consequências das respostas dadas a essas perguntas
para a sua relação com Maria e para a Encarnação? Será que
Maria era mãe apenas do Jesus humano (e nesse caso deveria
ser chamada de christotokos) ou será que ela também era a mãe
de Deus (e então seria chamada de theotokos)? A procura de
uma resposta para essas questões acabaria levando à convocação
de outro concilio, que dessa vez se reuniu em Éfeso (na atual
Turquia) em 431.
O principal protagonista desse novo debate era Nestório.
Ironicamente, como bispo de Constantinopla, Nestório havia
procurado eliminar todos os adeptos que ainda teimavam em
seguir o arianismo ou o seu extremo oposto, o apolinarianismo.
Nestório sustentava que Maria era mãe do ser humano Jesus,
mas não era a mãe de Deus. Alguns foram ainda mais longe ao
propor que Jesus era duas pessoas separadas (“outro e outro”): o 39
Jesus que tinha natureza divina era o Filho de Deus e o Jesus que
PRIMEIRO MILÊNIO
OS CONCÍLIOS DO

tinha natureza humana era o filho de Maria. Um dos discípulos


de Atanásio, Cirilo de Alexandria, se tornou o principal opositor
do nestorianismo, e o papa Celestino permitiu que Cirilo falasse
em seu nome no concilio. Cirilo alegava que o nestorianismo
dividia Jesus ao meio ao negar que o Jesus humano e o Jesus
divino eram uma só pessoa.
Depois de alguns sínodos locais debaterem a questão e
condenarem Nestório, em uma repetição do que havia ocorrido
com Ario antes do Concilio de Niceia, o Imperador Teodósio II
convocou o terceiro concilio geral, que seria o mais rumoroso
e confuso concilio a se reunir até então. Embora tivesse sido
Nestório quem havia pressionado o imperador a convocar um
concilio geral, o papa também havia concordado que um concilio
se fazia necessário. Cirilo presidiu o Concilio de Efeso em 431 e
supervisionou a condenação de Nestório. A seguir, os membros
do concilio enviaram uma carta a Nestório, chamando-o “um
novo Judas”. Segundo Cirilo, o povo de Efeso chegou a dançar
nas ruas e a desfilar à luz de tochas para manifestar a sua alegria.
No que lhe dizia respeito, a questão estava resolvida.
No entanto, C irilo havia iniciado os procedim entos do
concilio antes da chegada da maioria dos bispos orientais que
apoiavam Nestório e até mesmo antes da chegada dos legados
enviados pelo papa. Os bispos orientais, liderados por João de
Antioquia, só chegaram alguns dias depois de o concilio ter
começado, e quando descobriram o que Cirilo havia feito na
ausência deles, organizaram um concilio rival, que acabou
condenando Cirilo. Quando os delegados de Celestino che­
garam e descobriram que dois “concílios” haviam se reunido,
eles se encontraram com Cirilo, apoiaram a sua condenação
de Nestório e por sua vez condenaram João de Antioquia e os
seus seguidores. Passaram-se semanas até que Teodósio II, que
havia reprovado o fato de Cirilo haver iniciado o concilio antes
que todas as partes interessadas tivessem chegado, condenou
a todos e ordenou que partissem. Em seguida, cada um dos
partidos procurou fazer com que o imperador apoiasse a sua
A ELA B O R A ÇÃ O DA D O U T R IN A :
posição, mas no momento em que os delegados partiram ainda ?
não havia nenhum vencedor incontestável. o
Com o tempo, foi Cirilo que acabou triunfando. Cerca de c
dois anos depois, João e Cirilo negociaram uma trégua que basi- 3

camente representava a vitória final das posições defendidas por 0


Cirilo. Os bispos orientais condenaram Nestório, reconheceram ~
Maria como theotokos (mãe de Deus) e afirmaram que Jesus ~
realmente tinha uma natureza humana e uma natureza divina õ
que se uniam em uma só pessoa. Sisto III, o novo papa, enviou |
algumas cartas a Cirilo e a João, reconhecendo o acordo a que esses °
últimos haviam chegado. Em 436, o imperador exilou Nestório r>
e ordenou que todos os seus escritos fossem queimados. Sisto III, |
que mais tarde seria seguido pelo Concilio Geral de Calcedô- |
nia, reconheceu os dois encontros que haviam sido organizados 2
por Cirilo e pelos legados papais, e não aquele que foi liderado por E
João de Antioquia, como o autêntico Concilio de Éfeso. g
O Concilio de Éfeso é importante do ponto de vista teológico §
porque explicou a “união hipostática”, pela qual as naturezas
humana e divina de Jesus se fundiam em uma só pessoa. Dentre
os documentos desse concilio existe uma carta, a segunda que
Cirilo enviou a Nestório, na qual ele descreve o seu principal
argumento teológico, que exige uma explicação adicional depois
do relato dos concílios de Niceia I e de Constantinopla I.

N ó s não afirm am os que a natureza do Verbo m u dou e se


transformou em carne, tam pouco que o Verbo se transformou em
um ser hum ano com pleto, tanto de corpo com o de alm a. Antes,
afirm am os que o Verbo se uniu hipostaticam ente de um m odo
impronunciável e inconcebível à sua carne anim ada por uma alma
racional e assim se fez homem e foi cham ado de Filho do Homem,
não pela sim ples vontade de D eus ou ao seu bel-prazer, nem pela
suposição feita por um a só pessoa. Ao invés disso, afirm am os que
duas naturezas distintas se uniram para form ar um a unidade, e
dessas duas naturezas surgiu um único Cristo, um único Filho.
Isso não significa que a distinção entre essas d uas naturezas foi
suprim ida por essa união, mas, para nós, a divindade e a hum ani­
dade se unem perfeitamente em um único Senhor, em um único
Cristo, pois se com binam de um m odo m aravilhoso e misterioso
PRIMEIRO MILÊNIO

para formar um a unidade.


OS CONCÍLIOS DO

Cirilo deixou bem claro que Jesus era uma só pessoa que
tinha duas naturezas e que a sua natureza divina não sobrepujava
sua natureza humana. Mas essa afirmação acabou levantando
uma nova questão: se a humanidade e a divindade estão unidas
em uma só pessoa, isso significa que a divindade pode sofrer e
morrer? Dessa vez, a próxima questão a ser levantada pela lógica
não teve de esperar algumas décadas até a resposta de um novo
concilio. Apenas algumas linhas depois, Cirilo responde:

N ós ensinam os que Jesus sofreu e ressuscitou, e não que o


Verbo Divino tenha sido golpeado, perfurado por pregos ou que
sua própria natureza tenha sofrido qualquer outro tipo de ferimento
(pois aquilo que é divino, por ser incorpóreo, é incapaz de sofrer).
Porém, como o corpo onde o Verbo havia se incorporado passou por
todo esse sofrimento, dizem os que ele sofreu tudo isso por nós.

A natureza humana sofreu justamente porque é humana


e, portanto, capaz de sofrer, ao passo que sua natureza divina
não sofreu por ser incapaz de sofrer.
Na carta em que informa tudo aquilo que diz respeito às
condenações, o concilio reunido por Cirilo refere-se a si mesmo
como ortodoxo e ecumênico. A definição nicena do credo é
mantida e, em seguida, afirma-se “que não será mais permitido
produzir, escrever ou formular nenhum outro credo que não seja
aquele que foi definido pelos santos padres que se reuniram em
Niceia por obra do Espírito Santo”. Quando Cirilo escreveu a
João na tentativa de resolver suas diferenças, ele enfatizou mais
uma vez a preeminência do Concilio de Niceia I:

N ão permitiremos que ninguém faça qualquer modificação na


fé que foi definida ou no credo que foi estabelecido pelos santos
padres que se reuniram em N iceia, quando um con cilio se fez
necessário. N ão daremos a nenhum de nós ou qualquer outra pes-
A E LA B O R A Ç Ã O DA D O U T R IN A :
soa permissão para alterar qualquer expressão ou até mesmo para 9
mudar uma única sílaba desse credo, pois devemos ter em mente 9
as seguintes palavras: “não removas um velho marco, levantado p
por teus pais” (Pr 22,28). g
z

CA LCED Ô N IA
n
c
Apesar de todas essas admoestações para que nenhuma ex­ 2

pressão do credo fosse alterada, a Igreja ainda tinha de esclarecer


algumas questões teológicas com um pouco mais de profundidade n
o
em um outro concilio geral, que se reuniría depois de um curto
espaço de duas décadas. O Concilio de Calcedônia foi uma
tentativa de se resolver de uma vez por todas as confusões, as
explicações e as contraexplicações que floresceram no período
o
de 125 anos que se seguiu ao Concilio de Niceia I. Mesmo com 00
O
C'
as declarações feitas pelos Concílios de Niceia I, Constantinopla I 00

e de Efeso em mãos, alguns teólogos ainda tinham dificuldade


em chegar a uma conclusão definitiva sobre a linguagem que
deveria ser empregada e as idéias que deveriam ser seguidas no
tocante à cristologia.
Um grupo, por exemplo, continuava a enfatizar a divindade
de Jesus. Seguindo a tradição do apolinarianismo, alguns conti­
nuavam a sustentar que a natureza divina de Jesns sobrepujava e
até mesmo suprimia, em certo sentido, a sua natureza humana.
Essa ideia, conhecida como monofisismo (uma só natureza),
encontrou o seu defensor mais apaixonado em Eutíquio, um
monge que vivia em Constantinopla.
O Concilio de Calcedônia teve um com eço difícil. Dois
anos antes, os representantes do papa Leão I haviam compa­
recido a um encontro em Efeso, mas por três ocasiões alguns
participantes impediram os legados papais de lerem em voz alta
a declaração de fé de Leão I abordando a questão do monofi­
sismo (o seu Tome). Irrompeu um quase-motim e os soldados
tiveram de esvaziar a basílica. C om o não poderia deixar de
ser, Leão I não reconheceu esse encontro como um legítimo 43
concilio, declarando que este tinha sido um roubo ao invés de
PRIMEIRO MILÊNIO
OS CONCÍLIOS DO

um julgamento, o que fez com que o encontro passasse a ser


conhecido como o “Sínodo do Latrocínio” .
Depois desse encontro fratricida, o Imperador Teodósio II
procurou convocar um concilio geral para resolver a questão.
Leão queria que esse concilio se reunisse na Itália, mas Marciano,
o sucessor de Teodósio II, acabou decidindo reuni-lo na Cal-
cedônia (outra cidade localizada na atual Turquia), no ano
de 451. Mais uma vez, o papa Leão I enviou delegados, que
levaram consigo o seu Tome. Apesar de apenas meia dúzia de
ocidentais terem comparecido ao Concilio de Calcedônia, os
legados papais dominaram as discussões. Ao final do concilio,
os padres exclamaram em voz alta a sua concordância com o
Tome por aclamação: "Pedro falou pela boca de Leão”. Marciano
imediatamente confirmou o que havia sido decidido no Concilio
de Calcedônia, mas os seus participantes também pediram que
Leão aprovasse os docum entos produzidos pelo concilio, o
que o papa acabou fazendo (com exceção de uma importante
questão, que será discutida mais tarde neste mesmo capítulo),
depois de revisá-los cuidadosamente dois anos depois.
A principal declaração doutrinai do Concilio de Calcedônia
foi a reafirmação de um mistério fundamental do cristianismo:
Jesus é uma só pessoa com duas naturezas reunidas em uma união
hipostática. Essas duas naturezas eram separadas e equivalentes:
a natureza divina não sobrepujava a humana. Depois de repetir
os credos do Concilio de Niceia I e do de Constantinopla I,
que eles afirmaram seguir, os padres reunidos no Concilio de
Calcedônia revisaram, reiteraram e delinearam quase quatro
séculos de teologia referentes a Jesus.

E m um a só voz, todos professamos a crença no único Filho


de D eus, N osso Senhor Jesus Cristo, cuja divindade e hum ani­
dade são igualm ente perfeitas; que é verdadeiram ente hom em e
D eus; que é dotado de um a alm a racional e de um corpo; cuja
divindade é consubstanciai com a do Pai, do m esm o m odo que
sua h u m an id ad e é co n su b stan ciai com a nossa; que é igual a
nós em todos os aspectos, exceto pela ausência do pecado; cuja
A ELA B O R A ÇÃ O DA D O U T R IN A :
natureza divina foi gerada pelo Pai antes que o tem po existisse e ?
cuja natureza hum ana foi gerada no final dos tem pos do m esm o o
m odo que a nossa pela virgem M aria, que carregou a D eus para §
nos salvar; no m esm o e no único Cristo, o Filho, o Senhor, unigê- g
nito, de quem se reconhece duas naturezas que não se confundem ?
um a com a outra, que são im utáveis, indivisíveis e inseparáveis E.
e em nenhum m om ento a diferença entre essas duas naturezas bl
se desvanece durante a sua união, m as, ao invés disso, a essência o

de cada um a delas é preservada e se une em um a só pessoa e em §


um só ser subsistente; E le não se encontra separado ou dividido H
entre duas pessoas, pois é um e o m esm o único filho unigênito, 3
D eus, o Verbo, o N osso Senhor Jesus Cristo. g
Sz
Os padres que compareceram ao Concilio de Calcedônia g
acreditavam que essa questão estivesse finalmente resolvida: E.
O
Oo

T en do em vista o fato de haverm os form ulad o todas essas °


questões, do m odo mais preciso e cuidadoso que foi possível, este “
sínodo sagrado e universal decreta que ninguém poderá produzir,
ou até mesmo escrever ou formular nenhum outro credo, ou pensar
e ensinar de m odo diferente do que foi estabelecido.

O Concilio de Calcedônia também é um exemplo claro de


como um concilio pode se basear em um outro concilio. Os bispos
que se reuniram em Calcedônia manifestaram explicitamente a
sua adesão aos credos dos tradicionais “ 318” padres do Concilio
de Niceia I e dos “ 150” padres do Concilio de Constantinopla I,
à segunda carta de Cirilo a Nestório (que é um dos documentos
do Concilio de Efeso) e ao Tome de Leão (que foi incluído entre
os documentos do Concilio de Calcedônia). Os Concílios de
Niceia I, de Constantinopla I, de Efeso e de Calcedônia estavam
começando a adquirir uma preeminência e uma importância
maior do que a dos sínodos locais e regionais que costumavam
elaborar a linguagem doutrinária antes e durante esses quatro
concílios gerais. De fato, o papa Gregório I (590-604) chegou
a declarar que esses quatro primeiros concílios gerais tinham o
mesmo prestígio que os quatro evangelhos.
CO N ST A N TIN O PLA II
PRIMEIRO MILÊNIO
OS CONCÍLIOS DO

M esm o com tais declarações prestigiosas da ortodoxia


da fé, o nestorianismo ainda subsistia e em 553 o imperador
Justiniano acabou convocando um outro concilio geral: o de
Constantinopla II. A combinação de um papa enfraquecido
e da política extremamente complexa da corte bizantina de
Justiniano fez com que as reuniões desse concilio se tornassem
bastante conturbadas.
Justiniano havia convocado o Concilio de Constantino­
pla II com o objetivo de condenar as obras de três homens
(Teodoro de Mopsuéstia, Teodoreto de Cyr e Ibas de Edessa),
cujas declarações individuais foram agrupadas nos chamados
“três capítulos”. Estes autores foram acusados de simpatizarem
com o nestorianismo, de se opor aos ensinamentos de Cirilo e
de favorecer o monofisismo ao se aferrarem à ideia de que Jesus
tinha uma só natureza, o divino sobrepujando o humano.
O papa Vigílio não compareceu a esse concilio, embora esti­
vesse em Constantinopla na ocasião. Era um homem ambicioso,
que havia se aliado à imperatriz Teodora, a temível esposa de
Justiniano. Embora Teodora já estivesse morta quando o Concilio
de Constantinopla II se reuniu, ela havia favorecido o monofi­
sismo e, na década anterior, havia ajudado Vigílio a ser eleito
papa, pois ele havia prometido que negaria os ensinamentos do
Concilio de Calcedônia sobre as naturezas e a pessoa de Jesus.
O papa não poderia abandonar os ensinamentos de Calcedônia
com facilidade, mesmo considerando que Vigílio tivesse indi­
cado extraoficialmente que concordava com os monofisistas.
No entanto, tem-se a impressão de que estava fazendo um jogo
duplo, pois havia escrito diversas vezes a Justiniano dizendo que
certamente apoiaria os ensinamentos de Calcedônia contra o
monofisismo. Nesse ínterim, Teodora morreu em 548, fazendo
com que Justiniano tivesse menos dificuldade em perseguir os
monofisistas e o nestorianismo com mais vigor.
Justiniano liderou o Concilio de Constantinopla II sem a
46 presença de Vigílio. O imperador supervisionou a condenação
A ELA B O R A ÇÃ O DA D O U T R IN A :
da pessoa e dos escritos de Teodoro de Mopsuéstia, os escritos 9
(mas não a pessoa) de Teodoreto de Cyr e uma carta atribuída g
a Ibas de Edessa, mas o próprio Ibas não foi condenado porque |
o concilio tinha chegado à conclusão de que a carta em ques- |
tão não havia sido de sua autoria. Vigílio recusou-se a cumprir 9
as condenações, o que acabou colocando-o em uma situação g
embaraçosa quando Justiniano tornou públicas as cartas que o >
papa havia escrito ao imperador prometendo apoiar a censura Q
dos três capítulos. Tratado com aspereza pelo imperador, o papa £
finalmente cedeu e acabou concordando com os atos do Con- g
cílio de Constantinopla II, declarando que havia reconsiderado g
a simpatia que até então sentia pelos monofisistas. 1
Além de suas consequências políticas, o Concilio de Cons- §
tantinopla II esclareceu, mais uma vez, os ensinamentos da Igreja E.
sobre as duas naturezas de Jesus unidas hipostaticamente em uma g
só pessoa. Adotando um tom bastante ríspido, esse concilio geral 5
condenou as doutrinas heréticas preexistentes sobre a questão e =
publicou quatorze anátemas contra elas. A partir de então, esses
anátemas passaram a ser a sinopse mais acessível sobre cristologia,
mariologia e teologia trinitária. Os padres desse concilio não
apenas censuraram os heréticos, como também aqueles que
toleravam a heresia, colaborando com a sua persistência. De
um ponto de vista mais positivo, eles consideraram ortodoxos
os credos dos Concílios de Niceia I, de Constantinopla I, de
Efeso e de Calcedônia, aumentando o prestígio desses quatro
primeiros concílios gerais e considerando-os como pilares dos
dogmas da Igreja primitiva.

CO N ST A N TIN O PLA III

Ainda restava mais uma batalha cristológica a ser travada.


Se Jesus era uma pessoa com duas naturezas (uma humana e
uma divina), quantas vontades ele teria? O Concilio de Calce­
dônia, que aparentemente havia respondido a todas as questões
pendentes de um modo preciso, não havia, na opinião de alguns
PRIMEIRO MILÊNIO
OS CONCÍLIOS DO

teólogos, abordado com clareza este aspecto da cristologia.


Com o tempo, uma escola de pensadores acabou declarando
que Jesus tinha uma só vontade. Essa heresia, conhecida como
monotelitismo, fundia a vontade oriunda da natureza humana
de Jesus à vontade oriunda da natureza divina de Jesus.
A reação ao monotelitismo repetiu um padrão familiar.
O papa Agatão havia convocado sínodos locais para discutir a
questão; sabemos sem margem para dúvidas que alguns deles se
reuniram em Milão e na Inglaterra. Em seguida, o papa convo­
cou um sínodo romano para examinar o que os sínodos locais
tinham a dizer sobre a questão. Por fim, Agatão, juntamente com
o imperador Constantino IV, decidiu que um outro concilio
geral deveria se reunir para resolver essa questão de uma vez
por todas: o Concilio de Constantinopla III (680-681).
Do mesmo modo que a maioria dos concílios reunidos no
primeiro milênio, a maioria dos participantes do Concilio de
Constantinopla III era formada de orientais, embora o Ocidente
tenha exercido uma influência significativa nesse concilio. O
Concilio de Constantinopla III condenou o monotelitismo, de­
clarando que Jesus, que era uma só pessoa, tinha duas vontades
(uma humana e outra divina) que correspondiam respectivamente
à sua natureza humana e à sua natureza divina. Os padres obser­
varam expressamente que o concilio do qual participavam, “sob
a inspiração de Deus em seu momento crítico”, estava apenas
seguindo a tradição estabelecida pelo Concilio de Niceia I em
325, que foi defendida ao longo dos quatro concílios gerais que
se seguiram. Eles aprovaram o relatório do papa Agatão sobre
o monotelitismo resultante do sínodo romano, que este último
havia convocado, e o colocaram no mesmo patam ar que as
cartas de Cirilo contra Nestório e o Tome de Leão I em termos
de prestígio.
Os próprios termos empregados no Concilio de Constan­
tinopla III são uma evidência de que os concílios gerais nem
sempre evitam abordar as questões mais problemáticas. Os
padres reunidos nesse concilio lamentaram que, a despeito
A ELABO R A ÇÃ O DA D O U T R IN A :
das profissões de fé dos cinco concílios anteriores e de suas o
condenações à heresia, ainda havia graves problem as, que =
eram a própria razão pela qual eles haviam sido obrigados a se |
reunir mais uma vez. Depois de repetir literalmente os credos 3
do Concilio de Niceia I e do Concilio de Constantinopla I, os g
padres ressaltaram: G
>
Esse credo pio e ortodoxo do favor divino era suficiente para g
um con h ecim en to com pleto da fé ortodoxa e para a com pleta g.
convicção em sua veracidade. N o entanto, com o aquele que é °
a fonte de todo m al nunca deixou de tram ar desde o início dos g
tem pos, encontrando um cúm plice na serpente, e, por seu inter- 1
médio, afligindo a natureza hum ana com o dardo envenenado da |
morte, não há nenhum a razão para acreditar que ele não tenha 3
encontrado nos dias de hoje os instrumentos apropriados para a ~
consecução de seus próprios intentos [...] e que não tenha sido g
infatigável em criar, por intermédio desses instrumentos, um a série g
de obstáculos para induzir todo o corpo da Igreja ao erro. “

Devido a essa declaração contra o m onotelitism o, esse


concilio (que contou com o apoio papal e com a participação
de legados de Agatão) teve de condenar um papa anterior,
Honório I (625-638), que acreditava que Jesus tinha uma só
vontade. Mais tarde, alguns acabariam considerando Honório
I como um papa bem-intencionado, apesar de mal orientado,
como um papa que não havia realmente abraçado uma posição
herética, apesar de não ter agido com firmeza para combatê-la,
ou como um papa que, individualmente, era um adepto dessa
heresia, mas que não comprometeu a infalibilidade doutrinária
da Igreja. O imperador e o papa seguinte, Leão II, aprovaram
as declarações do Concilio de Constantinopla III. Além disso,
Leão II declarou que esse concilio era ecumênico, apesar dos
padres que dele participaram já haverem tomado essa iniciativa
por conta própria.

•49
2
A FÉ E A POLÍTICA:
N iceia II (787) E C o n s tà n tin o p la IV (869'870)

O s seis primeiros concílios gerais abordaram exaustivamen­


te as principais questões da Igreja primitiva referentes à
cristologia, à mariologia e à teologia trinitária. Algumas versões
das principais heresias que floresceram nos seis primeiros sécu­
los da cristandade surgiríam continuamente, mas as respostas
da Igreja a esses desafios já haviam sido dadas do modo mais
abrangente possível pelo Concilio de Constantinopla III. O
primeiro milênio ainda testemunharia a reunião de mais dois
concílios gerais, que dessa vez abordariam tanto questões polí­
ticas quanto religiosas.

51
N ICEIA II
PRIMEIRO MILÊNIO
OS CONCÍLIOS DO

O sétimo concilio geral, o de Niceia II, se reuniu em 787


para discutir uma questão litúrgica bastante controversa: a de
se os fiéis deveríam ou não venerar os ícones que representa­
vam Jesus, Maria e os santos. Esse debate sobre o iconoclasmo
consumiu o Império Romano Oriental. O ataque à veneração
dos ícones foi liderado por monges, funcionários do governo e
por soldados. Embora não se tenha certeza de como o icono­
clasmo havia surgido, parece que os primeiros dentre aqueles
que se opuseram aos ícones foram os monofisistas que ainda
restavam, pois enfatizavam exageradamente a divindade de
Jesus em detrimento de sua humanidade. Eles acreditavam que
uma imagem jamais podería ser uma representação adequada
ou precisa da divindade de Jesus. Além disso, argumentavam
que, como um ícone só poderia representar o ser humano Jesus,
ele era necessariamente herético. Em geral, os iconoclastas
consideravam idólatras as reproduções de Jesus, de Maria e dos
santos e citavam uma norma do Antigo Testamento contra as
imagens falsas como um precedente.
A imperatriz bizantina Irene, que era regente de seu filho
ainda criança, Constantino VI, convocou o concilio de Niceia
II para que o uso dos ícones fosse aprovado. O papa Adriano I
concordou que a reunião de um concilio geral era necessária
para se tentar acabar com a violência que essa questão vinha
gerando por várias décadas e enviou legados ao Concilio de
Niceia II. Sob a liderança de Irene, que se dirigiu diretamente
aos padres, esse concilio geral reafirmou o uso dos ícones e, por
extensão, o ensinamento tradicional da Igreja de que os santos,
que já haviam falecido, podiam interceder em favor dos cristãos
que ainda estavam vivos. Do mesmo modo que ocorreu nos
concílios anteriores a ele, o Concilio de Niceia II enfatizou a
sua continuidade com a tradição e com as declarações de fé dos
concílios gerais que o haviam precedido.
O Concilio de Niceia II declarou que a “produção de obras
52 de arte representativas” estava em “total harmonia com a histó-
A FÉ E A P O LÍT IC A :
N icf.ia M ( 787 ) e C o n s t a n t in o p l a IV ( 869 ' 870 )
ria da difusão do evangelho”. Depois de aprovar as imagens, os
padres que se reuniram nesse concilio explicaram os motivos
pelos quais as imagens eram úteis para o culto e descreveram o
modo como os fiéis deveriam usá-las apropriadamente.

Quanto mais os evangelhos forem representados pelas obras de


arte, mais vezes aqueles que os veem reproduzidos se lembrarão e
ansiarão por aqueles que serv iram de m odelo a essas obras, e paga­
rão a essas im agens o tributo de sua saudação e de sua veneração
respeitosa. Certam ente, não se trata da adoração plena de que fala
a nossa fé, que se dirige apenas à natureza divina, mas se assemelha
à adoração do nobre e revigorante sím bolo da cruz, do m esm o
m odo que tam bém se assem elha à adoração dos livros sagrados
do evangelho e de outros objetos de culto sagrados. Além disso,
as pessoas são levadas a honrar essas im agens com oferendas de
incenso e de velas, conforme foi piamente estabelecido pelo antigo
costum e. N a verdade, a hom enagem que se faz a um a im agem
acaba transcendendo essa im agem e passa a se dirigir diretamente
ao m odelo que foi retratado, pois aquele que venera a im agem
estará venerando a pessoa que é representada pela im agem .

O Concilio de Niceia II também publicou quatro anátemas


contra os iconoclastas e ordenou que as relíquias dos mártires
fossem exibidas nas igrejas que os iconoclastas, devido às suas
crenças, haviam consagrado sem a sua presença. Para deixar
bem claro para os fiéis que as idéias iconoclastas eram heréticas
e para evitar a difusão dessas idéias, o concilio determinou que
todos os livros que eram contrários aos ícones e à sua veneração
deveriam ser reunidos e trancados em Constantinopla.

C O N S T A N T 1 N O P L A IV

O último concilio do primeiro milênio foi o de Constan­


tinopla IV, que se reuniu em 869-870. Esse oitavo concilio
geral abordou a doutrina apenas para recapitular os atos e as
declarações dos sete concílios que o antecederam. O Concilio
de Constantinopla IV foi dominado por uma situação política
PRIMEIRO MILÊNIO
OS CONCILIOS DO

bastante complexa, reproduzindo-se mais ou menos a mesma


situação que ocorreu no Concilio de Constantinopla II, quando
o papa Vigílio apoiara ora um lado, ora outro.
Embora fizesse séculos que Constantinopla e Roma com­
petiam pela primazia na Igreja, o conflito mais recente entre
o Oriente e o Ocidente, que o imperador Basílio I gostaria de
ver resolvido, havia irrompido há apenas uma década. Dois
homens, Fócio e Inácio, alegavam ser o legítimo patriarca de
Constantinopla. Com o o papa Nicolau I havia interferido na
disputa, algumas pessoas em Constantinopla interpretaram a sua
ação como uma intromissão indevida do Ocidente nos assuntos
do Oriente. No entanto, o papa considerava a sua intervenção
como uma manifestação legítima do exercício de sua jurisdição
universal. Os legados de Nicolau haviam aprovado a pretensão
de Fócio, mas alguns anos depois o papa ignorou os seus legados,
excomungou Fócio e declarou Inácio patriarca de Constanti­
nopla. O Oriente rejeitou a decisão do papa e Fócio, em seu
sínodo de 867, anatematizou o papa Nicolau I. Nesse ínterim,
Basílio I assassinou o seu coimperador Miguel III, depôs Fócio
e, mais uma vez, nomeou Inácio patriarca.
A seguir, Basílio pediu ao novo papa, Adriano II, para reunir-se
com ele em um novo concilio. Esse concilio, o de Constantino­
pla IV, aprovou a deposição de Fócio, condenou-o e ordenou a
queima de todos os seus escritos relacionados às ações que ele
havia empreendido em 867 contra o papado, além de declarar a
sua oposição aos clérigos a quem Fócio havia ordenado e promo­
vido, ordenando a reconsagração de suas igrejas e de seus altares.
Esse concilio também reabilitou o falecido papa Nicolau I ao
homenageá-lo e ao reconhecer os seus atos. Essas medidas não
só restauraram a honra de Nicolau, como também conferiram
um grande prestígio ao papado. Ironicamente, esse apoio a
Roma veio de Constantinopla, cujo patriarca e cuja própria
posição elevada representaram um sério desafio à primazia e à
54 supremacia papal durante o primeiro milênio da cristandade.
A FÉ E A P O LÍT IC A :
N ic fia II (787) f C o n s t a n t in o p l a IV (869-870)
Devido à sua despudorada disputa de poder político e ao
papel desempenhado por algumas personalidades, o Concilio
de Constantinopla IV talvez seja o menos impressionante do
primeiro agrupamento de concílios gerais e talvez até mesmo
o menos impressionante dentre todos os 21 concílios gerais. Ao
que tudo indica, o papa seguinte, João VIII, chegou a ponto de
rejeitar o Concilio de Constantinopla IV ao escrever para Fócio,
que havia voltado a ser o patriarca de Constantinopla depois da
morte de Inácio. Embora os registros históricos sejam incon­
clusivos a esse respeito, na opinião de um importante canonista
medieval “o Sínodo de Constantinopla que foi organizado contra
Fócio não deve ser reconhecido. [Em 879], o papa João VIII
escreveu ao Patriarca Fócio: ‘Anulamos aquele sínodo que foi
organizado em Constantinopla contra Fócio e o eliminamos
completamente por diversas razões, inclusive pelo fato de que
o papa Adriano não chegou a assinar nenhum de seus atos’”. O
mesmo canonista relata que João VIII havia declarado que “em
relação aos sínodos organizados pelo papa Adriano contra Fócio,
tanto em Roma quanto em Constantinopla, comunicamos a sua
anulação e a sua exclusão da lista dos sínodos sagrados”.
Alguns séculos se passariam até que o Ocidente finalmente
reconhecesse o Concilio de Constantinopla IV como ecumênico
e o listasse juntamente com os sete primeiros concílios gerais.
A maioria das igrejas orientais ainda não considera ecumênico
o Concilio de Constantinopla IV e o substitui por um outro
concilio organizado em 879, que foi presidido por Fócio depois
de ele haver recuperado a sua sé. Para a maior parte do Orien­
te, o verdadeiro oitavo concilio ecumênico, ou no mínimo o
sínodo da unidade, foi aquele que se reuniu em 789 ao invés
do concilio que se reuniu em 869-870.

55
3
A SUPERVISÃO DA
IGREJA PRIMITIVA:
O S C ÂNONES DISCIPLINARES

O s concílios gerais não foram responsáveis apenas pela


definição da doutrina, pois também abordaram as regras
e procedimentos de uma Igreja em expansão. Com exceção
dos concílios de Constantinopla II e III, os concílios gerais do
primeiro milênio abordaram uma série de aspectos importantes
da vida da Igreja em seus “cânones disciplinares”. Com frequên­
cia, os concílios posteriores reiteravam os cânones estabelecidos
pelos concílios anteriores, demonstrando mais uma vez como
cada concilio apelava a outro em busca de autoridade, mas in­
dicando também que os problemas ainda persistiam a despeito
da legislação conciliar.

57
A READM ISSÃO D O S HERÉTICOS
PRIMEIRO MILÊNIO
OS CONCÍLIOS DO

A primeira questão disciplinar originou-se, como não po­


dería deixar de ser, da definição da fé ortodoxa e de como a
Igreja deveria receber novamente em comunhão os heréticos
arrependidos. Os três primeiros concílios gerais criaram alguns
procedimentos de readmissão. O Concilio de Niceia I declarou
que, “embora não devam contar com a nossa leniência, eles de­
vem ser tratados com misericórdia”. Para os parâmetros atuais, o
conceito de misericórdia do Concilio de Niceia I pode parecer
extremamente impiedoso, pois as três fases de seu programa de
readmissão totalizavam doze anos de penitência.
O C oncilio de Constantinopla I tam bém abordou essa
questão, embora o cânone referente a ela possa datar do sínodo
de 382, que relata as ações do concilio de 381, ao invés de datar
do próprio concilio. Os “faltosos” que haviam se desviado da
verdadeira fé mas que agora desejavam ser readmitidos, eram
obrigados a escrever declarações que negassem suas posições
heréticas. A seguir, um ministro da Igreja untava com o crisma
a testa, os olhos, as narinas, a boca e as orelhas do cristão a ser
readmitido, dizendo: “Sinal da dádiva do Espírito Santo”. Adicio­
nalmente, o Concilio de Efeso exigia uma declaração assinada
que expressava concordância com os anátemas proferidos contra
as posições heréticas.

E N C O N T R O S REGULARES

Os concílios gerais consideravam-se como a culminância


de encontros locais e regionais anteriores, e também estavam
cientes de que suas declarações precisavam ser implementadas
em todo o corpo da Igreja. Portanto, os padres de um concilio
decretavam repetidamente que os sínodos menores deveríam
se reunir duas vezes ao ano, para poder conferir se determinada
região estava em conformidade com a ortodoxia eclesiástica
e para conduzir as atividades que se fizessem necessárias. O
A SU P ER V ISÃ O DA IG R EJA P R IM IT IV A :
O-S CÂNONES
Concilio de Niceia I determinava a convocação de um sínodo
provincial na área de atuação do bispo antes da Quaresma e de
um segundo sínodo durante o outono, com a função específica

DISCIPLINARES
de investigar casos de excomunhão. O Concilio de Constan-
tinopla I lembrava a todos os seus participantes da existência
desse cânone estabelecido pelo Concilio de Niceia.
No entanto, o Concilio de Calcedônia, em 451, relatou
que essa exigência determinada pelo Concilio de Niceia I não
estava sendo mais observada e, “consequentemente, muitas
questões eclesiásticas que deveríam ser retificadas estão sendo
negligenciadas”. Ele reiterou a exigência da reunião de sínodos
provinciais duas vezes ao ano e ordenou que todos os bispos que
não comparecessem a eles sem apresentar uma boa desculpa
“deveríam ser fraternalmente censurados” . Já o Concilio de
Niceia II foi menos rigoroso em relação à obrigação da reunião
de dois sínodos ao ano, determinada pelo Concilio de Niceia I.
Ao mencionar a dificuldade de viajar devido à insegurança geral
que imperava na época ou aos custos elevados, esse concilio
determinava que a convocação de apenas um sínodo já seria
o suficiente. O Concilio de Constantinopla IV considerava os
sínodos patriarcais ainda mais importantes do que os sínodos
provinciais e, ao contrário do Concilio de Niceia II, exigia o
comparecimento a múltiplos encontros, independentemente
das dificuldades acarretadas pela observância dessa exigência.
Os padres reunidos no Concilio de Constantinopla IV consi­
deravam os concílios patriarcais tão importantes a ponto de
declarar que, se um bispo não comparecesse a esses concílios
sem a devida permissão ou sem apresentar uma razão apropriada,
seria declarado deposto, dispensado e excomungado.

M U N D A N ISM O

Desde que os imperadores romanos passaram a favorecer a


cristandade a partir do século IV, a Igreja passou a se envolver
cada vez mais com questões seculares. Em consequência disso,
problemas relacionados ao mundanismo e à ganância começaram
PRIMEIRO MILÊNIO
OS CONCÍLIOS DO

a provocar feridas no corpo da Igreja. O Concilio de Calcedônia


aconselhava aos monges e aos clérigos que evitassem se envolver
com dinheiro. Os padres desse concilio se queixavam que os
clérigos “estavam sendo contratados como administradores de
propriedades alheias em busca do vil metal, envolvendo-se em
questões mundanas e negligenciando o serviço de D eus”. O
Concilio de Niceia II repetia essa admoestação contra o envol­
vimento dos clérigos em questões seculares, “tendo em vista que
eles são proibidos de agir assim pelos cânones sagrados”. Em
contrapartida, o Concilio de Niceia II procurava redirecionar
as energias do clérigo para outras atividades: “Deixemos que ele
se ocupe pessoalmente da educação das crianças e dos criados
fazendo sermões sobre as sagradas escrituras, porque foi para
realizar esse tipo de atividade que ele foi ordenado”. O Concilio
de Constantinopla IV reafirmava os perigos do envolvimento
em questões mundanas, proibindo os administradores das re­
sidências ou das terras dos aristocratas de se juntarem ao clero
em Constantinopla.
Uma outra preocupação referente a “questões mundanas”
tinha relação com os sacerdotes que eram casados ou que vi­
viam com uma mulher, esta última prática sendo conhecida
como concubinato. O Concilio de Niceia I proibia qualquer
membro do clero de viver com uma mulher, “com exceção, é
claro, de sua mãe, de sua irmã ou de sua tia, ou com qualquer
outra mulher que estivesse acim a de qualquer suspeita” . O
Concilio de Niceia II, que se reuniu 450 anos depois, declarou
que uma mulher não poderia viver na residência de um bispo
ou em um monastério masculino, pois isso seria escandaloso.
Esse concilio tam bém proibiu a construção de monastérios
duplos que contivessem uma ala para monjas e uma outra ala
separada para monges. Os padres desse concilio declararam
que essa situação “era motivo de escândalo e representava um
obstáculo para o povo comum”.
Os concílios também se queixavam da presença da simonia,
que era a compra e venda de posições na hierarquia da Igreja.
A SU P ER V ISÃ O D A IG R E JA P R IM IT IV A :
O S CÂNONES DISCIPLINARES
O Concilio de Calcedônia foi o primeiro a se queixar contra
a compra ou o tráfico de ordenações, que colocavam tanto o
bispo quanto aquele que era ordenado às margens da lei da
Igreja. Aqueles que eram considerados culpados perderam as
suas posições. O Concilio de N iceia II proibia os bispos de
pedir dinheiro aos seus subordinados. Ao citar duas vezes o
Concilio de Calcedônia como um precedente, o Concilio de
Niceia II exigiu o rebaixamento de todos aqueles que fossem
considerados culpados da prática de simonia. Outras formas de
simonia eram o pluralismo, que ocorria quando uma só pessoa
comprava várias posições, e o absenteísmo, pois essa pessoa não
poderia desempenhar todas essas funções ao mesmo tempo.
Esses problemas normalmente estão mais associados à Igreja
medieval, mas eles começaram a representar um desafio aos
concílios gerais desde o Concilio de Calcedônia, em 451. Por
duas vezes esse concilio declarou que nenhum clérigo poderia
ser nomeado para exercer uma posição em mais de uma cidade
ao mesmo tempo. O Concilio de Niceia II repetiu essa norma,
declarando que o pluralismo “recendia ao comércio e ao lucro
mais sórdido”.

