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O MENINO

JUNHO DE 2023

CLUBE DE REVISTAS QUE DESENHOU


AUSCHWITZ

A REVOLTA DOS
MARINHEIROS
CONTRA A CHIBATA

WWW.AVENTURASNAHISTORIA.UOL.COM.BR IVAN, O TERRÍVEL,


NÃO GANHOU ESSE
NOME À TOA

A VOLTA DE PERÓN
DO EXÍLIO, HÁ 50
ANOS NA ARGENTINA,
CULMINOU NUMA
LUTA ARMADA ENTRE
SEUS PARTIDÁRIOS
CLUBE DE REVISTAS

PRESIDENTE
Luis Fernando Maluf

DIRETOR EDITORIAL:
Pablo de la Fuente

EDIÇÃO:
Izabel Duva Rapoport

EDITORA DE ARTE COLABORADORA:


Marília Filgueiras

REVISÃO:
Hellen Ribeiro
CLUBE DE REVISTAS

EZEIZA 1973
TRAGÉDIA
PERONISTA
A VOLTA DE PERÓN DO EXÍLIO, HÁ 50 ANOS NA ARGENTINA,
CULMINOU NUMA LUTA ARMADA ENTRE SEUS PARTIDÁRIOS

EDIÇÃO 241

SÃO PAULO
EDITORA PERFIL
2023
EDITORIAL CLUBE DE REVISTAS

ENTRE IRMÃOS
ntes de Juan Domingo Perón colocar tionando o termo “massacre”, usado por

A os pés na Argentina, no retorno de seu


exílio de quase duas décadas na Espa-
nha, grupos peronistas divididos entre es-
outros. Esta e outras análises acompanham
a descrição dos fatos na reportagem de capa
de AVENTURAS NA HISTÓRIA deste mês,
querda e direita abriram fogo em meio a escrita pelo jornalista argentino Tomás Ro-
uma multidão, que esperava, em clima fes- dríguez. Nela, ele conta como os grupos
tivo, a chegada do avião do líder. O evento peronistas chegaram a esta forte e perigosa
para a recepção tão aguardada, ocorrido em rivalidade entre hermanos, tornando-se um
20 de junho de 1973, há exatos 50 anos, foi infeliz prenúncio da ditadura militar mais
organizado no próprio aeroporto de Buenos sangrenta do país (e da América Latina no
Aires, Ezeiza, palco da tragédia que ficou século 20), que estava por vir.
conhecida como “O Massacre de Ezeiza” – e Boa leitura,
que até hoje é discutida entre os pesquisa-
dores. Alguns defendem que o episódio não Izabel Duva Rapoport
passou de um lamentável incidente, ques- Editora

      


        

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SUMÁRIO CLUBE DE REVISTAS

30
CAPA: GRUPOS
PERONISTAS SE
ENFRENTARAM
COM TIROS EM
MEIO A UMA
MULTIDÃO QUE
ESPERAVA A
VOLTA DE PERÓN

6 GALERIA
Do teatro brasileiro 18 À MESA 24 PERSONAGEM
Quentão junino 52
de revista até os ENTREVISTA
O primeiro czar da Rússia, Ivan, o THOMAS GEVE,
atuais
19 COMO
FAZÍAMOS SEM Terrível, não ganhou esse nome à toa O MENINO QUE
DESENHOU
12 HOJE NA
HISTÓRIA
Dinheiro

40 BRASIL AUSCHWITZ
Aconteceu
20 LINHA DO
Revolta da Chibata: em 1910,
em junho TEMPO
Histórias do graffiti marinheiros se rebelaram contra 56
COLUNA
14 ARTE
Madeleine, por
22 ILUSTRADA
os maus-tratos no Rio de Janeiro
RICARDO
LOBATO
Marie-Guillemine
Benoist
A batalha de
Termópilas 48 CIVILIZAÇÕES
São Marino: um enclave circundado
16 DÚVIDA CRUEL
Nazismo: por que o 58 MEMÓRIA
A primeira mulher
pela Itália que permanece incólume
desde o Império Romano
papa fez silêncio? e civil no espaço

NO PODCAST SEMANAL DA AVENTURAS NA HISTÓRIA VOCÊ


ACOMPANHA OS PRINCIPAIS ASSUNTOS SOBRE A HISTÓRIA DO
MUNDO E DO BRASIL AO LONGO DOS SÉCULOS. AVENTURE-SE!
GALERIA CLUBE DE REVISTAS

TEATRO
MODERNO
BRASILEIRO
EMBORA TENHA COMEÇADO COM PADRE ANCHIETA, A ARTE
TEATRAL SE CONSOLIDOU DE VERDADE NO BRASIL APENAS
NOS ÚLTIMOS 100 ANOS POR CLÁUDIA DE CASTRO LIMA

6 AVENTURAS NA HISTÓRIA
CLUBE DE REVISTAS

Para catequizar indígenas, o jesuíta Vestido de Noiva, de Nelson Rodri-


José de Anchieta rezou missas, gues, ganhou os palcos. Cinco anos
escreveu livros, ensinou música e foi depois, surgia o Teatro Brasileiro de
o primeiro dramaturgo do Brasil. Comédia, com atores como Cacilda
Encenava para nativos e colonos em Becker, Sérgio Cardoso, Paulo Autran
tupi-guarani, português e espanhol. e Tonia Carrero. O jeito profissional
Apesar da origem do teatro brasileiro fez escola e história – o Teatro de
estar no século 16, foi só há 100 anos Arena e o Oficina tiveram um papel
que ele se consolidou. Os de revista importante na resistência após o
foram o marco, entre 1920 e 1940, golpe militar de 1964. Com o fim da
mesclando sátira política, tipos ditadura, um fenômeno: os textos
alegóricos, músicas e mulheres, as censurados já não faziam mais
vedetes – como revela a foto abaixo, sucesso, e o que começou a atrair o
feita em 1934, do espetáculo Meia público foi o gênero “besteirol”. De lá
Noite. Bom, mas se existe um ano para cá, a democracia se fez
que representa bem a guinada do presente nos palcos e a cortina
teatro no Brasil é o de 1943, quando nunca mais deixou de abrir.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 7
GALERIA CLUBE DE REVISTAS

NOS BASTIDORES
Paulo Autran (1922-2007), advogado
formado, resolveu abandonar o direito
e entrar no Teatro Brasileiro de
Comédia (TBC) – esteve na compa-
nhia do princípio até ela terminar. Na
foto, Paulo se arruma em seu camarim
antes de entrar em cena com My Fair
Lady, musical adaptado da peça
Pigmalião, de George Bernard Shaw,
no Rio de Janeiro, em 1963.