BISPOS

Os padres dos concílios se concentraram repetidamente


na questão da jurisdição e da independência dos bispos e do
respeito mútuo que deveria haver entre eles, bem como a da
sua dignidade diante das autoridades seculares.
O Concilio de Niceia I estabelecia, em dois cânones, um
conjunto de normas contra os bispos, os sacerdotes e os diáconos
que se mudavam de sua igreja de origem (ou diocese) para uma
outra igreja sem pedir permissão. O Concilio de Constantinopla
I resguardava a esfera de influência de cada bispo, ao declarar
que “os bispos diocesanos não devem se intrometer nos assuntos
das igrejas que estejam fora de sua jurisdição. [...] A menos que
sejam convidados, os bispos não devem sair de suas dioceses para
fazer ordenações ou executar qualquer outro tipo de atividade
PRIMEIRO MILÊNIO

eclesiástica”. O Concilio de Efeso declarava que nenhum bispo


OS CONCILIOS DO

poderia assumir a supervisão de uma outra província, se ele ou


os seus predecessores nunca tiveram essa autoridade.
Os direitos e a autoridade dos bispos mereceram grande
atenção por parte do Concilio de Calcedônia. Esse concilio
colocava os monastérios sob a autoridade dos bispos mais pró­
ximos e atribuía aos bispos o controle dos clérigos encarregados
de supervisionar asilos, monastérios e santuários que estivessem
dentro de sua jurisdição. O Concilio de Calcedônia confiava
aos clérigos a obrigação de encam inhar os processos legais
diretamente para o seu bispo, ao invés de encaminhá-los às
autoridades seculares. Esse concilio também estabeleceu con­
dições para que esses processos passassem por várias instâncias
diferentes, desde que todas elas estivessem dentro da Igreja,
para que a Igreja pudesse julgar esses processos dentro de suas
próprias regras e não abdicasse de sua autonomia legal. Quanto
à questão dos clérigos itinerantes, o Concilio de Calcedônia
reiterou as proibições estabelecidas pelo Concilio de Niceia I
contra os clérigos que se mudavam ao seu bel-prazer de uma
igreja para outra, mas também acrescentou uma frase referente
aos direitos episcopais. Se um bispo aceitasse exercer autoridade
sob um clérigo itinerante, ele estaria violando a autoridade do
bispo original deste último. O Concilio de Calcedônia estabe­
lecia como punição a excomunhão, tanto do clérigo itinerante
quanto do bispo que o acolheu sob sua autoridade.
Os concílios gerais continuavam a afirmar a independência
relativa de cada bispo, bem como o laço que se formava entre o
bispo e os seus subordinados. O Concilio de Niceia II repetiu que
os clérigos não poderiam trocar de diocese unilateralmente. O
Concilio de Constantinopla IV declarou que qualquer clérigo,
monge ou irmão leigo que quisesse deixar o seu bispo só poderia
fazer isso depois de “se submeter a um interrogatório minucioso
e a um julgamento em um sínodo”. Nenhum bispo poderia
doar o que pertencia a um outro bispo ou nomear sacerdotes
para uma igreja sob jurisdição de outro bispo.
A SU PER VISÃ O DA IG R EJA P R IM IT IV A :
O-S CÂNONES DISCIPLINARES
O Concilio de Constantinopla IV recorreu a alguns exem­
plos surpreendentes para preservar a dignidade e a autoridade
episcopal. Os bispos que tinham de se encontrar com um mi­
litar de alta patente ou com um alto funcionário do governo
não deveríam “se distanciar muito de suas igrejas, nem apear
de seus cavalos ou de suas mulas a grande distância desses
dignitários, nem abaixar a cabeça amedrontados, tremer e se
prostrar diante deles”. O concilio ordenava aos bispos que eles
deveríam assegurar a autoridade final da Igreja:

Portanto, o bispo deverá ter a coragem de repreender os gene­


rais e outros altos oficiais e todas as outras autoridades seculares,
sem pre que ele descobrir que eles com eteram algum a injustiça
ou algum excesso, para que desse m odo ele possa corrigi-los e os
tornar melhores.

O C oncilio de Constantinopla IV tam bém considerava


como crimes as rumorosas práticas nas quais funcionários do
governo se disfarçavam de sacerdotes e de bispos, simulavam
julgamentos de heresia e consagrações episcopais e normalmente
ridicularizavam o clero. O concilio condenava todos aqueles que
participavam desses espetáculos ou omitiam a sua ocorrência,
mesmo se se tratasse do imperador ou do patriarca.
Por meio de seus cânones, os concílios também abordaram
a eleição dos bispos, definindo que tipo de hom em deveria
ser escolhido e chamando a atenção para a necessidade de se
evitar a interferência governamental e laica nas eleições livres
dos bispos, uma questão que seria de importância fundamental
para os concílios gerais medievais.
O Concilio de Niceia I declarava que um bispo deveria
ser eleito por todos os bispos da província. Aqueles que não
pudessem comparecer à eleição deveríam enviar o seu voto
por escrito. Finda a eleição, no mínimo três bispos deveríam
ordenar o seu novo colega. O Concilio de Niceia II exigia que
os futuros bispos fossem homens sábios e santos e estipulava
que um candidato 63
deveria ter um conhecimento com pleto do Livro dos Salmos,
PRIMEIRO MILÊNIO

para que ele pudesse introduzir esse livro a todos os clérigos subor­
OS CONCÍLIOS DO

dinados a ele. E le tam bém deveria ser rigorosamente sabatinado


pelo m etropolita, para que se avalie a sua disposição de adquirir
novos conhecimentos - conhecimento este que deve ser minucio­
so ao invés de superficial - sobre os cânones sagrados, o sagrado
evangelho, o livro do apóstolo divino e sobre todas as sagradas
escrituras; e tam bém se o candidato está disposto a se com portar
e a ensinar as pessoas que lhe serão confiadas de acordo com os
m andam entos divinos. [...] Se o candidato se mostrar indeciso ou
pouco à vontade com esse tipo de conduta e com esses ensina­
mentos, não se deve permitir que ele seja ordenado [bispo].

O Concilio de N iceia II declarava inválida toda eleição


episcopal que houvesse sido conduzida por soberanos civis, ci­
tando textualmente o cânone do Concilio de Niceia I referente
à eleição livre de um bispo por outros bispos.
Os concílios gerais deixaram bem claro que consideravam
indesejável a intromissão das elites leigas nos assuntos internos
da Igreja. O Concilio de Calcedônia se queixava das autorida­
des civis que haviam dividido algumas províncias ao meio. O
Concilio de Constantinopla IV reprovava expressamente a intro­
missão de leigos nas promoções de clérigos nas ordens sagradas
e nas eleições episcopais, além de censurar as suas tentativas
de desacreditar ou de depor algum bispo. Em um cânone que
se mostraria decisivo durante as discussões medievais sobre a
independência da Igreja, o Concilio de Constantinopla IV
declarava com bastante clareza um antigo princípio:

[A] prom oção e a consagração dos bispos devem ser levadas


a cabo por m eio de um a eleição e de um a decisão de um colégio
de bispos. Portanto, [este con cilio geral] prom ulga u m a lei na
qual nenhum a autoridade ou soberano leigos devem intervir na
eleição ou na prom oção de um patriarca, de um m etropolita ou
de um bispo, [...] tendo em vista que se considera errado que um
soberano ou que qualquer outro leigo tenha qualquer influência
sobre estas questões. [...] Se um a autoridade ou soberano secula-
A SU PER VISÃ O DA IG R E JA P R IM IT IV A :
O S CÂNONES DISCIPLINARES
res, ou um leigo que ocupe qualquer posição de destaque, tentar
agir contrariam ente ao m étodo usual, consensual e canônico de
se fazer eleições na Igreja, ele será anatem atizado.

O PAPA

Finalmente, os concílios também abordaram um tópico


que acabou dividindo o Ocidente e o Oriente, que era o da
relação que o bispo de Roma deveria ter com os outros bispos,
especialmente com o bispo de Constantinopla.
O Imperador Constantino, que reinou no século IV e que
favoreceu a cristandade, mudou a capital imperial de Roma,
que era a capital tradicional do império, para Constantinopla.
A partir de então, o prestígio de Constantinopla se tornou cada
vez maior, especialmente depois da cidade de Roma sofrer uma
série de ataques ao longo dos próximos séculos, e o imperador
do Ocidente e o império Ocidental passariam a perder constan­
temente poder e prestígio para o Oriente. Consequentemente,
o poder e o prestígio específicos do bispo de Constantinopla
começaram a rivalizar com os do bispo de Roma. Alguns bispos
de Constantinopla, com o apoio do Oriente, haviam tentado
elevar Constantinopla à condição de sé mais importante, em
termos de autoridade, depois da de Roma, acima de todos os
demais bispos do mundo cristão.
Em 381, o Concilio de Constantinopla I procurou reco­
nhecer essa mudança em sen cânone 3, que dizia que “como
[Constantinopla] é a Nova Roma, o bispo de Constantinopla
deve desfrutar de todas as honrarias que são concedidas ao bispo
de Roma” . Menos de um século depois, os padres do Concilio
de Calcedônia expressaram a sua concordância em relação a
esse ponto de vista, pois o cânone 28 desse concilio afirmava
que o Concilio de Constantinopla I havia

acertadam ente concedido prerrogativas à sé da antiga Rom a


devido à sua condição de Cidade Imperial e, animados pelo mesmo
objetivo, os 150 bispos mais devotos [do Concilio de Constantinopla
PRIMEIRO MILÊNIO

I] concederam as m esm as prerrogativas à santíssim a sé de Nova


OS CONCÍLIOS DO

Roma [Constantinopla], julgando acertadamente que a cidade que


tem a honra de abrigar o poder imperial e o senado e de desfrutar
dos m esmos privilégios da imperial Rom a antiga tam bém deveria
se elevar ao mesmo patam ar em relação às questões eclesiásticas e
ser considerada com o a sé m ais im portante depois da de Roma.

O papa Leão I simplesmente se recusou a aceitar o cânone


28, pois entendia que um papa poderia rejeitar determinado
cânone de um concilio geral devido à sua própria condição
de papa, pois, como tal, tinha a autoridade final sobre todas as
questões eclesiásticas na Terra. Já o Oriente afirmava que ele
não poderia agir desse modo, pois o cânone havia sido decretado
conjuntamente por todos os bispos em um concilio ecumênico,
que, ao seu ver, era a autoridade mais alta da Igreja. Segundo o
Oriente, nenhum bispo isoladamente, nem mesmo o bispo de
Roma, poderia mudar ou anular unilateralmente uma declaração
com a qual todos haviam concordado. Mais uma vez, o Oriente
e o Ocidente não se entendiam sobre determinada questão.
A divisão entre o Oriente e o Ocidente já existia antes dos
concílios, mas de certo modo foi exacerbada por eles. As disputas
de poder que estiveram por trás do cânone 3 do Concilio de
Constantinopla I, do cânone 28 do Concilio de Calcedônia e
de sua anulação por Leão I foram apenas mais algumas etapas
de uma ruptura que já se encontrava em curso. E as abruptas
mudanças de posições do papa Vigílio, durante o Concilio
de Constantinopla II, a condenação do papa Honório pelo
C oncilio de C onstantinopla III e as com plexas m udanças
políticas e religiosas que ocorreram antes, durante e depois
do Concilio de Constantinopla IV, certamente não ajudaram
a diminuir o fosso.
O que o bispo de Roma considerava como a manifestação
legítima do exercício do poder de Pedro sobre as chaves da
Igreja ao supervisionar um concilio geral, o Oriente reprovava
óó como um ato de supremacia que Jesus jamais teria a intenção
A SU PER VISÃ O D A IG R EJA P R IM IT IV A :
Os
de permitir. O Oriente argumentava que Pedro poderia ter sido

CÂNONES DISCIPLINARES
o primeiro, mas isso não significava que ele era melhor ou que
ele detinha o poder supremo. Essas foram algumas das razões
pelas quais o Oriente e o Ocidente não adotavam a mesma lista
de concílios e discordavam sobre quais dentre eles poderíam
ser considerados ou não como ecumênicos. Ironicamente, ao
se reunirem para resolver determinados problemas, os concílios
gerais do primeiro milênio acabaram contribuindo, involunta­
riamente, para a futura divisão da Igreja.

B ibliografia

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St. Vladim ir’s Sem inary Press, 1996.

67
PARTE DOIS

OS CONCÍLIOS
DA IDADE MÉDIA
D
urante a Idade M édia, o papado exerceu o seu poder em
toda plenitude ao dom inar os concílios gerais e ao im por
uma extensa agenda administrativa a eles, o que representou uma
m udança significativa em relação aos concílios que se reuniram
durante o primeiro milênio, quando os aspectos doutrinários eram
dominantes, Conform e já narramos, os primeiros concílios gerais
foram convocados por imperadores e, no início, os seus trabalhos
transcorreram à margem da liderança papal, pois foi apenas espo­
radicamente que um papa, como Leão I, conseguiu influenciar os
concílios de modo decisivo. No entanto, foi na Idade Média que as
preocupações do papa, especialmente com a estrutura organizacional
e com os procedimentos adotados pela Igreja, tornaram-se o tema
dominante dos sete concílios gerais, que vão do Concilio de Latrão
I (1123) ao Concilio de Vienne (1311-1312).
A maior parte dos documentos conciliares medievais se apre­
sentam com o declarações papais, nas quais o “nós” majestático
referente ao papa promulga decretos e profere julgamentos. Onde
a Igreja primitiva afirmava “este sagrado concilio d eclara...”, com
frequência os papas medievais convocavam concílios para referendar
as suas próprias declarações que tinham força de lei e apenas em
algumas ocasiões eles acrescentavam a frase “com a aprovação do
sagrado concilio” aos registros dos concílios. D e vez em quando,
esses papas medievais enfatizavam a sua autoridade ao se referirem,
nesses registros, ao poder das chaves entregues a Pedro e aos seus
sucessores. O fortalecimento da chamada “monarquia papal” explica
por que os concílios gerais medievais parecem menos deliberativos
de que os seus predecessores.
Enquanto os concílios do primeiro milênio se distinguiam por
suas explicações teológicas, os concílios medievais se caracteriza­
ram sobretudo por sua linguagem legal. Os papas da Idade Média
contribuíram para a elaboração de precedentes e de processos legais
nos concílios gerais que supervisionavam. Durante esses concílios,
bem como durante os intervalos que havia entre eles, funcionários
da Igreja reuniam as declarações e os julgamentos papais em um
único texto ou código de lei canônica, o que acabou dando origem
a uma relação simbiótica, na qual determinado papa confirmava os
atos de seus predecessores em um concilio e, a seguir, acrescentava
os seus próprios atos aos deles ainda no mesmo concilio. Os seus
sucessores podiam fazer algumas observações sobre essas adições, que
um outro papa acabava por reafirmar no concilio seguinte (embora
algumas vezes ele as modificasse ou as revogasse). Desse modo, os
concílios gerais da Idade Média gradualmente contribuíram para a
elaboração da lei canônica. Os Concílios de Latrão IV (1215) e de
Lyon I (1245), por exemplo, acrescentaram extensos pormenores
ao devido processo legal, às apelações e aos procedim entos, ao
passo que o Concilio de Latrão I (1123) elaborou um a legislação
contra qualquer pessoa que falsificasse dinheiro e que espalhasse
dinheiro falso.
Do mesmo modo como foi feito na primeira parte deste livro,
esta segunda parte faz um relato de cada um dos concílios em or­
dem cronológica. No entanto, esses concílios não foram os únicos
encontros a se reunir durante a Idade Média, pois vários concílios
locais se reuniram, e alguns deles contaram com a presença do
próprio papa, mas foram esses sete concílios que, com o passar dos
séculos, acabaram por ser incluídos na lista dos 21 concílios gerais
da Igreja. Considerados em conjunto, os quatro concílios de Latrão
apresentam evidências significativas do fortalecimento da monarquia
papal e de suas tentativas de exercer uma jurisdição universal. Afinal,
eram os papas que conduziam as principais questões “internacionais”
durante esse período, a nomeação de bispos por autoridades leigas,
as cruzadas, os conclaves papais e as questões relacionadas com os
judeus e com os muçulmanos. No entanto, nos Concílios de Lyon
I e II e no de Vienne, a política com eçou a adquirir um papel pre­
dominante: veremos as consequências do envolvimento do papado
em questões seculares. Do mesmo modo que ocorreu no Concilio
de N iceia II, a história dos concílios de Lyon I e do de V ienne
demonstra de modo significativ o o quanto eles foram turbulentos
devido à sua exposição à política nua e crua e à intensidade dos
danos sofridos pelo papado em consequência disso. Mais uma vez,
concluiremos esta parte com a abordagem dos cânones disciplinares
que, com o passar do tempo, fizeram com que esses sete concílios
gerais fossem considerados como um único conjunto.
4
OS QUATRO CONCÍLIOS
DE LATRÃO (1123-1215)

O s quatro primeiros concílios gerais da Idade Média, que


vão do Concilio de Latrão I ao Concilio de Latrão IV, se
reuniram no próprio salão de conferências do terreno da resi­
dência papal, em Roma. No início, Latrão era uma parte de uma
propriedade que Constantino havia doado ao papa Melquíades,
em 312 ou em 313 que, com o"passar dos séculos, foi ampliada
até se transformar em um complexo de edificações. Ao reunir
os concílios gerais em Latrão, os papas enfatizavam fisicamente
a sua pretensão monárquica da autoridade universal, na cida­
de onde Pedro havia sido martirizado. Desse lugar, os papas
presidiram quatro concílios que abordaram principalmente a
questão da independência da Igreja, os procedimentos legais
internos, as reformas, as heresias, as outras expressões de fé, as
cruzadas e a peregrinação.
LATRAO I
OS CONCÍLIOS DA
IDADE MÉDIA

O Concilio de Latrão I não foi nem um concilio muito


original nem um que tenha sido convocado para resolver uma
questão teológica das mais urgentes. Durante a maior parte de
sua duração, o papa Calisto II intimou o concilio a ratificar de
um modo formal, impositivo e universal as recentes medidas
tomadas pelos papas tanto nos concílios regionais quanto em
Roma. O principal problema dos últimos cinquenta anos se
referia à questão ainda sem solução das “investiduras”, por meio
das quais autoridades leigas (no nível de imperadores, reis e
nobres) nomeavam bispos ou abades. Para garantir a autorida­
de dos funcionários que eram escolhidos para essas posições,
esses leigos os investiam pessoalmente com os símbolos de sua
autoridade secular (normalmente uma espada ou um cetro) e
com os símbolos de sua autoridade espiritual (o anel, a mitra
e o báculo).
A uma população analfabeta, parecia que o bispo ou o abade
subordinava-se a uma autoridade leiga. Embora esse possa ter
sido o caso em termos de propriedade, o papado não poderia
cruzar os braços e permitir que um imperador desse a impressão
de que ele pudesse dispor de seu poder espiritual como bem
entendesse. Depois de décadas de disputas acirradas durante as
quais o papa e o imperador lutaram pelos seus respectivos direitos
de nomear bispos e abades, a Concordata de Worms, em 1122,
resolveu de vez essa questão. Segundo esse acordo, o imperador
abria mão do direito de nomear representantes da Igreja e de
ostentar os símbolos de seu poder espiritual; o papa permitia
que um soberano leigo estivesse presente na eleição de um
representante da Igreja e oferecesse a um bispo ou a um abade
os símbolos de sua autoridade secular. O Concilio de Latrão
I ratificou a Concordata de Worms ao aprová-la formalmente
na presença do papa em Roma, dando início ao processo de
supervisão papal que marcaria os quatro concílios de Latrão.
O Concilio de Latrão I introduziu novos tópicos à agenda de
74 um concilio geral: as questões intimamente relacionadas com a
OS Q U ATR O C O N C ÍL IO S DE LA TRÃ O (1123-1215)
peregrinação e a cruzada. Em 1095, em um encontro local na
França, o papa Urbano II convocara uma cruzada para resgatar a
Terra Santa dos muçulmanos, que os cristãos consideravam infiéis.
Cerca de trinta anos depois, o Concilio de Latrão I perdoava
os pecados cometidos pelos peregrinos e pelos cruzados, além
de oferecer proteção aos seus familiares e às suas propriedades,
enquanto eles estivessem viajando para Jerusalém. O concilio
também pressionava aqueles que haviam prometido fazer uma
peregrinação ou a participar de uma cruzada, mas que ainda
não haviam deixado os seus lares, a cumprirem os seus votos,
sob ameaça de bani-los das igrejas e, no caso de soberanos leigos,
de se recusar a ministrar os serviços religiosos e os sacramentos
da Igreja em seus domínios. O concilio também bania todos
aqueles que atormentassem os peregrinos que visitavam Roma
ou algum santuário sagrado.

LATRAO II

Do mesmo modo que o Concilio de Latrão I, o Concilio de


Latrão 11(1139) não se destacou por sua inovação ou por seu
esplendor, mas também contribuiu para o processo por meio do
qual o papa atribuía uma importância maior e aumentava o raio
de aplicação das decisões, que eram tomadas separadamente em
cidades dispersas por toda a Europa. Metade dos seus cânones
ecoava os do Concilio de Latrão I, enquanto a outra metade
simplesmente reafirmava as decisões tomadas por encontros locais
que haviam se reunido ao longo dos dezesseis anos de intervalo
que separavam o Concilio de Latrão I do de Latrão II.
Ainda assim, o C oncilio de Latrão II apresentou vários
aspectos singulares. Em primeiro lugar, ele tinha um quê de
ecumênico, pois pelo menos um bispo do Oriente compareceu a
ele, embora fosse um latino que representava a sé de Antioquia.
Em segundo lugar, o concilio impôs a unidade papal sobre os
seus delegados depois de um período de cisma, um problema
que atormentou a Igreja ao longo do século XII, quando havia 75
quase tantos antipapas quanto papas. O papa Honório II se viu
às voltas com um rival, o antipapa Celestino II, depois de uma
OS CONCÍLIOS DA
IDADE MÉDIA

conturbada posse papal, em 1124, que incluiu um assalto armado


e o emprego de violência física. Em 1130, quando Honório II
morreu, um pequeno grupo de cardeais elegeu Inocêncio II em
segredo, enquanto a maioria dos cardeais escolheu Anacleto II,
que acabou sendo rebaixado a antipapa, mas ambos chegaram
a tomar posse no mesmo dia, em cerimônias separadas. Em
1138, a morte de Anacleto II deu um fim à sua pretensão de
ser o papa legítimo. No ano seguinte, Inocêncio II convocou o
Concilio de Latrão II para ajudar a consolidar a sua pretensão
ao papado.
Em terceiro lugar, o Concilio de Latrão II também se viu às
voltas com a heresia, que passaria a ser uma das principais preo­
cupações dos concílios gerais, durante os próximos quatrocentos
anos. Os concílios gerais do primeiro milênio dedicavam-se à
definição da ortodoxia e das doutrinas heréticas, para então es­
tabelecerem procedimentos para trazer heréticos arrependidos
de volta à Igreja. Ao considerar diversos agitadores locais como
heréticos, o Concilio de Latrão II mais uma vez fez com que a
identificação e o combate contra os heréticos se tornassem um
dos principais instrumentos a serem empregados pelos concílios
posteriores, que iriam descrever com riqueza de pormenores
as recompensas que eram devidas àqueles que se opusessem a
quem desafiasse a Igreja.

LATRAO III

É apenas com o advento do Concilio de Latrão III (1179)


que podemos nos deparar com um concilio geral comparável
aos grandes encontros do primeiro milênio. Diferentemente dos
dois anteriores concílios lateranenses, o Concilio de Latrão III
promulgou um maior número de leis e empreendeu algumas
ações inovadoras. Uma de suas características mais surpreendentes
foi a sua representatividade geográfica relativamente ampla para
OS Q U A TR O C O N C ÍL ÍO S DE LATRÃO (1123-1215)
uma Igreja que ainda permanecería confinada apenas à Europa
por ainda outros trezentos anos. A maioria dos bispos veio da
Itália e da França, mas também vieram bispos da Alemanha,
Espanha, Irlanda, Escócia e Inglaterra. Também compareceram
um bispo da Hungria e um bispo da Dinamarca, além de sete
delegados representando a Terra Santa, um observador repre­
sentando as igrejas gregas e alguns emissários reais.
Do mesmo modo que o Concilio de Latrão II, o Concilio
de Latrão III reafirmou a unidade papal depois de a Igreja ter
sofrido alguns cismas. Três antipapas já haviam ameaçado o então
papa Alexandre III, e na sequência desse concilio um quarto
antipapa também o desafiaria. A eleição de Alexandre III, em
1159, foi uma repetição das violentas e turbulentas eleições de
1124 e de 1130 para o papado. Para consolidar a sua liderança e
a sua autoridade, Alexandre declarou nulas e inválidas todas as
ações que haviam sido empreendidas pelos seus rivais e todos os
cargos que haviam sido ocupados por estes últimos e por todos
aqueles que os apoiavam.
Ainda mais importante do que essa declaração foi o cânone
instituído pelo Concilio de Latrão III sobre as eleições papais,
que estabeleceu mais um importante passo para a consolidação
do processo medieval que reservava as eleições papais exclusi­
vamente aos cardeais, mesmo que para isso fosse necessário
trancá-los em uma sala. Esse processo tivera início em um outro
sínodo de Latrão, que nunca chegou a ser incluído na lista dos
21 concílios gerais. Em 1059, o papa Nicolau II havia atribuído
aos cardeais o principal papel nas eleições do papa, em uma
tentativa de contrabalançar as influências que as famílias mais ricas
de Roma tinham no processo. A essa altura, no entanto, séculos
de precedentes haviam permitido que outros membros do clero
também participassem das eleições papais, além de permitir que
o papa reinante declarasse qual era o seu sucessor e de permitir
impropriamente que os leigos (inclusive o imperador) dessem
ou negassem o seu consentimento à escolha do novo papa.
Alexandre III fortaleceu a posição preeminente dos cardeais
nas eleições papais, por meio de um importante cânone insti-
tuído no Concilio de Latrão III. Talvez devido ao fato de que a
sua própria eleição tivesse sido questionada, quando alguns dos
OS CONCÍLIOS DA
IDADE MÉDIA

eleitores haviam exigido que houvesse unanimidade dos votos,


Alexandre atribuiu as eleições papais exclusivamente aos cardeais
e declarou que não havia necessidade de unanimidade dos
votos para que um papa fosse eleito. Se um candidato reunisse
dois terços dos votos dos cardeais que estivessem presentes, ele
já seria considerado eleito papa. Um século depois, um outro
concilio, o de Lyon II, que se reuniu em 1274, acrescentou a
exigência de que os cardeais deveriam ser trancados a chave até
que houvessem chegado a uma decisão, o que acabou dando
origem à palavra “conclave” (com uma chave).
O Concilio de Latrão III continuou a combater os heréticos,
voltando a sua atenção para um grupo denominado cátaros
(“os puros”) ou albigenses. Os cátaros rejeitavam a maioria
dos sacramentos e dos sistemas de valor da Igreja Católica,
substituindo-os por uma religião minimalista que se baseava
na fé interior e em um ascetismo extremado. O Concilio de
Latrão III proibiu que se rezasse uma missa fúnebre e que se
providenciasse um enterro cristão a um cátaro, além de proibir
todas as outras pessoas de dar comida e abrigo a um cátaro ou
ter negócios com um deles. O concilio estimulou os cristãos
a combater esses heréticos ao reduzir para apenas dois anos
qualquer penitência que um defensor da fé tivesse de cumprir.
D e modo significativo, essa declaração concedia àqueles que
combatiam os heréticos em seus próprios países o mesmo tipo
de recompensa que os concílios anteriores e os papas haviam
oferecido aos cruzados para que estes combatessem os “infiéis”
na distante Terra Santa.
Em um outro tópico semelhante, o concilio instituiu leis
contra qualquer cristão que ajudasse os muçulmanos e relacio­
nava, minuciosamente, alguns tipos de ofensas aparentemente
relacionadas ao ato de ajudar e de dar apoio aos inimigos dos
cruzados. O Concilio de Latrão III proibia, por exemplo, os
cristãos de trocarem armas e madeira por elmos com os muçul­
manos e de comandar ou de pilotar navios muçulmanos. E o
O S Q U A T R O C O N C ÍL IO S DE LA TRÃ O (1123 1215)
concilio não demonstrava nenhuma clemência para traidores
com o estes, pois eles eram excomungados, perdiam as suas
propriedades e podiam ser escravizados. Em todas as demais
situações, o concilio declarava que nenhum judeu ou muçul­
mano poderia ter um cristão como serviçal.

LATRAO IV

Os encontros papais, cada vez mais esplendorosos, culmina­


ram no Concilio de Latrão IV (1215), considerado “o” concilio
geral da Idade Média. Em um grau ainda maior do que o Concilio
de Latrão III, o número de participantes do Concilio de Latrão
IV foi grande, impressionante e variado. Mais de quatrocentos
bispos e arcebispos, inclusive alguns deles oriundos da Europa
Oriental, compareceram munidos dos tópicos que o papa Ino-
cêncio III havia ordenado que preparassem. Eles se juntaram
a mais de oitocentos abades e priores, mais os embaixadores
reais de Constantinopla, da Inglaterra, Alemanha, Hungria,
Terra Santa, França, Aragão e Portugal. Pela primeira vez na
história dos concílios gerais o papa permitiu que os superio­
res das ordens religiosas e os capítulos das catedrais também
participassem do concilio. Embora tivessem sido convidados,
nenhum representante das igrejas gregas compareceu, o que
enfraqueceu a pretensão do Concilio de Latrão IV de ser consi­
derado como verdadeiramente ecumênico. Apesar disso, os seus
documentos nos proporcionam um instantâneo da Igreja da alta
Idade Média. Com o seu grande número de participantes, seu
grande número de cânones novos e com as suas preocupações
específicas, o Concilio de Latrão IV apresenta-se como um
resumo dos dogmas, das estruturas e dos problemas da Igreja
em meados da Idade Média.
O C oncilio de Latrão IV teve início com o anúncio de
uma profissão de fé, que reafirmava, essencialmente, os antigos
princípios teológicos resultantes das batalhas que haviam sido
travadas contra a heresia ao longo do primeiro milênio. A seguir, 79
abordou-se uma preocupação permanente dos concílios gerais
por meio da elaboração de uma legislação contra os heréticos.
OS CONCÍLIOS DA
IDADE MÉDIA

Esse concilio pediu às autoridades seculares que prometessem


combater os heréticos, e caso os líderes seculares fracassassem
em eliminar os heréticos de seus domínios, poderíam ser ex­
comungados. O concilio tam bém concedia a “indulgência
dos cruzados” (o perdão dos pecados) a qualquer cristão que
defendesse a sua fé contra os heréticos dentro de seu país, como
já havia feito o Concilio de Latrão III.
O C oncilio de Latrão IV insistiu no com bate à heresia
ao excomungar qualquer cristão que abrigasse, defendesse ou
apoiasse os heréticos. Se esse cristão não acertasse o passo dentro
de um ano sofreria sérias consequências. Ele não poderia mais
testar ou herdar, ser um funcionário do governo, votar nem servir
como testemunha. Fosse um juiz, suas sentenças deixariam de
ter validade e ele não poderia mais julgar nenhum caso; fosse
um notário, os documentos produzidos por ele seriam invali­
dados; fosse um advogado, seria privado do direito de defender
seus clientes. O concilio encarregou especialmente os bispos
de investigar as heresias, e se eles não eliminassem a heresia de
uma vez por todas, seriam depostos. Para evitar que as heresias
se espalhassem, especialmente por meio dos autonomeados
pregadores que costumavam vagar naquele tempo, o Concilio
de Latrão IV exigia que todos os pregadores portassem uma
licença que os colocava sob a autoridade do bispo local.
O Concilio de Latrão IV convocou uma nova cruzada rumo
à Terra Santa, que deveria partir em 1217, e ofereceu uma série
de provisões específicas e de incentivos. Por exemplo, todo clérigo
que participasse da cruzada recebia uma soma equivalente a três
anos de seu salário regular. O concilio aconselhou os cristãos
que haviam prometido participar da cruzada mas que ainda
não haviam tomado nenhuma providência, a partir o quanto
antes. Para transportar os cruzados para a Terra Santa, a Igreja
perdoaria os pecados daqueles que se dispusessem a construir
navios ou a pagar para a sua construção. Os cruzados seriam
isentos do pagamento de impostos e dos juros, mas aqueles
O S Q U A T R O C O N C ÍL IO S DE LATRÃO (1123-1215)
que porventura ajudassem os muçulm anos seriam punidos,
conforme o Concilio de Latrão III já havia declarado. A paz
deveria reinar entre os cristãos por um período de cinco anos,
presumindo-se que assim eles poderíam combinar e canalizar
os seus esforços contra o inimigo comum. Finalmente, a Igreja
fazia uma promessa a quase todas as pessoas: ela perdoaria os
pecados daqueles que participassem das cruzadas por sua própria
iniciativa, daqueles que a financiavam com o seu próprio bolso,
bem como daqueles que não poderíam partir, mas que haviam
pago para que outros partissem em seu lugar e daqueles que
tinham a sua viagem paga por uma outra pessoa.
Esse concilio geral também abordou o problema dos cristãos
que se viam obrigados a interagir com os muçulmanos e com
os judeus. O Concilio de Latrão IV exigia que os judeus e os
muçulmanos se vestissem de um modo distintivo (sem entrar
em maiores pormenores), de modo que os cristãos pudessem
saber que estavam lidando com não cristãos. Também proibia
os judeus de ocupar cargos públicos, para que não tivessem
autoridade sobre cristãos. Os judeus também eram obrigados
a permanecer confinados em suas casas durante o Domingo
de Ramos,

porque alguns deles [...] não têm o m enor pudor em desfilar


usando trajes bastante ornam entados e não têm m edo de ridicu­
larizar os cristãos que participam de um a representação da paixão
m ais sagrada e exibem sinais de luto.

No entanto, deve-se ressaltar que o Concilio de Latrão IV


contava apenas metade da história, pois durante o Domingo
de Ramos e a Semana Santa, com frequência os judeus eram
apedrejados ou estapeados, algumas vezes com a instigação de
pregadores, e eram culpados pela morte de Jesus.
Dois outros tópicos sobressaem no Concilio de Latrão IV.
O primeiro dizia respeito à Eucaristia. O Concilio de Latrão
IV empregou uma palavra relativamente nova, “transubstancia-
ção”, para descrever a antiga doutrina de que o pão e o vinho
se transformavam no corpo e no sangue de Jesus. Um cânone
posterior exigia a observação do célebre “dever de Páscoa”, ou
OS CONCÍLIOS DA
IDADE MÉDIA

seja, todos os cristãos e cristãs deveríam comungar pelo menos


a cada Páscoa, bem como confessar os seus pecados no mínimo
uma vez por ano.
O segundo tópico dizia respeito à antecipação que o Concilio
de Latrão IV fazia de um problema que Martinho Lutero iria
combater trezentos anos depois: o da venda de indulgências.
O concilio observava que “com frequência, a religião cristã é
criticada porque algumas pessoas colocam as relíquias dos santos
à venda e as exibem indiscriminadamente”. O concilio dizia que
os cristãos poderíam ser enganados por “histórias mentirosas ou
documentos falsos”, antecipando involuntariamente o vendedor
de indulgências de Chaucer que, de modo infame, chacoalhava
ossos de porco, fazendo-os passar por relíquias verdadeiras. O
concilio exigia o controle oficial das relíquias: elas deveríam
ser guardadas em relicários, não poderíam ser vendidas e as
novas relíquias deveríam ser aprovadas pelo papa. O Concilio
de Latrão IV obrigava todos os pedintes a carregar consigo uma
carta oficial, que funcionava como uma licença para que eles
pudessem pedir esmolas, e chegava a ponto de oferecer um
modelo de carta que pudesse ser copiado com facilidade.

82
5
DISPUTAS DE PODER;
D o C oncílio de Lyon I (1245) AO
C oncilio de V ienne (1311-1312)

Í~JV lênepetindo o mesmo padrão dos concílios do primeiro mi-


io, o segundo agrupamento de concílios gerais que se
reuniram durante a Idade Média não estavam totalmente à altura
dos concílios do primeiro agrupamento em termos de qualidade.
Do mesmo modo que os seus quatro predecessores medievais,
essa sequência de três concílios gerais abordou a questão das
cruzadas (embora o movimento já estivesse fracassando), dos
conclaves papais e a das heresias, mas esses concílios também
sofreram as consequências negativas das complicações de ordem
política. E, de um modo ainda mais significativo, naquilo que
os concílios de Latrão fizeram uma demonstração efetiva da
autoridade papal, esses três concílios seguintes demonstraram
as limitações dessa última em face do poder secular.
83
LYON I
OS CONCÍLIOS DA
IDADE MÉDIA

O Concilio de Lyon I se reuniu em 1245 com o objetivo


principal de depor o imperador Frederico II, que há já bastante
tempo causava inquietação ao papado devido às suas tentativas
de conquistar os territórios papais e de controlar a Igreja nos
mesmos moldes de Constantino e de Carlos Magno. Os padres
do Concilio de Lyon I permitiram que Frederico enviasse um
representante, que apresentou o seu caso e defendeu o impe­
rador das acusações de interferência e de heresia. Apesar disso,
o papa Inocêncio IV declarou a excomunhão e a deposição do
imperador, além de eximir todos aqueles que estavam sob a
autoridade do imperador de seus juramentos de aliança, que era
um método tradicional de enfraquecer a ajuda política, militar
e financeira a um oponente. Em sua declaração, Inocêncio
relatava minuciosamente as suas tentativas de promover a paz,
afirmando que Frederico as havia combatido, e acusava o impe­
rador especificamente de haver incitado as pessoas a transferir
sua lealdade ao papa para o imperador e de desconsiderar a
autoridade papal ao "desprezar as chaves da Igreja”.
Ironicamente, dezesseis anos antes desse Concilio, Frederico
havia logrado o que muitos papas que apoiavam as cruzadas não
haviam conseguido: garantir o acesso seguro dos peregrinos à
Terra Santa. A bula de deposição do Concilio de Lyon II se
queixava de que Frederico havia negociado com m uçulm a­
nos. Essa acusação se referia a uma ação bem-sucedida que o
imperador havia empreendido para o bem da cristandade. Em
1229, embora estivesse sob uma censura anterior da Igreja,
Frederico negociara um tratado de paz com o sultão do Egito,
que à época controlava a Palestina. Esse Tratado de Jaffa, com
um prazo de duração de dez anos, concedia aos cristãos o con­
trole nominal de Jerusalém, facilitava o acesso dos peregrinos
a Belém, Nazaré e a Jerusalém e permitia que os cristãos e os
muçulmanos praticassem lado a lado as suas respectivas fés.
Talvez essa façanha de Frederico tenha irritado o papado do
mesmo modo que as suas outras tentativas de diminuir o poder
o

D ISPU TA S DE PO D ER:
do papa, como a invasão de suas terras e o bloqueio dos acessos
n
utilizados pelos bispos para impedir que eles comparecessem a
um concilio em 1241.
Em relação às cruzadas, o papa Inocêncio IV seguiu de
perto as mesmas orientações enunciadas pelo seu predecessor
Inocêncio III no Concilio de Latrão IV, embora tenha acres­
centado dois pontos interessantes, que indicavam a necessidade
urgente de reunir dinheiro necessário para o financiamento das O
n
campanhas militares. Primeiramente, ele declarou que os ricos
deveríam diminuir a frequência com que ofereciam banquetes
extravagantes. Para promover a moderação, o papa prometeu
aos ricos que, se eles empregassem o dinheiro que seria gasto
em generosos banquetes no esforço das cruzadas, os prelados
poderíam perdoar os seus pecados. Em segundo lugar, ele es­
perava que aqueles que estivessem à morte deixassem alguma
quantia para ajudar as cruzadas. Inocêncio IV se dirigiu aos
prelados e ao seu clero para que

persuadissem os fiéis confiados a seus cuidados, tanto por meio


de seus sermões quanto durante as ocasiões nas quais impunham
a eles uma penitência, concedendo uma indulgência especial, se
se considerasse ser eficiente, para que, em seus testamentos, em
troca da remissão de seus pecados, eles deixassem alguma quantia
para ajudar a Terra Santa ou o Império do Oriente.