COMÉDIA COM MALÍCIA


A vedete Virgínia Lane (1920-2014),
admirada pelo presidente Getúlio Vargas,
se consagrou com o teatro de revista, ao
lado de nomes como Oscarito e Grande
Otelo – na cena ao lado, os dois “espio-
nam” a musa. O reconhecimento era
tamanho que multidões se formavam nas
portas dos teatros de São Paulo e do Rio
de Janeiro, como o do Recreio.

PALCOS PROFISSIONAIS
Criado em 1948 por um grupo de empre-
sários paulistas, o TBC inovou. Num
casarão com 18 camarins e equipamentos
modernos, profissionalizou o cenário.
Parte de seu elenco criou, oito anos
depois, a Companhia Tonia-Celi-Autran:
Tonia Carrero (1922-2018), na foto acima,
em Uma Mulher de Outro Mundo, de 1954,
Adolfo Celi (1922-1986) e Paulo Autran.

8 AVENTURAS NA HISTÓRIA
CLUBE DE REVISTAS

MARCO ZERO
A montagem de Vestido de Noiva, em 1943, foi
um marco e provocou uma reviravolta. O autor,
Nelson Rodrigues (1912-1980), também jornalis-
ta e divulgador dos próprios feitos, planejou
tudo bem direitinho. Ao lado de um grupo
amador, Os Comediantes, sua peça inovadora
deu uma punhalada nos atores profissionais e
seu jeito do século 19 de fazer teatro.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 9
GALERIA CLUBE DE REVISTAS

CACILDA!
O TBC era o palco
perfeito para a atriz
Cacilda Becker
(1921-1969) mostrar
seu trabalho artístico.
Ela, que era apenas
uma estreante na
inauguração do TBC,
em 11 de outubro de
1948, tornou-se atriz
do primeiro time e,
mais tarde, diretora.
Com Sérgio Cardoso
(1925-1972), atuou,
entre outras peças, em
Os Filhos de Eduardo,
de 1950 – montagem
que também dirigiu.

10 AVENTURAS NA HISTÓRIA
CLUBE DE REVISTAS

O SUCESSO
DE IRMA VAP
A parceria de Marco Nanini
e Ney Latorraca durou dez
anos com O Mistério de
Irma Vap, que entrou em
cartaz em 1986 e era
dirigida por Marília Pêra
(1943-2015). Ao lado da
também comédia Trair e
Coçar É Só Começar, a
peça é um dos maiores
sucessos da história do
teatro brasileiro. Uma das
atrações de Irma Vap eram
as trocas de roupa dos
atores, feitas em poucos
segundos.

ATO CONTRA
O ATO
Antes de o governo militar editar
o duro Ato Institucional nº 5 e
instaurar o terror e a censura no
país, atores, autores e diretores
faziam atos contra a proibição da
manifestação teatral. Ao lado, em
13 de fevereiro de 1968, a greve
contra a censura reuniu, entre
outras pessoas, Plínio Marcos
FOTOS DIVULGAÇÃO

(1935-1999), Rildo Gonçalves


(1930-2017), Rosamaria Murtinho
e Etty Fraser (1931-2018).

AVENTURAS NA HISTÓRIA 11
HOJE NA HISTÓRIA CLUBE DE REVISTAS

ACONTECEU
EM JUNHO
1 O monge John
Cor, um alquimis-
1495 ta, recebe do rei
2 O papa João
Paulo II visita a
1979 Polônia, sua terra
3 O oficial nazista
Franz Radema-
1940 cher propõe
4 O governo chinês
envia tanques
1989 para encerrar os
James IV a ordem de natal. Foi a primeira vez deportar todos os judeus protestos que já duravam
fazer oito panelas de que um líder da Igreja da Europa para a Ilha de quase dois meses na
acqua vitae. É a referência Católica, em missão Madagascar. Não daria Praça da Paz Celestial,
mais antiga conhecida oficial, pisou num país em nada, mas ele seria em Pequim. Até 2600
ao uísque escocês. comunista. Como papa, responsável por outras civis morreriam.
ele esteve em 129 países. deportações.

5 Um artigo, no
Centro de Controle
1981 de Doenças dos
6 O Teatro Munici-
pal de Ouro
1770 Preto, a casa
7 Espanha e
Portugal assinam
1494 o Tratado de
8
632
Morre o líder
político e religioso
árabe Maomé.
Estados Unidos, descreve de ópera mais antiga da Tordesilhas. De acordo Para o Islã, Maomé foi o
pela primeira vez um América Latina em com o documento, novas último profeta de Deus,
problema que derruba o funcionamento, é funda- terras descobertas, como precedido por Jesus e
sistema imunológico do, no dia do aniversário a América, e as que seriam Abraão, entre outros. Sob
humano. Foi o passo inicial do rei dom José I, desbravadas, se dividiriam seu comando, houve a
para entender a aids. de Portugal. entre as duas nações. unificação de várias tribos.

9 O jornalista Jake
Lingle é morto,
1930 alvejado na
10 Nair de Teffé,
pintora, cantora,
1886 atriz e dançarina,
11 Segundo a Ilíada,
Troia é invadida e
1184 a.C. destruída. Em
12 Anne Frank,
judia, ganha um
1942 diário no seu 13º
presença de dezenas de nasce em Petrópolis. Ela Esparta, Páris, príncipe aniversário. Nele, contaria
testemunhas na Estação foi a primeira mulher de Troia, havia conhecido o tempo em que se
Central de Chicago. O cartunista do mundo e Helena, mulher do rei escondeu dos alemães,
mandante era Al Capone. primeira-dama do Brasil Menelau. Ao raptá-la e que encontrariam depois
de 1913 a 1914. levá-la a Troia, ele incitou seu esconderijo.
a ira do rei.

13 Martinho Lutero
e Catarina von
1525 Bora se casam.
14 O Havaí é
anexado ao
1900 território dos EUA.
15 Na Filadélfia,
o cientista
1752 Benjamin
16 A Espanha
declara guerra à
1779 Grã-Bretanha e
Ele, líder da Reforma Até 1894, era governado Franklin empina uma pipa começa o Grande Cerco
Protestante, e ela, uma pela rainha Lili’uokalani até uma nuvem, extraindo de Gibraltar. A tentativa
IMAGENS GETTY IMAGES

freira católica fugida do – no mesmo ano, virou faíscas e provando que de capturar a ilha britânica
convento, vão contra o uma república. A invasão os raios são eletricidade. foi perdida em 1783,
celibato da Igreja Católica por tropas americanas se Outros morreram ao apesar da Guerra de
ao assumirem a relação. deu em 1898. tentar imitá-lo. Independência nos EUA.

12 AVENTURAS NA HISTÓRIA
CLUBE DE REVISTAS

17 A Estátua da
Liberdade chega
1885 a Nova York.
Presente dos franceses
em comemoração aos
100 anos de independên-
cia dos EUA, um de seus
construtores foi Gustavo
Eiffel, da Torre Eiffel.