Com relação às outras questões que haviam preocupado os


quatro concílios de Latrão, o Concilio de Lyon I não promulgou
nenhum cânone referente à reforma ou à heresia, mas abordou
uma série de detalhes sobre procedimentos legais, julgamentos e
apelações. No entanto, houve política demais e participação de
menos, pois o comparecimento foi tão pequeno (de no máximo
150 delegados), que o Concilio de Lyon I é facilmente conside­
rado como o segundo concilio geral menos impressionante, logo
atrás do Concilio de Constantinopla IV. Do mesmo modo que
este último, o Concilio de Lyon I teve de esperar alguns séculos
apenas para constar na lista dos 21 concílios gerais. 8 5
LYON II
OS CONCÍLIOS DA
IDADE MÉDIA

O Concilio de Lyon II, presidido pelo papa Gregório X em


1274, foi bem mais impressionante que o anterior, mas também
representou o fim do domínio papal, pelo menos em comparação
com o poder demonstrado pelo papa Inocêncio III no Conci­
lio de Latrão IV. Do mesmo modo que ocorreu nesse último
concilio, o papa ordenou que os bispos elaborassem relatórios
preliminares sobre o que se passava em suas circunscrições e
apresentassem algumas sugestões. Vários tópicos constavam na
agenda, mas apenas dois, referentes à reforma e às cruzadas,
apresentaram resultados proveitosos. O Concilio de Lyon II se
destacou sobretudo por suas regras adicionais sobre as eleições
papais e por sua frágil e, em última análise, efêmera unificação
das igrejas ocidental e oriental.
Diferentemente de seus predecessores mais imediatos, o
Concilio de Lyon II foi verdadeiramente ecumênico. O imperador
do Oriente, Miguel VIII Paleólogo, procurou o papa Gregório X
por necessitar da ajuda do Ocidente para evitar que os seus terri­
tórios fossem invadidos em todas as frentes. Embora o Concilio
tivesse começado sem sua presença, quando os bispos orientais
finalmente chegaram, todos os seus participantes passaram a
se dedicar às questões referentes à unificação, especialmente
a da primazia papal e a da doutrina que era representada pela
palavra latina filioque.
A palavra filioque é parte da afirmação doutrinária de que o
Espírito Santo é proveniente do Pai e do Filho. Para o Oriente,
o problema não era tanto o da afirmação doutrinária em si, mas
o modo como o Ocidente a havia introduzido. Essa palavra não
fazia parte do credo instituído pelo Concilio de Constantino-
pla I, mas foi acrescentada posteriormente em traduções do
Ocidente para o latim. C om o passar do tempo, essa palavra
foi alternadamente incluída e omitida no Ocidente. O exemplo
mais notável foi o do papa Leão III (795-816), que anunciou um
86 credo em Roma sem a palavra filioque. No entanto, por volta
o

D ISPU TAS DE PO D ER:


do ano 1000 o Ocidente acabou por aceitar essa doutrina e a
Q
presença dessa palavra como normativa.
n
Z

Os orientais tinham objeções quanto a essa inclusão por


ela não haver sido aprovada por um concilio ecumênico. No
Concilio de Calcedônia, conforme já observamos, os padres o
z
haviam declarado que ninguém poderia formular, ensinar ou
to
escrever declarações doutrinárias que fossem diferentes daquelas C/l

que estavam contidas nos credos dos concílios de Niceia. de


Q
Constantinopla I e de Calcedônia na segunda carta de Cirilo de z

Alexandria a Nestório, na carta de conciliação de Cirilo a João


de Antioquia e no Tome de Leão I. No entender da maioria dos
orientais, a introdução unilateral da palavra suplementar filioque
violava esse princípio. Especificamente, ela era um exemplo do
exercício da supremacia papal que o Oriente não estava disposto
u>
a atribuir a Roma, mesmo reconhecendo que Roma possuía to
certa primazia devido ao pontificado de Pedro.
Desde o início da história da Igreja e ao longo de toda a Idade
Média, muitas igrejas orientais aceitavam a primazia de Roma
sob os cinco patriarcados de Roma, Constantinopla, Antioquia,
Alexandria e Jerusalém. Mas, ao mesmo tempo, argumentavam
que o governo da Igreja deveria ser exercido de forma conjunta
pelos cinco patriarcados, idealmente, por meio de um concilio
ecumênico. Em consequência disso, argumentavam que o bis­
po de Roma não possuía uma jurisdição universal, não podia
interferir nas questões internas das outras sés patriarcais e com
certeza não podia instituir mudanças e impô-las aos demais
bispos, ainda mais se isso se devesse única e exclusivamente
à sua própria vontade. Para os orientais, a inserção da palavra
filioque, do mesmo modo que ocorreu quando Leão I atribuiu
a si mesmo a decisão de anular o cânone 28 do Concilio de
Calcedônia que havia estabelecido que Constantinopla era a
segunda sé em importância depois da de Roma representava
um mero abuso de autoridade.
Surpreendentem ente, os delegados orientais acabaram
decidindo não protestar contra a primazia papal nem contra a
cláusula filioque no Concilio de Lyon, que, em seu primeiro
cânone, declarava: 87
[Oj Espírito Santo provém eternamente do Pai e do Filho, e
não se origina de duas fontes distintas, mas de uma única fonte. [...]
OS CONCÍLIOS DA
IDADE MÉDIA

[Esta] é a crença imutável e verdadeira dos padres e dos doutores


da Igreja ortodoxos, tanto gregos quanto latinos.

O imperador pediu para que fosse permitido ao Oriente


manter o seu próprio credo e Gregório assentiu. No entanto, esse
acordo não durou muito tempo no Oriente e, decorrido um curto
espaço de tempo, o Ocidente e o Oriente estavam novamente
divididos. Esta situação se repetiu em 1439, durante uma das
fases do Concilio Geral de Basileia-Ferrara-Florença-Roma, que
fez uma revisão de boa parte dessas questões fundamentais.
O Concilio de Lyon II também é digno de nota por haver
instituído oficialmente os conclaves papais na Igreja. Do mes­
mo modo que havia ocorrido com Alexandre III, que já havia
legislado sobre as eleições papais no Concilio de Latrão III, a
eleição de Gregório X também se deu em uma ocasião bastante
desagradável. Os cardeais haviam se reunido por mais de três
anos, de modo intermitente, em Viterbo para eleger o próximo
papa, e os representantes da cidade ficaram tão cansados de
esperar pela decisão deles que acabaram por trancá-los em um
edifício. Nem assim eles conseguiram chegar a uma decisão,
e os representantes da cidade tiveram de ameaçar remover o
teto da casa e fornecer apenas pão e água se os cardeais não
elegessem imediatamente um novo papa, o que eles finalmente
acabaram por fazer.
Em consequência dessa e de outras irregularidades que
vinham ocorrendo ao longo dos séculos, Gregório X, durante
o Concilio de Lyon II, reafirmou as normas estabelecidas pelo
Concilio de Latrão III e anunciou oficialmente os procedimentos
adicionais que já se encontravam em vigor desde então, com
algumas pequenas modificações. O seu objetivo era o de garantir
eleições rápidas e o de reduzir os períodos de vacância papal.
Os cardeais deveríam se reunir na cidade em que o último papa
tivesse morrido passados dez dias de sua morte (nos dias de hoje,
independentemente de onde o papa morrer, o conclave deverá se
D ISPU TAS D E PO D ER:
Do
reunir em Roma entre quinze e vinte dias depois de sua morte).

C o n c il io de. Ly o n
Eles deveríam estar completamente reclusos e ser trancados “com
uma chave”, ou seja, cum clave, o que acabou dando origem à
palavra conclave. Para que a eleição ocorresse com rapidez, os
cardeais não poderíam receber qualquer quantia que lhes fosse

I 0245)
devida pelo tesouro papal enquanto durasse o encontro. Se a
eleição não se decidisse em três dias, o suprimento de comida

ao
seria reduzido a um prato duas vezes ao dia e, se mais cinco

C oncIuo
dias se passassem sem que houvesse uma decisão, os cardeais
receberíam apenas pão, água e vinho.

de
V ie n n e
(1311 1312)
V1ENNE

Na época em que o concilio seguinte se reuniu em Vienne,


entre 1311 e 1312, o papado se encontrava sob uma influência
ainda maior do poder secnlar. Esse concilio se reuniu quase
na mesma época do início da longa permanência do papado
em Avinhão, onde, em maior ou menor grau, a coroa francesa
passara a exercer uma influência sobre os papas. Esse concilio
representa o ponto mais alto, ou o ponto mais baixo, alcançado
por essa influência, pois o rei francês Filipe IV (o Belo) intimi­
dou o papa Clemente V para que este cedesse às suas pressões,
principalmente por meio da ameaça constante de julgar um
papa anterior, Bonifácio VIII, por heresia.
Filipe havia combatido encarniçadamente os esforços que
Bonifácio vinha fazendo para exercer completamente o seu poder
sobre a Igreja na França. Durante as prolongadas querelas entre
os dois, Filipe havia suspendido o envio de dinheiro de Roma
para a França e intimidado boa parte dos bispos franceses. Em
resposta a essas ações, Bonifácio repreendeu o rei repetidamente
e declarou que sua autoridade papal se sobrepunha à de reis
e imperadores. Em 1303, quando Bonifácio se preparava para
excomungar o rei francês, uma força militar enviada por Filipe
atacou e aprisionou o papa, que morreu logo depois.
Encontrando em Clemente V um papa mais flexível, Filipe
instigou a convocação do Concilio de Vienne, que desde o
OS CONCILIOS DA
IDADE MÉDIA

seu com eço esteve estritamente vinculado à intriga política.


Inicialmente, Clem ente convocou apenas alguns bispos da
Igreja ao invés de convocar a todos; a seguir, o próprio Filipe se
encarregou de revisar a lista e de eliminar mais alguns nomes.
No fim, menos de duzentos bispos acabaram comparecendo a
esse concilio, que raramente se reunia em assembléia geral e
que nunca chegou a se reunir para discussão. A íntegra de suas
sessões resumia-se à aprovação pelos delegados de propostas
que já haviam sido previamente decididas pelo papa e pelos
cardeais e, mesmo assim, sempre sob a ameaça de Filipe jul­
gar Bonifácio por heresia se o que fosse decidido contrariasse
a vontade do rei.
Para Filipe, a principal questão era a da extinção da Ordem
dos Cavaleiros do Templo. Os templários, como os seus membros
eram conhecidos, eram monges-cavaleiros cuja ordem havia
sido criada há duzentos anos por um código de autoria de São
Bernardo de Clairvaux e se dedicavam à proteção da Terra San­
ta e dos peregrinos. Além de possuir um exército estacionado
na Terra Santa, os templários eram grandes proprietários de
terras na Europa, cujo rendimento ajudava a financiar as suas
ações militares no ultramar. No entanto, desde 1291, quando
os muçulmanos conquistaram o último bastião europeu signi­
ficativo na Terra Santa e exterminaram um grande número de
templários, a ordem passou a enfrentar dificuldades e deixou
de renovar o seu mandato. Porém, os templários continuavam
a agir como banqueiros e administradores de propriedades, que
muitas vezes se situavam em lugares luxuosos da Europa. Esses
fatos fizeram deles um alvo convidativo para Filipe, que estava
profundamente endividado.
Aproveitando-se dos seus recentes reveses, ocorridos nos
anos imediatamente antes e durante o Concilio de Vienne,
Filipe orquestrou uma investigação francesa sobre os supostos
negócios escusos dos templários e sobre as suas alegadas ações
heréticas e imorais. Alguns cavaleiros confessaram haver parti-
D ISPU TA S DE PO D ER:
cipado de um ritual de iniciação que incluía repudiar Jesus e ?
cuspir sobre a cruz. Eles também foram acusados de idolatria g
e de práticas sexuais escandalosas. No entanto, os registros do |
Concilio de Vienne não refletem toda a verdade dos fatos. Inves- 3
tigações levadas a cabo em outros países inocentaram a ordem |
da maioria das acusações e os cavaleiros que haviam confessado g
os seus crimes mais tarde se retrataram, dizendo que haviam $
sido coagidos a confessá-los sob tortura. No entanto, segundo os °
documentos oficiais, o concilio havia seguido rigorosamente o §
devido processo legal e não havia empregado força física contra õ
os investigados nem os ameaçado, e os cavaleiros que haviam <
confessado os seus crimes mantiveram as suas declarações. |
Filipe conseguira derrotar os templários no que dizia respeito 5
ao Concilio de Vienne, mas sua vitória não havia sido completa.
Clemente V dissolveu a ordem, e alguns dos cavaleiros, incluindo -
0 seu grão-mestre, foram queimados na fogueira. Clemente era
simplesmente fraco demais para poder evitar aquilo que a partir
de então ficou conhecido na história como o aprisionamento
dos membros da ordem sob falsas acusações. No entanto, em­
bora 0 papa tivesse extinguido a ordem dos templários, ele não
considerou os seus membros culpados ou inocentes da acusação
de heresia. Além disso, Clemente não entregou o dinheiro e as
propriedades que haviam pertencido aos templários a Filipe,
como claramente desejava o rei, mas doou todos os seus bens
materiais a uma outra ordem, a dos hospitalários, e instituiu
algumas leis para regulamentar a supervisão desses bens. Por
muitos anos, Filipe procurou obter algum tipo de controle sobre
essas propriedades e chegou a desviar algum dinheiro para o
seu próprio tesouro.
Talvez o elemento mais perturbador de todo esse episódio
dos templários no Concilio de Vienne tenha sido a descrição que
Clemente fez de Filipe. Clemente não chegou a julgar Bonifácio
por heresia, conforme o rei esperava, mas, surpreendentemente,
o então papa teceu uma série de elogios ao inimigo de seu ante­
cessor. Clemente referiu-se a ele como “0 nosso filho dileto em
Cristo, Filipe, o ilustre Rei da França” e louvou o seu zelo pela 91
Igreja, acrescentando que “ele não agia desse modo movido pela
ganância e não tinha a intenção de reclamar ou de se apropriar
OS CONCÍLIOS DA
IDADE MÉDIA

de qualquer coisa que pertencesse aos templários”.


Embora o episódio dos templários não tivesse sido a única
questão a ser abordada pelo Concilio de Vienne, certamente
foi a mais notória. O concilio também abordou a questão das
heresias que seriam supostamente praticadas por outros grupos
e estabeleceu procedimentos para a inquisição e a punição des­
ses heréticos. Essas medidas indicam que a heresia continuava
a representar um problema para a Igreja, apesar de todas as
normas instituídas pelos concílios de Latrão para a investigação
dos dissidentes.
Especificamente, o Concilio de Vienne colocou dois grupos,
as beguinas e os begardos, fora da lei, especialmente na Alemanha.
Esses grupos consistiam em uma multidão flutuante de fiéis,
muitos dos quais eram mulheres, que não se enquadravam em
nenhum grupo estabelecido de fiéis cristãos. Aparentemente,
dedicavam-se com mais intensidade às práticas religiosas do
que os outros leigos, sem no entanto terem feito votos ou serem
membros declarados de alguma ordem religiosa preexistente de
monges, frades ou de monjas, e nem desejavam fundar uma
ordem. Alguns begardos e beguinas eram refratários a alguns
sacramentos e a algumas estruturas hierárquicas da Igreja, mas
os cânones instituídos pelo Concilio de Vienne descreviam
esses movimentos como muito mais organizados e sistemáticos
do que realmente eram, o que talvez tenha facilitado a sua
condenação em massa.
Do mesmo modo que havia sido feito pelo C oncilio de
Latrão IV, o Concilio de Vienne designava especificamente
aos bispos a tarefa de descobrir e combater os heréticos em suas
respectivas dioceses. O concilio fazia um alerta contra os excessos
inquisitoriais, mas determinava aos bispos que investigassem os
acusados com vigor, diligência e imparcialidade.

Se deixarem de investigar alguém por ódio, favorecimento,


afeição, dinheiro ou vantagens temporais, agindo contra o seu
D ISPU TA S DE PO D ER:
dever, contra a justiça e a sua própria consciência, o bispo ou o ?
superior deverá ser suspenso por três anos. o

Ainda resta discutir uma última questão importante. Os 3


procedimentos instituídos pelo Concilio de Vienne incluíam |
um cânone que determinava a melhoria do ensino de idiomas g
com o objetivo de evangelizar os não cristãos. O papa ordenava ê
que se nomeassem eruditos para onde quer que a errante Cúria °
Romana se mudasse e para cada um dos grandes centros uni- §
versitários, que incluíam Paris, Oxford, Bolonha e Salamanca. S
Especificamente, ele expressava o seu desejo de que os idiomas <
hebraico, árabe e caldeu (que provavelmente se referia a todas |
as demais línguas semíticas, inclusive o aramaico) fossem ensi- 5
nados, e de que as pessoas se tornassem fluentes nesses idiomas. £
E esse desejo não era de modo algum vago e de improviso, pois -
Clemente determinou que houvesse dois professores de cada
idioma em cada uma dessas localidades para traduzir as obras
escritas nesses idiomas para o latim. Em um concilio que se tornou
mais conhecido pela sua capitulação ao poder real e pela timidez
das posições adotadas pelo papa de modo geral, esse cânone
ressalta o interesse renovado dos humanistas e dos acadêmicos
pela literatura bíblica, que iria promover uma revitalização dos
estudos das escrituras ao longo dos próximos séculos.

93
6
A SUPERVISÃO DA IGREJA
NA IDADE MÉDIA:
OS CÂ NO NES DISCIPLINARES

D o mesmo modo que os concílios gerais do primeiro mi­


lênio, os sete concílios gerais da Idade Média também
abordaram os aspectos relativos à organização e à administração
da Igreja enquanto instituição. Esses cânones faziam parte de
um conjunto de questões específicas que cada um dos concílios
da Idade Média procurava abordar ao mesmo tempo em que se
dedicavam de modo intermitente a questões referentes às cruza­
das, às heresias, aos judeus e aos muçulmanos e aos conclaves
papais. Os cânones se dedicavam primordialmente à educação,
ao comportamento do clero, aos bispos e à independência da
Igreja, e também passaram a abordar questões como as da usura,
do matrimônio e a da violência social, o que constituía uma
inovação para os concílios gerais.
95
Mais uma vez, seguiu-se um padrão familiar: os concílios
OS CONCÍLIOS DA

repetiam-se a si mesmos, o que indicava que alguns cristãos


IDADE MÉDIA

continuavam a desobedecer aos regulamentos que haviam sido


instituídos anteriormente. Os cânones tinham de ser reiterados
para que o clero e os leigos não deixassem de seguir as suas
regras. Além disso, para demonstrar o quanto esses cânones se
baseavam em uma longa tradição histórica, em algumas ocasiões
os concílios medievais observavam que estavam simplesmente
reafirmando as exigências que haviam sido estabelecidas por
concílios gerais anteriores, especialmente durante o primeiro
milênio.

O CLERO

Os concílios da Idade Média queriam garantir que a Igreja


nomeasse bispos e ordenasse sacerdotes que haviam tido uma
form ação adequada, que tivessem idoneidade moral e que
evitassem o apego às coisas materiais. O Concilio de Latrão
III verbalizou com riqueza de detalhes as exigências mínimas
para que um homem pudesse ser sagrado bispo: ele deveria ter
no mínimo trinta anos de idade, ser filho legítimo e ser “digno
por seu exemplo de vida e por sua formação” . Os sacerdotes
deveriam ter no mínimo 25 anos de idade e obter aprovação
por seu comportamento e por seu conhecimento. Um concilio
posterior ao de Latrão III era ainda mais específico e fazia menção
às normas instituídas pelos concílios de Calcedônia, de Niceia II
e de Constantinopla IV, que proibiam os clérigos de administrar
propriedades porque essa atividade os macularia com o pecado
do mundanismo. Um clérigo não deveria se envolver em proces­
sos legais seculares “com base no fato de que, ao negligenciar
os seus deveres como clérigo, ele mergulharia nas ondas deste
mundo sob o pretexto de agradar aos seus príncipes”.
Os representantes da Igreja estavam cientes de que alguns
bispos não estavam aplicando as normas instituídas pelo Con-
96 cílio de Latrão III. Um século depois, o Concilio de Lyon II
A SU PER VISÃ O DA IG R E )A NA ID A D E M ÉD IA :
O S CÂNONES DISCIPLINARES
observava que muitos ainda ignoravam a exigência anterior de
que os párocos deveríam ter no mínimo 25 anos de idade e ter
sido aprovados por seu conhecimento e por sua moralidade.

Tendo em vista que muitos deixam de observar esse cânone,


desejam o s que a sua n egligência seja san ada pela observância
da lei. Portanto, decretam os que ninguém poderá ser nom eado
pároco a m enos que possua a form ação, a m oralidade e a idade
adequadas. Todas as nom eações daqueles que são m enores de 25
anos perderão toda a sua validade. Aquele que for nomeado pároco
deve residir na igreja de sua paróquia para que possa cuidar do
rebanho que lhe foi confiado de m odo m ais diligente.

O Concilio de Vienne encorajava os clérigos a se esforçar


em levar uma vida de santidade, mas se queixava daqueles que
rezavam depressa dem ais, que pulavam alguns trechos das
orações e que tagarelavam ao mesmo tempo em que rezavam.
Alguns se atrasavam para os serviços religiosos, se retiravam cedo
demais e chegavam até a trazer consigo os seus cães de caça e
os seus pássaros quando entravam 11a igreja.
Para melhorar 0 treinamento que era dado aos sacerdotes e,
consequentemente, o serviço religioso que era ministrado por
eles, os concílios de Latrão III e IV promulgaram uma série de
leis referentes à formação dos clérigos. O Concilio de Latrão III
exigia que cada catedral reservasse uma quantia para pagar um
professor que dava aulas tanto aos clérigos quanto aos pobres. O
Concilio de Latrão IV, depois de repetir palavra por palavra do
cânone do Concilio de Latrão III referente à educação, obser­
vava que “esse decreto, no entanto, tem sido pouco observado
em um grande número de igrejas”. O Concilio de Latrão IV
aumentou 0 alcance do cânone instituído pelo concilio anterior
ao estipular que todas as catedrais, além das igrejas que tinham
recursos para tanto, deveriam reservar uma verba para um pro­
fessor que iria ensinar gramática. Além disso, as maiores igrejas
deveriam contratar um segundo professor que fosse versado em
teologia prática e nas escrituras. Por três vezes, o Concilio de 97
Latrão IV ordenava aos bispos dar instrução e ordenar apenas
os candidatos que fossem qualificados para o sacerdócio, “pois
OS CONCÍUOS DA
IDADE MÉDIA

é preferível ter poucos ministros adequados do que uma grande


quantidade de ministros inadequados para exercer sua função,
especialmente no caso da ordenação dos sacerdotes”.

M U N D A N ISM O

Os concílios da Idade Média tinham necessidade de abordar


repetidamente a questão do comportamento dos clérigos, que,
ao que tudo indica, não havia melhorado muito, apesar de todas
as queixas que foram proferidas pelos concílios do primeiro mi­
lênio. Mais uma vez, os concílios tiveram de se concentrar na
trindade profana formada pela simonia, pelo pluralismo e pelo
absenteísmo, especialmente porque essas transgressões faziam
com que os sacerdotes deixassem de cumprir os seus deveres
pastorais. Os concílios de Latrão I, II e III lamentaram a per­
sistência desses problemas e os condenaram repetidamente. O
Concilio de Latrão IV mencionava uma norma instituída pelo
Concilio de Latrão III que combatia o pluralismo, mas admitia
que “nada ou muito pouco resultou desse estatuto”.
Os quatro concílios de Latrão renovaram o ataque ao con­
cubinato e ao casamento dos clérigos. O Concilio de Latrão II
intensificou esse ataque ao determinar que os leigos evitassem
frequentar missas ministradas por sacerdotes que viviam com
mulheres, ordenando a separação do casal e declarando que
eles não eram verdadeiramente casados (o cânone seguinte
estendia essa cláusula antimatrimonial às freiras que contraíam
matrimônio). Em seguida, o Concilio de Latrão II abordava uma
situação indesejável que era consequência desses casamentos:
algumas vezes, os filhos dos sacerdotes casados herdavam as suas
paróquias, como se elas fossem um negócio familiar. Para evitar
esse problema, o Concilio de Latrão II proibiu que os direitos
hereditários incluíssem as edificações e os cargos da Igreja. Se
o filho de um sacerdote desejasse servir ao altar, ele deveria
ingressar em um monastério.
A SU P ER V ISÃ O DA IG R E )A N A ID A D E M ÉD IA :
Os CÂNONES
Os concílios também queriam se assegurar de que os sacer­
dotes se preocupassem com as aparências e desempenhassem
as suas funções a contento. O Concilio de Vienne explicava

DISCIPLINARES
que “a aparência exterior do clero deve ser um reflexo de sua
integridade interior” . O C oncilio de Latrão II determinava
qne os sacerdotes deveríam se comportar de modo apropriado,
aparentar santidade e agir com santidade e evitar os excessos
em suas vestimentas. O Concilio de Latrão IV foi ainda mais
específico, ao determinar que os trajes exteriores dos clérigos
deveríam estar fechados e não poderíam ser nem mnito longos
nem muito curtos; suas roupas não deveríam ser vermelhas nem
verdes e as suas mangas não deveríam ser compridas; os seus
sapatos não deveríam ter bordados nem bico fino e as rédeas,
selas, esporas, fivelas e cintos que eles usavam não deveríam
apresentar adornos. O Concilio de Vienne ameaçava os clérigos
com a perda de seus rendimentos em até um ano se eles usassem
roupas listradas ou botas quadriculadas, vermelhas ou verdes
em público e também proibia que eles usassem “uma beca ou
um tabardo [uma túnica sem mangas] que fossem forrados de
peles até as suas bordas e que fossem tão curtas que as roupas
de baixo poderíam ser facilmente vistas”.
Com frequência, os concílios procuravam regulamentar
o com portam ento dos clérigos tanto dentro quanto fora da
Igreja. O Concilio de Latrão II impedia os clérigos de exerce­
rem a medicina e de atuarem como advogados na esfera civil.
O Concilio de Latrão IV proibia o clero de praticar qualquer
atividade que implicasse no derramamento de sangue, como
cirurgias, duelos, combates, ordálios, além de impedir que
ordenassem punições físicas ou estivessem presentes durante a
sua execução. Os clérigos também não poderíam participar de
competições que envolvessem o consumo de bebidas alcoólicas
nem caçar e deveríam evitar teatros, tavernas e casas de jogo.
O Concilio de Vienne acrescentava a essa lista a proibição de
exercer a atividade de açougueiro, de administrar albergues e
de participar de qualquer tipo de negócio ou comércio secular,
além da proibição de portar armas.
MONGES, FREIRAS E FRADES
OS CONCÍLIOS DA
IDADE MÉDIA

Os concílios dedicaram uma atenção especial aos monges,


às freiras e aos frades durante a explosão do número de ordens
religiosas na Idade Média. Os concílios de Latrão I e IV reitera­
vam que os monges deveriam ser supervisionados pelos bispos:
o Concilio de Latrão I exigia que os monges vivessem em um
claustro e o Concilio de Latrão IV lembrava às ordens religiosas
que elas deveriam nomear supervisores para visitar monastérios
masculinos e femininos, investigar se havia irregularidades e
efetuar as modificações que se fizessem necessárias. Os próprios
monges deveriam se reunir em um encontro geral em cada pro­
víncia ou em cada reino uma vez a cada três anos. O Concilio
de Latrão III proibia os monges e as freiras de cantar quando
estivessem fazendo as suas orações diárias em conjunto.
O Concilio de Vienne dedicou um longo cânone aos monges,
exigindo modéstia em suas vestimentas e em seu estilo de vida
em uma linguagem muito semelhante à que fora empregada
nos regulamentos para sacerdotes instituídos pelos concílios
de Latrão IV e de Vienne. Os monges deveriam confessar os
seus pecados e comungar pelo menos uma vez por mês. Esse
cânone também determinava que um dos monges explicasse
na língua local todos os aspectos dos regulamentos da ordem
aos outros monges, e, se fosse possível, um professor deveria ser
contratado para ministrar tanto o ensino básico quanto o ensi­
no mais avançado. O cânone seguinte do Concilio de Vienne
visava combater os problemas que ocorriam especificamente
nos conventos e exigia que o bispo responsável visitasse cada
um deles uma vez por ano.

O s supervisores devem ficar bem atentos para que as freiras


(para o nosso pesar, algum as delas seriam transgressoras, segundo
rumores) não usem roupas de seda nem qualquer tipo de pele ou
sandálias, não exibam os seus longos cabelos em penteados em forma
de chifre, não usem capas listradas e multicoloridas, não frequentem
bailes nem banquetes oferecidos pelos leigos, não andem pelas ruas
A SU P ER V ISÃ O DA IG R EJA NA ID A D E M ÉD IA :
OS CÂNONES
e pelas cidades durante o dia e durante a noite e não levem uma
vida luxuosa em qualquer aspecto.

DISCIPLINARES
O Concilio de Latrão IV havia proibido a criação de novas
ordens religiosas e determinava que os interessados ingressassem
naquelas que já existiam e que já haviam obtido a aprovação da
Igreja. O Concilio de Lyon II repetia essa norma, mas reconhecia
que ela vinha sendo ignorada por muitos grupos sem filiação
que agiam ao seu bel-prazer. Esse concilio dava um tratamento
especial às ordens dos franciscanos e dos dominicanos, embora
elas só houvessem obtido o reconhecimento oficial da Igreja
depois da proibição instituída em 1215 pelo Concilio de Latrão
IV, pois “sua aprovação é testemunho dos evidentes benefícios
que elas têm a oferecer à Igreja Universal”.
No entanto, devido à tensão persistente que havia entre os
sacerdotes diocesanos e os frades mendicantes durante a Idade
Média, esse concilio determinava que os frades somente poderíam
atuar se seguissem certos parâmetros. Os frades podiam pregar em
suas próprias igrejas, mas não nas igrejas das paróquias, a menos
que os párocos os tivessem convidado; os frades foram impedidos
de pregar contra o bispo e de tentar persuadir a congregação
a fazer parte de uma paróquia mendicante. Os frades também
eram obrigados a pedir permissão do pároco para administrar
extrema-unções, rezar missas ou testemunhar matrimônios em
sua igreja. O bispo deveria conceder aos mendicantes uma
permissão específica para que estes pudessem ouvir confissões
dentro de sua jurisdição.

BISPOS

Os bispos também não ficaram de fora das reformas exigidas


pelos concílios. O Concilio de Latrão IV repreendia os digni­
tários da Igreja que participassem de festas e que tagarelassem
a altas horas da noite (“para não mencionar outras possíveis
atividades”), fazendo com que na manhã seguinte os seus 101
olhos ficassem injetados. Alguns celebravam missas apenas
quatro vezes ao mês e outros não chegavam nem m esm o a
OS CONCÍLIOS DA
IDADE MÉDIA

comparecer a elas. Os concílios de Latrão III e IV se queixavam


de que os prelados recorriam em excesso e incorretamente à
pena de excomunhão. O Concilio de Latrão III lembrava que
eles não deveríam aceitar qualquer quantia para ministrar os
sacramentos ou prometer nomear alguém para determinado
cargo se o ocupante deste último não tivesse se retirado ou
morrido. O Concilio de Lyon II repetia uma norma instituída
anteriormente contra aqueles que recebiam uma quantia de
alguém que quisesse evitar a visita de inspeção dos bispos. Para
que toda a intensidade dessa proibição fosse sentida, o concilio
determinava que o ofensor teria de pagar o dobro do valor da
propina que ele havia embolsado.
O Concilio de Vienne deu prosseguimento à investida contra
os abusos episcopais, sem dúvida porque cabia ao próprio bispo
promover mudanças positivas e dar o exemplo para os clérigos
e para os leigos que se encontrassem sob a sua autoridade. O
Concilio de Vienne criticava os prelados que exigiam extrava­
gâncias e dinheiro durante suas visitas aos monastérios (ou para
evitar essas visitas) e que costumavam tratar as ordens religiosas
com rigor excessivo ao destruir suas propriedades, ignorar os seus
direitos e nomear os seus parentes para a ordem. Por outro lado,
em duas ocasiões esse mesmo concilio ofereceu ajuda aos bispos
para que estes pudessem combater os seus inimigos.

A IN D E P E N D Ê N C IA D A IG R E JA

Os concílios também procuraram proteger a independên­


cia da Igreja por meio de seus decretos disciplinares. Uma das
questões dizia respeito às nomeações de altos funcionários da
Igreja e às cerimônias de investidura que as simbolizavam. O
Concilio de Latrão I afirmava que os bispos tinham direito de
nomear os seus subordinados em sua própria diocese. Os con­
cílios de Latrão II e III também negavam aos leigos e às ordens
A SU P ER V ISÃ O DA IG R EJA NA ID A D E M ÉD IA :
O S CÂNONES DISCIPLINARES
religiosas o direito de fazer ou de receber essas indicações ou, de
modo geral, o direito de desconsiderar a autoridade dos bispos.
O Concilio de Latrão IV declarava inválidas as eleições que
“haviam sofrido algum tipo de abuso por parte do poder secular”
e expulsava aquele que havia sido nomeado pelo poder secular.
Todos os quatro concílios de Latrão mais o Concilio de Lyon II
promulgaram leis para combater um problema semelhante: o
do controle das propriedades e do dinheiro pertencentes à Igreja
pelos leigos. O Concilio de Latrão IV descrevia esse problema
de um modo bastante direto, ao declarar qne “os leigos, não
importa o quão devotos eles sejam, não têm o direito de dispor
dos bens da Igreja”.

L E IG O S

Embora os concílios gerais da Idade Média tivessem se con­


centrado principalmente nos problemas relativos à conduta do
clero e nos assuntos internos da Igreja, um grande número de
medidas também afetou os leigos que se encontravam em uma
posição social inferior à dos aristocratas. Uma das medidas se
referia à usura, em que aquele que emprestava o dinheiro cobrava
juros sobre o empréstimo, que muitas vezes eram exorbitantes.
Os cristãos eram proibidos de ganhar dinheiro sobre o dinheiro.
O Concilio de Latrão III proibia os cristãos de praticar a usura e
acrescentava uma punição bastante rigorosa para os “usurários
notórios”: eles não poderíam comungar nem poderíam ter um
enterro cristão. O Concilio de Lyon II endossava esta norma
do Concilio de Latrão III em termos incisivos:

Com o desejo de se fechar completamente o abismo da usura,


que devora alm as e engole propriedades, determ inam os, sob a
am eaça da m aldição divina, que as leis instituídas pelo C oncilio
de Latrão contra os usurários sejam integralmente observadas. [...]
Quanto mais inconveniente for para os usurários emprestarem di­
nheiro, m ais a sua liberdade de praticar a usura será restringida.
Para que as coisas se tornassem ainda mais inconvenientes
OS CONCÍLIOS DA

para os usurários, o Concilio de Lyon II proibia que se alugasse


IDADE MÉDIA

casas a eles. Esse mesmo concilio negava aos usurários cristãos


o direito de um enterro na igreja, declarava inválidos os seus
testamentos e determinava qne os clérigos não poderíam ouvir
suas confissões nem absolvê-los de seus pecados, a menos que
eles restituíssem o dinheiro que haviam adquirido pela usura ou
tomassem providências para que isso fosse feito. O Concilio de
Vienne determinava que os bispos e os inquisidores deveríam
perseguir e punir como herético qualquer indivíduo que negasse
que a usura era pecaminosa.
As normas medievais instituídas contra o empréstimo de
dinheiro a juros pelos cristãos muitas vezes causavam ainda
mais problemas. Como os judeus podiam exercer apenas certo
número de profissões, eles tinham de dar o melhor de si nessas
atividades que lhes eram franqueadas para poder sobreviver
econom icam ente. C om o os judeus podiam cobrar juros de
empréstimos, os cristãos precisavam recorrer a eles para conse­
guir dinheiro emprestado. Em uma linguagem que soa ofensiva
para os ouvidos modernos, o Concilio de Latrão IV descrevia
a situação que a Igreja, pelo menos em parte, havia imposto
aos judeus:

Q uanto mais a religião cristã restringe a prática da usura, mais


aum enta a perfídia dos judeus em relação a essa atividade, fazendo
com que eles consigam exaurir os recursos dos cristãos em um
curto período de tem po. Portanto, para realizar o nosso desejo de
que os cristãos não sejam m ais oprimidos pelos judeus de m odo
tão selvagem em relação a essa questão, ordenam os por m eio de
um decreto deste sínodo que, se os judeus, a partir de agora e sob
qualquer pretexto, extorquirem juros opressivos e excessivos dos
cristãos, eles não poderão mais ter contato com qualquer cristão até
que tenham prestado as devidas contas por haver cobrado encargos
tão im oderados. Se for necessário, os cristãos tam bém devem ser
com pelidos, por m eio de um a censura eclesiástica e sem possibi­
lidade de apelação, a se abster de com erciar com os judeus.
A SU P ER V ISÃ O D A IG R EJA N A ID A D E M ÉD IA :
O S CÂNONES DISCIPLINARES
As relações financeiras entre os cristãos e os judeus, que ti­
veram de se pautar por esses princípios, naturalmente causaram
conflitos e contribuíram para a formação de um tipo de anti-
semitismo que, muitos séculos depois, seria retratado na peça O
Mercador de Veneza, de Shakespeare, especialmente por meio do
personagem Shylock.

CASAM ENTOS

Uma outra questão que afetou diretamente aos leigos dizia


respeito ao casamento e à consangiíinidade. Se duas pessoas que
fossem parentes de sangue quisessem se casar, quando é que o
seu parentesco seria considerado próximo demais para impedir
o casamento? Os concílios de Latrão I e II declaravam incestuo­
so o casamento entre parentes, dizendo que tanto a lei divina
quanto a lei secular proibiam essa prática. Eles também obser­
vavam que algumas leis seculares negavam o direito de herdar
àqueles que comprovadamente haviam se casado com os seus
próprios parentes. Nenhum desses dois concílios chegava a defi­
nir a partir de que ponto o “grau” de consanguinidade entre duas
pessoas constituía um impedimento para o seu casamento.
Ao deixar de especificar qual seria esse grau de parentesco, a
Igreja se viu na obrigação de lidar com o problema. A sociedade
medieval era praticamente estática, pois a maioria das pessoas
jamais havia viajado além de uma boa caminhada de distância de
sua casa durante a Idade Média. Uma porcentagem gigantesca
da população europeia vivia e morria na mesma localidade,
que era um pedaço relativamente isolado do interior de seu
país. C om o a maioria das pessoas na Idade Média passava a
sua vida inteira em um mundo fechado, mais cedo ou mais
tarde o número de candidatos ao matrimônio acabaria desapa­
recendo caso os aldeãos que tinham parentesco entre si, ainda
que remoto, não pudessem se casar. Caso eles não pudessem
mesmo se casar, as suas comunidades (e a própria Igreja) iriam
se extinguir rapidamente, pois os cristãos adultos não seriam
OS CONCÍLIOS DA

mais capazes de gerar crianças cristãs.