18 Napoleão
Bonaparte é
1815 derrotado na
Batalha de Waterloo.
Depois de ampliar o
domínio francês na
Europa, começou a decair
com a péssima campanha
da Rússia, em 1812.

19 Primeira celebra-
ção do Dia dos
1910 Pais. A data foi
20 Uma briga num
parque dá início a
1943 um tumulto
21 O disco LP,
feito de vinil, é
1948 apresentado
22 Os romanos,
sob o general
168 a.C. Paulo Emílio,
idealizada pela americana racial em Detroit. pela gravadora Columbia vencem a Batalha
Sonora Smart Dodd para Brancos e negros se Records, substituindo de Pydna, contra os
homenagear seu pai, separam em dois campos os desajeitados e macedônios, liderados
William Smart, viúvo que distintos e se enfrentam quebradiços discos de pelo rei Perseu,
criou sozinho seis filhos. por mais de um mês. 78 rotações. durante a Terceira
Morreriam 34 pessoas. Guerra Macedônica.

23 A agência
americana Food
1960 and Drug Adminis-
24 Por ordem do
imperador Carlos
1322 IV, judeus são
25 A Coreia do Norte
invade a Coreia do
1950 Sul e começa a
26 João Pessoa,
governador da
1930 Paraíba, é
tration (FDA) legaliza a banidos da França. Em Guerra da Coreia. No assassinado por João
distribuição do Enovid, 1394, eles ainda seriam pano de fundo, a disputa Dantas na Confeitaria
primeiro anticoncepcio- expulsos novamente, entre União Soviética e Glória, no Recife. O
nal via oral. A proibição o no último banimento EUA. O armistício de 1953 episódio deflagraria a
fazia ser receitado contra realizado pelo país veio após ameaças com Revolução de 1930.
sintomas da menstruação. no período medieval. armas nucleares.

27 Joseph Smith Jr.,


fundador da
1844 religião Mórmon,
28 É coroada a rainha
Vitória, ícone
1837 nacional e exímia
29 A Revolta de
Vila Rica, reação
1720 dos nativos contra
30 O evento de
Tunguska, uma
1908 gigantesca
e seu irmão Hyrum são jogadora política, que medidas econômicas explosão causada pela
mortos por um grupo de daria nome a uma longa adotadas pelos queda de um asteroide,
homens que invadiu a era – reinaria até 1901, por portugueses, tem início destrói 80 milhões de
prisão em que estavam, 63 anos. Feito que só em Ouro Preto (MG), árvores na Sibéria,
em Carthage, Illinois. seria superado pela rainha sendo logo sufocada. na Rússia.
Elizabeth II.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 13
ARTE CLUBE DE REVISTAS

MADELEINE
OBRA DE 1800, BATIZADA COMO O RETRATO DE UMA NEGRA,
É RENOMEADA SÉCULOS DEPOIS PARA DESTACAR A IDENTIDADE
DA MODELO POR IZABEL DUVA RAPOPORT

á mais de dois séculos, uma mulher de ocasião, o nome de Madeleine foi um dos des-

H origem africana chamada Madeleine ha-


bita as paredes do Museu do Louvre, em
Paris, na companhia de retratos de artistas
tacados na instalação artística do lugar.
Anônima por muito tempo, Madeleine foi
uma mulher escravizada, nascida provavel-
como Jacques-Louis David, Eugène Delacroix mente na Ilha de Guadalupe, e levada para a
e Théodore Géricault, além de obras emblemá- França pelo cunhado de Marie-Guillemine,
ticas como Mona Lisa e A Vitória de Samatrá- que era comissário de bordo. Sabe-se, porém,
cia. Na pintura da jovem negra, produzida em muito mais da artista do que da modelo.
1800 pela francesa Marie-Guillemine Benoist Filha de um funcionário público que faliu
(1768-1826), a protagonista exibe uma pose ao nos negócios, foi educada para ganhar seu pró-
mesmo tempo altiva e serena e um olhar enig- prio sustento – algo raro naqueles tempos. Ela
mático, voltado para o espectador. e sua irmã estudaram pintura e, logo, estavam
“A maneira como a bela africana é repre- entre as três mulheres que trabalhavam no
sentada procede de uma construção revolucio- estúdio do Louvre. Poucos anos depois da abo-
nária, tanto do ponto de vista artístico quanto lição da escravatura, em fevereiro de 1794, ao
do histórico”, descreve trecho do livro Uma escolher retratar uma mulher negra, Marie-
Africana no Louvre (Editora Bazar Tempo), de -Guillemine se envolveu em uma questão po-
Anne Lafont, que resgata a biografia de Made- lítica e polêmica e se destacou como artista e
leine e ressalta a necessidade de revermos esta feminista. Ainda que sua família não tenha
e outras histórias com base em perspectivas de sido abolicionista no século 17, o tempo trouxe
valorização de personagens negras, da repara- à artista a qualidade de ter sido a pioneira no
ção e da decolonialidade. cuidado que teve com a representação de uma
Exposta no Louvre desde o século 17, a obra mulher negra, sentada de maneira elegante, em
francesa mudaria de nome duas vezes. Em posição tradicional de uma mulher branca da
1800, foi apresentada ao público do museu sob mesma época, coerente com as convenções de
o título Retrato de uma Negra. Duzentos anos retrato e da estética neoclássica vigente na
depois, em 2000, a pintura de Marie-Guille- França, em 1800.
mine foi renomeada pelo próprio Louvre para Não à toa, seu retrato se tornou uma obra-
Retrato de uma Mulher Negra, durante uma -chave para novas abordagens na história da
exposição chamada Retratos Públicos, Retratos arte. “A jovem de pele marrom, delicadamente
Privados. E, por último, já em 2019, ela recebe realçada por sombras escuras, sustenta a pose
o título atual Retrato de Madeleine, alterado e ocupa seu lugar num momento da história
IMAGENS DIVULGAÇÃO

quando a obra foi selecionada para ser parte em que a capacidade de ostentar uma postura
da exposição O Modelo Negro – De Géricault digna e reta não era uma situação fácil para as
a Matisse, no Musée d’Orsay, dedicada à repre- mulheres negras de Paris”, afirma Anne Lafont
sentação dos povos de origem africana. Nesta sobre a biografia que nos presenteia.

14 AVENTURAS NA HISTÓRIA
CLUBE DE REVISTAS

AVENTURAS NA HISTÓRIA 15
DÚVIDA CRUEL CLUBE DE REVISTAS

NAZISMO: POR QUE


O PAPA FEZ SILÊNCIO?
ENQUANTO ESTUDIOSOS ACUSAM PIO XII DE OMISSO, VATICANO DIZ
QUE ELE NÃO SE MANIFESTOU PARA EVITAR O PIOR POR POR REDAÇÃO AH

ora do almoço num dia do verão de 1942. Igreja Romana porque um terço do povo alemão,

H O papa Pio XII entra cabisbaixo na cozinha


do Vaticano, carregando duas folhas de
papel escritas à mão. Ele caminha lentamente até
inclusive ele mesmo, era católico.
Se o papa tivesse declarado sua oposição a
Hitler, é possível que a reação contra o nazismo
o fogão de lenha e queima os papéis onde havia tivesse aumentado fortemente, acelerando o fim
escrito seu manifesto contra a política nazista de da Segunda Guerra – um ruído que pode ser
Adolf Hitler. A ideia inicial era que o texto fosse esclarecido com a recente abertura dos arquivos
publicado no jornal L’Osservatore Romano da- históricos relativos ao pontificado de Pio XII.
quela tarde. “É melhor permanecer em silêncio
diante do público e fazer o que for possível em
particular”, disse ele à única pessoa presente na-
quele momento, irmã Pasqualina Lehnert – con-
forme a religiosa revelou em 1999.
Se, em vez de serem destruídas, as palavras de
Pio XII tivessem sido publicadas nas páginas do
jornal italiano, é provável que o curso da Segun-
da Guerra Mundial tivesse tomado um rumo
diferente. Certamente, muito menos pessoas te-
riam sido perseguidas e executadas durante a
guerra. Aquele foi um dos momentos em que a
Igreja poderia ter levantado a voz contra o geno-
cídio perpetrado sob as ordens de Hitler.
E por que Pio XII optou pelo silêncio? Dias
antes, o papa teria sido informado de que um
protesto de bispos alemães havia causado a per-
seguição e a deportação de 40 mil católicos de
origem judia. O medo do papa era que seu posi-
cionamento aberto contra Hitler pudesse desper-
tar ainda mais a ira do Führer, a ponto de outras
centenas de milhares de católicos passarem a ser
perseguidos pelo regime do ditador alemão.
IMAGENS GETTY IMAGES

Entretanto, alguns estudiosos afirmam que, Papa Pio XII reinou


caso o Santo Padre tivesse se manifestado contra de 2 de março
de 1939 até sua
o Holocausto, milhões de vidas poderiam ter sido morte, em 1958
salvas. Hitler não iria comprar briga contra a

16 AVENTURAS NA HISTÓRIA
CLUBE DE REVISTAS
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UMA CAMPANHA DE
À MESA CLUBE DE REVISTAS

QUENTÃO
BEBIDA TÍPICA JUNINA NASCEU
NO BRASIL COMO ALTERNATIVA
DO EUROPEU MULLED WINE
POR IZABEL DUVA RAPOPORT

epleta de milho, amendoim, batata-doce pinga, bem brasileira, impera.

R e mandioca, a tradicional mesa das festas


juninas é quase toda feita com quitutes à
base de grãos e raízes de cultivo indígena. Mas
De acordo com o folclorista e membro da
Academia Brasileira de Letras, Amadeu Ama-
ral (1875-1929), autor de O Dialeto Caipira,
e as bebidas? A estrela nesta categoria é o quen- escrito em 1920, a palavra “quentão” foi criada
tão. De origem brasileira, ele surgiu entre os pelos moradores do interior de São Paulo, onde
portugueses colonizadores como alternativa o termo já aparecia em relatos das festas de São
do mulled wine (vinho com canela, em tradu- João desde a segunda metade do século 19,
ção livre), feito com mel e diversas especiarias, conforme descreveu o também folclorista e
conhecido na Europa desde os tempos de in- jornalista João Vampré (1868-1949).
verno do Império Romano. Já no século seguinte, com as comemora-
Em terras brasileiras, com a abundância da ções “joaninas” cada vez maiores e populares
cana-de-açúcar no período colonial, o vinho de norte ao sul do país, o quentão passou a ser
aquecido deu lugar à cachaça – embora tenha tratado pelos jornais como bebida essencial,
regiões do país, como a Sudeste, que mantêm ganhando páginas inteiras. É o caso, por
a produção das duas bebidas (chamadas de exemplo, da publicação carioca O Cruzeiro,
quentão e de vinho quente) durante as festas de 1944. “O clássico quentão, nunca esqueci-
juninas. Aliás, também é possível encontrar do nas festas de Santo Antônio, São Pedro e
brasileiros que chamem vinho quente de quen- São João, não poderia deixar de comparecer
tão – e não se trata de um erro. É o caso do Sul, nesta série de receitas joaninas”, dizia, sem
IMAGENS GETTY IMAGES

provavelmente por causa da maior oferta da deixar de dar a dica: “conserve a bebida em
bebida por lá, cuja produção começou com a fogo lento e vá servindo quente, em canecas
imigração, em especial, dos italianos. Já nas de louça ou de barro. As de metal tiram um
regiões Norte e Nordeste, o quentão feito de pouco o sabor”.

18 AVENTURAS NA HISTÓRIA
COMO FAZÍAMOS SEM CLUBE DE REVISTAS

DINHEIRO
FALTA DE UMA MOEDA ÚNICA CONFUNDIU OS ESTADOS UNIDOS
ATÉ O SÉCULO 19 POR DENNIS BARBOSA

as penitenciárias, é comum maços de primeiro país europeu a adotar o papel-moeda,

N cigarros servirem como unidade de valor,


porque o uso de dinheiro convencional é
proibido ali. Na história, em diferentes civiliza-
em 1661. Já estávamos, então, na era da moeda
lastreada, feita de material barato, mas pelo qual
o governo se comprometia a guardar o ouro ou
ções, se observou um estágio semelhante na a prata em seu tesouro.
evolução que levou à criação do dinheiro. A Houve épocas em que bancos e outras insti-
dificuldade de encontrar alguém oferecendo o tuições privadas imprimiram dinheiro próprio.
que se buscava disposto a trocar por algo de que Foi assim nos Estados Unidos, entre 1837 e 1863.
se dispunha motivou a adoção de algum bem Qualquer um podia lançar dinheiro no merca-
como referência, a chamada moeda-mercadoria. do se pudesse pagar por ele o valor prometido.
Em povos pastoris, essa unidade era o gado. Isso, é claro, só poderia resultar em caos. Em
Daí surgiu o termo “pecúnia”, sinônimo de di- 1860, havia cerca de 8 mil tipos de dinheiro
nheiro que tem raiz no latim pecu (rebanho), e circulando no país, emitidos por bancos, igrejas
a palavra “capital”, que remete a caput (cabeça). e até restaurantes. Quando algum desses esta-
Da moeda-mercadoria para o uso de metais belecimentos fechava, os portadores de suas
como unidade de valor, foi um pulo. Mais fáceis notas ficavam a ver navios.
de transportar e armazenar, tinham o inconve-
niente de terem de ser pesados a cada transação.
O problema foi eliminado quando os governos
passaram a fundir quantias padronizadas de
metal, colocando sobre elas seu selo para garan-
tir o valor. Creso, rei dos Lídios entre 560 e 546
a.C., é tido como o primeiro a instituir a cunha-
gem oficial e a difundi-la pelas cercanias, a Ásia
Menor, então centro do mundo.
O próximo passo foi a gradual substituição
de metais preciosos por outros mais comuns,
como o ferro, processo em que a malandragem
dos governantes teve papel fundamental. Os
imperadores romanos, por exemplo, que deti-
nham o direito de cunhar dinheiro a seu bel-
-prazer, chegavam a fabricar moedas com 98%
de chumbo, o que diminuía consideravelmente
seu valor. Isso gerou crises econômicas que con-
tribuíram para a decadência de Roma.
A escassez de metal precioso fez da Suécia o