IDADE MÉDIA

No Concilio de Latrão IV, o papa reconhecia essas difi­


culdades e acabou eliminando as restrições. Em um exemplo
interessante do exercício da autoridade papal, Inocêncio III
revogou todos os cânones instituídos pelos concílios gerais de
Latrão I e II que continham essas restrições, mas teve o cuidado
de dizer que os havia revogado “com a aprovação desse Santo
Concilio [de Latrão IV]”. A partir de então, ninguém poderia
mais se casar com um parente consanguíneo até o quarto grau,
o que normalmente significava que era proibido o casamento
entre pessoas que tivessem um parentesco mais próximo do que
o de primos em segundo grau.

O C O M B A T E À V IO L Ê N C IA

Os três primeiros concílios de Latrão promulgaram repetida­


mente leis que restringiam a violência que costumava afetar as
pessoas que eram mais vulneráveis na Europa. Podemos agrupar
os primeiros cânones no que ficou conhecido como a Paz ou a
Trégua de Deus, que era um conjunto de orientações elaboradas
pelos líderes da Igreja com o objetivo de suprimir os bandos de
mercenários errantes que, de tempos em tempos, saqueavam os
campos da Europa, ameaçando famílias e propriedades rurais de
quem ou de onde eles esperavam obter alimentos e dinheiro. Um
exemplo da Paz de Deus era a declaração de que os combates só
poderíam ocorrer nas segundas, terças e quartas-feiras durante o
ano, e de modo algum durante os períodos do Advento, Natal
e Epifania e da Quaresma, Páscoa e Pentecostes.
Um segundo grupo de cânones deplorava especificamente a
violência que era cometida contra cristãos inocentes. O Concilio
de Latrão II declarava que todos os sacerdotes, clérigos, monges,
peregrinos, mercadores e camponeses, juntamente com suas
reses, poderíam viajar e trabalhar sem ser importunados (os
106 clérigos e os peregrinos não podiam portar armas, nem mesmo
A SU PER VISÃ O DA IG R EJA NA ID A D E M ÉD IA :
OS CÁNONfcS
para a sua própria defesa, embora os últimos costumassem pregar
pontas de metal afiadas em seus cajados de madeira utilizados
para caminhar). A pena para quem atacasse qualquer clérigo

DISCIlM.INARliS
ou monge ou violasse o princípio do santuário contra ataques
de leigos, que era aplicado àqueles que procuravam refúgio em
uma igreja ou em um cemitério era a de excomunhão.
Dois outros tipos de cânones que visavam combater a vio­
lência também são dignos de menção. O primeiro grupo de
cânones com batia as justas e os torneios, presumivelmente
porque desviavam dinheiro, material e homens que deveriam
ser empregados nas cruzadas. Para que esses cânones fossem
obedecidos, os concílios determinavam que, se um cavaleiro
morresse durante um desses festivais, ele perdería o direito a um
enterro na igreja. Um outro cânone, instituído pelo Concilio
de Latrão II, empregava palavras bastante incisivas contra os
incendiários:

C om a autoridade de Deus e dos abençoados apóstolos Pedro


e Paulo, declaram os detestar com pletam ente e proibim os o mais
apavorante, destruidor e m alévolo de todos os crim es, que é o
de provocar incêndio, pois essa calam id ad e perniciosa e hostil
ultrapassa qualquer outro tipo de destruição.

Os incendiários corriam o risco de ser excomungados e de


perder o direito de ser enterrados na igreja. Os incendiários
arrependidos deveriam pagar pelos danos que haviam causado
e depois passar um ano de peregrinação e de serviço na Terra
Santa ou na Espanha. Em se tratando do combate à violên­
cia, os concílios gerais da Idade Média agiam com bastante
severidade.

B ibliografia

L Y N C H , Joseph H. The Medieval Church: A brief history. Londres,


Longm an, 1992. 107
MORRIS, Colin. The papal monarchy: The Western Church from
1050 to 1250. Oxford, Clarendon, 1989.
OS CONCÍLIOS DA
IDADE MÉDIA

PIXTON, Paul B. The germart episcopacy and the implementation of


the decrees of the Fourth Lateran Council, 1216-1245: Watchmen
on the tower. Leiden, E. J. Brill, 1995.

108
P A R T E TRF. S

OS CONCÍLIOS DA
ÉPOCA DA REFORMA
iillg lil
A história dos concílios gerais da Igreja passou por uma série de reviravoltas
interessantes no final da Idade Média e, a seguir, por algumas mais no
século XVI, durante o período das disputas entre católicos e protestantes.
Conflitos sobre a autoridade relativa dos papas e dos concílios gerais ocuparam
quase que totalmente os concílios que se reuniram durante o século XV: o de
Constança (1414-1418) e o de Basileia-Ferrara-Florença-Roma (1431-1445).
Os dois concílios gerais seguintes, o de Latrão V (1512-1517) e o de Trento
(c. 1545-1563) não podem ser considerados fora do contexto inédito das
crescentes demandas por reformas. A persistente resistência da hierarquia às
reformas efetivas, que se faziam urgentemente necessárias, teve como con­
sequência os desafios lançados contra a Igreja católica por Martinho Lutero,
João Calvino e outros. Foi em grande medida a esses desafios que o grande
concilio reformador de Trento procurou responder. Na história dos concílios
gerais, esses quatro concílios merecem um capítulo à parte.
7
C O N C ÍL IO S VERSUS PAPAS:
OS CONCÍLIOS DE CONSTANÇA (1414*1418) E PE
B asileia - F errara- F lorença - R oma (1431*1445)

impossível compreender os concílios de Constança e de


Basileia-Ferrara-Florença-Roma fora do contexto do Grande
Cisma Ocidental (1378-1417). Tão importante quanto este cis­
ma foi o desafio de um princípio bastante abrangente chamado
conciliarismo que, em maior ou menor grau, sustentava que
um concilio geral tinha mais poder do que um papa, ou, no
mínimo, considerava a autoridade de um concilio geral igual
à do papado. “Qual é o poder e posição de um concilio geral?”
tornou-se a questão-chave no decorrer do século XV. Por essa
razão, devemos aprender um pouco sobre o seu contexto antes
de examinar os concílios de Constança e de Basileia-Ferrara-
Florença-Roma.

113
ÉPOCA DA REFORMA
O G R A N D E C IS M A
O C ID E N T A L E O C O N C IL IA R IS M O
OS CONCÍLIOS DA

O Grande Cism a Ocidental não se refere à divisão entre


as Igrejas oriental (grega) e ocidental (latina), mas sim a um
período de quarenta anos da Igreja ocidental quando dois e,
pouco depois, três papas tiveram simultaneamente a pretensão
de ser o verdadeiro sucessor de Pedro e o legítimo bispo de
Roma. Tudo com eçou em 1378, quando um dividido grupo
de cardeais que havia se encontrado para eleger o novo papa
comprometeram-se a escolher um candidato fora do conclave.
Ele adotou o nome Urbano VI e passou a ser conhecido, as­
sim como os seus sucessores, como o papa “romano” . Pouco
tempo depois, Urbano VI com eçou a intimidar os cardeais
com tamanha intensidade que estes acabaram declarando que
a sua eleição havia sido inválida, baseando-se no fato de que
haviam votado sob ameaça da irrupção de um tumulto entre
a multidão que aguardava fora do conclave. Esses cardeais
desertaram e organizaram uma nova eleição no final de 1378.
O papa que escolheram, Clem ente VII, juntamente com o
seu sucessor, Bento XIII, passaram a ser conhecidos como os
papas “avinhenses”, devido a residirem quase sempre no sul
da França, que já havia sediado o papado durante boa parte do
século XIV. O papa romano e o avinhense excomungaram-se
reciprocamente e cada um deles nomeou o seu próprio colégio
de cardeais, fazendo com que, além de dois papas diferentes,
também passassem a coexistir dois pontificados rivais, cada um
com uma cúria e um colégio de cardeais. A Europa passou a
dividir-se entre países alinhados a um ou outro papa.
Quase na mesma época em que ocorreu o cisma, uma dis­
cussão sobre a autoridade conciliar, que já havia começado a
ser esboçada ao longo do século XIV, adquiria maior relevância,
especialmente no início do século XV e graças à persistência
do cisma. No entanto, o conciliarismo não era um conceito
monolítico e indiscutível. Havia um a série de gradações, e
algumas delas poderíam ser classificadas como mais ou me-
C O N C ÍL IO S V ER SU S PAPAS:
nos “constitucionalistas” ou “dem ocráticas” . A maioria dos 9
conciliaristas defendia em algiim grau a ideia fundamental de £
que a Igreja era uma corporação. Embora a Igreja tivesse um g
líder na pessoa do papa, considerado o vigário de Cristo, todas 3
as diferentes versões do conciliarismo compartilhavam a ideia g
de que todos aqueles que fossem afetados por determinada lei J
ou por determinada ação tinham o direito de dar a sua opinião o
sobre elas, algumas vezes pessoalmente ou, de um modo mais ?
prático, por meio de seus representantes. 5
Os conciliaristas mais radicais acreditavam que, em última g
análise, a maior autoridade da Igreja era o concilio geral, in- g?
dependentemente do comparecimento do papa a ele. Outros =
conciliaristas sustentavam que havia um tipo de parceria entre o js
papa e o concilio, mas tendiam a dar ao papado apenas o status ?
de uma autoridade delegada ou administrativa. Desse modo, o 5
papa agiria como uma espécie de primeiro ministro nomeado pelo ç
concilio. Portanto, ao delegar autoridade ao papa, o concilio não |
estaria abrindo mão de sua própria soberania, mas sim exercendo ~
o seu poder. E devido ao fato de haver concedido poder a um £
papa, o concilio permanecería mais poderoso do que ele e até £
poderia retirar esse poder, uma ação semelhante ao impedimento
de um presidente ou ao voto de desconfiança proferido contra
um primeiro-ministro, obrigando-o a renunciar.
O colégio de cardeais adotava uma versão mais moderada
do conciliarismo. Muitos cardeais acreditavam que eram parte
indispensável da estrutura do papado, do mesmo modo que a
nobreza ou o senado romanos, com quem o papa dividia a sua
autoridade. Sua adesão automática a essa posição devia-se ao
fato de serem eles os responsáveis pela eleição do papa em um
conclave e ao fato de receberem uma parte dos rendimentos
papais. Alguns cardeais acreditavam que, agindo como os re­
presentantes mais estimados da Igreja, eles poderíam até liderar
um movimento visando à deposição de um papa indigno.
O conciliarismo não foi um movimento que surgiu do nada,
pois algumas tradições da Igreja sustentavam algumas de suas
idéias. Um dos precedentes para o surgimento do conciliarismo 115
ÉPOCA DA REFORMA

era um reflexo da relação que havia entre os abades e os monges


a ele subordinados. Há muito tempo a tradição monástica havia
OS CONCÍLIOS DA

estabelecido que, por ocasião da eleição de um novo abade ou de


uma nova abadessa ou quando houvesse decisões importantes a
serem tomadas, os monges e as monjas deveríam se reunir para
dar o seu voto, pois essas decisões eram do interesse de todos.
Algumas vezes, uma delegação de monjas ou de monges mais
antigos e mais sábios podia até mesmo tomar uma decisão em
nome de toda a comunidade. Esse tipo de precedente adquiriu
grande importância para os cardeais, que também considera­
vam a si mesmos como os membros mais antigos e mais sábios
de todo o corpo da Igreja. Um outro precedente ocorrera nas
universidades medievais, onde cada estudante e cada membro
da faculdade podia votar sobre certos assuntos. Algumas vezes
eles se organizavam por nacionalidade ou por disciplina acadê­
mica para votar em bloco. Alguns conciliaristas encontraram
precedentes ainda mais antigos sustentando a sua posição nas
primeiras comunidades descritas pelos Atos dos Apóstolos, no
“Concilio de Jerusalém” e nos primeiros concílios gerais (espe­
cialmente os de Niceia I, Constantinopla I e, até certo ponto,
no de Éfeso), pois o papel que o papa havia desempenhado
nestes últimos havia sido relativamente menor, para não dizer
inexistente.
Já os papistas, que defendiam a posição inversa no debate
sobre a autoridade papal e conciliar, sustentavam que somente
o papa poderia convocar um concilio geral. Na ausência de um
papa, um concilio geral não poderia ser considerado legítimo,
independentemente do que os seus membros argumentassem a
respeito dessa reunião. Além disso, de acordo com essa posição,
um papa poderia passar todo o seu pontificado sem convocar
um único concilio geral. Caso decidisse convocar um concilio
geral, não haveria a menor dúvida de que caberia ao papa tanto
presidi-lo quanto ratificar as suas decisões para que pudessem
entrar em vigor. No entanto, os papistas tiveram bastante dificul­
dade para defender o seu ponto de vista, tendo em vista que o
116 próprio papado (o avinhense, o romano ou os dois, dependendo
C O N C ÍL IO S V ER SU S PAPAS:
do reconhecimento que cada um recebesse durante o Grande 9
Cisma) se encontrava em disputa. g
A ruptura entre Roma e Avinhão proporcionou aos conci- g
liaristas a oportunidade de colocar as suas idéias em prática. 5
A circunstância extrema e extraordinária do G rande C ism a §
Ocidental pareceu se ajustar exatamente às suas idéias. Tudo |
levava a crer que um concilio geral podia, e agora iria, se reunir ~
sem a presença de um papa. ?
Os cardeais que se encontravam descontentes tanto com 5
a cúria de Roma quanto com a de Avinhão reuniram-se para z
convocar um concilio em Pisa em 1409. Embora não aborde- ?
mos concílios como o de Pisa, que não faz parte da lista dos “21 |
principais” concílios gerais, foi este encontro que finalmente |
acabou levando à resolução conciliar sobre o cisma proferida s
pelo Concilio de Constança. Os cardeais acreditavam que ti- 5
nham a autoridade necessária para convocar o Concilio de Pisa ç
porque o cisma era uma situação de emergência: na qualidade |
de integrantes do papado e como o grupo de pessoas mais sábias ~
da Igreja, eles tinham o dever de proteger a Igreja. Os cardeais £
se reuniram sob a reprovação dos papas de Roma e de Avinhão, t
nenhum dos quais reconheceu o Concilio de Pisa.
O Concilio de Pisa depôs o papa avinhense Bento XIII e
o papa romano Gregório XII sob a acusação de que eles eram
heréticos e cismáticos. O problema em Pisa foi que nem todos
concordaram com a solução para o cisma. Em sua pressa de
eleger um papa que, em teoria, teria a obediência de todos, os
cardeais não se certificaram se todas as partes envolvidas iriam
aceitar o novo papa, independentemente de quem fosse eleito.
Devido à ausência desse acordo prévio em que todos aceitariam
quem quer que fosse eleito, o cisma, que já contava com dois
papados, passou a ter três. Alexandre V, o papa “conciliar” ou
“pisano”, não foi capaz de reagrupar todos os cristãos em torno
de si e de obter o reconhecimento completo, embora tivesse
sido eleito por unanimidade pelos cardeais reunidos no Concilio
de Pisa. Portanto, Alexandre nomeou o seu próprio colégio de
cardeais, fazendo com que houvesse ao todo três papas, três 117
ÉPOCA DA REFORMA

cúrias e três colégios de cardeais. O Concilio de Pisa apenas


piorara a situação.
OS CONCÍLIOS DA

CO N ST A N Ç A

A tarefa de unir novamente a Igreja coube a um outro concilio


geral, o de Constança (1414-1418), que se reuniu alguns anos
depois, mas esse concilio esteve sob a constante e ameaçadora
sombra que o Concilio de Pisa havia conjurado. Se o Concilio
de Constança fosse incapaz de acabar com o cisma, tornado
ainda pior com a presença de três papados ao invés de apenas
dois, a Igreja teria de enfrentar uma divisão que poderia se tornar
permanente. A própria noção de concílios gerais se encontrava
em perigo, pois, se no passado os concílios haviam ajudado a
solucionar problemas, o Concilio de Pisa havia piorado ainda
mais a situação que ele se propusera resolver. Felizmente, o
encontro de Constança reuniu as melhores cabeças da cristan-
dade em um concilio geral que foi, comprovadamente, o mais
impressionante de toda a história. Quase três dúzias de cardeais
que deviam obediência a três papados diferentes se juntaram a
centenas de arcebispos, bispos e abades, bem como a centenas
de teólogos e canonistas. O sentimento geral era de que, se esse
concilio se revelasse incapaz de acabar com o cisma, nada mais
poderia fazê-lo. A Igreja se encontrava em uma das situações
mais perigosas de toda a sua existência.
Desde o começo, o Concilio de Constança teve uma van­
tagem sobre o de Pisa, pois havia sido convocado por um dos
papas rivais, que, com isso, conferiu-lhe alguma legitimidade.
Depois da morte de Alexandre V, João XXIII o sucedeu como
papa conciliar ou pisano (seu nome e a sua numeração —João
XXIII — estão corretos. Com o veremos mais adiante, ele foi
deposto em 1415, fazendo com que o seu nome pudesse ser
adotado novamente por Ângelo Roncalli, quando este foi eleito
papa em 1958). João XXIII convocou o Concilio de Constança
sob pressão, pois, à semelhança dos outros dois papas, temia ser
o

C O N C ÍL IO S V E R S U S PAPAS:
deposto. Mas o Sacro Imperador Romano que havia sido eleito
n
à época, Sigismundo, parecia favorecer João XXIII, de modo
que este poderia contar com a sua reeleição ao papado mesmo
se fosse deposto pelo Concilio de Constança. Com a proteção
n
de Sigismundo, João XXIII, ao que tudo indica, esperava poder O

controlar o Concilio de Constança. Bento XIII, o papa avinhen-


se, nunca chegou a reconhecer o Concilio de Constança e não
participou dele de nenhum modo. Já o papa romano, Gregório £
XII, enviou um par de delegados para representá-lo.
O concilio geral que se reuniu em Constança atribuiu a si
mesmo três tarefas principais: unificar a Igreja sob o comando
de um único papa, reformar a Igreja e combater a heresia. A
questão relativa à unificação da Igreja teve precedência sobre
as outras, mas foi abordada no contexto das principais questões
sobre a autoridade papal e conciliar. João XXIII desencadeou
uma crise quando ficou evidente que o concilio geral poderia
y
não reelegê-lo automaticamente depois que ele havia concordado 7=
em abdicar. Calculando que a validade do concilio seria ques­
tionada se o papa que o havia convocado o abandonasse, João
XXIII partiu de Constança na noite de 20 para 21 de março de
1415. A reação à sua partida, depois de alguma confusão inicial,
não foi exatamente aquela que João XXIII esperava.
Baseando-se em décadas de desdobramentos conciliares, os
membros do Concilio de Constança fizeram valer os seus direitos
ao declarar que o encontro estava sob a sua própria autoridade
e que eles não precisavam da presença de um papa para que
pudessem continuar com as suas deliberações. Jean Gerson,
um teólogo da Universidade de Paris e conciliarista moderado,
eletrizou os membros do concilio ao proferir um sermão baseado
no versículo 35 do capítulo 12 do Evangelho de São João, que
começava de um modo cativante: “Caminha enquanto a luz
estiver contigo, para que a escuridão não consiga te alcançar”.
Jean proferiu este sermão apenas dois dias depois do desapare­
cimento de João XXIII. Suas palavras não apenas acalmaram o
concilio, como também indicavam aos seus membros a direção
que eles deveríam seguir, que era a de justificar cuidadosamente
cada uma de suas ações. 119
ÉPOCA DA REFORMA
Gerson havia elaborado uma teologia dos concílios gerais
baseando-se no Espírito Santo. Por meio dela, ele resumia as
OS CONCÍLIOS DA

principais idéias conciliares. O Concilio havia se reunido legal­


mente e poderia ser validado pela graça do Espírito Santo. E o
concilio geral que verdadeiramente representa a Igreja, pois todos
os cristãos, inclusive o papa, devem obedecer às suas decisões.
De um modo mais diretamente relacionado à questão específica
do cisma, Gerson declarava que a Igreja podia se “divorciar” do
papa. Ele também declarava que um concilio poderia, em certas
circunstâncias, se reunir sem contar com a aprovação papal e
que a situação atual, em que mais de uma pessoa pretendia ser
o verdadeiro papa, era exatamente o tipo de circunstância na
qual um concilio geral deveria intervir.
Duas semanas depois de Gerson haver proferido o seu sermão,
os delegados do Concilio de Constança já haviam codificado
partes importantes das idéias de Gerson no decreto Haec sancta
synodus [Este Santo Sínodo], que repetia de modo quase literal
alguns dos argumentos mais essenciais de Gerson.

Este Santo Sínodo de Constança [...] legitimamente reunido


pela obra do Espírito Santo [...] cujo poder em ana diretamente
de C risto; [...] Q u a lq u er pessoa, in d ep en d en te m en te de sua
condição e de sua posição, inclusive até m esm o o papa, é obriga­
da a obedecer a este sínodo nas questões pertinentes à nossa fé,
à erradicação do referido cism a e à reforma da referida Igreja de
D eus tanto no que diz respeito à sua liderança quanto no que diz
respeito aos seus m em bros.

Finda a compilação do decreto Haec sancta synodus, o próxi­


mo passo a ser tomado pelos membros do Concilio de Constança
foi o de procurar exercer o quanto antes a autoridade final que
eles afirmavam possuir por meio daquela declaração.
Seu primeiro ato foi a deposição de João XXIII, em maio
de 1415. A seguir, visando acima de tudo demonstrar que o
concilio era competente e tinha autoridade para julgar questões
pertinentes à fé, seus delegados tomaram uma decisão sobre as
C O N C ÍL IO S V ER SU S PAPAS:
alegações de heresia que pesavam contra um popular reforma- 9
dor, sacerdote e pregador tcheco chamado Jan Hus. O processo §
contra Jan Hus foi objeto de intenso debate, tanto na época em |
que foi instaurado quanto hoje em dia. Em 1999, por exemplo, 3
o papa João Paulo II expressou seu “profundo arrependimento |
pela morte cruel que foi infligida a Jan Hus”. A razão de toda essa §
controvérsia é que Hus acabou sendo vítima de uma disputa de ^
poder, pois os membros do concilio pareciam mais interessados ?
em demonstrar que eram capazes de levar a termo um julgamento
do que em investigar com profundidade e isenção quais eram z
exatamente as posições teológicas e reformistas sustentadas por g’
Hus, sendo que algumas delas consistiam em críticas bastante S
justificadas ao mundanismo da Igreja. s
Além disso, Hus também foi vítima de traição, pois, embora ?
Sigismundo houvesse lhe prometido que ele poderia comparecer 5
ao Concilio de Constança para se explicar e depois se retirar em
segurança, Hus foi atirado a uma prisão tão logo se apresentou. |
De certo modo, o próprio Hus acabou contribuindo para o fim ~
que teve. Ao defender-se, foi um pouco evasivo ao responder 2
a determ inadas questões, m esm o quando negava algum as t
acusações que haviam sido feitas contra ele. O concilio con­
denou Hus quando ele se recusou a renegar algumas posições
(provavelmente porque jamais as houvesse defendido, ou, pelo
menos, não as houvesse defendido do modo como o concilio
havia proposto) e porque ele havia questionado a autoridade do
concilio para julgar questões relativas à fé. Declarado herético
c destituído do sacerdócio, Hus foi queimado na fogueira em
6 de julho de 1415.
Ao mesmo tempo em que esses acontecimentos se desen­
rolavam, os membros do concilio procuravam encontrar um
meio de acabar com o cisma. Gregório XII, o papa romano,
concordou em renunciar pelo bem da Igreja, mas só depois dos
seus dois delegados haverem convocado formalmente o concilio
em seu nome. Na opinião de Gregório XII, esse ato legitimaria
todas as medidas que o Concilio de Constança havia tomado
até então, além de favorecer a pretensão de Roma de continuar
ÉPOCA DA REFORMA

a ser a Sé de Pedro e de manter a linha de sucessão dos papas.


Com João XXIII e Gregório XII fora do páreo, os delegados do
OS CONCÍLIOS DA

concilio e o próprio Sigismundo procuraram encontrar um


meio de forçar a renúncia de Bento XIII, que nunca chegou a
ocorrer. Temendo que houvesse um novo cisma, os membros
do Concilio de Constança procuraram agir com bastante vagar,
pois não queriam ser acusados de precipitar uma eleição e de
piorar ainda mais a situação, o que seria repetir exatamente
o que havia ocorrido no Concilio de Pisa em 1409. Somente
quando todos os seus membros conseguiram comprovar que
haviam feito sem sucesso todas as tentativas possíveis para se
chegar a um acordo é que eles finalmente depuseram Bento
XIII em julho de 1417.
Devido à onipresente sombra do Concilio de Pisa, os membros
do Concilio de Constança deliberaram cuidadosamente, entre
1415 e 1417, sobre qual seria o melhor modo de se eleger um
novo papa assim que o momento fosse oportuno. Em março de
1415, o concilio não permitiu que se nomeassem novos cardeais,
pois isso acrescentaria um novo problema à confusão que já
existia sobre a questão das lealdades. Alguns meses depois, os
membros do concilio declararam que eles deveríam aprovar o
modo como o próximo papa seria eleito e proibiram a eleição
de qualquer um dos três pretendentes que já existiam (ou a
reeleição, dependendo da perspectiva de cada um desses três
pretendentes). Dois anos depois, no verão de 1417, eles toma­
ram o cuidado de dizer que até então haviam agido com vagar,
com cuidado e de modo estritamente legal. A seguir, devido às
circunstâncias extraordinárias, decidiram alterar “apenas desta
vez” as regras para as eleições papais que haviam sido instituídas
pelos concílios gerais anteriores de Latrão III e Lyon II.
Os delegados do Concilio de Constança chegaram à con­
clusão de que seria melhor aumentar o número de participantes
do conclave, pois temiam que os colégios de cardeais rivais ado­
tassem posições diferentes e acabassem paralisando o conclave,
fazendo com que nenhum dos candidatos pudesse reunir os
votos necessários para se eleger. Eles decidiram que, juntamente
C O N C ÍL IO S V ER SU S PAPAS:
com os 23 cardeais, seis delegados representariam cada uma das 9
cinco “nações” ou grupos de países (Itáliq; França; Espanha; §
Inglaterra, incluindo a Escócia e a Irlanda; e Alemanha, que g
também abrangia a Escandinávia e a Europa Oriental). Para 3
vencer, um candidato precisaria reunir, além de dois terços dos |
votos dos cardeais, dois terços dos votos de cada uma das cinco |
“nações”. O objetivo era o de se alcançar um sólido consenso g
para evitar a repetição do que havia ocorrido em Pisa. t
Surpreendentemente, depois de trinta e nove anos de cisma, g
em novembro de 1417, esse conclave ampliado levou apenas Z
três dias para eleger como papa um cardeal cham ado Odo g
Colonna, que em diferentes ocasiões havia apoiado Gregório 5
XII, o Concilio de Pisa e João XXIII. Ele adotou o nome de |
Martinho V e, durante o seu pontificado, conseguiu manter com ?
sucesso a obediência de toda a Europa. O cisma havia finalmente |
terminado, e tndo isso graças a um concilio geral. Ç
No decorrer de todos esses acontecimentos, o Concilio de §
Constança procurou fortalecer o papel desempenhado pelos g
concílios gerais para além da circunstância extraordinária ^
provocada pelo cisma. Um decreto chamado Frequens, que foi g
promulgado um mês antes da eleição do papa Martinho V e
que muitas vezes é colocado no mesmo patamar que o Flaec
sancta synodus, determinava que um concilio geral deveria se
reunir cinco anos depois do final do Concilio de Constança. Em
seguida, um outro concilio deveria se reunir cinco anos depois,
e a partir de então os concílios deveríam ser permanentemente
reunidos de dez em dez anos. O papa e os cardeais poderíam
diminuir o intervalo de tempo entre os concílios, mas jamais
poderíam aumentá-los. Além disso, os delegados passaram a
exigir que todo novo papa prometesse dar a sua aprovação aos
concílios gerais. Ao terminar os seus trabalhos em 1418, o Con­
cilio de Constança sem dúvida havia procurado fazer com que
os concílios gerais passassem a constituir um aspecto regular da
vida e da administração da Igreja.

123
ÉPOCA DA REFORMA

B A S IL E IA -F E R R A R A -F L O R E N Ç A -R O M A
OS CONCÍLIOS DA

Em obediência ao decreto Frequens, Martinho V convocou


um concilio que se reuniu em Pádua e em Siena entre 1423 e
1424, mas que, à semelhança do de Pisa, não foi incluído na
lista padrão dos 21 concílios gerais da Igreja. Embora devesse
a sua eleição ao Concilio de Constança, Martinho V não era
conciliarista. O seu objetivo, assim como o de Eugênio IV, que
o sucedeu em 1431, era o de recuperar e fortalecer a autoridade
papal por meio da assinatura de tratados com outros monarcas
que o reconhecessem como o líder efetivo da Igreja.
Eugênio IV, apesar de também não ser um entusiasta de
concílios gerais, obedeceu ao decreto Frequens e convocou
o concilio seguinte, que passou a constar na lista padrão dos
concílios gerais. Esse concilio geral reuniu-se em diversas lo­
calidades. Num de seus momentos mais dramáticos, um grupo
de delegados se separou dos demais e declarou que apenas o
seu concilio havia sido legítimo, ao mesmo tempo em que um
outro grupo declarava exatamente o mesmo a respeito de seu
encontro em uma outra cidade. Os estudiosos divergem nas
interpretações que fazem sobre este concilio, tendo em vista que
os seus acontecimentos foram demasiadamente confusos, mas
de modo geral referem-se a ele como o Concilio de Basileia-
Ferrara-Florença-Roma, que durou de 1431 a 1445.
O papa Eugênio IV, não sem muito relutar, convocou um
concilio geral que se reuniu em Basiléia em julho de 1431.
C om o no início o número de participantes havia sido muito
reduzido, o papa decidiu dissolver o concilio em dezembro do
mesmo ano. No entanto, os delegados do concilio, surpreen­
dentemente liderados pelo próprio legado de Eugênio e pela
m aioria dos seus cardeais, se recusaram a deixar Basiléia e
reagiram vigorosamente contra a sua ordem. Eles intimaram o
papa a comparecer em Basiléia e exigiram que retirasse a sua
declaração de dissolução do concilio. Além disso, declararam
que, se o papa morresse, a eleição do próximo papa só poderia
ser organizada por um concilio geral. Aquele que, dentre os
:SVdVd SÍIS V 3A S O n p N O D
eleitores, fosse escolhido para ocupar o trono papal deveria 9
jurar obediência ao concilio geral. Os delegados do Concilio |
de Basiléia foram ainda mais longe ao declarar que um papa g
não poderia dissolver um concilio ou reuni-lo em uma outra 3
localidade sem o seu consentimento. Em seguida, reafirmaram g
a validade do decreto Frequens. |
Como Eugênio IV se encontrava politicamente enfraquecido ~
e muitos países apoiaram o Concilio de Basiléia, ele teve de ?
ceder a esse ressurgimento do conciliarismo. Em dezembro de j|
1433, ele reconheceu que o concilio que estava em andamento £
em Basiléia havia sido legítimo desde o seu início em julho de f
1431. Os delegados do concilio haviam obtido uma vitória e, |
em 1434, fizeram questão de reafirmar, palavra por palavra, a is
validade do decreto Frequens, repetindo o que já haviam feito ?
em 1432, logo depois de Eugênio haver declarado a dissolução 5
do concilio e de os seus delegados defenderem a sua continua- |
ção. Dois anos depois, em 1436, o Concilio de Basiléia ainda |
continuava a proclamar os seus princípios conciliares. Os seus ~
delegados passaram a exigir que os novos papas se comprome- £
tessem a convocar os concílios gerais com regularidade, e para t
combater à possibilidade de os papas fazerem um uso seletivo
de sua memória exigiram que os papas fossem lembrados de
sua promessa no aniversário de sua eleição ou quando de sua
consagração.
Em 1438, depois de todos esses acontecimentos, o concilio
passou aos outros tópicos que constavam em sua agenda, embora
o contexto permanecesse sendo a disputa de poder entre o papa
e o concilio. O principal tópico se referia a uma tentativa de
reconciliação entre as Igrejas oriental e ocidental, um esforço
que remetia às deliberações tomadas pelo Concilio de Lyon II.
Essa questão passou a fazer parte do conflito que existia entre o
Concilio de Basiléia e Eugênio IV. Cada uma das partes envol­
vidas, ou seja, o papa e o concilio geral, desejava representar o
Ocidente durante as deliberações a serem tomadas em conjunto
com o Oriente (cujos membros eram chamados de “gregos” nos
documentos), pois isso significaria, implicitamente, que a parte 125
ÉPOCA DA REFORMA

que conseguisse representar a instituição que negociava com os


gregos poderia declarar-se superior à outra parte.
OS CONCÍLIOS DA

Procedeu-se a um debate sobre o local para sediar esse en­


contro com os orientais. A maioria dos membros do concilio
votou a favor de Basiléia, de Avinhão ou de alguma cidade da
Savoia, além de fazer questão de afirmar que nem mesmo o
próprio papa poderia anular essa votação. Eugênio IV, junta­
mente com uma minoria de delegados do concilio, preferiu a
cidade de Florença, onde os ocidentais realmente acabariam
se reunindo com os gregos. Os orientais podem ter decidido
comparecer ao encontro sugerido pelo papa por três razões. Em
primeiro lugar, era mais fácil negociar com uma única autoridade
(o papado) do que com os membros mais díspares do Concilio
de Basiléia. Em segundo lugar, o papa havia concordado em
pagar todas as despesas que os orientais tivessem em sua viagem
para a Itália e em sua estadia enquanto durasse o encontro. Em
terceiro lugar, os líderes orientais temiam ataques por parte dos
muçulmanos e precisavam urgentemente de auxílio do Ocidente.
Provavelmente, eles calcularam que teriam maiores chances de
conseguir ajuda financeira e militar por parte do papa do que
por parte do concilio.
A discordância entre a maioria e a minoria dos membros
do Concilio de Basiléia acabou por dividir o concilio. Eugênio
transferiu aquele que considerava como o legítimo concilio
geral de Basiléia para Ferrara, e em seguida para Florença,
em 1439. Nesse ínterim, um grupo de delegados que havia
permanecido em Basiléia declarou que o seu encontro, e não o
do papa, era a verdadeira continuação do Concilio de Basiléia.
Eugênio IV reagiu fazendo uma série de referências negativas
a respeito destes delegados nos anos de 1438 a 1439. O papa
declarou que eles haviam permanecido em Basiléia “sem dispor
de qualquer autoridade” e que não passavam de “uma facção
de agitadores”. Disse também que o encontro de Basiléia “era
e deveria ser considerado um encontro espúrio e um conluio,
que em nenhuma hipótese poderia existir com a autoridade
de um concilio geral”. O papa excomungou os delegados que
C O N C ÍL IO S V ER SU S PAPAS:
haviam permanecido em Basiléia e ordenou que se dispersassem 9
imediatamente, sob pena de serem expnlsos daquela cidade, |
mas eles continuariam reunidos até 1449. g
Antes de dedicar algumas linhas a esse “desautorizado” con- 3
^ O
cílio de Basiléia, devemos abordar o acontecimento principal do §
Concilio de Florença em 1439, que foi a tentativa de unificação J
das metades oriental e ocidental da Igreja. Havia uma série de ~
questões teológicas e litúrgicas a serem discutidas nesse encontro E
que, em alguns casos, remetiam a questões que já haviam sido ~
abordadas por concílios anteriores: Eram as almas purificadas g
pelo fogo no purgatório? Na eucaristia dever-se-ia utilizar pão ?
fermentado ou ázim o? Q ual era natureza e a jurisdição da =
primazia papal? Procedia o Espírito Santo do Pai e do Filho 5
(filíoque), conforme sustentavam os ocidentais, ou apenas do g
Pai, conforme os orientais geralmente acreditavam? 5
Depois de muita discussão e de muitos im passes, essas |
questões foram resolvidas por uma série de compromissos que,
conforme o futuro revelaria, não seriam duradouros. Os dois ~
lados acabaram concordando que algumas almas realmente £
eram purificadas pelo fogo no purgatório e que o uso do pão £
fermentado durante a eucaristia continuaria a ser permitido no
Oriente, enquanto 0 pão ázimo continuaria a ser usado de acordo
com a tradição ocidental. Uma das questões mais controversas
dizia respeito ao uso da palavra filíoque. Os orientais resistiam
a acrescentar a palavra filíoque em seu credo, recorrendo a um
argumento que já havia sido usado anteriormente: o de que os
concílios gerais de Efeso e de Calcedônia já haviam proibido a
adição de qualquer palavra aos credos que haviam sido instituídos
pelos primeiros concílios, que não incluíam essa palavra latina.
No entanto, tanto os orientais quanto os ocidentais acabaram
decidindo que os padres gregos e latinos a quem eles haviam
recorrido em busca de evidências que corroborassem as suas
posições concordavam essencialmente que o Espírito Santo
provinha tanto do Pai quanto do Filho, conforme a declaração
de união definiu em uma tentativa diplomática de satisfazer a
ambas as partes: “todos expressam 0 mesmo significado por meio 127
ÉPOCA DA REFORMA

de palavras diferentes”. Finalmente, depois de difíceis negociações,


os gregos aceitaram a primazia papal, inclusive a declaração de
OS CONCÍLIOS DA

que os papas tinham “plenos poderes para supervisionar, dirigir


e governar a Igreja como um todo”, mas a sua concordância, do
PAR TE TRÊS

mesmo modo que havia ocorrido em relação às outras questões,


era, na melhor das hipóteses, bastante frágil.
Os delegados do Oriente e do Ocidente anunciaram a sua
reunião por meio de um decreto escrito tanto em grego quanto
em latim, apropriadamente intitulado Laetentur coeli [Que o céu
se regozije!]. Mas esse regozijo durou pouco, pois, do mesmo
modo que havia ocorrido depois do Concilio de Lyon II, o fracasso
substituiu o otimismo inicial quando logo se tornou evidente
que esse acordo não poderia perdurar. Assim que retornaram
ao Oriente, os delegados gregos começaram a discutir entre si
sobre o que havia acontecido e o imperador do Oriente acabou
não promulgando o decreto Laetentur coeli. Os delegados do
Concilio de Florença e o papa não haviam aprendido a lição
do Concilio de Lyon II e de seus resultados. Em sua pressa de
declarar a união com os gregos, eles deixaram de abordar
de um modo completo as questões que continham atrás de si
um a longa história de complexa política eclesiástica e uma
teologia bastante sutil. Em consequência disso, o Oriente e o
Ocidente ainda permaneceríam divididos.
Enquanto esses acontecimentos se passavam no Oriente,
no Ocidente o concilio geral que havia se iniciado em Basiléia
e que em seguida havia sido transferido para Ferrara e depois
para Florença ainda continuava reunido. Liderado por Eugênio
IV, esse concilio passou a negociar declarações de unidade com
outros grupos de cristãos e acabou chegando a um acordo com
os armênios em 1439, com os coptas em 1442, com os sírios
em 1444 e com os caldeus e os maronitas em 1445. O próprio
fato de Eugênio ter sido capaz de chegar a acordos com esses
grupos de cristãos acabou fortalecendo a sua pretensão de,
como papa, ser o representante final da Igreja, em oposição à
pretensão dos concílios gerais. Em 1443, Eugênio transferiu o
128 concilio por ele liderado para Roma, onde mais uma série de
o