AVENTURAS NA HISTÓRIA 19
LINHA DO TEMPO CLUBE DE REVISTAS

GRAFFITI
EXPRESSÃO ARTÍSTICA COM LASTRO
MILENAR DATA DAS PINTURAS RUPESTRES
POR IZABEL DUVA RAPOPORT 1

ão é de hoje que a arte urbana está nas paredes e muros

N das cidades. Há registros do gênero datados de 40 mil


anos antes de Cristo, passando pelo Antigo Egito e a
arte popular romana em um rastro visto em Paris de 1968 e
nos trens suburbanos de Nova York. Na década de 1970, ela
desemboca no Brasil, com o grafiteiro Alex Vallauri, que
viveu em São Paulo até 1987. “Não se pode afirmar exata-
mente como tudo começou, mas é possível ter uma ideia de 2 3
que entre os nossos sentimentos mais primitivos está a ne-
cessidade de nos expressar, o desejo de marcar a nossa pas-
sagem pela história, de deixar um registro, de transmitir a
nossa visão e o retrato do momento em que vivemos – e que
sonhamos viver”, conta Binho Ribeiro, curador da exposição
IMAGENS: 1 A 5 - GETTY IMAGES; 6 - ACERVO T-KID / ITAÚ CULTURAL; 7 - CLARIO ELIZABETSK / ITAÚ CULTURAL; 8 - EURECKA FILMES / ITAÚ CULTURAL

Além das Ruas: Histórias do Graffiti, em cartaz no Itaú Cul-


tural, em São Paulo. Ao entrar no lugar, logo no piso 1, o
visitante é recebido por uma linha do tempo, a qual traça o
trajeto da grafitagem desde os tempos das cavernas até a
atualidade. Confira um trecho a seguir.
4

Cerca de 40 mil a.C. Cerca de 2500 a.C. Cerca de 62 d.C. Início do século 20

1PINTURAS
RUPESTRES 2 ANTIGO
EGITO
Cenas que narram o Muito do que veio a formar
3 ARTE
POPULAR
ROMANA
4 MURALISMO
MEXICANO
Após o fim de uma ditadura
cotidiano de um grupo as sociedades do mundo Quando a erupção do militar, a Revolução
social, com suas lutas e ocidental nasceu ali, às Vesúvio devastou a cidade Mexicana soprou novos
glórias, foram as primeiras margens do Nilo. Um dos de Pompeia, no ano 79, a ares também criativos no
formas de pinturas feitas legados da civilização lava levou consigo diversas país, que viu surgir painéis
pela humanidade, com as egípcia foi a documentação frases e desenhos que que contavam a história da
paredes das cavernas como de sua cultura, dos costu- adornavam suas paredes – nação, enalteciam suas
suporte. Houve também mes e do dia a dia de sua já foram escavados mais de ancestralidades e promo-
quem optou por soprar a população. Os registros 11 mil exemplares só naquela viam a luta contra as
tinta por entre os dedos e existem em paredes que região. A prática, frequente desigualdades sociais.
registrar o contorno de suas ainda hoje nos fascinam, em todo o Império Romano, Ruas e prédios eram
mãos, criando assim uma milênios depois. era também a única oportu- decorados com arte de
primeira versão do que hoje nidade de expressão do cunho popular para
conhecemos por estêncil. cidadão comum. todos verem.

20 AVENTURAS NA HISTÓRIA
CLUBE DE REVISTAS

5 8

6 7

1968 1970 1971 1990

5 PARIS,
MAIO DE 68 6 TRENS
Na década de 1960,
DE
NOVA YORK 7 STREET ART 8PRIMEIRAS
PARCERIAS
O bairro do Bronx, na
No Brasil, artistas como
Carlos Matuque, Jaime Surgem novas oportunida-
a França era palco de periferia da cidade, ganhou Prades e o grupo Tupy Não des para o universo do
movimentos estudantis traços e cores à medida que Dá, protagonistas do novo grafite em São Paulo.
que ficaram marcados pela crescia um sentimento de movimento, realizavam A prefeitura incentivou a
presença de pichações, inquietação com as intervenções e ocupavam prática, cedendo materiais
principalmente nas universi- desigualdades e violências muitas ruas de São Paulo. e espaços físicos para a
dades. Nas ruas, os contra sua população Anos depois, dois grupos produção dos grafiteiros,
estêncils ganhavam força marginalizada. Os trens, marginalizados (o hip hop como forma de oferecer uma
como uma forma de arte assinados com uma grafia da São Bento e o skate) alternativa às pichações.
característica deste novo inédita, logo se tornaram começaram a se unir, Alguns trabalhos eram
tempo, ao lado de pôsteres ícones deste novo movi- influenciados por NY e Paris. remunerados. Em paralelo,
e murais que ajudaram a mento, que se espalharia Juntos, lutariam por espaço, o hip hop foi fomentado pela
construir o imaginário da pelas ruas com grande reconhecimento e legitimi- Secretaria de Cultura e o
street art ao redor do globo. fôlego pelos próximos anos. dade na arte da cidade. skate, finalmente, legalizado.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 21
ILUSTRADA CLUBE DE REVISTAS

A BATALHA DE
TERMÓPILAS
CONFLITO ENTRE PERSAS E ESPARTANOS EM DESFILADEIRO
DA GRÉCIA DUROU TRÊS DIAS POR FABIANO ONÇA
m 13 de setembro de 480 a.C., o exército persa, comandado pelo rei Xerxes, acampou

E diante do Desfiladeiro de Termópilas, na costa leste da Grécia. Seus mais de 200 mil
homens recrutados para derrubar os espartanos perdiam-se de vista. Contra eles, havia
o rei Leônidas e somente 7 mil soldados. Confiante na visão aterrorizadora do contingente,
Xerxes enviou um emissário para convencer os gregos a se renderem. “Nós iremos disparar
tantas flechas que o céu vai escurecer”. “Melhor. Nós lutaremos à sombra”, respondeu Leôni-
das. Um dia depois, Xerxes atacou. Durante dois dias, suas melhores tropas foram massacra-
das na parte mais estreita do desfiladeiro e atiradas ao mar. Ele só venceu quando descobriu
um atalho até a retaguarda espartana. Leônidas resistiu até a morte, cumprindo a promessa
de só voltar para casa “com o escudo ou sobre ele”. Um dos principais relatos do historiador
Heródoto, essa história mostra o valor que os gregos davam a feitos e palavras.