C O N C ÍU O S V ER SU S PAPAS:
sessões foi realizada. A última delas se reuniu em 1445, mas
p
sem que houvesse um documento declarando oficialmente o
n
Z

final do longo e conturbado Concilio Geral de Basileia-Ferrara-


Florença-Roma.
n
Enquanto isso, os delegados que haviam se recusado a com­ z
parecer a Ferrara e depois a Florença continuaram a se reunir
ç
em Basiléia e a declarar que o seu encontro, e não o que era
-t*.
liderado por Eugênio, é que era o legítimo concilio geral. Suas
£
declarações tornavam-se cada vez mais extremadas na medida oo

em que passaram a expressar e a colocar em prática princípios o


conciliares cada vez mais contundentes, o que acabou levando à &
perda contínua do apoio do poder secular. Eles declararam que
o princípio da superioridade de um concilio geral em relação
l
ao papa, que estava no cerne do decreto Haec sancta synodus, £
deveria ser considerado como um artigo de fé do cristianismo.
£z
Em 1439, “depuseram” Eugênio IV e elegeram um novo papa, í?
que adotou o nome de Félix V. Ironicamente, o conciliarismo /?
I>
havia conquistado a sua maior vitória no Concilio de Constança,
£
quando o conclave então ali reunido elegeu Martinho V, em
1417, para acabar com o Grande Cisma Ocidental. Mal haviam 4^
4*i
V
passado duas décadas, outro concilio geral (on, mais apropria­
damente de acordo com a história e o veredicto final da Igreja,
um grupo que pretendia possuir a autoridade de um concilio
geral) deu origem a outro cisma por meio desta eleição de Félix
V, que consta nos registros da Igreja como antipapa.
A reação de Eugênio IV foi direta e bastante clara: ele
ordenou que Félix V abandonasse a sua pretensão ao papado
e que passasse a reconhecer Eugênio como o verdadeiro papa.
Quase sem nenhum apoio e até mesmo com Félix V hesitando,
os membros remanescentes do Concilio de Basiléia decidiram
tomar uma medida drástica em 1449. Eles “elegeram” Nicolau
V como papa, que estava de fato exercendo o seu pontificado
como sucessor de Eugênio IV há vários anos. Em nome da paz,
Nicolau aceitou a “abdicação” de Félix em 1449 e o nomeou
cardeal. A seguir, os poucos membros que ainda restavam desse
Concilio de Basiléia decidiram votar pela sua conclusão. 129
ÉPOCA DA REFORMA
O L E G A D O D O C O N C IL IA R IS M O
OS CONCÍLIOS DA

Recapitulando o final dessa narrativa, chega-se à conclusão


de que o conciliarismo provavelmente constitui o capítulo mais
interessante da história dos concílios gerais. No entanto, tem-se
a impressão de que chegou ao seu apogeu em meados do século
XV. O conciliarismo havia florescido durante a crise do Grande
Cisma, que enfraqueceu a autoridade do papa, mas acabou sendo
vítima de seu próprio extremismo e da recuperação do poder
papal durante os pontificados de Martinho V e de Eugênio IV.
No entanto, as idéias conciliaristas permaneceram no ar com
tamanha intensidade que um papa posterior, Pio II, sentiu-se
compelido a publicar uma condenação ao conciliarismo, cha­
mada Execrabilis, em 1460.
Pio II, um antigo conciliarista, abandonou o conciliarismo
depois de compreender a verdadeira natureza de seu princípio
central. Ele dizia que algumas pessoas “imbuídas do espírito de
rebelião” declaravam que era possível apelar para um concilio
geral passando por cima da autoridade do papa. Cham ando
essa ideia de “um abuso terrível” e de um “veneno mortal”,
ele condenou essas apelações, chamando-as de “errôneas e
abomináveis, [...] nulas e sem validade”. Porém, o conciliarismo
ainda não havia se extinguido totalmente, e os seus exemplos
de desafios à autoridade papal no decorrer do século XV iriam
ter grandes implicações para o século XVI.
O fim do conciliarismo não foi o único legado dos contur­
bados concílios gerais do século XV. Um outro legado foi o da
demonstração cabal de que as reformas se faziam absolutamente
necessárias, embora nunca tivessem sido levadas adiante de um
modo realmente substancial. A questão das reformas havia sido
relegada para o segundo plano enquanto os concílios gerais e os
papas disputavam o poder. Em consequência disso, os concílios
de Constança e de Basileia-Ferrara-Florença-Roma fracassaram
na tarefa de combater as dificuldades que a Igreja mais dia menos
dia teria de enfrentar: o mundanismo, a simonia, a ganância,
130 a am bição desmedida, o pluralismo e o absenteísmo, a falta
o

C O N C ÍL IO S V ER SU S PAPAS:
de preparo dos clérigos e bispos interessados em tudo que não
n
C
implicasse ter de zelar pelas suas dioceses. Z

O Concilio de Constança e as diversas fases do Concilio


de Basiléia promulgaram algumas leis que instituíam algumas
D
reformas, mas os papas e os bispos normalmente as ignoravam,
ou, na melhor das hipóteses, faziam muito pouco para corrigir
um número cada vez maior de abusos que eram praticados nas
dioceses e nas paróquias da cristandade. Durante o Concilio
de Constança, seus delegados voltaram a atenção para a me­
lhoria da formação, da moralidade e da atuação dos sacerdotes,
especialmente no nível paroquiano. No entanto, essas idéias
permaneceram como simples sugestões, tendo sido arquivadas
em razão da questão da reunificação do papado ter dominado
completamente o concilio. O Concilio de Constança realmente
chegou a promulgar algumas leis instituindo reformas relativas aos
níveis hierárquicos mais altos da Igreja: seus delegados votaram
algumas leis para reprimir a simonia e a cobrança excessiva de
impostos, práticas que eram vinculadas sobretudo ao papado.
Duas décadas depois, as sessões do Concilio de Basiléia que
combateram Eugênio IV entre 1433 e 1435 abordaram a questão
dos abusos papais ao restringir (e, em alguns casos, ao declarar
ilegais) os rendimentos e os honorários elevados que o papado
exigia em troca da nomeação de boa parte dos membros mais
importantes da Igreja.
M as as reformas instituídas pelo C oncilio de Basiléia, à
semelhança do que já havia ocorrido com as do Concilio de
Constança, acabaram definhando, porque os papas estavam
mais interessados em demonstrar a autoridade final do papado
sobre a Igreja. Depois dos concílios de Constança e de Basileia-
Ferrara-Florença-Roma, os papas do século XV ainda não estavam
dispostos a obedecer às normas instituídas por esses concílios
gerais. Embora os concílios do século XV tenham eletrizado
alguns cristãos, os verdadeiros problemas da Igreja que exigiam
atenção aumentaram na medida em que os papas e os concílios
gerais competiam entre si. Devido ao fato de as reformas terem
permanecido em segundo plano, não demoraria muito para a 131
ÉPOCA DA REFORMA
Igreja se ver compelida a convocar novos concílios, principal­
OS CONCÍLIOS DA

mente depois qne um professor de teologia chamado Martinho


Lutero sugeriu a adoção de algumas medidas extraordinárias
para resolver os problemas que afligiam a Igreja.

132
8
A REFORMA PERDIDA
E RECUPERADA:
Os C o n c íl io s de Latrão V (1512-1517)
e de T r e n t o (1545-1563)

O século XVI presenciou a reunião de dois concílios gerais.


O Concilio de Latrão V foi um encontro longo e infru­
tífero que se encerrou apenas alguns meses antes que a Igreja
recebesse o famoso pedido para enfrentar os seus verdadeiros
problem as: as 95 Teses de Lutero em 1517. O C oncilio de
Trento se reuniu quase trinta anos depois e se dividiu em três
conjuntos de sessões que duraram de 1545 a 1563. Durante o
Concilio de Trento, a Igreja Romana foi obrigada não apenas
a explicar novamente a sua própria doutrina, mas também a
enfrentar as consequências de séculos de tentativas fracassadas
de se reformar a Igreja. M ais do que em qualquer outro mo­
mento na sua história, durante o Concilio de Trento a Igreja
teve de examinar a si mesma e reconhecer que as dificuldades
que estava enfrentando se deviam parcialmente a si própria.
ÉPOCA DA REFORMA
Foi um momento tão crucial para a história da Igreja quanto o
desafio da elaboração dos credos doutrinários havia sido para
OS CONCÍLIOS DA

os concílios gerais do primeiro milênio.

LATRAO V

No início do século XVI, a Igreja enfrentava grandes proble­


mas. Mas o papa Júlio II, conhecido como o papa guerreiro por
haver literalmente liderado exércitos em batalhas, só reuniu o
Concilio de Latrão V (1512-1517) porque se viu obrigado a fazer
isso. Seus inimigos já haviam convocado o seu próprio concilio
em Pisa, uma localidade que evocava más recordações para a
Igreja devido ao Grande Cisma. Alguns cardeais descontentes
haviam recebido o apoio do rei francês e do sacro imperador
romano para se reunirem em Pisa em um encontro que durou
do final de 1511 ao início de 1512. Embora tenha sido bastante
modesto, esse encontro provocou grandes dificuldades para Júlio
II. Do mesmo modo que havia ocorrido em Basiléia, os seus
membros suspenderam o papa e reafirmaram a declaração da
supremacia conciliar enunciada pelo Concilio de Constança. Mais
uma vez, o conciliarismo desafiava a autoridade do papa.
O combativo Júlio II reagiu convocando o seu próprio concilio
para 1512, no qual tencionava resguardar sua posição evocando
os quatro primeiros concílios de Latrão que haviam se reunido
na Alta Idade Média. Do mesmo modo que os lateranenses an­
teriores, o Concilio de Latrão V foi dominado pelo papa: as suas
sessões se reuniram na residência do papa e os seus documentos
foram publicados como bulas papais. A primeira questão que
foi abordada era bastante óbvia: o papa condenou o encontro
de Pisa, chamando-o de “quase-concílio” e de “falsificação” e
os seus participantes de “cismáticos e heréticos”. Finalmente,
tanto o rei francês quanto o sacro imperador romano acabaram
repudiando o encontro de Pisa e apoiando o Concilio de Latrão
V, que continuou a se reunir depois da morte de Júlio II em
134 fevereiro de 1513. Leão X foi eleito seu sucessor em um período
A R EFO R M A P E R D ID A E R EC U P ER A D A :
Os
de um mês e o Concilio de Latrão continuou a se reunir sem

C o n c íl io s de Latrão
que houvesse muitas interrupções.
Depois da condenação do encontro de Pisa, a segunda
principal tarefa do Concilio de Latrão V foi a de combater um
diploma legal conhecido como Sanção Pragmática de Bourges.
Promulgada na França em 1438, a Sanção Pragmática apoiava

V (1512-1517)
os princípios conciliares enunciados pelos concílios de Cons-
tança e de Basiléia contidos nos decretos Haec sancta synodus e
Frequens. Ela também restringia o poder do papa para nomear

e de
bispos, abades e outros altos dignitários da Igreja, ao afirmar

T rento
que todos deveríam ser eleitos por aqueles que seriam os seus
subordinados.

(1545-1563)
O Concilio de Latrão V classificou esse documento como
um ataque direto ao papado e ordenou que as cópias da Sanção
Pragmática fossem destruídas. O papado estava tão preocu­
pado com o conciliarismo que o Concilio de Latrão acabou
condenando a Pragmática Sanção e a ameaça conciliar que
ela representava não apenas uma, mas duas vezes: sob o ponti­
ficado de Júlio II, em 1512, e sob o pontificado de L eãoX , em
1516. A declaração de Leão X, conhecida como Pastor aetemus,
enfatizava o fato de que os concílios gerais deveríam se reunir
e agir apenas sob a aprovação papal e demonstrar um grande
respeito pelo papado.
A agenda do Concilio de Latrão V também incluía a reforma
da Igreja. Os seus membros sabiam muito bem o que precisava
ser reparado, especialmente depois que G iles de Viterbo, o
superior da ordem dos agostinianos, fez um relato franco das
dificuldades que a Igreja enfrentava na abertura do concilio
em 1512. Ele disse aos membros do concilio que o que a Igreja
precisava acima de tudo e imediatamente era de renovação e
que o Concilio de Latrão V era exatamente o ponto de partida
para que isso fosse feito. Conforme suas palavras,

[A] Igreja não pode funcionar bem se não receber a devida


atenção por parte dos concílios. [...] Iluminados pelos concílios e
pelo Espírito Santo, os ventos voltam a soprar e os olhos sem vida
ÉPOCA DA REFORMA
da Igreja retornam à vida para receber toda esta luz. [...] Sem a
presença dos concílios, a fé não pode permanecer inabalável. Por­
OS CONCÍLIOS DA

tanto, sem a presença dos concílios, não há salvação para nós.

A seguir, empregando uma retórica floreada, ele formula


uma série de questões difíceis com o objetivo de apresentar antes
do início do concilio os problemas que assolavam a Igreja.

Será que já houve um tempo em que a ambição não tenha


sido tão desmedida e a ganância tão irrefreada? Será que já houve
um tempo em que a licença para pecar não tenha sido tão ver­
gonhosa? Será que já houve um tempo em que a temeridade de
falar, de argumentar e de escrever contra a devoção tenha sido
mais comum ou mais destemida? Será que já houve um tempo em
que as pessoas, ao invés de serem demasiadamente negligentes,
tenham sentido um grande contentamento por tudo aquilo que
é sagrado, pelos sacramentos, pelas chaves [do perdão pelos seus
pecados] e pelos sagrados mandamentos? Será que houve um
tempo em que a nossa religião tenha sido um alvo ainda maior do
escárnio até mesmo por parte das pessoas pertencentes às classes
mais humildes?

O Concilio de Latrão V tem sido criticado por não haver


conseguido instituir reformas efetivas, mas seus membros legis­
laram contra a simonia, o concubinato e a usura, além de haver
legislado contra o controle que os leigos exerciam sobre o dinheiro,
as propriedades e os direitos da Igreja. Também determinaram
que os cardeais deveríam viver em lares modestos e frugais. Os
membros do concilio alertaram contra os falsos pregadores, os
milagres fraudulentos, a bruxaria e a blasfêmia. Também exigiram
a supervisão de todo tipo de material impresso, como livros e
panfletos, que estavam proliferando em reproduções acessíveis
em virtude do aperfeiçoamento do processo de impressão que
Gutenberg havia aperfeiçoado cerca de cinquenta anos atrás. O
Concilio de Latrão V se preocupava com os erros perpetrados
136 contra a fé cristã que poderíam ser espalhados desse modo,
A R EFO R M A P E R D ID A E R EC U P ER A D A :
Os
uma preocupação que para os católicos se confirmou alguns

C o n c íl io s de Latrào
anos depois, quando os protestaqtes fizeram um uso eficiente
dessa nova tecnologia para disseminar as suas idéias por meio
da imprensa popular.
O problema não foi a falta de interesse do Concilio de Latrão
pelas reformas, mas o modo como as suas normas foram redigidas.

V (1512-1517)
Um dos principais estudiosos desse concilio menciona o grau
de franqueza demonstrado pelos oradores sobre a situação em
que a Igreja se encontrava, principalmente os de maior nível

e de
hierárquico. Mas esse mesmo estudioso conclui que o concilio

T r in t o
deixou tantas brechas ao abordar essas reformas que as restrições
por ele impostas acabaram se revelando fáceis de contornar. No

(1545-1563)
fundo, o papado, os cardeais e a cúria simplesmente não tinham
nenhum interesse em realizar uma verdadeira reforma, pois os
membros graduados da cúria dependiam demasiadamente de
irregularidades financeiras, de modo que a oposição às reformas
estava firmemente entrincheirada.
Além disso, esses mem bros graduados da cúria, que 11a
maioria dos casos eram bispos italianos, dominaram o concilio
de tal modo que o Concilio de Latrão V dificilmente poderia
ser chamado de ecumênico. No entanto, havia uma notável
exceção: pela primeira vez na história dos concílios gerais, um
bispo representava o “Novo M undo” que Cristóvão Colombo
havia descoberto há apenas duas décadas. Ele era bispo de Santo
Domingo, no Caribe. Mas era também italiano.
Os membros do Concilio de Latrão V, que deixaram Roma
na primavera de 1517, não imaginavam que, antes mesmo que
esse ano acabasse, Martinho Lutero iria desencadear uma série
de idéias, emoções e movimentos que iriam mudar a cristandade
de um modo como nunca havia ocorrido antes. No entanto,
devemos nos lembrar das razões pelas quais o debate iniciado por
Lutero tornou-se virulento com tanta rapidez: a Igreja Romana
havia deixado de abordar questões importantes e se recusava a
reconhecer a gravidade dos problemas que enfrentava. As refor­
mas haviam estado ausentes por mais de um século, e as tensões
resultantes dessa ausência foram se acumulando, formando uma 137
ÉPOCA DA REFORMA
bolha de descontentamento cada vez maior que acabaria por
explodir de vez com a publicação das 95 Teses de Lutero.
OS CONCÍLIOS DA

O CO N TEX TO D O PROTESTANTISM O

Embora esta história dos concílios gerais não seja o lugar


adequado para descrever o alcance das idéias protestantes que
se originaram dessa explosão, um apanhado geral dos diversos
movimentos protestantes nos ajudaria a entender o que o Concilio
de Trento teria de enfrentar quando finalmente se reuniu. Uma
ampla variedade de idéias protestantes oriundas de diferentes
países correspondia a diversos modos de abordar os problemas
que a Igreja Romana enfrentava.
Do mesmo modo que nos concílios de Constança, Basiléia
e Latrão V, alguns líderes católicos viam a necessidade de re­
forma e de uma depuração completa dentro da própria Igreja,
especialmente no papado e na cúria. No entanto, alguns grupos
protestantes tinham uma concepção inteiramente diferente de
reforma, pois não acreditavam que bastaria apenas reformar ou
reparar as doutrinas, a hierarquia e os rituais da Igreja Romana.
C om o a maioria dos grupos protestantes não acreditava que
essas peculiaridades católicas pertencessem de fato à Igreja, o
seu objetivo era o de fazer com que os cristãos as rejeitassem
totalmente para poderem retornar àquilo que, em sua opinião,
Jesus havia desejado desde o início. Por essa razão, algumas vezes
o protestantismo é considerado mais como uma revolução do
que como um movimento reformista.
O calvinismo é um bom exemplo dessa oposição fundamen­
tal às estruturas da Igreja Romana, bem como da oposição ao
desejo dos católicos de apenas repará-las ao invés de rejeitá-las
por completo. João Calvino e seus discípulos do século XVI
consideravam que as primeiras comunidades cristãs descritas
nos Atos dos Apóstolos eram o modelo ideal a ser resgatado.
Eles também tinham a intenção de reintroduzir os cargos sobre
138 os quais haviam lido nos Atos dos Apóstolos, que eram os de
A R EFO R M A P E R D ID A E R EC U P ER A D A :
Os CoNcii.ios
diáconos, mestres, pastores e anciãos. Essa abordagem elimi­
nava completamente os bispos, pelo menos do modo como
os católicos os conheciam, e certamente o papado, o colégio
de cardeais e a cúria. Eles também encontraram nos Atos dos

de
Latrào
Apóstolos alguns precedentes sobre um modo mais participativo
de governar a Igreja, que tendia ao conciliarismo medieval que

V (1512-1517)
havia atingido o seu apogeu durante o Concilio de Constança.
Portanto, o desafio da autoridade papal pelo conciliarismo no
século XV, especialmente durante o Concilio de Constança

f. df
e entre os seus defensores mais radicais durante o Concilio

T rento
de Basiléia também se tornou parte integrante do contexto do
protestantismo.

(1545-1563)
E m consequência disso, durante o século XVI a Igreja
Romana teve de enfrentar objeções às suas principais idéias e
estruturas em diversas frentes. Lutero, Calvino e outros ques­
tionavam os próprios alicerces da Igreja Romana. Era como se
as pessoas fossem compelidas a repensar o que era exatamente
a Igreja cristã, no que ela acreditava e como os seus membros
deveríam praticar a sua fé. Algumas questões fundamentais
surgiram naturalmente depois dos pontos de partida de Lutero
haverem sido apresentados. Quais eram as fontes da autorida­
de: as escrituras, a tradição, ou ambas? E o que era a tradição:
as obras dos padres da Igreja, os concílios gerais, os decretos
papais ou todas essas alternativas? Quantos sacramentos havia,
qual era o significado de cada um deles e para que fim eles se
destinavam? Q uem é que decidia sobre essas questões e em
quais argumentos essas decisões deveríam se basear? Com o a
Igreja deveria ser administrada e como ela deveria celebrar as
suas crenças liturgicamente?

TREN TO

Com um desafio tão grande a ser enfrentado em uma escala


sem precedentes, por que é que o Concilio de Trento começou
a se reunir apenas três décadas depois das primeiras ações de 139
ÉPOCA DA REFORMA
Lutero em 1517? O desejo dos protestantes de convocar um
concilio refreou o entusiasmo dos católicos porque a Igreja
OS CONCÍLIOS DA

Romana não queria dar a impressão de que estava cedendo


aos seus críticos. Os protestantes queriam que tanto os clérigos
quanto os leigos participassem de um concilio, e chegaram a
procurar ajuda das autoridades seculares para que um concilio
efetivamente se reunisse, de preferência na Alemanha. Além
disso, os luteranos e os outros protestantes acreditavam que
os cristãos poderíam convocar um concilio por si próprios e
eram contrários a qualquer interferência papal a esse respeito.
Também estavam cientes de que os papas não iriam convocar
um concilio de imediato, pois a própria cúria papal era um dos
principais organismos da Igreja que precisavam ser revistos.
Também era verdade que nem todo papa desse período estava
feliz com a ideia da convocação de um concilio geral, por
mais que este se fizesse necessário. Talvez isso tenha ocorrido
porque o desafio do conciliarismo à autoridade papal havia se
harmonizado perfeitamente com o ataque protestante contra
a própria existência do papado.
Um concilio católico deveria se reunir para lidar com esta
situação sem precedentes e enfrentar algumas questões funda­
mentais e cruciais sobre a vida da Igreja. Eventualmente, depois
de demonstrar alguma hesitação por meio de algumas medidas
e de algumas objeções, os organizadores do concilio escolheram
a cidade de Trento, que na época se situava em solo imperial,
mas que nos dias de hoje se situa no nordeste da Itália (perto
das fronteiras com as atuais Suíça e Áustria). Finalmente, o tão
aguardado e extremamente necessário concilio geral católico
iria se reunir tanto para tentar resolver os problemas anteriores
ao protestantismo quanto para reagir aos acontecimentos que
haviam se desenrolado no seio da cristandade desde o momento
em que Lutero havia aberto as comportas do descontentamento
e provocado uma enxurrada de questionamentos que deveríam
ser respondidos pela Igreja Católica Romana.
O Concilio de Trento reuniu-se em três fases: de 1545 a
140 1548, de 1551 a 1552 e de 1562 a 1563. Havia muitas razões
A R EFO R M A P E R D ID A E R EC U PER A D A :
Os C o n c íl io s
que causaram essa cronologia irregular, mas a principal delas
tinha a ver com o fato de que a sua agenda era gigantesca e
extremamente complexa e de que os tempos eram perigosos. As
ações dos católicos não deveriam se resumir apenas à discussão

d v La t r à o
e à implementação de reformas que fossem vantajosas para a
Igreja, mas também deveriam explicar de um modo completo,

V (1512'1517)
cuidadoso e efetivo os ensinamentos da Igreja Romana sobre
os assuntos fundamentais que os protestantes haviam questio­
nado (especialmente a questão da autoridade, da tradição e dos

e df.
sacramentos). E muitas dessas discussões ocorreram enquanto

T ren io (1545-1563)
guerras religiosas e políticas estavam sendo travadas por toda a
Europa. Por exemplo, quando a segunda fase do concilio sus­
pendeu os seus trabalhos em 1552, os bispos haviam decidido
se reunir novamente depois de um intervalo de dois anos, mas
tiveram de esperar uma década inteira para que o Concilio de
Trento se reunisse novamente.
Ao analisarmos os debates e as decisões do Concilio de Trento,
devemos ter em mente que cada uma das três fases do concilio
teve uma dinâmica própria, suas próprias controvérsias e suas
próprias narrativas. No entanto, para os nossos propósitos, é mais
interessante reunir em nina só seção as principais questões que
ocuparam as três fases do Concilio de Trento. Devido ao elevado
grau de contenciosidade presente em diversos tópicos, algumas
vezes as decisões finais eram adiadas de uma fase para a outra.
Neste livro, examinaremos as quatro principais questões: a da
autoridade das escrituras e da tradição, a do papel dos bispos, a
da doutrina e dos sacramentos e a das reformas.
A primeira dentre as principais questões enfrentadas pelo
Concilio de Trento dizia respeito à autoridade das escrituras e da
tradição. Nesse ponto, os católicos e os protestantes discordavam
essencialmente uns dos outros porque tinham diferentes respostas
para uma questão crucial: “Qual é a definição de autoridade e
quem tem o poder de defini-la?” Essa diferença fundamental a
respeito da autoridade exclusiva das escrituras e da autoridade
tanto das escrituras quanto da tradição tinha prioridade sobre
todas as demais discussões. Todas as explicações referentes à
ÉPOCA DA REFORMA
doutrina (e, na verdade, a todas as questões da Igreja) devem ser
atribuídas a alguma autoridade. Se os dois lados discordassem
OS CONCÍLIOS DA

sobre este princípio primeiro, ou seja, sobre a própria natureza


e a fonte da autoridade, seria impossível haver algum progresso
em relação aos outros tópicos.
Em suma, a maioria dos protestantes acreditava que todos
os cristãos poderíam interpretar as escrituras sem a ajuda de
ninguém e que as escrituras deveríam ser a autoridade final da
Igreja, embora os diferentes grupos protestantes atribuíssem
um grau de importância variável aos grandes pensadores e aos
concílios da cristandade, especialmente àqueles que datavam da
Igreja primitiva, que era tão estimada por eles. Em contrapartida,
os católicos diziam que a Igreja, principalmente o nível mais
elevado de sua hierarquia, deveria supervisionar a interpretação
das escrituras, pois os cristãos não podiam interpretar individual­
mente as escrituras do modo que bem entendessem.
Os católicos também sustentavam que a autoridade da Igreja
baseava-se não apenas nas escrituras, mas também na tradição.
Essa tradição incluía as obras dos grandes padres da Igreja, as
declarações papais e os documentos conciliares, pois todos eles
haviam sido guiados pelo Espírito Santo. A concepção católica
de autoridade dependia da hierarquia da Igreja, considerada
como o único agente a ter o direito e o poder de decidir o que
deveria ser incluído ou excluído das escrituras e da tradição.
Os católicos acreditavam que essa autoridade doutrinária vinha
sendo transmitida pela hierarquia da Igreja em uma sucessão
contínua ao longo dos séculos. Essa linha de sucessão iniciava-
se com os apóstolos, incluía os padres da Igreja e os bispos, e se
estendia até os membros do Concilio de Trento.
Baseando-se nesses pressupostos relativos ao modo como
a autoridade das escrituras e da tradição era interpretada pela
hierarquia católica, o Concilio de Trento iniciou os seus traba­
lhos abordando aquilo que havia de mais fundamental. Seus
delegados publicaram um credo com bastante rapidez já em
1546, que repetia as antigas fórmulas instituídas pelos padres do
142 Concilio de Niceia I em 325 e do Concilio de Constantinopla
A R EFO R M A P E R D ID A E REC U PER A D A :
Os C o n c íl io s
I em 381. Em todos os seus demais documentos, especialmente
em suas declarações doutrinárias, o Concilio de Trento sempre se
certificava se esses documentos eram uma demonstração expressa
de sua autoridade e das fontes dessa autoridade. E os padres do

de
Latrào V (15121517) i de T re n t o (1545-1563)
Concilio de Trento fizeram isso ao enfatizar continuamente que
os seus ensinamentos baseavam-se nas escrituras e na tradição,
especialmente quando essa tradição era proveniente dos padres
da Igreja e dos concílios e transmitida por eles.
Devido à importância fundamental que a Palavra de Deus
desempenhava tanto para a reforma protestante quanto para
a reação católica, o Concilio de Trento recorreu à Bíblia em
latim, também conhecida como Vulgata. Depois de listar os
livros que constavam na Vrdgata, os padres do C oncilio de
Trento determinaram que fosse preparada uma nova versão
para a Bíblia em latim. Além disso, eles também lograram o
seu intento ao declarar que somente a Igreja Romana, ao invés
de cada cristão individualmente, poderia interpretar essa nova
versão da Bíblia com autoridade final.
A segunda principal questão a ser abordada pelo Concilio
de Trento era uma consequência direta da primeira: a da auto­
ridade doutrinária dos bispos enquanto membros da hierarquia
da Igreja. Essa questão era particularmente importante à luz
do questionamento dos protestantes sobre a necessidade da
existência do papa e dos bispos. Esse questionamento provocou
a reação mais enérgica do Concilio de Trento contra o desafio
protestante e ajudou a transformá-lo em um concilio eminen­
temente episcopal. Os bispos tiveram uma participação muito
mais acentuada do que haviam tido nos concílios do século
XV. Em algumas ocasiões, durante os concílios de Constança
e de Basileia-Ferrara-Florença-Roma, os teólogos não episcopais
e os especialistas em direito canônico chegaram a eclipsar os
bispos. Em contrapartida, no Concilio de Trento o direito de
voto foi concedido apenas aos bispos, aos superiores das ordens
religiosas e aos representantes dos monastérios. Embora os bispos
pudessem trazer consigo teólogos para atuar como consultores
e nomear substitutos para representá-los, tanto esses teólogos 143
ÉPOCA DA REFORMA
quanto esses substitutos não podiam votar em seu próprio nome
ou em nome do bispo a quem eles serviam ou substituíam.
OS CONCÍLIOS DA

Antecipando-se a uma eventual interrupção do Concilio


de Trento, seus membros reafirmaram o papel de liderança
P A RT E T R Ê S

exercido pelos bispos, especialmente pelos bispos responsáveis


por uma diocese, vinculando a liderança da Igreja (o papado,
o colégio de cardeais e a cúria) diretamente ao seu corpo (as
dioceses e as paróquias). Mais do que qualquer outra figura, os
bispos emergiram do Concilio de Trento como os principais
responsáveis pelo revigoramento de uma Igreja católica que
havia sido desafiada em inúmeras frentes internas e externas.
Não raro o Concilio de Trento atribuía aos bispos o ônus con­
siderável de implementar as reformas referentes tanto ao clero
quanto aos leigos que haviam sido promulgadas pelo concilio.
O modo mais eficiente de supervisionar se as reformas estavam
sendo implantadas exigia que o bispo percorresse a sua diocese
com frequência e investigasse o que o clero estava ensinando
e pregando, como os fiéis estavam respondendo a esses ensina­
mentos e a essas pregações, como as paróquias estavam minis­
trando os sacramentos e se tanto o clero quanto os leigos viviam
de acordo com os padrões morais que a Igreja havia instituído.
O Concilio de Trento também encarregou os bispos de fazer
um exame cuidadoso daqueles que iriam ser ordenados e de
se certificar se o seu conhecimento de teologia era adequado e
se eles possuíam as qualidades espirituais e morais apropriadas
para exercer o sacerdócio.
Acima de tudo, o Concilio de Trento reiterou a jurisdição
e a dignidade do sacerdócio e, especialmente, a do episcopado.
Som ente o papa poderia julgar um bispo acusado de haver
cometido crimes de maior gravidade ou de heresia. Os casos
de menor gravidade seriam encaminhados a um sínodo provin­
cial. O concilio se preocupava não apenas com a intromissão
das autoridades civis nos assuntos da Igreja, mas também com
os bispos que permitiam que isso acontecesse. O Concilio de
144 Trento declarava que
A R EFO R M A P E R D ID A E R EC U P ER A D A :
Os C o n c íl io s
só poderia lam entar profundam ente ao tomar conhecim ento
de que alguns bispos se esqueciam de sua posição e desonravam
gravemente a sua dignidade pontifícia ao se com portarem de um
m odo subserviente e totalm ente inadequado diante de ministros

de
Latrão V (1512-1517) e de T r e n t o (1545 1563)
reais, soberanos e barões, tanto dentro quanto fora da igreja, e
agiam com se fossem seus hum ildes servidores perante o altar,
concedendo a eles não apenas um a precedência im erecida, mas
tam bém agindo até m esm o com o se fossem seus criados.

Para combater essa situação, o Concilio de Trento renovou


todas as normas instituídas anteriormente que resguardavam a
dignidade dos bispos e que condenavam a sua subserviência
às autoridades civis. Essa determ inação lem bra as diversas
regulamentações que haviam sido instituídas pelos concílios
gerais do primeiro milênio, especialmente pelo Concilio de
Constantirropla IV, que quase setecentos anos atrás havia toma­
do medidas contra os rumores de que membros graduados do
governo se fantasiavam de sacerdotes e de bispos e participavam
de “pretensas” liturgias.
A terceira questão mais importante a ser discutida pelo
Concilio de Trento se referia à doutrina. Para combater as idéias
protestantes, os católicos tinham de dizer exatamente no que a
Igreja acreditava. Logicamente, os bispos reunidos em Trento
abordaram inicialmente o conceito de pecado original e, em
seguida, o conceito de justificação, que são as duas idéias centrais
da teologia cristã. Os bispos do Concilio de Trento enfatizaram
que o pecado original de Adão marcara a cada alma, que, em
resultado disso, tinham de ser purificadas pelo batismo. Essa
declaração confrontava-se com diversas idéias protestantes, pois
algumas delas afirmavam que o pecado de Adão apenas criara
uma predisposição ao pecado entre o povo de Deus e que Adão
somente contaminara a si mesmo. Quanto à justificação, que
a maioria dos grupos protestantes considerava basear-se apenas
na fé, o Concilio de Trento reiterou a importância central das
boas ações, que, juntamente com a fé, atuavam em harmonia
com a graça divina.
ÉPOCA DA REFORMA
Ao abordar o pecado original e o conceito de justificação,
o Concilio de Trento também foi obrigado a discutir os sacra­
OS CONCÍLIOS DA

mentos. Vários grupos protestantes, em maior ou menor grau,


haviam negado o status de sacramento à maioria dos sacramentos
católicos (o matrimônio, a crisma, a confissão, a extrema-unção
e a ordenação) e atribuía significados diferentes àqueles que eles
ainda consideravam como sacramentos (o batismo e a eucaristia).
Os bispos reunidos no Concilio de Trento nomearam e defi­
niram cuidadosamente os sete sacramentos da Igreja Católica
como batismo, crisma, Eucaristia, penitência, extrema-unção,
ordenação e matrimônio, além de descrever as razões pelas quais
cada um deles era considerado um sacramento, bem como o
modo como eles afetavam a vida de cada fiel.
Juntamente com a justificação, o pecado original e o nú­
mero e o significado dos sete sacramentos católicos, o Concilio
de Trento teve de se encarregar de uma outra grande questão
relativa a um sacramento sobre o qual até mesmo os protestantes
divergiam entre si: o significado da eucaristia. Alguns protestantes
acreditavam que na eucaristia o pão e o vinho continuam a ser
pão e vinho, mas, ao mesmo tempo, realmente se transformavam
no corpo e no sangue de Jesus (a chamada consubstanciação).
Outros protestantes afirmavam que o corpo e o sangue de Jesus
jamais poderíam estar verdadeiramente presentes, pois o pão e o
vinho eram meros símbolos de Jesus, e que a “Ceia do Senhor”
(conforme esses protestantes tendiam a chamar a eucaristia) era
uma rememoração da Ultima Ceia ao invés de um sacrifício.
O Concilio de Trento retomou o uso do termo “transubs-
tanciação”, que havia sido empregado pelo Concilio de Latrão
IV em 1215. Na fé católica, afirmava-se que o corpo e o sangue
de Jesus estavam verdadeiramente presentes na Eucaristia. A
missa era realmente um sacrifício, e não uma rememoração.
Além do mais, a presença real de Cristo ainda persistia mesmo
depois de concluída a missa, o que possibilitava aos católicos
preservar a Eucaristia em sacrários e exibi-la em demonstrações
de adoração, em procissões e em bênçãos fora da missa. Quanto
146 à liturgia propriamente dita, os bispos preservavam a missa, mas
A REFORMA PERDIDA E RECUPERADA:
Os
observavam que ela deveria ser explicada para a congregação.

CoNCfi.ios
Além disso, o Concilio de Trento determinou que os bispos de­
veríam supervisionar a tradução dos rituais latinos referentes aos
sacramentos para as línguas locais e se certificar se os sacerdotes

df Latrâo
e os bispos explicavam o seu significado em conformidade com
as definições elaboradas pelo concilio.

V (1512-1517)
A última das quatro principais questões abordadas pelo Con­
cilio de Trento dizia respeito às amplas reformas que se faziam
necessárias e que os concílios anteriores não haviam conseguido

f de T
delinear e implementar de modo satisfatório, se é que haviam

re n t o
conseguido implementar alguma. Essas reformas afetavam de
alto a baixo quase todos os aspectos da vida da Igreja.