O regimento de elite persa era


formado por 10 mil homens. Eles eram
conhecidos como “os imortais”
porque, durante uma batalha, quem
morria era arrastado pelos compa-
nheiros e substituído, dando ao
inimigo a impressão de que não
haviam sofrido perdas

A 300 quilômetros de Esparta, mas


na fronteira entre o domínio persa e
o espartano, o Estreito de Termópi-
las ficava entre montanhas e uma
encosta até o mar. Seu ponto mais
fino tinha menos de 13 metros.
“Termópilas” significa “passagem
quente”, devido às fontes de água
quente que havia por lá
CLUBE DE REVISTAS
A sorte só sorriu para Xerxes
quando um pastor local, Efialtes,
mostrou uma rota de desvio. Por
ela, o exército persa conseguiu
chegar até a retaguarda das
forças espartanas. Quando
soube da ameaça, Leônidas
ordenou aos aliados recuarem,
mas seguiu na luta com 300
espartanos e 700 téspios

Quando Leônidas morreu, os espartanos


Os espartanos, como outros gregos, tiveram que recuperar seu corpo quatro
lutavam encouraçados e com grandes vezes, até arrastá-lo para dentro da
escudos. Essa infantaria pesada parede de escudos. Segundo Heródoto,
normalmente se fechava formando Leônidas lutou até o fim porque ouviu de
uma muralha de escudos. Composto um oráculo que Esparta ou seria destruí-
também por uma lança de 2,7 m de da ou perderia seu rei. De fato, os persas
comprimento e uma espada de tomaram grande parte da Grécia, mas
60 cm, todo o equipamento pesava não chegaram a Esparta
cerca de 35 kg
AVENTURAS NA HISTÓRIA 23
PERSONAGEM CLUBE DE REVISTAS

SENHOR

24 AVENTURAS NA HISTÓRIA
CLUBE DE REVISTAS

TERROR IVAN, O TERRÍVEL, NÃO GANHOU ESSE NOME À TOA.


O PRIMEIRO CZAR DA RÚSSIA REDUZIU VILAREJOS
A PÓ E MATOU ATÉ O PRÓPRIO FILHO POR ISABELLE SOMMA

van Vassilievich acreditava que todos cons- arredores de Moscou. A cidade, que não parava
piravam contra ele. O czar, soberano da de crescer, era a capital do Grande Reino de
Rússia com o nome de Ivan IV, já havia Moscóvia, governado pelo pai de Ivan, Vassili
matado membros do governo, amigos, ami- III. O território era cercado por povos tártaros,
gos dos amigos e até alguns parentes. Havia que viviam em Estados conhecidos como “kha-
eliminado famílias e vilas inteiras, mesmo que natos” (comandados por líderes chamados
as vítimas nada tivessem a ver com o motivo de “khans”). Não eram raras as guerras dos mos-
sua fúria. Ivan só não havia ainda tocado em covitas contra os vizinhos.
seus familiares mais próximos. Isso mudou em Quando Vassili III caiu doente e morreu, em
uma noite do outono de 1581. Muito religioso, 1533, o pequeno Ivan foi proclamado grande
o czar repreendeu a nora por usar roupas que príncipe, o líder do Reino de Moscóvia. Como
ele achou inadequadas. O castigo foi o espan- ele era muito jovem, Elena Glinskaya, sua mãe,
camento. Ela estava grávida. Os golpes dados assumiu o trono. Em 1538, ela também morreu,
pelo monarca acabaram provocando o aborto provavelmente envenenada. Na ausência de Ele-
de seu futuro neto. na, explodiram as disputas internas pelo poder
Indignado, Ivan Ivanovich, herdeiro do tro- no reino. Os protagonistas da briga eram os
no, resolveu enfrentar o pai em defesa da espo- boiardos, nobres proprietários de terras que
sa. A fúria do czar então se voltou contra o fi- faziam parte do governo e que, de vez em quan-
lho: com sua bengala de ferro, Ivan o golpeou do, entravam em guerra uns contra os outros.
na cabeça. Onze dias depois, o ferimento leva- Órfão aos 8 anos, Ivan passou a ser criado
ria Ivan Ivanovich à morte. Por causa de uma sob a supervisão dos boiardos. O fato de ser
discussão, o monarca tinha exterminado seus príncipe não lhe garantiu uma infância privi-
herdeiros diretos. Não foi à toa que ele passou legiada: o garoto foi tratado de forma brutal e
à história como Ivan, o Terrível. Apesar de ter chegou a passar fome. Não é de se estranhar
centralizado o poder e conquistado importan- que, com um exemplo péssimo desses, Ivan
tes territórios, o primeiro czar da Rússia acabou tenha aprendido a lidar com os outros da mes-
eternizado por sua violência. No entanto, pes- ma maneira. Começou jogando gatos e cachor-
quisadores têm visto no monarca mais do que ros pelas janelas do palácio em que morava,
simples maldade. Ele teria sofrido graves dese- dentro dos muros do Kremlin (a fortaleza que
quilíbrios mentais. até hoje abriga o governo russo). Passou então
Ivan nasceu em 25 de agosto de 1530, nos a maltratar servos e, mais tarde, a matá-los