(1545-1563)
Um grupo destacado de reformas dizia respeito aos sacerdotes
e às pessoas a quem serviam. O Concilio de Trento reafirmou
a importância da pregação e determinou que os sacerdotes de­
veríam pregar todo domingo e em todos os dias festivos. Foram
tomadas providências para melhorar o conhecimento que os
sacerdotes tinham das escrituras para que pudessem dividi-lo
adequadamente com os seus paroquianos; essas providências
também seriam muito bem-vindas para aqueles sacerdotes que
ainda lutavam contra o analfabetismo. O Concilio de Trento
permitiu aos bispos que suspendessem os ministros que eram
“inadequados ou incompetentes” e em três ocasiões fazia um
alerta contra os pregadores itinerantes que recusavam sujeitar-
se à autoridade de qualquer bispo ou a de superiores de ordens
religiosas. Os bispos foram orientados a organizar sínodos
diocesanos anualmente, e grupos de bispos da mesma diocese
deveríam se reunir em sínodos provinciais uma vez a cada três
anos. Eles também deveríam aumentar o número de visitas
que faziam por sua diocese. Essas normas nos remetem aos
primeiros concílios, que também desejavam que os encontros
entre os bispos e as suas comunidades se reunissem com mais
frequência para que os problemas, tanto no nível paroquial
quanto no nível episcopal, pudessem ser enfrentados antes que
piorassem. Os sínodos diocesanos e episcopais também eram o
local mais adequado para dar início à imposição, à implemen-
ÉPOCA DA REFORMA
tação e ao monitoramento do programa de reformas instituído
pelo Concilio de Trento.
OS CONCÍLIOS DA

Um aspecto importante das reformas referentes aos sacer­


dotes e às paróquias foi a fundação de seminários pelo Concilio
de Trento para formar sacerdotes. Em bora houvesse alguns
precursores de lugares destinados exclusivamente à formação
espiritual e intelectual dos futuros ministros, os m odernos
seminários datam apenas de 1563. Os bispos do Concilio de
Trento elaboraram diretrizes sobre as matérias que os candidatos
a sacerdote deveríam estudar, sobre as qualificações que os seus
professores deveríam ter, sobre como o seminário deveria ser
financiado e sobre os procedimentos que deveríam ser adotados
para avaliar os homens que postulavam a ordenação.
Outras reformas visavam com bater o m undanism o e a
ganância que vinham assolando a Igreja ao longo dos séculos.
C om um maior ou um menor grau de rigor e de eficácia, o
Concilio de Trento promulgou leis contra a simonia, o concu­
binato, o nepotismo e os benefícios hereditários. Todo sacerdote
encarregado de zelar pelas almas de seu rebanho, fosse ele um
pastor de uma paróquia ou um bispo de uma diocese, deveria
viver junto com o seu povo; essa norma combatia os problemas
persistentes e interligados do pluralismo e do absenteísmo. O
Concilio também determinou que os bispos deveríam se certifi­
car se havia um número de paróquias suficientes para satisfazer
as necessidades sacram entais e espirituais dos paroquianos.
Do mesmo modo que os primeiros concílios da Idade Média,
o Concilio de Trento também determinou que os clérigos se
vestissem com modéstia e se comportassem de um modo mo­
ralmente adequado para que pudessem dar um bom exemplo
a ser seguido pelos seus paroquianos, tanto por meio de suas
palavras quanto de suas ações.
Um outro grupo de reformas dizia respeito a questões bastante
sensíveis, referentes a indulgências, relíquias, santos, imagens e
ao purgatório. Boa parte dos protestantes havia desafiado essas
crenças e práticas, todas elas aspectos extremamente populares
148 da devoção católica. Alguns protestantes faziam objeções co-à
A R EFO R M A PERDIDA E RECUPERADA:
Os
munhão dos santos e ao conceito de purgatório, pois pareciam

CONCÍIIOS DE Lairào V (1512-1517) e de T rento (1545-1563)


colocar seres humanos (especialmeríte Maria) no mesmo nível
que Deus. Além disso, essas manifestações religiosas contribuíam
para fomentar certa espiritualidade matemática e proporcionava
ao dinheiro um papel potencialmente insidioso para a devoção
dos fiéis. Os cristãos estavam aum entando cada vez mais o
numero de orações que rezavam ou de relíquias que tocavam,
imaginando que isso aumentaria automaticamente a sua santida­
de e diminuiría o tempo que permaneceríam no purgatório. As
vezes, eles simplesmente compravam benefícios espirituais (as
indulgências) decorrentes da prática de boas ações, como a da
peregrinação, sem que eles realmente as tivessem praticado.
Para combater essas práticas, mas sem o assumir expressa­
mente, o Concilio de Trento se curvou às críticas contundentes
de Martinho Lutero aos vendedores de indulgências, contra os
quais o Concilio de Latrão IV já havia alertado há 350 anos. O
Concilio de Trento aboliu tanto o título quanto o cargo de “coletor
de almas”, manteve as indulgências, mas declarou que os cristãos
deveríam usá-las apenas para expressar a sua devoção, e não para
auferir benefícios financeiros privados. O Concilio de Trento
também manteve a crença na comunhão e na intercessão dos
santos, a veneração pelas suas relíquias e pelas suas imagens, e o
conceito de purgatório, mesmo concordando (mas sem assumir
expressamente essa concordância) com as críticas certeiras que
os protestantes faziam à devoção aritmética. O concilio declarou
que os cristãos deveríam exercer essas crenças e praticar essas
manifestações religiosas de um modo apropriado, mas, ao tratar
especificamente da questão do purgatório, observou que os bispos
“deveríam proibir todas as práticas que levassem à curiosidade
e à superstição ou cheirassem à aquisição de bens materiais, e
considerá-las como obstáculos escandalosos para todos os fiéis”.
O Concilio de Trento lembrava aos cristãos que o Concilio de
Niceia II, em 787, já havia ensinado sobre o uso apropriado das
imagens ao discutir sobre os erros que haviam sido cometidos
pelos iconoclastas. Além disso, os bispos foram encarregados de
checar a autenticidade de todas as novas imagens, relíquias e
ÉPOCA DA REFORMA
milagres, nenhuma das quais os cristãos poderíam reverenciar
sem a permissão da Igreja.
OS CONCÍLiOS DA

D E P O IS DE T R E N T O

Do mesmo modo que os concílios que o precederam, o


Concilio Geral de Trento não foi apenas um acontecimento
histórico, mas também um conjunto de documentos que preci­
savam ser implementados assim que o encontro fosse concluído.
Essa implementação seria mais crucial e mais difícil do que
havia sido depois de todos os concílios gerais anteriores, porque
a Europa ainda sofria as consequências da divisão sem paralelos
da cristandade entre católicos e protestantes. A supervisão do
concilio e dos escritos católicos passou a ser fundamental, es­
pecialmente em um momento em que os grupos protestantes
empregavam com sucesso a nova tecnologia da imprensa para
disseminar as suas crenças religiosas rivais.
A Igreja católica tomou duas grandes medidas para contro­
lar a implementação do que havia sido decidido em Trento. O
Concilio de Trento declarava que a Igreja católica, geralmente
representada pela pessoa de um bispo, deveria zelar pela publi­
cação de livros sobre questões sagradas. Essa supervisão já havia
sido formulada em uma declaração semelhante do Concilio
de Latrão V às vésperas de as idéias protestantes começarem
a circular por meio de panfletos de baixo custo escritos nas
línguas locais.
A segunda principal medida foi o anúncio feito pelo papa Pio
IV de que ninguém poderia interpretar os decretos promulgados
pelo Concilio de Trento ou publicar explicações ou classificações
destes decretos sem a aprovação de Roma. Uma das primeiras
medidas tomadas pelo papa depois do encerramento do Con­
cilio de Trento tinha relação com a nomeação de um grupo de
cardeais que ficariam encarregados de avaliar as perguntas que
poderíam ser formuladas sobre as declarações do concilio e de
150 mediar as disputas que porventura poderíam ocorrer sobre qual
Os
A R EFO R M A P E R D ID A E R EC U PER A D A :
seria a melhor maneira de se colocar em prática em contextos

C o n c í i .io s de Latr Ao V
diferentes ou inéditos a tudo o que fora decidido por Trento. A
instituição desse grupo de trabalho centralizado, que acabou se
tornando conhecido como a Congregação sobre o Concilio, foi
uma medida inédita na história dos concílios gerais. Segundo
estudos recentes, essa congregação mais restringiu alguns dos

(1512-1517)
aspectos inovadores do Concilio de Trento do que ajudou a
disseminar as suas idéias. Essas tendências de longo prazo (o
ensino ministrado nos idiomas locais e suas diversas reformas

e de.
pastorais e espirituais) foram substituídas ao longo do tempo

T ren to
por um rigorismo que não era condizente com as intenções
dos bispos de Trento, mas que acabou manchando a reputação

(1545-1563)
do concilio.
De fato, nossa interpretação atual de Trento tem sido objeto
de uma nova onda de revisionismo, especialmente à luz do
Concilio Vaticano II. A recente redescoberta do Concilio de
Trento como ele realmente foi, e não como uma caricatura,
constitui um importante passo para a história dos concílios
gerais. Antes de concluirmos nossa análise sobre o Concilio
de Trento, devemos abordar a atual reavaliação que foi feita
sobre esse concilio, que muitas vezes tem sido colocado em
oposição ao Concilio Vaticano II. Na verdade, o Concilio de
Trento pode ter sido o menos compreendido e o mais atacado
dos 21 concílios gerais da Igreja.
A descrição popular desse concilio com frequência o retrata
de modo bastante negativo devido ao emprego da ressonante
frase anathema sit (“que seja anatematizado”), que significava
que qualquer pessoa que tivesse uma opinião contrária aos en­
sinamentos católicos deveria ser excomungada. Essa frase dá a
impressão de que os membros do Concilio de Trento passavam o
dia inteiro sentados sem fazer nada além de refutar de imediato
as idéias protestantes, que consideravam heréticas.
De fato, a frase anathema sit realmente aparece com alguma
frequência nos documentos do concilio, mas Trento não iniciou
suas atividades distribuindo condenações. Ao invés disso, o con­
cilio primeiro abordou os ensinamentos da Igreja católica sobre \5 1
ÉPOCA DA REFORMA

certas questões, tais como a da justificação ou a da eucaristia e


das missas. A seguir, sem que houvesse uma preocupação exclu­
OS CONCÍLIOS DA

siva de apontar as discordâncias entre católicos e protestantes,


os membros do concilio listaram as posições defendidas por
alguns e declararam que essas posições, bem como aqueles que
as defendiam, deveríam ser condenadas: anathema sit. Esse tipo
de procedimento nos faz lembrar dos concílios doutrinários do
primeiro milênio, que com frequência listavam lado a lado tanto
os ensinamentos que a Igreja considerava verdadeiros quanto
os que passavam a ser considerados falsos depois que os seus
autores haviam sido declarados heréticos pelos concílios.
Devido ao fato de o Concilio de Trento haver dedicado
tanto tempo e esforço para definir exatamente o que a Igreja
Católica deveria ou não ensinar, a questão que veio à tona era a
de se esse concilio estava fazendo algo inovador ou ultrapassado.
Será que os seus membros simplesmente repetiam em velhas
palavras ou reafirmavam em novas as doutrinas duradouras da
Igreja? Será que, devido aos ensinamentos e aos questionamentos
dos protestantes, os católicos teriam de repensar, reformular, e
talvez até aumentar o alcance das doutrinas que não haviam
sido suficientemente esclarecidas ou elaboradas no passado?
Trento teve de abordar os questionamentos que o desafio
protestante havia levantado entre alguns católicos, mas o con­
cilio não foi original, no sentido de que os seus membros foram
responsáveis pela criação de novas doutrinas completamente
separadas da tradição da Igreja. De fato, a declaração do con­
cilio sobre o sacramento da penitência cumpre o seu objetivo
ao afirmar que os ensinamentos católicos diferiam daqueles
que eram defendidos pelos “inovadores”, o que é claramente
uma referência negativa que acusava os teólogos protestantes
de haverem rompido os seus laços com o passado. Por outro
lado, não se pode negar que o Concilio de Trento finalmente
esclareceu uma série de questões ao sintetizar e sistematizar
diversas abordagens teológicas medievais sobre os tópicos que
se encontravam em discussão. Uma das principais realizações
do Concilio de Trento foi o seu sucesso absoluto em declarar
A R EFO R M A P E R D ID A E R EC U PER A D A :
Os
exatamente quais eram os ensinamentos da Igreja Romana

C o n c íl io s de Latrâo
sobre questões essenciais da fé cristã e da prática católica de
um modo conclusivo, sistemático e preciso como nunca havia
sido feito antes. O Concilio de Trento também foi inovador
e aberto ao fundar seminários e ao endossar o aum ento do
emprego das línguas locais na catequese. Considerado desse

V (1512-1517)
ponto de vista, o Concilio de Trento não foi uma mera reação
ao protestantismo, embora evidentemente houvesse se reunido
em grande medida para reagir às idéias, aos questionamentos e

e de
às críticas dos protestantes.

T rento
O concilio de Trento ainda é considerado como um marco
da Igreja Católica, por haver sido o último concilio a se reunir

(1545-1563)
antes dos tempos modernos. O intervalo entre a conclusão
do Concilio de Trento em 1563 e o início do concilio geral
seguinte, o Vaticano I, em 1869, durou 306 anos. Esse é o
intervalo mais longo que já ocorreu entre dois concílios gerais
na história da Igreja, nm intervalo tão longo quanto o tempo
transcorrido entre a morte e a ressurreição de Jesus e a convoca­
ção do primeiro concilio geral, o de Niceia I, em 325. Portanto,
independentemente de julgarmos suas prolongadas sessões sob
uma ótica favorável ou não, ou de as considerarmos ativas ou
reativas, conservadoras ou progressistas, não podemos negar que
o Concilio de Trento marcou profundamente a Igreja durante
os séculos que se seguiram.

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154
I’ A R T E Q.UATRO

OS CONCÍLIOS DA
IDADE MODERNA
D urante os três séculos que se passaram entre o C oncilio de
Trento e o Concilio Vaticano I, o mundo se expandiu significa­
tivamente em muitos aspectos. Mesmo antes de Lutero e do Concilio
de Trento, os encontros cada vez mais frequentes com civilizações
até então desconhecidas ao redor do mundo obrigou a Europa a
ampliar os seus horizontes. Nos dois séculos que se passaram desde
o recesso do Concilio de Trento em 1563, a Revolução Científica
e o lluminismo colocaram a fé em segundo plano e desafiaram a
religião recorrendo ao racionalismo, ao secularismo e a uma men­
talidade mais individualista. No final do século XVIII, as revoluções
americana e francesa atacaram monarquias e aristocracias. Os tradi­
cionalistas defendiam as suas posições recorrendo ao direito divino
e ao sangue azul, enquanto os revolucionários desejavam instaurar
democracias soberanas e repúblicas baseadas em liberdades civis.
Durante o século XIX, o nacionalismo varreu a Europa e passou a
competir com a filiação e a identidade religiosa com o a lealdade
final de cada cidadão. E não seria nenhum exagero afirmar que
o século XX testemunhou os desenvolvimentos mais avançados e
vertiginosos em tecnologia, imprensa, economia, educação, política
e no status social que o planeta jamais havia visto.
Embora vivesse em meio a essa realidade cambiante, a Igreja
tendia a se afastar dos desdobramentos modernos que poderíam
ameaçá-la. Na pior das hipóteses, essa atitude era percebida como
se a Igreja estivesse se escondendo do mundo, temerosa das rápidas
mudanças que ocorriam na indústria e na política e, de um modo
geral, descrente da modernidade. Essa impressão não correspondia
inteiramente à verdade, pois uma renovação litúrgica, espiritual e
teológica se processava de um modo bastante salutar e excitante no
âmbito das paróquias e das dioceses. Porém, a descrição de Roma
e de sua cadeia de comando curial como intransigentes não estava
totalmente destituída de fundamento.
A Igreja não havia convocado nenhum concilio geral entre a
conclusão do Concilio de Trento em 1563 e a abertura do Concilio
Vaticano I em 1869. Pelo menos no início, a ausência da convocação
de um novo concilio poderia ser atribuída ao fato de que a Igreja
ainda se encontrava avaliando minuciosamente as decisões tomadas
pelo Concilio de Trento e as implementando, o que sem dúvida era
uma tarefa intimidadora, tanto em termos de liturgia e de doutrina
quanto geograficam ente falando. N o entanto, com o passar do
tempo, esse intervalo entre os concílios gerais também poderia ser
atribufdo à evolução política, pois o princípio do constitucionalismo
passou a ameaçar as monarquias de forma permanente na Europa
desde o início da Idade Contemporânea.
A soberania popular e a igualdade social relativa eram idéias
governamentais e sociais de vanguarda que afetavam os assuntos da
Igreja. Pouco tempo antes de o Concilio de Trento haver se reunido,
o conciliarismo já havia favorecido uma representatividade mais
am pla e um poder maior de decisão sobre a Igreja. A história do
conciliarismo talvez tenha levado alguns a considerar um concilio da
Igreja como algo equivalente aos parlamentos seculares que se popu­
larizavam. Portanto, os defensores do constitucionalismo atacavam
a Igreja como instituição, especialmente em Roma, pelas mesmas
razões que haviam combatido as outras monarquias e aristocracias.
No entanto, nem sempre os monarcas se uniam para ajudar uns aos
outros. As ameaças de Napoleão proferidas contra os papas Pio VI
e Pio VII no início do século XIX tornaram-se famosas, e Pio VII
chegou até mesmo a ser aprisionado por Napoleão. Para o papado,
a época estava longe de ser propícia à convocação de concílios.
Porém, depois de se passar mais de três séculos sem que a Igreja
convocasse um concilio geral, o papa Pio IX mais conhecido por
seu nome italiano Pio Nono, convocou o Concilio Vaticano I com o
objetivo principal de enfrentar uma importante questão que se devia
a essas repercussões políticas e sociais. Acima de tudo, ele desejava
que a infalibilidade papal fosse definida e proclamada durante esse
encontro. Na sua opinião, tal declaração seria uma mensagem bem
clara para aqueles que consideravam a Igreja como uma república
e o papado como uma monarquia qualquer. A declaração de infa­
libilidade papal é importante por si mesma, mas os comentaristas
com frequência não dão a devida importância às deliberações que
foram necessárias para aperfeiçoar a sua definição. Esses debates
nos informam muito mais sobre a situação dos concílios gerais, da
autoridade papal e da colegialidade episcopal no século XIX, além
de nos revelar que o Concilio Vaticano I não conseguiu resolver
todos os aspectos referentes a esses tópicos.
Do mesmo modo que os concílios gerais do primeiro milênio,
quando boa parte deles havia abordado questões que haviam sido
examinadas apenas em parte pelos concílios anteriores, o Concilio
Vaticano II retomou algumas questões que não haviam sido solu­
cionadas pelos concílios de Trento e Vaticano I. M as o C oncilio
Vaticano II não se resum iu à retom ada das questões que ainda
permaneciam em aberto, pois foi um concilio geral muito diferente
que foi convocado para resolver uma questão muito diferente em
um mundo muito diferente.
9
A INFALIBILIDADE PAPAL:
O C o n c íl io V atican o I (1869-1870)

D o mesmo modo que todos os concílios gerais, o Concílio


Vaticano I não se reuniu sem que tivesse um motivo im­
portante para isso, embora muitos, tanto de dentro quanto de
fora do catolicismo, tenham acusado Roma de não estar a par da
realidade. Apesar dos estereótipos, a Igreja não havia adotado a
mentalidade de uma instituição que se encontrava sob ameaça
logo depois da conclusão do Concílio de Trento. No entanto,
por volta do século XIX, os papas fizeram questão de deixar
bem claro que viam grande parte da modernidade como uma
ameaça à Igreja. Em 1864, Pio Nono publicou um Syllabus dos
Erros, que condenava boa parte das idéias e dos movimentos que
haviam dado origem ao mundo moderno, como o secularismo,
o racionalismo, o nacionalismo, o individualismo, e o termo
abrangente do “liberalism o”, que se referia, de modo geral, 159
à liberdade de ação nas esferas política, social e econômica.
IDADE MODERNA

Além de dar a impressão de estar sendo atacado pelo mundo


OS CONCÍLIOS DA

exterior, Pio Nono também teve de enfrentar a tentativa de


unificação italiana, que literalmente passou como um enxame
PARTE Q U ATRO

sobre a cidade de Roma e os estados papais. De um ponto de


vista mais global, a invenção relativamente recente do telégrafo
aumentou o poder da imprensa, cujos membros pressionavam
para que houvesse uma maior abertura e um maior número de
informações por parte do Vaticano.
Dentro da própria Igreja, dois grupos disputavam a prima­
zia, embora, para sermos justos, a grande variedade de posições
dentro do espectro ideológico não possa ser reduzida a uma
mera disputa monolítica entre a “direita” e a “esquerda”. Mes­
mo assim, não deixa de ser verdadeiro que um pequeno grupo
de “ultramontanistas” mais extremados apoiavam a autoridade
absoluta do papa sobre o mundo inteiro, algumas vezes de um
modo que beirava o fanatismo. Embora o absolutismo estivesse
perdendo a sua primazia em diversos países, esses ultramonta­
nistas atribuíam ao papa e ao papado uma supremacia absoluta,
que deveria ordenar e obter a aliança total dos católicos do
mundo inteiro.
Enquanto isso, os católicos “liberais” desejavam que houvesse
uma relação mais estreita entre a Igreja e a modernidade, que
incluísse todas as inovações políticas, teológicas e litúrgicas, mas
normalmente mantendo a separação entre a Igreja e o Estado.
Esse grupo, que tendia ser bem mais progressista em matéria
política e social, com batia os papalistas ultramontanos. Os
católicos liberais se queixavam sobre o que consideravam um
excesso de centralização dos assuntos relativos ao catolicismo em
Roma e descreviam o Vaticano como uma torre desconectada
das pessoas que viviam à sua volta.
Em meio à atuação desses diversos contextos, movimentos
e grupos, Pio Nono convocou um concilio geral, que seria mais
ecumênico que a maioria de seus predecessores, pelo menos
porque dessa vez havia mais participantes oriundos de todos os
160 lugares do mundo. Quase 750 delegados compareceram, sendo
O C o n c íu o V aiicano í (1869-1870)
A INFALIBILIDADE PAPAL:
que os europeus totalizavam dois terços dessa assembléia. Um
número respeitável de bispos era proveniente dos “novos mun­
dos” que a Europa vinha descobrindo desde o momento em
qne os concílios de Latrão V e de Trento haviam se reunido no
século XVI. Quase cinquenta dos delegados que compareceram
ao Concilio Vaticano I vinham dos Estados Unidos, trinta da
América Latina e quase uma centena da África e da Ásia, inclu­
sive quinze da China, e qnase vinte da Austrália e das ilhas do
Pacífico. Embora os representantes da Ásia e da África fossem
todos missionários europeus (principalmente franceses) ao invés
de africanos ou asiáticos nativos, eles não poderíam deixar de
levar consigo para Roma a experiência pastoral que haviam
adquirido em meio a essa diversidade cultural.
Do mesmo modo que a maioria dos concílios gerais que
se reuniram depois do primeiro milênio (com exceção dos de
Lyon II e da fase florentina do Concilio de Basileia-Ferrara-
Florença-Roma), o Concilio Vaticano I não foi verdadeiramente
ecumênico, apesar de seu alcance ter sido mais global. Antes
de convocar o seu concilio, Pio Nono informou às diversas
denominações protestantes e aos patriarcas ortodoxos (que não
tinham relação com os sessenta prelados de rito oriental que
compareceriam ao concilio) que iria reunir o Concilio Vaticano
I, e sugeriu que essa seria uma ótima oportunidade para eles se
unirem novamente à Igreja católica. Com o era de se esperar,
ninguém aceitou o eufemístico “convite” papal.
Quando o Concilio Vaticano I foi convocado, havia dois
aspectos logísticos inéditos até então. O primeiro era o de que
a imprensa internacional e os telégrafos, que não existiam no
tempo dos dezenove concílios gerais anteriores, iriam manter o
público informado sobre o desenrolar do concilio e, em alguns
casos, incitariam a opinião pública no interesse de algumas das
partes que participariam do debate. O segundo aspecto logístico
era o fato de que, pela primeira vez na história, um concilio
geral se reuniría em plena Basílica de São Pedro. O Concilio
Vaticano I não se reuniu na nave principal da basílica, onde
o Concilio Vaticano II se reuniría um século depois, mas em
uma grande capela lateral, pois ainda não havia microfones
IDADE MODERNA

naquele tempo. Em um dado momento durante o concilio, as


OS CONCÍLIOS DA

atividades tiveram de ser interrompidas para que alguns operá­


rios instalassem paredes provisórias e melhorassem a acústica,
de modo que os membros do concilio pudessem acompanhar
o que estava sendo discutido.
Antes que os delegados se dedicassem exclusivamente aos
debates mais controversos do Concilio Vaticano I que diziam
respeito à questão da infalibilidade papal, eles elaboraram um
documento chamado Dei Filius. Essa declaração fazia uma
abordagem bastante equilibrada das questões referentes ao
conhecimento e racionalidade modernos, pois não condenava
a razão em si, como algum as facções mais ultramontanistas
e intransigentes gostariam que tivesse sido feito, de modo se­
melhante a tudo aquilo que havia sido condenado no recente
Syllabus dos Erros. Por outro lado, o Dei Filius não deixou de
condenar o racionalismo pnro, que operava fora dos contextos
da revelação e do sobrenatural, pois afirmava que o racionalismo
desprovido de fé poderia levar ao materialismo e ao ateísmo,
que eram duas am eaças modernas à religião. No entanto, o
docum ento tam bém declarava que a razão e a fé não eram
realmente incompatíveis entre si.

A IN F A L IB IL ID A D E E A J U R IS D IÇ Ã O PAPAIS

Porém, como não poderia deixar de ser, foi o debate sobre a


doutrina da infalibilidade papal que acabou por se tornar sinônimo
do Concilio Vaticano I. Pio Nono procurava um meio de afirmar
vigorosamente a infalibilidade papal e a primazia da jurisdição
papal. Ele queria declarar sem nenhuma ambiguidade que o
papa era o responsável último pelos julgamentos e pela tomada
de decisões da Igreja e que ninguém mais poderia passar por
cima de sua autoridade. O papa tinha sempre a última palavra
e podia julgar todas as coisas e todas as pessoas, mas ninguém
162 poderia julgá-lo. De um modo mais específico, a agenda de Pio
A IN F A L IB IL ID A D E PAPAL:
O C o n c í i .io V ai ic a n o I (1869-1870)
Nono incluía a afirmação de que o papa era o líder inconteste
da Igreja no que dizia respeito à sua disciplina e à sua adminis­
tração, e que o papa poderia fazer declarações infalíveis sobre a
fé e a moral baseando-se linica e exclusivamente em sua própria
autoridade. Esse princípio significava que ele não precisava
obter a aprovação de Igreja para que as suas declarações fossem
consideradas infalíveis e impostas a todos os fiéis. Na prática,
esta aprovação se concretizaria no momento em que a Igreja
aceitasse ou desse o seu consentimento às suas declarações, o
que logicamente poderia ocorrer em um concilio geral.
Embora tivesse convocado o Concilio Vaticano I, Pio Nono
não gostava muito da ideia de que os fiéis poderíam aceitar ou
dar o seu consentimento às declarações e às ações do papa. Esse
princípio dava a impressão de que, em última análise, caberia
à Igreja julgar o que deveria ou não ser considerado infalível,
fosse ela personificada por todos os católicos, fosse ela represen­
tada por um concilio geral. É claro que poderia se questionar
por que razão o papa simplesmente não se declarava infalível
baseando-se no próprio direito, pois se ele mesmo acreditava
que era o juiz supremo da Igreja, qual seria a necessidade da
convocação de um concilio para referendar a sua opinião já qne
ele não acreditava ser necessário obter a sua concordância?
Na verdade, pode parecer bastante irônico o fato de esse
debate ter sido travado em um concilio geral, pois a própria
história demonstra que os concílios gerais chegaram a desafiar
o poder do papa em algumas ocasiões. No passado, conforme já
observamos, os concílios instituíam credos baseando-se em sua
própria autoridade e sem a necessidade da liderança de um papa
poderoso, o que foi exatamente o que aconteceu nos concílios
de Niceia I e de Constantinopla I no século IV. O concilio
de Constantinopla III foi ainda mais longe ao condenar o já
falecido papa Honório I por haver acreditado que Jesus possuía
apenas uma única vontade. No segundo milênio, o Concilio de
Constança chegou a depor dois papas e a obrigar um terceiro
a abdicar. De um modo bastante dramático, o C oncilio de
Constança deu um grande impulso a favor do conciliarismo 163
ao fazer o que nenhum papa poderia fazer baseando-se em
sua própria autoridade: dar um ponto final ao Grande Cisma
Ocidental ao encontrar um meio de eleger um único papa e
de unificar o papado.
Além disso, a história demonstra que alguns papas chegaram
a suprimir documentos conciliares, como foi o caso de Leão I,
que, no século IV, simplesmente anulou o cânone 28 do Conci­
lio de Calcedônia por haver praticamente equiparado o prestígio
de Constantinopla ao de Roma. Os quatro concílios de Latrão,
especialmente o Concilio de Latrão IV, foram inquestionavel­
mente encontros presididos pelo papa. Mais recentemente, o
papa Eugênio IV, depois de testemunhar o início conturbado de
um concilio em Basiléia entre 1431 e 1433, assumiu o controle
da situação e declarou que os encontros liderados por ele em
Ferrara, Florença e Roma deveríam ser considerados como o
legítimo concilio, em oposição ao encontro desautorizado que
ainda permanecia reunido em Basiléia.
Uma pista que poderia esclarecer os motivos pelos quais Pio
Nono decidiu convocar um concilio geral para concretizar os
seus objetivos referentes ao papado e para fazer saber qual era o
seu ponto de vista sobre essa história conciliar de altos e baixos
pode ser encontrado no primeiro documento produzido pelo
Concilio Vaticano I, o Dei Filius. Nessa declaração, Pio Nono
reconhecia a existência de certo grau de colegialidade entre
o papa e os bispos que se encontravam presentes no Concilio
Vaticano I ao discorrer sobre o seu trabalho conjunto com os
bispos em um concilio geral, embora tivesse enfatizado que o
concilio havia se reunido em obediência a ele:

M as o nosso objetivo agora é o de professar e o de declarar


a partir deste trono de Pedro aos olhos de todos a doutrina de
salvação de Cristo e, por m eio do poder que nos foi concedido
por D e u s, rejeitar e co n d en a r os erros co m e tid o s na d ireção
oposta. Para atingir esse objetivo, é preciso tratar os bispos do
m undo inteiro com o nossos coassessores e com o nossos juízes-
com panheiros, reunidos nesta ocasião do m esm o m odo que eles
A IN F A L IB IL ID A D E PAPAL
O C o n c il io V a t ic a n o I (1869-1870)
se encontram unidos ao Espírito Santo sob a nossa autoridade
neste concilio ecum ênico.

Afinal de contas, talvez Pio Nono houvesse simplesmente


desejado demonstrar que os bispos de todo o mundo e os fiéis
a quem eles representavam e por quem eles zelavam deveríam
obedecer a ele nas questões da primazia da jurisdição papal e
da infalibilidade papal. Em uma época em que a monarquia,
como forma de governo, estava sendo atacada por todos os lados,
um monarca que contasse com o apoio de seus súditos parecia
ser melhor, mais forte e mais legítimo do que um monarca que
não contasse com apoio algum. Além disso, o poder do papa de
convocar, presidir e controlar um concilio geral era um exemplo
perfeito do exercício de sua autoridade.
Quando chegou o momento de abordar as questões da ju­
risdição e da infalibilidade papais, os participantes do Concilio
Vaticano I saíram em defesa de diversas posições, com várias
graduações entre elas. Os mais puristas eram os ultramonta-
nistas, um grupo relativamente pequeno que acreditava que
toda palavra que fosse proferida pelo papa era infalível, e não
apenas as que eram proferidas por meio de suas raras e extraor­
dinárias declarações. Os m em bros mais extremados desse
grupo se voltavam para Roma em busca de um ininterrupto
fluxo de declarações como estas para transformar a Igreja em
um baluarte em meio a um mundo marcado pela mudança.
Conforme as palavras que o bispo de Genebra havia proferido
a esse respeito, Jesus havia se encarnado em três ocasiões: uma
no útero da virgem, outra durante a eucaristia e a terceira na
pessoa do “velho hom em do Vaticano” . Os seus oponentes
mais extremados, que também formavam um grupo pequeno,
eram absolutamente contrários a qualquer declaração sobre a
infalibilidade papal. De um modo geral, boa parte dos delegados
apoiava o princípio da infalibilidade papal, mas sem concordar
com o ponto de vista sustentado pelos ultramontanistas mais
zelosos de que as declarações infalíveis deveríam ser proferidas
com mais frequência na vida da Igreja. 1Ó5
Havia uma outra posição que era defendida por um grupo
z minoritário de delegados, que talvez perfaziam vinte por cento
OS CONCÍLIOS DA

S do total de delegados e eram conhecidos como “inoportunistas” .


§ Boa parte desses delegados não era necessariamente contrária à
PA R TE Q U A T R O

o infalibilidade papal, embora não se sentissem à vontade com as


o idéias dos ultramontanistas mais extremados. Por diversas razões,
os inoportunistas não acreditavam que o momento era propício
para se afirmar a doutrina da infalibilidade papal. Eles não viam
nenhuma necessidade urgente em se chegar a uma definição
a respeito dessa doutrina e argumentavam que a Igreja havia
sobrevivido muito bem durante toda a sua longa história sem
que isso fosse feito. Acreditavam que tal declaração poderia ser
um fator potencial de divisão dentro do catolicismo romano e
entre os católicos e os outros cristãos. Os inoportunistas temiam
que uma declaração formal da infalibilidade papal aumentasse
ainda mais as barreiras que separavam os cristãos, especialmente
no que dizia respeito aos ortodoxos e aos protestantes. Muitos
deles também questionavam os fundamentos históricos e teo­
lógicos dessa doutrina; um de seus questionamentos se referia
à turbulenta condenação do papa Honório I pelo Concilio de
Constantinopla III.
As discussões sobre a infalibilidade e a jurisdição papais foram
travadas no âmbito desse espectro de opiniões, mas aqueles que
delas participavam tinham de se defrontar constantemente com
a vontade de um obstinado Pio Nono. Existe uma anedota que
diz muito sobre essa obstinação. Em um momento decisivo do
debate, um teólogo dominicano, que também era cardeal, afirmou
que era favorável à infalibilidade papal nos seguintes termos:
tudo aquilo que o papa ensinava era infalível, mas a pessoa do
papa não era infalível. Esse teólogo considerava que o papa era
apenas mais um bispo dentre os seus pares. Ele reconhecia que
o papa liderava o colégio de bispos, mas ele não deveria agir
separadamente dos demais bispos. Na verdade, antes de proferir
qualquer declaração, o papa deveria consultar o colégio de bis­
pos, pois este também desempenhava um papel fundamental na
166 tradiç ão da Igreja e também era parte dessa tradição. Naquela
A IN F A L IB IL ID A D E PAPAL:
noite, Pio Nono convocou esse cardeal e declarou diante dele: °
“Eu sou a tradição. Eu sou a Igreja”. §
Ao longo de três semanas, os delegados do Concilio Vaticano §
I discutiram sobre a elaboração de um esboço da declaração da =3
infalibilidade e da jurisdição papais de uma maneira bastante §
aberta. Dos que tomaram parte nessa discussão, 39 aprovaram õ
o esboço e 26 a ele se opuseram. A seguir, os organizadores do ?
concilio acharam melhor que cada participante fizesse o uso §
da palavra apenas durante a sessão que abordasse diretamente a
redação da declaração da infalibilidade papal, já que este era o
principal ponto de discordância. Passaram-se mais três semanas,
mas a divisão entre os participantes continuava inalterada: 35
eram favoráveis à nova redação e 22 se opunham a ela. Depois
de quase dois meses elaborando, debatendo e revisando essa
declaração, tanto em público quanto privadamente, os dele­
gados do concilio fizeram uma contagem preliminar dos votos
para saber a que ponto a situação se encontrava. Essa votação
simulada revelou que ainda havia uma minoria significativa de
dissidentes no concilio. Uma maioria folgada de 451 delegados
votou a favor da declaração, mas 88 votaram contra e 62 a acei­
taram com algumas restrições.
Com o era de se esperar, a declaração final que havia sido
submetida à votação, chamada Pastor aetemus, continha duas
partes principais: uma sobre a primazia da jurisdição papal e
outra sobre a infalibilidade papal. Quanto à jurisdição papal,
a declaração repetia palavra por palavra as partes principais do
decreto Laetentur coelí, que havia sido promulgado durante a fase
florentina do Concilio de Basileia-Ferrara-Florença-Roma em
1439, que descrevia o poder do papa como absoluto e emanado
de Deus e afirmava que esse poder se estendia da Igreja para o
resto do mundo inteiro. Essa declaração também condenava,
sem citar expressamente como tal, o princípio conciliar de que
qualquer pessoa poderia ignorar a autoridade do papa e apelar
diretamente para um concilio geral, cuja autoridade, por defi­
nição, seria maior do que a do papado. Voltando novamente na
história, essa declaração também nos faz lembrar da declaração 167
Execrabilis de Pio II, que condenou o conciliarismo em 1460,
algumas décadas depois de o papado haver se recuperado do
Grande Cisma e dos concílios de Constança e de Basiléia.
O debate sobre a segunda parte dessa declaração, a seção
sobre a infalibilidade papal, produziu mudanças significativas.
Em primeiro lugar, a expressão “infalibilidade do pontífice roma­
no” foi substituída pela expressão “infalibilidade da autoridade
doutrinária do pontífice romano”. Conforme havia dito aquele
cardeal dominicano que depois seria repreendido por Pio Nono,
a pessoa do papa não era infalível, mas sim os seus ensinamentos
enquanto papa. Em segundo lugar, a infalibilidade doutrinária
do papa dizia respeito apenas às questões de fé e de moralidade,
e não à administração cotidiana da Igreja ou ao papel político
do papa. A famosa expressão acima mencionada significa que
a autoridade do papa é ex-cathedra, ou seja, que o papa profere
os seus ensinamentos como pastor universal e ocupante da ca­
deira (cathedra ) de São Pedro, de quem é o sucessor e a quem
Jesus havia prometido socorrer. O papa havia conquistado uma
importante vitória no trecho da declaração que dizia que os de­
cretos papais eram “irreformáveis” por si mesmos e não porque
a Igreja havia dado o seu consentimento para que assim fosse,
como provavelmente ocorrería em um concilio geral. Tanto os
ultramontanistas quanto os inoportunistas poderíam afirmar que
essa declaração, pelo menos em parte, representava o triunfo
de suas posições.
Ainda houve mais algumas manobras políticas e profundas
considerações morais logo depois da formulação final da declara­
ção, pois cerca de sessenta bispos deixaram Roma às vésperas da
votação final ao invés de permanecer e votar contra a declaração
da jurisdição e da infalibilidade papais diante do próprio papa.
Em 18 de julho de 1870, em um momento em que a realidade
superou de longe a ficção, 533 delegados votaram a favor da
declaração e apenas dois votaram contra em meio a uma vio­
lenta tempestade com raios e trovões. Quando a contagem final
dos votos foi anunciada, os dois homens que haviam se oposto
à declaração se aproximaram de Pio Nono. Em seguida, Luigi
A IN F A L IB IL ID A D E PAPAL:
O C oncílio Vaticano I (1869-1870)
Riccio, um italiano do sul, e Edward Fitzgerald, um americano
de origem irlandesa de Little Rock, no Arkansas, disseram ao
papa: “Santo Padre, agora acreditamos em sua infalibilidade”.
No fim, ao longo dos meses que se seguiram, aqueles que haviam
deixado Roma ao invés de votar contrariamente à declaração
acabaram por dar o seu consentimento a ela e alguns chegaram
até mesmo a receber o chapéu vermelho de cardeal.
Na prática, o Concilio Vaticano I havia chegado ao fim,
embora não tivesse sido oficialmente encerrado, pois não houve
tempo para isso: um dia depois da votação a guerra franco-
prussiana foi deflagrada. Como a França precisava reunir todas as
suas forças militares, cia não poderia mais proteger Roma como
vinha fazendo até então, e, algumas semanas depois ela retirou
todas as suas tropas da cidade. Em meados de 1870, os italianos
invadiram e conquistaram Roma e os estados papais. Pio Nono
havia conseguido a aprovação do seu decreto de infalibilidade
papal em um concilio, mas o papado agora se encontrava em
uma situação bastante precária.
Ao fazer uma retrospectiva do Concilio Vaticano I, podemos
constatar que o debate sobre a declaração da infalibilidade papal
acabou obscurecendo o verdadeiro significado da relação que
existe entre a infalibilidade papal, a colegialidade dos bispos
e a autoridade doutrinária da Igreja. O Concilio Vaticano I,
na seção que aborda a primazia da jurisdição papal, deu um
passo adiante em direção a uma explicação parcial sobre esse
equilíbrio delicado. No que diz respeito à obediência e à hie­
rarquia da Igreja, os seus trechos mais relevantes conferem um
grande poder ao papa e são bastante centralizadores, mas não
deixam de afirmar claramente que a unidade de uma Igreja de
alcance mundial é um dos objetivos principais dessa autoridade
centralizadora do papa:

Ensinamos e declaramos que, por ordem divina, a Igreja romana


possui uma preeminência de poder ordinário sobre todas as demais
igrejas. [...] Tanto o clero quanto os fiéis, in dependentem ente
de seus ritos e de seus títulos, individual ou coletivam ente, são
obrigados a se subm eter a esse poder em respeito à subordinação
z hierárquica e à verdadeira obediência. [...] Desse modo, pela união
OS CONCÍLIOS DA

“ com o pontífice rom ano na com unhão e na profissão da m esm a


O fé, a Igreja de Cristo se transforma em um único rebanho sob a
PARTE Q U A T R O

uí guarda de um único pastor supremo.


<
D
No entanto, algumas linhas mais adiante, o papa reconhece
a amplitude da independência e da autoridade de cada um dos
bispos:

Esse poder conferido ao supremo pontífice de maneira alguma


deprecia o poder ordinário e imediato da jurisdição episcopal, por
m eio da qual os bispos, que vêm sucedendo aos apóstolos por de­
terminação do Espírito Santo, governam e zelam individualmente
pelo rebanho que lhes foi confiado.

Os princípios da jurisdição papal e da colegialidade dos


bispos podem coexistir sem maiores problemas ou de um modo
bastante turbulento. Em bora os seus delegados houvessem
discutido essa questão em conjunto e a despeito do que foi afir­
mado nos trechos acima, o Concilio Vaticano I não conseguiu
resolver de modo completo e definitivo a questão da relação
entre o papa e os bispos. A resolução dessa espinhosa questão
caberia ao Concilio Vaticano II.

170
ADMIRÁVEL M UNDO NOVO:
A dm irável novo c o n c íl io

O C o n c íl io V atican o II (1962-1965)

eleição de João XXIII para o papado foi surpreendente


A em muitos aspectos. Ele não era o candidato favorito ao
papado quando Pio XII faleceu em 1958 e, segundo aquilo
que podemos depreender, foi eleito como um candidato de
compromisso para exercer um mandato tampão. Afinal, aos
77 anos de idade, que mal esse bondoso homem poderia fazer?
Com certeza, ninguém esperava que ele deixasse uma marca
duradoura na história da Igreja. No entanto, no momento em
que o seu nome foi anunciado, houve algum a surpresa. Ele
havia escolhido ser chamado de “João XXIII”, o mesmo nome
do papa que havia fugido do Concílio de Constança e que mais
tarde acabou sendo deposto por esse mesmo concílio geral.
Desde então, esse nome papal nunca mais havia sido escolhido
novamente, mas o cardeal Ângelo Roncalli não era um homem
IDADE MODERNA

de se sentir preso ao passado.


OS CONCÍLIOS DA

Menos de três meses depois de sua eleição, este João XXIII,


em um anúncio surpreendente, contou que em um momento
PARTE Q U A T R O

em que se encontrava rezando a ideia de um “concilio ecumê­


nico” subitamente apareceu em sua mente, embora, segundo
alguns relatos, houvesse indícios de que ele já vinha pensando
em convocar um concilio há algum tempo, talvez até mesmo
durante o conclave que o elegeu. Em todo caso, essa decisão
sem dúvida havia sido exclusivamente sua, pois ele não havia
feito nenhum a consulta sobre a conveniência do C oncilio
Vaticano II antes de convocá-lo.

PREPARAÇÃO, EXPECTATIVAS E INOVAÇOES

Em janeiro de 1959, a notícia se espalhou praticamente de


modo instantâneo em um mundo do século XX dominado pela
televisão e pelo rádio, provocando curiosidade e excitação por
parte do público, mas gerando grande ansiedade entre muitos
membros da cúria. A elaboração da agenda do concilio se atrasou
devido às discrepâncias que começaram a surgir entre as expec­
tativas dos bispos diocesanos de todo o mundo, que trabalhavam
diretamente com os fiéis, e as dos bispos pertencentes à cúria
de Roma, que, acima de tudo, queriam que houvesse o menor
número possível de contratempos. A cúria esperava por um
concilio que seguisse os moldes medievais e que fosse domina­
do pelo papa, ou seja, no mesmo estilo dos concílios gerais de
Latrão, nos quais quase tudo o que os delegados tinham a fazer
era aprovar uma agenda papal preestabelecida. Já os bispos de
todo o mundo, e aparentemente o próprio João XXIII, tinham
outros planos para o concilio.
De um modo surpreendentemente rápido, uma questão que
havia sido deixada em aberto pelo Concilio Vaticano I veio à
tona: qual era a relação que existia entre o papa (e a cúria) e os
172 bispos que se dedicavam ao serviço pastoral entre o povo comum
A D M IR Á V E L M U N D O N O V O :
da Igreja? Seria o Concilio Vaticano II uma oportunidade para |
os bispos locais de influenciar o concilio de um modo mais |
significativo do que os membros da cúpula de Roma, mesmo 2
que para isso eles se baseassem apenas em sua superioridade §
numérica? C om o os bispos poderíam exercer um papel que §
transcendesse a sua mera condição de pastores locais, tornando-se §
integrantes efetivos de um colégio de bispos que compartilhava o
suas preocupações com a Igreja universal com o próprio papa, i
que também era um bispo como eles? Na prática, qual seria a |
posição do colégio de bispos em relação à autoridade doutrinária >
da Igreja? Essas questões cruciais não haviam sido abordadas z
de modo completo pelas declarações teóricas Dei filius e Pastor =
aetemus do Concilio Vaticano I. Mas parecia que o Concilio §
Vaticano II seria uma ótima oportunidade para encontrar res- 3
postas definitivas para elas e, em seguida, aplicá-las na prática “
de um modo mais eficiente. Mas os bispos curiais e os bispos
diocesanos se preparavam para participar do Concilio Vaticano
II com idéias conflitantes sobre quais seriam essas respostas e
sobre quais seriam as suas aplicações na prática.
Em parte, toda a excitação e curiosidade sobre o Concilio
Vaticano II, bem como a possibilidade de que fosse bastante
conturbado, se devia ao fato de que, conforme João XXIII ha­
via dito no anúncio de sua convocação, ele representaria uma
ruptura com 0 passado. Os historiadores costumam classificar os
vinte concílios gerais anteriores em quatro categorias principais,
sendo que alguns concílios se encaixam em mais de uma delas.
A primeira inclui os concílios gerais cujo objetivo principal havia
sido o da reunificação da Igreja, como 0 Concilio de Lyon II e a
fase florentina do Concilio de Basileia-Ferrara-Florença-Roma.
A segunda inclui os concílios gerais que condenaram heresias e
formularam doutrinas, caso dos primeiros concílios gerais e do
Concilio de Trento. A terceira categoria de concílios se reuniu
para abordar questões bastante específicas, como a de reagir a
determinados desafios ou abordar questões consideradas urgen­
tes. O Concilio de Constança acabou com o cisma, 0 Concilio
de Trento reagiu à reforma protestante e o Concilio Vaticano I 173
definiu o conceito de infalibilidade papal. Na quarta categoria
IDADE MODERNA

estão aqueles concílios cuja principal preocupação havia sido


OS CONCÍLIOS DA

a reforma da Igreja, embora quase todos os concílios tivessem,


de certo modo, abordado a questão da reforma. Os quatro pri­
a u a i ro

meiros concílios de Latrão e o Concilio de Trento podem ser


p a r ib

classificados como os exemplos mais importantes dessa categoria


de concílios reformistas.
Desde o primeiro momento, João XXIII havia classificado
explicitamente o Concilio Vaticano II como um concilio “pasto­
ral” que estava destinado a ser diferente dos concílios gerais que
o precederam, pois ele não o havia convocado para fazer frente a
alguma ameaça específica ou para discutir um tema relativo à fé
e à moral, mas sim para promover “a iluminação, a edificação e
a alegria de todos os cristãos”, que obviamente incluíam tanto o
clero quanto os leigos. E também não se restringiam apenas aos
católicos romanos, pois ele convidaria as pessoas pertencentes a
todas as igrejas cristãs a participar do concilio. Por volta de abril
e maio de 1959, João XXIII já falava sobre esse concilio como
um “novo Pentecostes” para uma “nova era”.
Essa determinação inovadora de João XXIII fez com que
teólogos, bispos, historiadores e até mesmo a imprensa procu­
rassem algum precedente, por meio de estudos sobre a história
dos concílios gerais e da publicação de livros e artigos destinados
tanto ao público leigo quanto ao acadêmico. Devido às expec­
tativas de ecum enism o, muitos se voltaram para a época da
reforma para descobrir o que exatamente separava os católicos
dos protestantes. Alguns recuaram ainda mais na história para
reexaminar as origens da divisão entre o Oriente e o Ocidente da
Igreja primitiva. Diversas gerações de teólogos e de historiadores
já haviam começado a se voltar para as fontes originais da Igreja,
especialmente aqueles que se preocupavam com a natureza da
Igreja e com a liturgia. Eles diziam que a Igreja somente poderia
seguir adiante se estivesse fortemente vinculada ao seu passado,
por meio da rememoração e da renovação das tradições da Igreja
e, ao mesmo tempo, aberta às inovações legítimas.
Os estudiosos não conseguiram encontrar nenhum modelo
174 que fosse comparável a esse concilio pastoral de João XXIII. Na
ADMIRÁVEL MUNDO NOVO:
verdade, esse concilio geral foi inovador em muitos aspectos. |
Como não havia nenhuma heresia influente e complexa como |
o arianismo a ser abordada, os concílios do primeiro milênio não z
seriam de muita ajuda. As situações enfrentadas pelos concílios o
de Trento e do Vaticano I não tinham muita semelhança com §
aquelas que estavam para ser enfrentadas pelo Concilio Vati- 5
cano II. Talvez o Concilio de Latrão IV fosse aquele que mais o
se aproximasse de um protótipo desse novo concilio. Embora |
certamente não houvesse provocado uma reorientação maciça §
da Igreja como o Concilio Vaticano acabaria provocando, o f
Concilio de Latrão IV havia sido a culminação de séculos de §
evolução teológica e reformista, exatamente o que o Concilio ~
Vaticano II finalmente se revelaria. £to
Enquanto a busca por um precedente histórico estava em 3
andamento, algumas pessoas começaram a se preocupar com ~
o fato de que a onda de entusiasmo inicial já estava se desvane­
cendo ou sendo contida. Nos anos que transcorreram entre o
anúncio de sua convocação por João XXIII em janeiro de 1959 e
a primeira sessão desse concilio geral em outubro de 1962, ainda
não era inteiramente possível prever que o Concilio Vaticano II
seria responsável por um aggiomamento sem precedentes. Roma
começou a se preparar para o Concilio vaticano II enviando um
convite aos bispos de todo o mundo para que externassem suas
opiniões sobre determinadas questões e para que sugerissem
outras questões para serem discutidas. Boa parte dos relatórios
que foram entregues pelos bispos desafiou a centralização de
Roma e da cúria. Em grande medida, as opiniões emitidas pelos
bispos eram de ordem prática e pastoral, ou seja, estavam de
acordo com as idéias de João XXIII. No entanto, alguns bispos
diocesanos acabaram se aliando aos curialistas que desejavam
que esse concilio geral fosse um “bom e velho” concilio, com
direito a definições doutrinárias e a condenações, a exemplo
dos concílios de Trento e do Vaticano I.
As opiniões escritas que os bispos diocesanos enviaram a
Roma também indicavam que eles gostariam que a Igreja se
adaptasse aos tempos modernos e às diversas culturas, embora 175
tenham apresentado um a grande variedade de idéias sobre
ID A D E M O D ER N A

como atingir essa meta. Muitos bispos em atividade pastoral


OS CO N CÍLIO S DA

também favoreciam uma renovação da liturgia, especialmen­


te no que dizia respeito ao aumento da participação ativa dos
PA R TE a U A T R O

leigos e do emprego de línguas locais. Alguns demonstravam


preocupação com a lentidão ou até mesmo a inércia de Roma
em se adaptar a esses novos tempos e gostariam de se concentrar
apenas nos assuntos internos da Igreja, pois temiam que a cúria
conseguisse diminuir o alcance da visão abrangente e aberta
de João XXIII.
Evidentemente, todas essas expectativas e esperanças em
relação ao novo concilio e ações empreendidas pela cúria não
podiam ser separadas do contexto do final da década de 1950 e
do início da década de 1960. A Guerra Fria ameaçava o mundo
com a aniquilação nuclear e, em uma coincidência surpreen­
dente, a abertura do Concilio Vaticano II ocorreu em 11 de
outubro de 1962, exatamente alguns dias depois de o presidente
John F. Kennedy haver recebido alguns relatórios confirmando
a presença de plataformas de lançamento de mísseis soviéticos
situados a uma distância de apenas 145 quilômetros dos Esta­
dos Unidos, fato que acabou desencadeando a tensa crise dos
mísseis cubanos, que durou duas semanas. No mundo inteiro
os desafios às autoridades constituíam a norma, e as tentativas
de se obter a autodeterminação estavam na ordem do dia, pois
as colônias e as ex-colônias europeias, especialmente na África,
começaram a lutar pela sua independência. Era um mundo
m arcado pela m udança, e João XXIII não permitiría que a
Igreja ficasse para trás.
Os avanços tecnológicos também afetaram o concilio. O
envolvimento da imprensa não foi exatamente uma novida­
de, pois os jornalistas já haviam desempenhado algum papel
durante o Concilio Vaticano I, mas sem dúvida o alcance da
imprensa havia aumentado de duas maneiras substanciais. Em
primeiro lugar, ela era agora uma imprensa de “massa”, com
cerca de mil repórteres de todos os cantos do mundo cobrindo
176 não apenas o evento como um todo, mas também as atividades
A D M IR Á V E L M U N D O N O V O :
de seus bispos locais e qual seria o impacto do concilio em seus |
países de origem. Estes repórteres não trabalhavam apenas para |
jornais católicos, pois a imprensa secular vinha demonstrando z
um interesse cada vez maior pelo que estava acontecendo na §
Igreja e nem sempre os seus repórteres eram católicos. Isso fez §
com que alguns jornalistas que não estavam familiarizados com §
os assuntos católicos cometessem alguns enganos, mas também o
com que a cobertura do concilio tivesse uma perspectiva mais §
ecumênica. §
Em segundo lugar, a imprensa era de “massa” porque ela s
já não se restringia mais à venda de publicações escritas. Pela |
primeira vez na história, os católicos de todo o mundo podiam =
ver e ouvir por si mesmos, pela televisão, o desenrolar dos acon- g
tecimentos de um concilio geral. O Concilio Vaticano II foi o 3
primeiro concilio geral em que os microfones, alto-falantes, ~
gravadores, câmeras, telefones e luz elétrica estiveram presentes.
Outro fato inédito em toda a história conciliar foi a reunião desse
concilio geral na nave principal da basílica de São Pedro.
Todos esses fatos inéditos ajudaram a transformar o Concilio
Vaticano II em um acontecimento de repercussão mundial, que
atraiu a atenção de católicos romanos, cristãos não católicos,
judeus, muçulmanos, fiéis das demais religiões e até mesmo de
pessoas sem religião. A cobertura da imprensa permitiu que o
público testemunhasse o maior concilio geral que já se havia
reunido. Um número surpreendentemente grande de 2.500
bispos chegou a participar do Concilio Vaticano II e o compa-
recimento médio às suas sessões foi de aproximadamente 2.200
bispos. A sua participação era uma tradução fiel do conceito de
Igreja universal, pois incluíam até mesmo comunidades relati­
vamente recentes de católicos no mundo em desenvolvimento,
cujos bispos agora eram nativos. Os bispos europeus totalizavam
pouco menos da metade da assembléia, os latino-americanos
(oriundos da América Central e do Sul) aproximadamente um
quarto, os norte-americanos pouco menos que um quarto, e os
africanos e asiáticos talvez dez por cento cada um. Até mesmo
alguns bispos provenientes do outro lado da Cortina de Ferro 1 77
conseguiram comparecer. Quase uma centena de superiores de
z ordens religiosas também participou do concilio. Além disso,
OS CONCÍLIOS DA

□ cerca de quinhentos teólogos, historiadores, liturgistas e acadê-


§ micos de todas as disciplinas eclesiásticas prestaram assistência
q ao Concilio Vaticano II, normalmente como peritos (periti) que
o assessoravam a cada um dos bispos e aos comitês.
A presença de observadores não católicos foi um importante
acréscimo para o Concilio Vaticano II. No início, o concilio
contou com a presença de 31 representantes ortodoxos, angli­
canos e protestantes. Ao longo do concilio, esse total chegou a
quase uma centena de representantes de cerca de trinta igrejas e
denominações. Eles não podiam votar ou fazer o uso da palavra
nas deliberações formais do concilio, mas compareciam às suas
sessões e, uma vez por semana, se reuniam em um encontro do
Secretariado para a União dos Cristãos, quando podiam fazer o
uso da palavra. Boa parte desses cristãos não católicos exerceu
grande influência durante as discussões informais que foram
travadas entre bispos, membros da cúria, teólogos, acadêmicos
e jornalistas.

O ATO DE ABERTURA

Às vésperas do início do Concilio Vaticano II, uma onda


de pessimismo percorreu Roma. Os documentos e a agenda
que haviam sido preparados pela cúria haviam suplantado as
preocupações dos bispos diocesanos e havia a impressão de que
temas de ordem mais acadêmica e teórica haviam substituído as
preocupações práticas e pastorais. Os jornalistas se queixavam
porque ninguém estava disposto a revelar nada para eles. Mas o
mais importante era que os bispos de todo o mundo ainda não
sabiam qual seria o seu papel no concilio. Alguns temiam que,
no final das contas, o Concilio Vaticano II acabaria por se revelar
um mero encontro cerimonial, em que os bispos diocesanos
simplesmente aprovariam decisões previamente tomadas pelo
178 PaPa e Pela cúria. Além disso, não era todo bispo que saberia
A D M IR Á V E L M U N D O N O V O :
A d m iráv el n o v o c o n c il io -
como participar de um encontro que dependia da colaboração
de todos, se é que o Concilio Vaticano II seria mesmo uma
conferência episcopal internacional, pois nenhum deles jamais
havia comparecido a um concilio.
Mais uma vez, João XXIII surpreendería a Igreja, ao se co­
locar firmemente a favor de uma visão ainda mais abrangente
do concilio. Em seu discurso de abertura, em outubro de 1962,

O
C o n c il io V a u c a n o
ele afirmou que o Concilio Vaticano II deveria trazer a Igreja
para o século XX e combater uma mentalidade de que a Igreja
era uma instituição que se encontrava sob ameaça, o que aca­
bara fazendo com que ela desse as costas ao mundo. De um
modo ainda mais direto, fez um alerta contra os “profetas do

II (1962-1965)
juízo final” que tinham uma visão negativa do estado em que
o mundo se encontrava e do lugar que a Igreja ocupava neste
mundo. João XXIII deixou bem claro que caminho o concilio
deveria seguir.
No entanto, não foi fácil para o velho papa colocar a cúria
em segundo plano. A primeira tarefa do concilio era a realiza­
ção de uma votação que iria escolher aqueles que presidiriam
as comissões episcopais que discutiríam determinados tópicos.
Os membros da cúria haviam preparado as suas próprias listas
de bispos favoritos, a maioria dos quais era composta de mem­
bros dos comitês que haviam sido responsáveis pela preparação
do Concilio Vaticano II. Eles esperavam que os membros do
concilio simplesmente copiassem os nomes desses bispos, que
a cúria considerava confiáveis e simpáticos à sua agenda, plano
que podería ter funcionado sem problemas, pois simplesmente
não havia nenhum meio de os membros do concilio conhecerem
suficientemente bem os 160 bispos indicados (dezesseis para
cada uma das dez comissões) para tomar uma decisão acertada
sobre qual seria o bispo mais adequado para cada tarefa. A cúria
estava certa de que o concilio aprovaria as suas escolhas, mas
acabou acontecendo algo inteiramente diferente.
Em um momento tão dramático quanto as palavras ousadas
que haviam sido proferidas alguns dias antes por João XXIII, o
Cardeal Liénard, bispo de Lille, sugeriu que essa votação fosse 179
adiada por alguns dias para que os bispos pudessem conhecer
z melhor nns aos outros. Desse modo, poderiam tomar decisões
OS CONCÍLJOS DA

q mais bem fundamentadas e escolher por si próprios os candidatos


| que considerassem apropriados para presidir cada comissão. Essa
PARTE Q U A T RO

3 proposta, que seria aprovada, ajudou os bispos diocesanos a im-


q pedir que o concilio fosse controlado exclusivamente pela cúria.
Conferências episcopais de vários países agiram prontamente
para apresentar os seus membros uns aos outros, o que acabou
contribuindo para que houvesse uma maior autodeterminação
conciliar. A partir de então, os bispos com experiência pastoral
oriundos de todas as partes do globo poderiam fazer com que
as comissões fossem mais pragmáticas e apresentassem um grau
maior de diversidade, apresentando a elas os seus problemas, as
suas soluções e os seus programas bem-sucedidos.
A cúria não ficou nem um pouco satisfeita, mas João XXIII
estava radiante. O Concilio Vaticano II estava agora nas mãos
dos pastores do mundo inteiro, que, a partir de então, não hesi­
taram mais em dizer exatamente aquilo que pensavam. Alguns
anos mais tarde, um episódio relativo à preparação do esboço de
um documento sobre a atividade missionária seria o primeiro
exemplo de independência episcopal do Concilio Vaticano II.
Ninguém mais do que o próprio papa Paulo VI havia falado
abertamente a favor desse esboço, mas a maioria esmagadora
dos bispos votou contra ele (e contra o apoio que o papa havia
dado a ele) e enviou o texto que havia sido proposto de volta
para o comitê para que fosse submetido a uma ampla revisão.
O Concilio Vaticano II agiu desse modo durante os quatro
períodos outonais entre 1962 e 1965. João XXIII viveu apenas
para presenciar o primeiro, pois faleceu em junho de 1963, e
Paulo VI foi eleito algumas semanas depois. Os cardeais reuni­
dos no conclave que o escolheu certamente estavam bastante
preocupados com uma questão de fundamental importância:
qual seria a posição do próximo papa em relação ao Concilio
Vaticano II? Os cardeais que estavam descontentes com o rumo
que o concilio havia tomado certamente teriam votado em um
180 candidato que fosse a antítese de João XXIII. Outros cardeais
A D M IR Á V E L M U N D O N O V O :
obviamente gostariam que o concilio continuasse. Paulo VI í
foi uma boa escolha, porque, embora tivesse passado a maior |
parte de sua carreira como membro da cúria, também havia z
sido bispo diocesano e tinha a reputação de ser relativamente §
progressista. Sem demora, ele deixou bem claro o seu desejo §
de que o Concilio Vaticano II continuasse a seguir o mesmo 5
rumo que já havia sido estabelecido e até foi um pouco mais o
longe ao permitir que conselheiros leigos também participassem |
do concilio. Em 1965, cerca de cinquenta leigos já haviam g
participado do Concilio Vaticano II: aos trinta leigos do sexo f
masculino se juntaram quase duas dúzias de mulheres, sendo I
que metade delas eram freiras. ~
O''
O
KJ
\0
TEMAS E D O C U M EN TO S ~

Do mesmo modo que as três fases do Concilio de Trento,


que haviam se reunido ao longo de um período de dezoito
anos, cada período outonal do Concilio Vaticano II teve a sua
própria composição, estilo, andamento, conflitos, resoluções
e anedotas. Entre os encontros formais que se reuniam a cada
outono, comissões se reuniam, teólogos debatiam, propostas eram
continuamente revisadas, jornalistas noticiavam e os defensores
dos mais variados pontos de vista provocavam agitação em todos
os cantos do mundo. Não cabe a este estudo sobre os concílios
gerais entrar em maiores detalhes sobre o teor de cada uma das
fases do Concilio Vaticano II e dos intervalos que ocorreram
durante elas. Para atingir o nosso propósito, talvez seja melhor
fazer um apanhado geral dos dezesseis documentos que foram
produzidos pelo Concilio Vaticano II, sempre tendo em mente
que esses resumos não podem retratar os dramas individuais que
se desenrolaram no momento em que o concilio elaborava
cada um deles.
Esta abordagem do C oncilio Vaticano II pode parecer
desproporcional em comparação às que foram feitas sobre os
documentos dos outros concílios gerais neste livro. Mas existem 181
duas razões principais para que todos os documentos do con-
z cílio geral mais recente sejam examinados com maior detalhe,
OS CONCÍLIOS DA

o Em primeiro lugar, alguns números demonstram a existência


§ de uma grande disparidade, pois os documentos do Concilio
PARTE Q U A T R O

S Vaticano II são muito mais longos do que os de qualquer outro


Q concilio. Da coleção que foi consultada para a elaboração deste
livro, os documentos do Concilio Vaticano II totalizam 315
páginas, perfazendo mais de um quarto do total. A seguir, temos
as declarações do Concilio de Trento, com 139 páginas, um
número significativamente menor do que o total do Concilio
Vaticano II, e depois os documentos do Concilio de Basileia-
Ferrara-Florença-Roma, com 136 páginas. A segunda razão pela
qual é necessário fazer um resumo de todos os docum entos
do Concilio Vaticano II é a de que eles diferem substancial­
mente dos documentos produzidos pelos vinte concílios gerais
anteriores. A maioria dos documentos anteriores era bastante
breve e diretiva, tais como credos, condenações, definições e
regulamentos. Já os documentos do Concilio Vaticano II soam
mais como declarações de intenções que abordam questões e
perspectivas de ordem geral, o que faz com que o seu estilo seja
inteiramente diferente dos demais.
Os historiadores gostam de chamar novas abordagens como as
que se encontram presentes nas longas declarações do Concilio
Vaticano II de “mudanças de paradigma”, que nada mais são
do que uma nova maneira de se pensar que acabam por virar as
velhas idéias ao avesso. Os documentos do Concilio Vaticano
II foram responsáveis por diversas mudanças de paradigma. Por
exemplo, o Concilio Vaticano II, tomando de empréstimo uma
expressão que havia sido empregada anteriormente por João
XXIII, se refere com frequência a uma nova era, a uma nova fase
da humanidade e aos avanços que algumas vezes ocorrem com
demasiada rapidez. A história, a sociedade e principalmente a
tecnologia parecem avançar cada vez mais sem que haja uma
pausa, fazendo com que o mundo e a Igreja tenham grande
dificuldade em acompanhar essa evolução. A regra é a mudança
182 e a inovação e, aparentemente, não existe mais coisa alguma
A D M IR Á V E L M U N D O N O VO :
que consiga se manter inalterada, de modo que as pessoas têm
de se adaptar constantemente a essas mudanças.
O Concilio Vaticano II afirmou que a Igreja não poderia se
dar ao luxo de ser deixada para trás. Se quisesse influenciar a
sociedade moderna, deveria adaptar-se a ela e participar dela, e
ao mesmo tempo oferecer às pessoas um porto seguro e firme que
só pode ser alcançado por meio de uma fé que nunca muda.
n
c

[A] Igreja tem a obrigação de exam inar em todas as épocas


os sinais dos tem pos e interpretá-los à luz do Evangelho; para que
assim possa responder de m odo apropriado para cada geração às
eternas perguntas dos hom ens acerca do sentido da vida presen­
te e da futura, e da relação entre am bas. E por isso necessário
conhecer e com preender o m undo em que vivemos. (Gaudium
et spes, n. 4)

Juntamente com “sinais dos tempos”, aggiomamento é uma


das expressões mais associadas a uma das mudanças de paradigma
do Concilio Vaticano II, que normalmente é traduzida como
“atualização”. No entanto, a palavra atualização dá a impressão
de que, uma vez que alguma coisa é atualizada, não haveria
mais necessidade de atualizá-la novamente. Uma tradução mais
precisa e também mais literal seria “o ato de colocar as coisas
em dia”. Apesar de ser um pouco desajeitada, essa expressão nos
faz lembrar com exatidão que o aggiomamento é um processo
permanente. O concilio Vaticano II determinou que a Igreja
promovesse um aggiomamento em duas esferas principais: a
institucional (relativa à estrutura da Igreja) e a individual (relativa
a cada um dos cristãos). Segundo o concilio, a melhor maneira
de atingir essa meta seria a de respeitar e a de fortalecer tanto
a tradição quanto a inovação, ao invés de procurar contrapor
uma à outra.
Uma outra mudança de paradigma foi a da comparação da
imagem da Igreja com a de um peregrino. O Concilio Vaticano
II se referiu repetidamente à Igreja como uma jornada física e
espiritual da vida terrena para a vida eterna no paraíso. Como 183
tal, ela cometería erros e deslizes porque era perfeita e imperfeita
z ao mesmo tempo: perfeita porque havia sido fundada por Jesus
OS CONCÍLIOS DA

o e imperfeita porque é povoada por seres humanos falíveis. Os


| dezesseis documentos instituíram outras mudanças, tais como
S um a visão positiva do mundo e da cultura modernos, um a
o participação crescente dos leigos na Igreja, a celebração da di­
versidade e a tentativa sistemática de estender o seu alcance às
outras religiões (cristãs e não cristãs) e às pessoas sem religião,
ou seja, a toda a humanidade. Essas questões transcendem o
conteúdo dos dezesseis documentos produzidos pelo Concilio
Vaticano II ao longo de seus quatro períodos outonais. Agora é
a vez de examinar cada um deles, sem que para isso seja neces­
sário apresentá-los em ordem cronológica.

A IGREJA E O M U N D O

Talvez o documento mais extraordinário que o Concilio


Vaticano II produziu seja a Gaudium et spes, referente à relação
da Igreja com o mundo moderno. Esse documento reconhecia
a diversidade cultural e os recentes avanços mundiais e indicava
que a Igreja desejava ter um grau de abertura até então inédito
em relação ao mundo que a circundava e romper com uma
atitude duradoura de contemptis mundi (desprezo pelo mundo).
O seu tom revelava que a Igreja estava profundamente ciente
do que acontecia no mundo e que ela procuraria agir de um
modo bem diferente daquela instituição fechada, distante e
inacessível que havia sido algumas vezes. Mas o Concilio Va­
ticano II não queria apenas chegar a uma convivência pacífica
com o mundo, pois estava em busca de um engajamento e de
um diálogo genuínos.
Esse diálogo da Igreja com o mundo consistia em um a
tentativa de interpretação dos sinais dos tempos para poder
reagir a eles. O documento Gaudium et spes reconhecia que os
ricos estavam se tornando cada vez mais ricos e os pobres cada
184 vez mais pobres. Ele reconhecia a existência da mudança, do
A D M IR Á V E L M U N D O N O V O :
individualismo, do ateísmo, da ameaça de uma guerra nuclear, |
dos avanços tecnológicos que, impulsionados por uma “menta- |
lidade científica”, se encontravam aptos até mesmo para enviar z
o homem ao espaço, da urbanização e da industrialização, e §
das reivindicações por uma igualdade econômica e entre os §
sexos. Ao invés de dar as costas a essas mudanças gigantescas, o o
documento Gaudíum et spes orientava a Igreja a encará-las como o
oportunidades de evangelização e de santidade. A modernidade i
poderia ajudar a Igreja, e a Igreja poderia ajudar a modernida- g
de, pois o intercâmbio entre as duas beneficiaria a ambas. Esse f
documento também orientava a Igreja a proteger os direitos z
políticos e econômicos de todas as pessoas. Ao mesmo tempo, =
ele se concentrou na renovação da espiritualidade individual e §
na obrigação de cada um de ajudar e servir ao próximo. 3
Ç/l

O Q U E É A IG R EJA?

Um outro documento de fundamental importância discutia


sobre o caráter e a função da Igreja, assinalando qual era o ob­
jetivo principal desta última em seu título em latim. A Lumen
gentium descrevia Jesus como a luz de todas as nações e desejava
que essa luz se espalhasse por todo o mundo. Esse documento
se dedicou a um ramo da teologia conhecido como eclesiologia,
que trata da natureza e da missão da Igreja, sobretudo de suas
atribuições universais. A Lumen gentium apresentava diversas
imagens da Igreja que atuavam simultaneamente. Ela era tanto
uma instituição quanto o corpo místico de Cristo, era formada
ao m esmo tempo pelo clero e pelos leigos, pelos membros
dirigentes e subordinados, pela hierarquia e por uma comu­
nidade descentralizada de fiéis. Também declarava que tanto
a Igreja como instituição quanto cada um de seus membros
se encontravam em peregrinação, uma ideia que evitava um
pouco do triunfahsmo que algumas vezes havia se mostrado
evidente durante os concílios do primeiro milênio e o Concilio
de Trento. Em um contraste bastante pronunciado à expressão 185
anathema sit, que fez com que a Igreja passasse a ser considerada
intolerante (especialmente em seus concílios gerais), a Lumen
gentium encarava de um modo positivo todas as pessoas que
estavam à procura de Deus, independentemente do caminho
que escolhessem, fosse ele católico, cristão ou não cristão.
Uma seção absolutamente essencial da Lumen gentium
abordava cuidadosamente algumas das questões que o Concilio
Vaticano I havia deixado sem resposta, como a da relação que
havia entre o papa e os bispos, que o próprio Paulo VI gostaria
que fosse esclarecida. Por meio de seu texto e de um a nota
explicativa que se seguia a ele, a Lumen gentium descrevia a
primazia papal usando termos muito parecidos com os que foram
empregados pela declaração Pastor aetemus do Concilio Vati­
cano I. No entanto, a Lumen gentium também afirmava que os
bispos eram membros de um colegiado e também desfrutavam
da sucessão apostólica. Cada bispo é considerado “o princípio
e o fundamento” da unidade de uma igreja local (diocese),
enquanto o papa é “o princípio e o fundamento” da unidade da
Igreja universal. Quando os bispos de todo o mundo se reúnem
em um órgão colegiado, eles assessoram o papa e compartilham
com ele as mesmas preocupações sobre a Igreja universal, como
na ocasião em que se reúnem em um concilio geral.
A Lumen gentium tam bém delineou de um modo mais
profundo o vínculo absoluto que unia o papa aos bispos. Os
bispos só podem exercer os ofícios de ensinar e de governar
se estiverem em comunhão com os seus pares e com o papa,
que é tanto um membro do colégio de bispos como todos os
demais quanto o seu líder. Não existe igualdade entre o líder
(o papa) e os demais bispos. Os bispos não podem agir em con­
junto sem o consentimento do papa, pois devem estar sempre
em comunhão com ele. N o entanto, embora o papa tenha o
poder de determinar quais serão as suas atribuições e de exercer
algum grau de supervisão sobre eles, os bispos não são meros
delegados papais, pois possuem a sua própria autoridade e têm
certo grau de independência. Mas o mais notável de tudo foi
a extensão do princípio da infalibilidade papal ao colégio de
A D M IR Á V E L M U N D O N O V O :
bispos pela seção de número 25 do documento Lwnen gen-
tium, que, depois de reafirmar o que havia sido declarado pelo
Concilio Vaticano I sobre a infalibilidade papal, afirmava que
“a infalibilidade prometida à Igreja reside também no colégio
episcopal, quando este exerce o supremo magistério em união
com o sucessor de Pedro”.
o
n

LEIGOS E EDUCAÇAO O
<>;
As palavras empregadas pela Lumen gentium para se referir aos z

leigos como parte integrante da Igreja relacionam este documento


a um outro chamado Apostolicam actuositatem, que discute o o
sO
to
papel dos leigos na Igreja de um modo mais abrangente. A seção O
Ln'
sO

de número 33 da Lumen gentium ensina que cada leigo, seja


ele homem ou mulher, tem uma vocação cristã: “o apostolado
dos leigos é participação na própria missão salvadora da Igreja, e
para ele todos são destinados pelo Senhor, por meio do batismo
e da crisma”. Os pastores tinham a obrigação de respeitar este
fato e os diversos papéis desempenhados pelos leigos, inclusive
a sua participação em ministérios apropriados. Na verdade, a
Lumen gentium afirmava que os leigos deveríam desempenhar
o papel principal na tarefa de trazer o cristianismo para os locais
de trabalho ou para outros ambientes leigos.
A Apostolicam actuositatem explorou esses pontos de vis­
ta em pregando os termos referentes à vocação dos leigos e
conclamando-os a servirem ao próximo. Este documento en­
sinava que, no mundo moderno, o apostolado dos leigos havia
se tornado mais abrangente, mais importante e mais urgente,
sobretudo no que dizia respeito à participação das mulheres
na Igreja, que precisava aumentar. Um novo departamento na
cúria foi criado para que os objetivos e responsabilidades dos
leigos descritos de modo geral pela Apostolicam actuositatem
fossem alcançados.
O C oncilio Vaticano II tam bém ensinava que os leigos
tinham a obrigação de trazer o cristianismo para fora do inte- 187
rior da Igreja para que o mundo fosse renovado. A vida de um
IDADE MODERNA

leigo e a sua fé deveríam combinar-se para atingir um único


OS CONCÍLIOS DA

objetivo, pois o seu trabalho, os seus deveres familiares, as suas


atividades sociais e voluntárias e os seus princípios cristãos ja­
P A RT E Q U A T R O

mais deveríam ser considerados separadamente. O documento


A postolicam actuosítatem orientava os leigos a empregar as
suas habilidades intelectuais, o seu preparo profissional não
religioso e a sua formação para descobrir como o cristianismo
poderia atuar em face de novas questões, situações modernas e
assuntos revolucionários. Ele também determinava que os leigos
tivessem uma formação espiritual e doutrinária mais abrangente
para que o seu apostolado tanto na Igreja quanto no mundo se
expandisse e evoluísse.
Para exercer esse apostolado, os leigos precisavam saber mais
sobre a sua fé. Em sua declaração Gravissimum educationis
sobre a formação cristã, o Concilio Vaticano II reconhecia a
necessidade da adoção de novos métodos de ensino e apren­
dizado, mas admitia que as conferências episcopais poderíam
formular esses métodos e adaptá-los às culturas locais. A G ra­
vissimum educationis ensinava que todas as pessoas tinham o
direito inalienável à educação, mas também afirmava que os
pais eram os principais responsáveis pela transmissão de sua fé
aos seus filhos. Além de sublinhar a importância das escolas
católicas, o Concilio Vaticano II também destacou a importân­
cia de se ajudar os alunos de escolas não católicas a aprender
sobre questões de fé. As instituições de ensino superior também
deveríam se preocupar com a catequese, e todos aqueles que
estivessem envolvidos com educação sempre deveríam ficar
atentos aos professores e aos jovens talentosos que poderíam
receber orientação religiosa dentro das salas de aula.

LITURGIA E ESCRITURAS

Além da formação católica e da catequese, os leigos tam-


188 bém poderíam aumentar significativamente a sua participação
A D M IR Á V E L M U N D O N O V O :
na Igreja por meio da liturgia. O docum ento Sacrosanctum |
concilium, sobre a liturgia, afirmava que entusiasmo crescente |
pela renovação litúrgica era obra do Espírito Santo. O Concilio z
Vaticano II orientava a Igreja a fazer uma adaptação dos atos é
litúrgicos que eram passíveis de modificação, mas sempre se 8
certificando de que o novo fosse organicamente derivado do §
antigo e que as inovações, adaptações e outras reformas não o
representassem um a ruptura com as tradições da Igreja. O o
Sacrosanctum concilium defendia reiteradamente um maior ^
envolvimento e conhecimento litúrgico por parte dos fiéis, que
deveríam estar cientes “do que estava se passando”. Todos aqueles >
que comparecessem a um ato litúrgico deveríam participar das ~
celebrações de maneira “completa, consciente e ativa”. 3
O Sacrosanctum concilium afirmava que a Igreja deveria ^
enfatizar a natureza comunal das liturgias e que todos deveríam ^
participar delas com fervor. Ele encorajava o canto (acompanhado
por outros instrumentos além do órgão) e um recebimento mais
frequente da eucaristia. Esse documento louvava a diversidade
de orações, atribuía ao bispo local a decisão sobre a conveniên­
cia e as vantagens de se introduzir as línguas locais nas liturgias
e determinava que os ritos fossem mais simples para que eles
pudessem voltar às suas origens. Mais do que qualquer outro,
esse documento contribuiu de forma significativa para que o
aggiomamento promovido pelo Concilio Vaticano II atingisse
o seu alvo principal.
O Concilio Vaticano II também abordou as escrituras, um
outro tópico que também afetava as pessoas de um modo mais
profundo. O documento conciliar Dei verbum, sobre a revelação,
nos remete aos termos tradicionais empregados pelo Concilio
de Trento quando este lembrava aos católicos de confiar tanto
nas escrituras quanto na tradição.

[A] sagrada tradição e as sagradas escrituras estão intimamente


unidas e compenetradas entre si. Ambas derivam da mesma fonte
divina, se fundem até certo ponto e tendem ao mesmo fim. [...]
[Tanto] a escritura [quanto] a tradição devem ser recebidas e veneradas
com igual espírito de piedade e reverência. (Dei verbum, n. 9)
Juntamente com as escrituras e com a tradição, a autoridade
IDADE MODERNA

doutrinária também orienta o entendimento e a interpretação


OS CONCÍLIOS DA

das escrituras pelos católicos.