AVENTURAS NA HISTÓRIA 25
PERSONAGEM CLUBE DE REVISTAS

por pura diversão. Era um ensaio para os gran- Enquanto colocava ordem na casa, Ivan ia
des massacres que iria promover. botando as manguinhas de fora e expandindo
A péssima criação de Ivan, entretanto, não seus domínios. Conquistou grandes territórios
basta para explicar seu comportamento na épo- dos inimigos tártaros a leste e ao sul, chegando
ca adulta. “Quando jovem, ele provavelmente até o Mar Cáspio e mais tarde atingindo a géli-
viu algumas cenas cruéis da luta entre várias da Sibéria. A expansão das fronteiras trouxe
facções da corte. Esses conflitos eram típicos tranquilidade ao povo da Rússia, já que os tár-
em qualquer corte do século 16”, afirmou o taros, durante suas invasões, costumavam cap-
russo Sergei Bogatyrev, professor de História turar russos e vendê-los como escravizados.
Russa Antiga. Ora, se a crueldade era comum Para comemorar a derrota dos tártaros, que
em outros reinos, por que somente Ivan foi tão eram muçulmanos, Ivan mandou construir um
sanguinário? O historiador americano Richard enorme templo ortodoxo em Moscou. Após o
Hellie (1937-2009), que foi especialista em His- fim dos seis anos de obras, iniciadas em 1555, o
tória Russa, dizia que o czar tinha mesmo czar ficou extremamente impressionado com o
transtornos mentais. Segundo ele, muito do resultado (a bela e colorida Catedral de São Ba-
comportamento de Ivan pode ser justificado sílico, erguida na Praça Vermelha, é até hoje um
por teorias modernas que explicam tipos co- dos maiores símbolos da Rússia). Diz a lenda
muns de paranoia, como mania de perseguição que, em vez de premiar os responsáveis pela
e megalomania. construção, Ivan teria
mandado cegá-los, para
DE HERÓI A VILÃO ANTES DE garantir que eles não
Aos 16 anos, em janeiro
de 1547, Ivan se tornou
MERGULHAR A RÚSSIA construíssem nada mais
belo que aquela igreja.
o primeiro a ser coroa- NUM INFERNO, IVAN O lado assassino de
do czar, o “grande prín-
cipe de toda a Rússia”.
MELHOROU A VIDA DE Ivan teria sido desperta-
do, segundo historiado-
Monarcas anteriores já SEUS SÚDITOS res, por causa da morte da
haviam recebido o títu- esposa, a czarina Anastá-
lo (derivado dos “césares” de Roma), mas ne- cia, em 1560. A fatalidade pôs fim a 13 anos de
nhum deles havia sido abençoado e reconheci- casamento. “A morte dela foi quase imediatamen-
do pela poderosa Igreja Ortodoxa. Acredita-se te seguida de um ato irracional. Ivan culpou seus
que os distúrbios mentais de Ivan tenham co- conselheiros pelo fato e ordenou a realização de
meçado justamente após sua coroação: a ceri- um julgamento religioso para declará-los bruxos”,
mônia fez com que ele acreditasse ser mesmo relatou Richard Hellie. Até Aleksey Adashev, seu
um líder enviado dos céus. auxiliar mais próximo, não escapou da ira do
Mas, antes de mergulhar a Rússia em um czar: foi preso e cometeu suicídio na prisão.
inferno, Ivan até que melhorou a vida de seus Depois de Anastácia, Ivan tentou, em vão, se
súditos. Nos primeiros anos de reinado, ele cen- firmar com outra mulher. Casou-se mais sete
tralizou o poder em Moscou e derrubou o velho vezes – algumas dessas uniões terminaram em
esquema medieval, em que cada nobre era so- poucas semanas. Em vez de se preocupar com a
berano no seu pedaço de terra. O ódio que Ivan felicidade conjugal, o czar voltou sua atenção à
tinha dos boiardos fez com que ele se livrasse perseguição de supostos traidores da pátria. Essa
de boa parte deles, dando altos cargos públicos paranoia fez com que, em 1565, Ivan formasse a
a pessoas comuns. Representantes populares Oprichnina (termo que, em russo antigo, signi-
ganharam espaço no Zemsky Sobor, a “Assem- fica algo como “Estado separado”). Com a medi-
bleia da Nação” instituída pelo czar, que reunia da, um terço de todo o território do Reino da
também membros da nobreza e do clero. Moscóvia ficou apenas sob seu governo, sem

26 AVENTURAS NA HISTÓRIA
CLUBE DE REVISTAS

MOSCOU EM CHAMAS
Os moscovitas sofreram muito desguarnecida Moscou. Como as Devlet I, que perdeu o filho e o neto
durante o governo de Ivan, o Terrível. vitórias militares de anos anteriores durante a batalha por Moscou. A
Com medo de suas reações sangui- tinham mantido os tártaros distan- grande vitória de Vorotinsky fez com
nárias e explosivas, um monte de tes, a cidade acabou sendo pega de que a população o saudasse como
gente preferiu abandonar a cidade surpresa. Vindas do sul, as forças de herói. Depois de ouvir boatos
em vez de viver sob as barbas do Devlet I incendiaram Moscou. dizendo que o príncipe pretendia
tirano. O êxodo fez com que a mão Segundo relatos da época, a cidade usar feitiçaria para tomar seu lugar,
de obra começasse a escassear nos foi completamente destruída e mais o czar decidiu aprisioná-lo. Ivan
arredores da capital. Faltava comida de 10 mil pessoas morreram nas seguiu então o exemplo dos tártaros
e soldados para defender o local. chamas. Os tártaros voltaram no ano em Moscou: usou fogo para torturar
Em 1571, aproveitando o fato de que seguinte. Mas, desta vez, encontra- o príncipe, que acabou morrendo
o Exército russo estava ocupado ram forte resistência. Ivan tinha por causa das queimaduras. Para
levando uma surra na guerra da convocado o príncipe Mikhail completar, o czar fez questão de
Livônia, o khan Devlet I, líder tártaro Vorotinsky para organizar a defesa. sumir com todos os documentos
da Crimeia, resolveu atacar a O nobre impôs uma dura derrota a sobre o heroísmo de Vorotinsky.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 27
PERSONAGEM CLUBE DE REVISTAS

a interferência dos boiardos ou da Assembleia de revelou o professor Sergei Bogatyrev.


Representantes que ele mesmo criara. Em 1581, quando a derrota na Livônia esta-
Ivan se apropriou das melhores terras e ne- va próxima, ocorreu o incidente que selou o
las implantou um regime de terror, colocado destino do czar: a morte do filho – e do neto,
em prática por sua guarda pessoal. “Um dos ainda na barriga da mãe. “O assassinato aci-
mais cruéis atos durante a Oprichnina foi uma dental de Ivan Ivanovich foi a maior tragédia
expedição punitiva contra a cidade de Novgo- da vida de Ivan, o Terrível”, afirmou Bogatyrev.
rod, em 1570, em que foram mortas entre 3 mil Meses após o ocorrido, o monarca teve um
e 15 mil pessoas”, disse o historiador russo colapso físico: sua barba embranqueceu e ele
Sergei Bogatyrev. Todas essas mortes ocorre- perdeu os cabelos e o vigor.
ram porque as tropas de Ivan, o Terrível, que Enquanto a vida do monarca ia mal, a dos
tinham autonomia para matar qualquer um, russos ia pior ainda. Vilas inteiras haviam sido
estavam perseguindo apenas dois administra- eliminadas durante seu regime. Muitos trabalha-
dores locais acusados de traição. dores abandonaram os campos e a produção
Ao mesmo tempo em que perseguia sem dó agrícola entrou em declínio. Os nobres e o clero,
o povo russo, Ivan mandava, secretamente, que antes muito influentes, se recolhiam, temendo os
religiosos rezassem pelas vítimas dos massacres ataques de loucura do czar. O medo e a pobreza
– afinal, ele era um homem de fé. Alguns sé- dominavam o reino do homem que, naquela
culos mais tarde, uma época, já era chamado de
lista da época foi en- Ivan Grozny (a tradução
contrada, com nada NOBRES E CLERO, da alcunha em russo para
menos que 4095 nomes
de pessoas mortas que
ANTES INFLUENTES, o português é “o horren-
do”, mas a versão vinda
mereceram orações en- SE RECOLHIAM, do inglês terrible acabou
comendadas pelo czar.
De acordo com o pro-
TEMENDO OS ATAQUES ficando mais popular).
A hora de Ivan chegou
fessor, a lista indica que DE FÚRIA DE IVAN em 18 de março de 1584.
os assassinatos durante Morreu enquanto jogava
a vigência da Oprichnina, que durou até 1572, xadrez, provavelmente vítima de um ataque car-
podem não ter ultrapassado esse número. díaco. Surgiram suspeitas de que o czar, como a
mãe, tivesse sido envenenado. Depois de exumar
XEQUE MORTE seu cadáver, em 1968, pesquisadores descobriram
Enquanto dentro da Rússia o desequilíbrio men- que os restos mortais tinham traços de cianure-
tal de Ivan causava morte e destruição, no ex- to, o que continuou dando força a essa tese. Mas
terior suas tropas levavam surras homéricas. é bom lembrar que a substância, altamente tóxi-
Desde 1558, elas estavam metidas em uma guer- ca, era utilizada na época para o tratamento da
ra para conquistar a Livônia (que hoje corres- sífilis, doença que Ivan havia contraído.
ponde à grande parte da Letônia e da Estônia). Um dos acusados de ter envenenado o czar foi
Lá, poloneses e suecos mostraram ser inimigos Boris Godunov, seu auxiliar. Ele era tio de Fiódor,
bem piores que os tártaros. que assumiu o trono por ser filho do último ca-
O czar não era um general brilhante nem ia samento de Ivan. Na prática, era Godunov quem
muito ao campo de batalha. A guerra durou 25 governava, pois o novo czar não se interessava
anos e, ao final, nenhum pedaço de terra foi pelo cargo. Assim como o pai, Fiódor era um
IMAGENS GETTY IMAGES