O entendimento e a interpretação das escrituras se tornou
PARTE a U A T R O

cada vez mais sutil ao longo de séculos de estudos, especialmente


durante os cem anos que antecederam o Concilio Vaticano
II. O concilio reconheceu este fato ao explicar o processo de
formação das escrituras: as testemunhas oculares transmitiam
oralmente o que haviam presenciado para outras pessoas, que
com o passar do tempo escreveram o que lhes havia sido relatado.
O documento Dei verhum citava os quatro evangelhos como
um exemplo desse processo. Ele também orientava os católicos
a empregar métodos modernos para estudar as escrituras, espe­
cialmente por meio da investigação dos contextos históricos e
literários em que se inseriam os autores bíblicos, ou seja, qual
era o seu objetivo, em que gênero escreviam, a que público se
dirigiam e qual era o grau de sensibilidade que prevalecia em
sua época. O Concilio Vaticano II desejava que os católicos
explorassem as escrituras, encorajando traduções da Bíblia em
línguas locais e sobretudo orientando o clero a manter os seus
próprios conhecimentos sobre as escrituras atualizados.

BIS P O S E S A C E R D O T E S , F R E IR A S E IR M Ã O S

Do mesmo modo que o Concilio de Trento, o Concilio


Vaticano II orientou os seus bispos para que supervisionassem
vários aspectos dessas renovações. O concilio encorajou a
atividade pastoral dos bispos em um docum ento separado
chamado Chrístus domínus. Baseando-se em alguns trechos
do documento Lumem gentium, ele descrevia os bispos como
professores que eram encarregados primariamente de lidar
com questões locais, mas que também deveríam dar atenção a
questões regionais ou mundiais quando se reuniam com os seus
pares e com o papa, como no caso de um sínodo regional ou de
190 um concilio geral. O Chrístus dominus determinava que a cúria
A D M IR Á V E L M U N D O N O V O :
fosse reorganizada para que tivesse uma maior representação
internacional e um número maior de bispos com experiência
pastoral e estivesse disposta a ouvir as preocupações dos leigos.
Ele determinava que os bispos dirigissem a sua atenção aos
catequistas, aos seus deveres e à sua formação, que deveria
incluir não apenas um sólido conhecimento em teologia, mas
também em psicologia e pedagogia. Os bispos deveriam en­
n
O
corajar um constante crescimento espiritual e educacional de
seus sacerdotes e impelir os leigos a compreender e a exercer
o seu apostolado exclusivo.
Um documento semelhante, chamado Presbyterorum ordinis,
fazia um apanhado padrão e ao mesmo tempo lírico dos deve­
res dos sacerdotes, de sua saúde espiritual, do seu ministério a
favor do próximo e de sua formação contínua. Ele orientava os
sacerdotes a estarem cientes do seu papel principalmente em
relação aos leigos: os sacerdotes deveriam trocar opiniões com
eles, respeitar estas opiniões e as suas experiências e atribuir a
eles responsabilidades genuínas. O documento Presbyterorum
ordinis também defendia o seu celibato e explicava qual era a sua
natureza. Um outro documento semelhante chamado Optatam
totius dizia respeito à formação dos sacerdotes e orientava as
conferências episcopais a elaborar um novo programa de forma­
ção sacerdotal que enfatizasse as peculiaridades e as adaptações
regionais. Esse programa teria de ser devocional, intelectual e
pastoral e deveria empregar métodos modernos de psicologia,
sociologia e pedagogia no processo de admissão de aspirantes
ao sacerdócio e na formação e avaliação dos seminaristas.
Por meio de mais um outro documento semelhante, chamado
Perfectae caritatis, o Concilio Vaticano II abordava a questão
da renovação das ordens religiosas. Esse documento encorajava
a reação das ordens masculinas e femininas às necessidades e
situações modernas e, ao mesmo tempo, o retorno, a retoma­
da e a renovação dos carismas e das missões originais de seus
fundadores. Um item que se tornou um exemplo visível dessas
mudanças dizia respeito à indumentária religiosa.
191
O hábito religioso, como sinal exterior de consagração, não
< deve ser luxuoso nem elaborado, mas simples e modesto, e deve
zoi
OS CONCÍLIOS DA

UJ satisfazer às exigências de higiene, do estilo contemporâneo e do


O
o apostolado. Se o hábito, masculino ou feminino, não estiver em
PA R TE Q U A T R O

harmonia com essas normas, ele deverá ser modificado. (Perfectae


Q
< caritatis, n. 17)
D

Do mesmo modo que na liturgia, esse aspecto do aggioma-


mento do Concilio Vaticano II também fazia com que a ideia
de renovação saltasse aos olhos de todos.

CATÓLICOS, CRISTÃO S
E AS TRA D IÇÕ ES DE OUTRAS FÉS

Esses documentos diziam respeito apenas ao catolicismo


romano, mas o concilio também queria dialogar com as outras
fés. Alguns concílios gerais anteriores haviam acirrado ainda
mais as tensões entre as Igrejas ocidental e oriental. Ao longo
do primeiro milênio, as igrejas orientais protestaram quando o
papa Leão I suprimiu o cânone 28 do Concilio de Calcedônia
e quando o Ocidente incluiu a palavra filioque no credo sem a
aprovação de um concilio geral. Outros concílios gerais, os de
Lyon II e o de Florença, durante a Idade Média, haviam procurado
reparar essa ruptura, apenas para testemunhar o fracasso dessa
reunificação quase imediatamente depois. O Concilio Vaticano
II queria se sair melhor em relação a essa questão.
A atmosfera libertária e o entusiasmo reinantes no Concilio
Vaticano II, juntamente com as ações empreendidas por Paulo
VI durante e depois do concilio, fizeram com que o Oriente e o
Ocidente se aproximassem. O documento conciliar Orientalium
ecclesiarum tratava respeitosamente das Igrejas católicas orientais
e observava que eles, do mesmo modo que os católicos romanos,
reconheciam a primazia de Pedro e, consequentemente, a do
papa. Em janeiro de 1964, Paulo VI e o patriarca ecumênico
192 Atenágoras I encontraram-se na Igreja do Santo Sepulcro em
A D M IR Á V E L M U N D O N O VO :
Jerusalém . Em dezem bro de 1965, o Oriente ortodoxo e o |
Ocidente católico romano suspenderam as suas excomunhões |
mútuas, que datavam de 1054, em uma declaração conjunta z
que foi lida ao mesmo tempo em Roma e Constantinopla. Em *
julho de 1967, Atenágoras I recebeu Paulo VI em Constanti- %
nopla. Três meses depois, Paulo VI retribuiu a hospitalidade =
de Atenágoras I recebendo-o em Roma. °
Uma das outras tentativas de reunificação do Concilio Va- %
ticano II foi a publicação do documento Unitatis redintegratio 5
sobre o ecumenismo, que era uma das principais preocupações 3
do concilio. Nesse documento, o Concilio Vaticano II, transmi- §
tindo os seus ensinamentos em uma atmosfera e uma atitude ~
sO
completamente diferentes das do Concilio de Trento, reconhecia B
que os dois lados tinham razões de sobra para se queixar das jjj
inúmeras desavenças que vinham ocorrendo entre protestantes e
católicos desde o século XVI. O Concilio Vaticano II lembrava
a todos que os protestantes e os católicos compartilhavam uma
herança comum por meio do cristianismo. O documento Unitatis
redintegratio queria que houvesse um diálogo em uma atmosfera
de respeito mútuo, em que tanto o clero quanto os leigos pro­
testantes e católicos deveríam tratar uns aos outros com justiça,
aprender sobre o outro, rezar juntos e atuar em conjunto para
promover a justiça social. O documento também estabelecia um
vínculo entre a renovação individual, o aggiornamento da Igreja
e o ecumenismo. A metanoia (transformação fundamental do
pensamento) necessária para se atingir a renovação espiritual
de cada um deveria criar um espírito de generosidade entre os
irmãos de fé cristãos, que por sua vez orientaria os primeiros
passos em direção à unidade cristã.
Embora alguns aspectos do Concilio Vaticano II se concen­
trassem apenas na diminuição da distância que havia entre os
cristãos, alguns também se estendiam às religiões não cristãs.
No documento Nostra aetate, a Igreja se referia às outras fés de
um modo muito diferente do que já havia feito até então. Esse
documento enfatizava a singularidade hum ana e a herança 193
compartilhada pelas pessoas que professavam qualquer tipo
z de crença no sobrenatural. O Concilio Vaticano II expressava
OS CONCÍLIOS DA

q o respeito que o catolicismo tinha por outros sistemas de fé,


PA R TE Q SJ ATR O

i mas sem que isso significasse uma desistência de seu objetivo


S de com partilhar as boas novas trazidas por Jesus Cristo. O
0 Nostra eatate se referia em termos favoráveis ao hinduísmo,
ao budismo e ao islamismo, mas algumas de suas divergências
mais extraordinárias em relação aos concílios gerais anteriores
diziam respeito aos judeus.
Os concílios gerais da Idade Média haviam restringido os
cargos que os judeus poderíam ocupar e as profissões que eles
poderíam exercer, bem como as interações entre judeus e cris­
tãos. O Nostra aetate, em uma de suas maiores rupturas nesse
aspecto de toda a história conciliar, afirmava que os judeus e
os católicos deveríam promover “o mútuo conhecim ento e
estima”, sobretudo por meio dos estudos bíblicos e teológicos
em conjunto e também por meio da participação de ambos
em “diálogos fraternos”. De um modo bastante significativo, o
Nostra aetate (n. 4) se recusava terminantemente a estigmati­
zar, queimar e a perseguir os judeus com base na acusação de
que eles haviam sido os responsáveis pela morte de Jesus, uma
inferência qne havia abalado as relações entre os judeus e os
católicos por quase dois milênios:

Ainda que as autoridades judias e os seus seguidores tivessem


pressionado pela condenação de Cristo à morte, não se pode,
todavia, imputar indistintamente a todos os judeus que então
viviam, nem aos judeus do nosso tempo, a responsabilidade pela
Sua paixão. E embora a Igreja seja o novo Povo de Deus, nem
por isso os judeus devem ser apresentados como rejeitados por
Deus ou amaldiçoados. [...] [A Igreja] deplora todos os ódios,
perseguições e manifestações de antisemitismo que ocorreram
em qualquer período histórico e que foram promovidos por quem
quer que tenha sido.

194
>o

A D M IR Á V E L M U N D O N O V O :
O A P E L O U N IV E R S A L 2
O concilio estava mapeando um novo rumo ao procurar
alcançar as outras fés. Ao mesmo tempo, preocupava-se tam­
b
bém em vivenciar e espalhar a sua própria fé em três contextos z

diferentes: o uso da mídia de massa, as atividades missionárias


e o exercício da liberdade religiosa.
n
o
A declaração Inter mirifica, sobre a mídia de massa, encarava
as novas tecnologias com otimismo e entusiasmo ao invés de o
temê-la e de ter aversão a ela, e as considerava como novos ins­ <
trumentos para a difusão da fé. Ela encarregou especificamente
os leigos de dominar tanto essas novas tecnologias quanto os
dogmas católicos para fazer com que a palavra do catolicismo <3'
O
V
fosse propagada pelo mundo afora. o
O
c-n
No documento Ad gentes, que dizia respeito às atividades
missionárias, o concilio vinculava as missões à evangelização,
pois esta não podia deixar de ser uma combinação natural. Esse
documento enfatizava a singularidade dos desafios da propagação
da fé nas mais variadas circunstâncias e recomendava que as suas
abordagens fossem flexíveis e diversificadas. Cada nova igreja
deveria ter o objetivo de se tornar uma comunidade católica au-
tossuficiente, que certamente estaria em comunhão com Roma,
mas nem por isso deixaria de celebrar os costumes locais por
meio de seus ritos litúrgicos. Assim que fosse possível, as missões
deveríam criar uma comunidade católica independente com
um clero nativo, diáconos permanentes, um apostolado leigo
ativo e catequistas bem preparados do ponto de vista espiritual,
doutrinário e pedagógico.
A maioria das atividades, dos planos e das esperanças delinea­
das por esses quinze documentos somente poderia ter sucesso
se a Igreja fosse livre para implantar os seus programas. Essa
necessidade fez com que a declaração Dignitates humanae
sobre a liberdade religiosa fosse considerada um marco. Se
não houvesse liberdade religiosa, que o Concilio Vaticano II
considerava como um direito humano e civil fundamental, a
Igreja não poderia praticar a sua fé. As pessoas deveríam ser 195
capazes de exercer a sua liberdade religiosa do mesmo modo
IDADE MODERNA

que deveríam exercer os seus direitos fundamentais de reunião


OS CONC1UOS DA

e de liberdade de expressão. Ao reconhecer que nem sempre


a Igreja havia deixado de tomar medidas coercitivas ao longo
PARTE a U A T R O

de sua história, o Concilio Vaticano II afirmou que a liberdade


religiosa significava que nenhum indivíduo ou governo poderia
obrigar as pessoas a participar, cultuar ou acreditar em deter­
minada religião. As pessoas deveríam ser livres para escolher a
sua fé ou até mesmo para não professar fé alguma. Na prática, a
declaração Dignitates humanae condenava a interferência civil
nas questões internas da Igreja. As instituições e as comunida­
des religiosas deveríam ter autonomia para nomear, transferir
e formar os seus próprios ministros, lidar diretamente com as
autoridades religiosas situadas em outros países e poder cons­
truir, comprar, usufruir e vender propriedades. Na realidade, o
Concilio Vaticano II afirmava que uma pessoa não poderia ser
discriminada com base em suas crenças religiosas.

D E P O IS D O C O N C Í L I O V A T IC A N O I I

Esses dezesseis documentos, bem como todos os aconteci­


mentos e os discursos que estiveram por trás de sua elaboração,
narram apenas a história do Concilio Vaticano II no momento em
que ele se reuniu. No entanto, as suas mudanças de paradigma
e as suas idéias inovadoras tinham de ser implementadas, e foi a
partir desse ponto, por essa razão e desse modo que o Concilio
Vaticano II transformou-se em um cam po de batalha neste
alvorecer do terceiro milênio da cristandade. Evidentemente,
esse caminho acidentado da implementação do que havia sido
decidido pelos concílios já havia sido percorrido bem antes de
o Concilio Vaticano II haver se tornado uma parte familiar da
história dos concílios gerais da Igreja.
O Concilio de Trento já havia procurado resolver de vez
esse problema quando o papa Pio IV nomeou um comitê de
196 cardeais para supervisionar a implementação do programa que
A D M IR Á V E L M U N D O N O V O :
havia sido instituído pelo concilio. No entanto, esse comitê não o
foi necessariamente fiel a esse programa, pois os cardeais tendiam |
a interpretar as decisões tomadas pelo Concilio de Trento de z
um modo muito mais rígido e estrito. Depois do encerramento =
do Concilio Vaticano II, foi instituída uma comissão sobre a sua |
interpretação, embora esta não fosse tão poderosa quanto o comitê =
que havia sido criado depois do encerramento do Concilio de °
Trento. No entanto, poder-se-ia afirmar que mesmo se Paulo VI £
houvesse recriado o comitê de implementação do Concilio de 5
Trento de Pio IV, o Concilio Vaticano II tinha contado com uma =
participação tão maior por parte dos bispos e dos leigos, havia %
despertado uma atenção mundial tão intensa e havia instituído ~
um número tão considerável de mudanças de paradigma e de B
inovações que ninguém seria capaz de refrear o seu espírito com §
sucesso absoluto, embora alguns tenham tentado. E exatamente
nesse ponto que o Concilio Vaticano II se encontra nos dias
de hoje, com algumas vozes de dentro da Igreja dizendo que
ele avançou muito rápido e foi longe demais, enquanto outros
acreditam que a Igreja ainda não avançou o suficiente e que 11a
verdade a Igreja vem diminuindo sensivelmente o seu ritmo de
mudança, se é que não 0 reverteu por completo. No entanto,
a determinação do legado final do Concilio Vaticano II é uma
tarefa que deverá ser deixada a cargo das futuras gerações.

B ibliografia

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198
CONCLUSÃO

ste estudo sobre os 21 concílios gerais da Igreja procurou


E apresentar cada concilio em seu próprio contexto histórico
e como parte integrante de um agrupamento de concílios que
se reuniram aproximadamente na mesma época. Mas cada um
desses encontros e agrupamentos são apenas uma parte de uma
história muito mais longa, que já dura dois milênios. Antes de
concluir este estudo, devemos fazer uma pausa e deixar de lado
essas descrições individualizadas de cada concilio e de cada
agrupamento de concílios para analisá-los como um todo.
Embora o número “21” seja exatamente o mesmo dos 21
séculos de cristianismo, isso não significa, conforme já observa­
mos, que um concilio geral se reunia a cada século. Os concílios
gerais são acontecim entos extraordinários e não se reúnem
de acordo com um cronograma preestabelecido, apesar de o
Concilio de Constança haver tentado impor um cronograma
<■ =!<* por meio de seu decreto Frequens. Embora os concílios gerais
o: uZ u-
: 0< não sejam um acontecimento regular no calendário da Igreja,
lUO
eles constituem um elo importante em sua história.
rs) Embora tenham sido de extrema importância para a sua
história, esses 21 encontros principais não foram as únicas
ocasiões em que a Igreja se reuniu para reagir aos diversos
desafios que teve de enfrentar. Uma série de sínodos locais,
regionais, provinciais e até mesmo papais antecederam e se
seguiram aos concílios gerais. Os concílios gerais não podem,
portanto, ser considerados isoladamente. Notadamente durante
o primeiro milênio e o período medieval, encontros menores
funcionavam como fornecedores de subsídios para a formula­
ção de perguntas, respostas e idéias. Além disso, cada um dos
21 concílios gerais incluía o seu próprio período preparatório,
0 encontro propriamente dito e, em seguida, um período em
que os bispos, o clero e os leigos procuravam implementar os
objetivos, as decisões e os planos do concilio em diversas lo­
calidades. Além do mais, nem todos dentre esses 21 concílios
foram imediatamente aceitos como dignos de figurar na lista
dos concílios gerais. Mesmo nos dias de hoje, ainda nos per­
guntamos qual seria a razão pela qual encontros tão medíocres
quanto os concílios de Constantinopla IV, de Vienne e de Lyon
1 ainda figuram nessa lista.
Ao mesmo tempo, devemos resistir à tentativa de colocar
os concílios gerais mais importantes em um pedestal e de
considerá-los fora do contexto de sua época. Todos os 21 con­
cílios gerais se reuniram em uma conjuntura específica e não
podem ser considerados separadamente de suas circunstâncias
individuais. O primeiro concilio geral se reuniu assim que o
cristianismo deixou de ser perseguido e passou a ser tolerado
e, em seguida, acabou se tornando a única religião oficial do
Império Romano. Os séculos seguintes testemunharam uma
sucessão relativamente rápida de concílios gerais, quando oito
deles se reuniram em um espaço de tempo de aproximada­
200 mente 550 anos e elaboraram progressivamente as afirmações
CONCLUSÃO
doutrinárias e os credos teológicos da Igreja. Os concílios da
Idade Média tiveram uma agenda mais ampla e se concentraram
em uma grande variedade de tópicos, que incluíam questões
disciplinares, violência social, reformas, relações com judeus
e m uçulmanos, heresias, cruzadas e peregrinações, disputas
de poder com outras monarquias, independência da Igreja e
procedimentos legais.
A partir da Alta Idade Média, os contextos mundiais molda­
ram substancialmente os concílios gerais da Igreja. O Grande
Cisma, o conciliarismo e os movimentos protestantes exerceram
uma influência esmagadora sobre os concílios gerais que se
reuniram na época da reforma. Depois de os concílios gerais
de Constança, de Basileia-Ferrara-Florença-Roma e de Latrão
V haverem enfrentado a disputa entre a autoridade papal e o
conciliarismo, o Concilio de Trento teve de promover uma
reorganização da Igreja Católica em meio a uma situação sem
precedentes na qual o catolicismo romano havia deixado de
exercer o monopólio sobre a cristandade. Mais recentemente,
os concílios Vaticano I e Vaticano II fizeram abordagens bem
diferentes sobre qual seria o lugar da Igreja e a sua missão em
um admirável mundo novo de democracia, individualismo,
secularismo e de mudanças sociais e tecnológicas. No alvorecer
do terceiro milênio, a Igreja ainda se vê às voltas com as diversas
mudanças de paradigma instituídas pelo C oncilio Vaticano
II, algumas das quais abordaram questões que os concílios de
Trento e do Vaticano I haviam deixado em aberto ou temiam
abordar.
Embora cada concilio geral tenha enfrentado desafios es­
pecíficos, várias questões tiveram de ser abordadas pela maior
parte deles, dentre as quais poder-se-ia citar a da relação entre
o Ocidente latino e o Oriente grego. Parte da tensão que havia
entre os dois era de origem histórica e datava da decisão de
Constantino de transferir a capital imperial de Roma para Cons-
tantinopla. A língua também representava uma barreira, pois
em algumas ocasiões durante os primeiros concílios, orientais
e ocidentais mal conseguiam se comunicar uns com os outros, 201
ainda mais discutir conceitos teológicos complexos como a da
CO N CÍLIO S
DA IG R E JA

união hipostática. As tensões aumentaram quando Leão I vetou


o cânone 28 do Concilio de Calcedônia, que colocava a cidade
de Constantinopla em segundo lugar logo depois de Roma e
CN afirmava que ambas deveriam possuir os mesmos privilégios.
Quando o Ocidente acrescentou unilateralmente a palavra
filioque ao credo dos concílios de Niceia I e de Constantinopla
I, mesmo depois de o Concilio de Calcedônia haver declarado
que nenhum a adição poderia ser feita fora de um concilio
geral, o Oriente considerou essa atitude como um exemplo da
prepotência de Roma.
O Oriente e o Ocidente se envolveram em várias disputas
ao longo dos séculos. Na verdade, a maioria dos concílios gerais
que se reuniram depois do primeiro milênio não poderia ser
verdadeiramente considerada “ecumênica”, pois, conforme já
observamos, a participação do Oriente nesses concílios havia
sido mínima ou até mesmo inexistente. Durante a Idade M é­
dia, o Concilio de Lyon II e a fase florentina do Concilio de
Basileia-Ferrara-Florença-Roma procuraram abordar diretamente
as principais questões que separavam o Oriente do Ocidente:
a da cláusula filioque, a das diferenças litúrgicas (o uso ou do
pão fermentado ou do pão ázimo durante a eucaristia) e a da
primazia e supremacia papais. No entanto, as suas resoluções
e as suas declarações ficaram só nas palavras e o fracasso desses
concílios adiou a unificação. Foi a atmosfera libertária de um
outro concilio geral, o Vaticano II, que acabou contribuindo
para que os esforços conjuntos do papa Paulo VI e do patriarca
ecumênico Atenágoras I conseguissem promover uma reapro-
ximação durante a década de 1960.
U m a segunda questão que perm eou todos os concílios
gerais diz respeito à liturgia e às orações. Muitos pensam que
o Concilio Vaticano II foi o primeiro a abordar a questão da
liturgia, percepção popular equivocada que se deve ao fato de
que a maioria das pessoas que costuma frequentar os bancos
de igreja sentiu o impacto do Concilio Vaticano II por meio da
202 missa, que passou a ser ministrada no seu próprio idioma, do
CONCLUSÃO
emprego de novos gêneros e instrumentos musicais durante a
liturgia e do abandono de algumas orações tradicionais. Costuma-
se considerar essas mudanças como novidades e inovações, ou
seja, como uma ruptura com o passado. No entanto, os concílios
gerais vêm abordando questões de ordem prática sobre a devoção
popular praticamente desde que começaram a se reunir. No
século V, o Concilio de Efeso se viu às voltas com a questão
de Maria ser considerada ou não theotokos. No século VIII, o
Concilio de Niceia II resolveu intervir na violenta controvérsia
sobre os ícones e as relíquias de Maria, de Jesus e dos santos.
O Concilio de Trento retomou essa questão ao observar que os
seus ensinamentos sobre a devoção estavam em conformidade
com os do Concilio de Niceia II. O Concilio de Trento tam­
bém defendia a veneração dos santos e o uso de indulgências,
de relíquias e de ícones. No entanto, ele enfatizava que os fiéis
deveríam exercer a sua devoção com moderação, sem admitir
que as críticas que Lutero fazia sobre os coletores de almas, os
vendedores de indulgências e os traficantes de relíquias falsas
se justificavam.
A terceira questão principal, muitas vezes bastante perturba­
dora, é a de que boa parte dos concílios gerais se envolveu em
questões de natureza política. Coube a Constantino, e não ao
papa, convocar o Concilio de Niceia I e, em seguida, confirmar
e publicar os seus decretos. A Imperatriz Irene dominou com­
pletamente o Concilio de Niceia II. O concilio de Lyon I depôs
Frederico II, que, ironicamente, havia conseguido realizar o que
a Igreja em vão havia tentado: abrir a rota para os peregrinos.
O aprisionamento dos membros da Ordem dos Templários sob
falsas acusações acabou comprometendo com pletam ente o
Concilio de Vienne. Foi Sigismundo, e não um dos três papas
rivais, quem supervisionou o Concilio de Constança. Apenas
durante os tempos modernos é que os concílios gerais consegui­
ram se libertar das influências políticas diretas, embora tanto o
Concilio Vaticano I quanto o Concilio Vaticano II tivessem de
atuar em um contexto de mudanças seculares impactantes.
oQ MO U~J Um quarto elem ento com um a boa parte dos concílios
<d * gerais foi o da atuação ambígua de alguns papas. No primeiro
o2UÜ
Z-
5o< milênio, as evasivas do papa Vigílio foram um legado pertur­
:UÜ
bador do C oncilio de Constantinopla II, do m esm o modo
rN que a condenação do falecido papa Honório pelo Concilio
de Constantinopla III. Mas o principal exemplo da presença
desse elemento na história do papado e dos concílios gerais
foi a da pretensão conciliar de exercer a autoridade suprema
sobre a Igreja, que se manifestou sobretudo durante o século
XV. Afinal, o Concilio de Constança havia conseguido fazer o
que os três papas rivais (o romano, o avinhense e o que havia
sido escolhido pelo Concilio de Pisa) haviam sido incapazes
de fazer: unificar o papado e dar um fim ao G rande Cism a
Ocidental, que já durava quase quarenta anos.
Mas talvez a questão mais comprometedora desses 21 concílios
gerais tenha sido a das tentativas de se chegar a um equilíbrio
na relação entre o papa e o concilio geral e/ou o colégio episco­
pal. Explícita ou implicitamente, os concílios com frequência
formulavam a seguinte pergunta: “Qual é a relação que existe
entre o papa e o colégio episcopal, especialmente durante um
concilio geral?” As diversas versões conflitantes sobre o que
realmente havia ocorrido durante o “Concilio de Jerusalém”
haviam legado um a herança dúbia desde os primórdios do
cristianismo. Os Atos dos Apóstolos contêm uma narrativa que
parece dar a última palavra a Tiago (ao invés de Pedro), ao passo
que a narrativa feita por São Paulo em sua Carta aos Gálatas
indica que o processo de tomada de decisão da Igreja contava
com a participação de um maior número de pessoas.
C om frequência, temos observado estes dois modelos se
sobrepondo e até mesmo combatendo um ao outro ao longo
da história dos concílios gerais. Nos séculos III e IV, os sínodos
regionais, especialmente na África do Norte, algumas vezes
resistiam à supervisão de Roma. Na mesma época, o papa só
passou a exercer um papel de destaque em um concilio geral a
partir do terceiro, em Efeso. Com o aumento da autoridade dos
204 papas durante a Idade Média, eles transformaram os concílios
CONCLUSÃO
gerais mais em ocasiões destinadas à promulgação de decisões
que já haviam sido decididas por Roma antes de os bispos se
reunirem na sala de conferências do palácio de Latrão do que
numa oportunidade para contar com a colaboração destes. Mas
no momento em que o papado passou por graves turbulências
internas devido à sua transferência para Avinhão, ao Grande
Cisma e ao mundanismo da cúria, os concílios gerais intervieram
para disciplinar os papas e, durante o Concilio de Constança
e algumas fases do Concilio de Basiléia, para exercer o poder
supremo na Igreja.
Essa questão ainda persistiu durante o período moderno.
No Concilio Vaticano I, os inoportunistas em teoria defendiam
a infalibilidade papal e a jurisdição suprema do papa, mas boa
parte deles não via sentido algum em forçar a discussão desse
tema ao colocar essa autoridade no papel durante o concilio
geral do qual participavam. Além disso, esse encontro convocado
por Pio IX deixou de responder a uma questão intrinsecamente
relacionada às suas declarações sobre a autoridade papal, que
era a da definição da correlação que havia entre a autoridade
papal e a autoridade episcopal. Por essa razão, coube ao Concilio
Vaticano II, por meio de seu documento Lumem gentium (e à
Igreja, por meio de sua versão revisada do Código Canônico),
esclarecer qual era a natureza dessa relação, sobretudo no que
dizia respeito à sua eficácia em um concilio geral.
No final das contas, a história dos 21 concílios gerais é a
história das reações da Igreja aos desafios que se apresentavam
a ela. N a m elhor das hipóteses, eles proporcionavam uma
oportunidade para os seus membros provenientes de diversas
localidades se reunirem e abordarem os problemas que tinham
em comum por meio do intercâmbio de perspectivas e expe­
riências variadas. O Concilio Vaticano II é o melhor exemplo
desse tipo de atividade conciliar, pois foi o primeiro concilio geral
verdadeiramente global. Na pior das hipóteses, os concílios gerais
eram um reflexo das disputas de poder político, tanto dentro da
Igreja quanto entre as autoridades civis e religiosas. 205
DA IGREJA
Nem todo concilio geral foi capaz de resolver de forma
CONCÍLIOS
H IST Ó RIA DOS

definitiva as questões que se apresentavam à sua época, embora


a maioria deles tenha empregado todos os esforços possíveis
para solucionar esses problemas. Quanto à im plem entação
das soluções, o segundo ato de cada um dos concílios gerais,
a situação quase sempre era bem diferente. Em alguns casos,
alguns cristãos faziam uma interpretação tão exagerada das defi­
nições e dos programas conciliares que acabavam se desviando
de seus credos ortodoxos. Foi exatamente isso o que aconteceu
com Apolinário logo depois do encerramento do C oncilio
de Niceia I. Em sua tentativa de combater a imagem que os
hereges arianos tinham de Jesus, que o consideravam apenas
com o um super-homem, Apolinário enfatizou a divindade
de Jesus de um modo tão exagerado que acabou ensinando,
de modo incorreto, que Jesus era totalmente divino e não era
totalmente humano.
Em outras ocasiões, esse segundo ato dos concílios gerais
caminhou a passos de tartaruga. Por exemplo, o aspecto mais
inovador do Concilio de Trento, o da fundação dos modernos
seminários, demorou bastante tempo para sair do papel. Um
estudo italiano demonstrou que mais de um século já havia
se passado até que a ordem do concilio de Trento para que
esses seminários fossem fundados produzisse algum resultado
significativo. Algumas vezes, a própria velocidade e o alcance
desse segundo ato eram controvertidos. No final do século
XX e no início do século XXI, por exem plo, os defensores
e os oponentes (além daqueles que se situavam em algum
ponto entre os dois extremos) acusavam uns aos outros de ter
ido longe demais na implementação da agenda do Concilio
Vaticano II ou de fazer com que ela estivesse bem longe de
ter sido suficiente.
Esses exemplos nos fazem lembrar novamente de que as
declarações dos concílios no papel demoram algum tempo para
surtir efeitos na prática. Por essa razão, deveriamos chamar a
atual fase da Igreja de “Igreja do Concilio Vaticano II” ao in-
206 vés de “Igreja pós-Vaticano II”, pois a Igreja ainda se encontra
CONCLUSÃO
dentro da esfera do último concilio. Os exemplos e os padrões
oferecidos pela história revelam que a atual Igreja Católica se
encontra justamente como deveria estar: procurando colocar
em prática as decisões do concilio geral mais recente, convi­
vendo com o seu legado, respeitando as reações imprevistas e se
ajustando às suas diretrizes e aos seus documentos temáticos. O
que pode acabar se revelando um caminho bastante acidentado
a ser seguido, mas que com certeza já foi percorrido por todos
os outros concílios gerais no passado.

207
ín d ic e r em issiv o

A autoridade 13, 14, 18, 20, 21, 57,


absenteísmo 6 1,98, 130, 148 62-66,70,73,74, 77, 8 0 ,8 1 ,8 3 ,
Adriano I, papa 52 84, 87, 89, 102, 103, 106, 107,
Adriano II, papa 54 111,113-117,119-121,124,126,
Agatão, papa 48, 49 129-131,134,139-143, 147,157,
albigenses 78 160,162-165,167-170,173,186,
Alexandre III, papa 77, 88 190, 201, 204, 205
Alexandre V, papa conciliar ou pi- autoridade e jurisdição episcopal
sano 117, 118 170
Alexandre de Alexandria 35
Anacleto II, antipapa 76 B
Apolinário / apolinarismo 37, 206 Basílio I, imperador 54
Ario / arianismo 33-37,40 begardos 92
Atanásio 3 5 ,3 6 ,4 0 beguinas 92
Atenágoras I, patriarca ecumênico Bento XIII, papa avinhense 114,
192, 193,202 117,119, 122 209
filioque 86, 87, 127, 192, 202
CONCÍLIOS
DA IGREJA
Bernardo de Clairvaux 90
H IST O R IA DOS

Bonifácio VIII, papa 89 Filipe IV (o Justo) 89


Fócio, patriarca de Constantinopla
C 54.55
Frederico II, imperador 84, 203
£N Calisto II, papa 74
cátaros 78
G
Celestino, papa 40
Celestino II, antipapa 76 Gerson, Jean 119,120
Cirilo de Alexandria 40, 87 Giles de Viterbo 13 5
Clemente V, papa 89-91 Grande Cisma Ocidental 113,114,
C le m e n te V II, pap a avinhen se 117, 129, 164, 204
114 Gregório I (o Grande) 45
Código de Direito Canônico 21 Gregório X, papa 86, 88
colegialidade 20, 157, 164, 169, Gregório XII, papa 117,119,121-
170 123
Colet, John 18
conciliarismo 113-115,125,129, H
130, 134, 135, 139, 140, 157, heresia e heréticos 14, 15, 47-49,
163, 168,201 63,76,79,80,84,85,89-92,119,
“C on cilio de Jerusalém ” 19, 33, 121, 144, 152, 175
116, 204 homo-ousios 35, 37, 38
conclaves 7 1 ,8 3 ,8 8 ,9 5 homoi-ousios 37
Concordata de Worms 74 Honório I, papa 49, 163, 166
concubinato 60,9 8 , 136, 148 Honório II, papa 76
C on stantino 33, 35, 36, 38, 73, hospitalários 91
84 ,2 0 1 ,2 0 3 Flus, Jan 121
Constantino IV, imperador 48
cruzadas / cruzados 7 1 ,7 3 ,7 5 ,7 8 , I
8 0 ,8 1 ,8 3 -8 6 ,9 5 , 107, 201
Ibas de Edessa 46, 47
iconoclasmo 31, 52
D
Inácio, patriarca de Constantinopla
Dâmaso, papa I 39 54.55
indulgências 82, 148, 149, 203
E infalibilidade 6, 16,49, 157, 159,
162, 165-169, 174, 186, 187,
Erasmo 18
205
Eugênio IV, papa 124-126,128,
Inocêncio II, papa 76
129, 130,131, 164
Inocêncio III, papa 1 7 ,7 9 ,8 5 ,8 6 ,
Eutíquio 43
106
Inocêncio IV, papa 84, 85
F
investidura 102
210 Félix V, antipapa 129 Irene, imperatriz 52, 203
J monofisismo / monofisistas 43,46,

NDICE REMISSIVO
47, 52
João C alvin o / calvinism o 111,
monotelitismo 4 8 ,4 9
138
muçulmanos 71, 75, 78, 81, 84,90,
João de Antioquia 4 0 ,4 1 ,8 7
95, 126, 177,201
João Paulo II, papa 121
João VIII, papa 55
João XXIII, papa conciliar ou pisano N
(século XV) 14,118-120,122, não cristãos (ver também judeus,
123, 171-176, 179, 180, 182 muçulmanos) 81,93
João X X III, pap a (Â ngelo Ron- Napoleão 157
calli) Nestório e nestorianism o 39-41,
judeus 7 1 ,8 1 ,9 5 , 104, 105, 177, 4 5 ,4 6 ,4 8 , 87
194, 201 Nicolau I, papa 54
Júlio II, papa 134,135 Nicolau II, papa 77
Justiniano, imperador 46, 47 Nicolau V, papa 129

L
O
Leão I (o Grande), papa 43,44,48,
ordens religiosas 22,79,100-102,
66, 70, 87, 164, 192, 202
143, 147, 178, 191
Leão II, papa 49
Leão III, papa 86
P
Leão X, papa 134,135
leigos 1 7 ,2 2 ,3 1 ,6 4 ,7 4 ,7 5 ,7 7 ,9 2 , Paulo VI, papa 19,23,24,180,181,
96, 9 8 ,1 0 0 ,1 0 2 ,1 0 3 ,1 0 5 ,1 0 7 , 186, 192, 193, 197, 202
136, 140, 144, 174, 176, 181, Pádua e Siena, Concilio de 124
184, 185, 187, 188, 191, 193, peregrinação e peregrinos 73, 75,
195, 197, 200 84, 90, 106, 107, 149, 185, 203
Lutero, Martinho 18, 82,111, 132, Pio II, papa 130,168
133,137-140, 149, 156, 203 Pio IV, papa 150,19 6 ,1 9 7
Pio VI, papa 157
M Pio VII, papa 157
Pio IX (Pio Nono), papa 157, 205
Marciano, imperador 44
Pio XII, papa 171
Maria e mariologia 31, 39-41, 45,
Pisa, Concílios de 117, 118, 122-
4 7 ,5 1 ,5 2 , 149, 203
124, 134, 135,204
Martinho V, papa 1 2 3 ,1 2 4 ,1 2 9 ,
pluralismo 6 1 ,9 8 ,1 3 0 ,1 4 8
130
prim azia papal 86, 87, 127, 128,
matrimônio 95,98, 105, 146
186
Melquíades, papa 73
Miguel III, imperador 54
R
Miguel VIII Paleólogo, imperador
86 relíquias 53, 82, 148, 149, 203 211
DA IGREJA
S
CONCÍLIOS

Teodora, imperatriz 46
Teodoreto de Cyr 46, 47
sacerdotes 60-63,96-101,106,131,
145, 147, 148, 190, 191 Teodoro de Mopsuéstia 46, 47
S an ção P ragm ática de Bourges Teodósio 38
135 Teodósio II, imperador 40, 44
CN
Sigismundo, imperador 119,121, transubstanciação 81, 146
122, 203 “três capítulos” 46, 47
Silvestre I, papa 34 trindade 98
simonia 6 0 ,6 1 ,9 8 ,1 3 0 ,1 3 1 ,1 3 6 ,
148 U
“ Sínodo do Latrocínio” de Efeso
44 união hipostática 41, 44, 202
sínodos (locais, regionais e provin­ Urbano II, papa 75
ciais) 2 4 ,2 5 ,3 1 ,4 0 ,4 5 ,4 8 ,5 5 , Urbano VI, papa 114
58,59, 147, 200, 204 usura 95, 103, 104, 136
Sisto III, papa 41
V
T

templários 9 0 ,9 1 ,9 2 Vigílio, papa 46, 47, 54, 66, 204

212

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