ganho. Do lado russo, as baixas mais importan- sujeito raro. Mas, em vez de matar pessoas, sua
tes não foram feitas pelos inimigos, mas por paixão era tocar sinos. Foi o que ele mais fez até
Ivan. “Alguns bons diplomatas e comandantes morrer, em 1598. Como não havia outros herdei-
militares se tornaram vítimas da Oprichnina”, ros, Godunov acabou virando czar.

28 AVENTURAS NA HISTÓRIA
CLUBE DE REVISTAS

PEDRO, O CZAR DOS CZARES, TAMBÉM FOI CRUEL


Ele tinha mais de 2 metros de altura. guerra que permitiu invadir outro europeias – aqueles que se recusa-
Mas não foi só por causa disso que território sob domínio dos suecos: a vam a fazê-lo tinham de pagar
o czar Pedro I ficou conhecido Finlândia. As vitórias no oeste foram impostos extras. Mas o sofisticado
como o Grande. Ele foi um dos fundamentais para Pedro, que Pedro também tinha seu lado terrível.
maiores estadistas da Rússia. sempre teve suas atenções voltadas Em 1698, uma unidade do Exército
Nascido em 1672, governou sozinho para o lado ocidental da Rússia. se amotinou enquanto ele estava, de
a partir de 1696 (antes, dividira o Perto do Mar Báltico, ele resolveu novo, viajando pela Europa. Quando
poder com seu irmão) e ficou no construir uma nova capital, São o czar voltou para casa, a rebelião já
trono até 1725, quando morreu. Petersburgo (em homenagem a São havia sido contida. Pedro não perdeu
Além de modernizar o país e Pedro, o apóstolo). Quando decidia a oportunidade de se vingar: cerca
transformá-lo numa das maiores os rumos de seu império, o czar de 1200 participantes do motim
potências do século 18, Pedro tinha como modelo as grandes foram torturados e mortos – e o
conquistou o território que tinha nações da Europa. Em uma viagem próprio czar se encarregou de alguns
sido a pedra no sapato de Ivan, o realizada em 1697 por países como deles. Outra vítima de Pedro,
Terrível. Foi em 1714, quando as Holanda, França e Inglaterra, Pedro exemplo de Ivan, foi o próprio filho.
tropas de Pedro, enfim, derrotaram se apaixonou pelas culturas locais. A diferença é que, no caso de Pedro,
poloneses e suecos e ocuparam a Ao voltar, exigiu que todos os foi tudo de propósito. Em 1718, o
Livônia. E não foi só isso. O czar nobres cortassem suas longas czar mandou que o filho fosse
investiu grandes quantias na barbas, para ficar mais parecidos torturado até a morte por não ter
criação de uma frota de barcos de com os membros das cortes seguido uma ordem sua.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 29
CAPA CLUBE DE REVISTAS

30 AVENTURAS NA HISTÓRIA
CLUBE DE REVISTAS

PARA UNS, MASSACRE.


PARA OUTROS, INCIDENTE.
A VOLTA DE PERÓN DO
EXÍLIO, OCORRIDA HÁ 50
ANOS NA ARGENTINA,
CULMINOU EM UMA LUTA
ARMADA ENTRE SEUS
PARTIDÁRIOS
POR TOMÁS RODRÍGUEZ
TRADUÇÃO: PABLO DE LA FUENTE

AVENTURAS NA HISTÓRIA 31
CAPA CLUBE DE REVISTAS

m 1955, um golpe militar derrubou incorporando ideias ligadas à Revolução Cuba-


o então presidente da Argentina, na, agregando o método da guerrilha e a luta
general Juan Domingo Perón, cria- armada”, explica o historiador Esteban Ponto-
dor do chamado movimento pero- riero. É que, durante os anos de exílio, muitos
nista. Odiado por alguns, que o atores da chamada “Resistência Peronista” luta-
consideravam (e ainda o conside- ram contra a abolição do movimento e a favor
ram) um tirano demagogo; adorado por outros, de seu líder retornar ao país. No entanto, entre
que viam nele a possibilidade de acesso a benefí- os novos atores que aderiram ao peronismo
cios sociais, esse personagem-chave da história neste período, havia grupos em séria oposição
argentina foi obrigado a viver um exílio de 18 a outros, classificados por historiadores como
anos, durante o qual ele e seu movimento foram “a direita peronista”, incluindo a burocracia
banidos do país (nem mesmo o nome de Perón sindical. Vale destacar que também surgiram
poderia ser mencionado). Até que, em 1973, ele grupos guerrilheiros de direita, como a Con-
finalmente foi autorizado a retornar à Argentina. centração Universitária Nacional (CNU).
Mas o que seria um grande reencontro entre as O governo de fato atravessava uma profunda
massas e seu líder terminou em um tiroteio que crise econômica e social, em que as notícias de
deixou mortos e feridos, conhecido como “O ataques, sequestros e bombas nas mãos da guer-
Massacre de Ezeiza”. Por que o que seria um feliz rilha estavam na ordem do dia. O país sangra-
ato popular se transformou em pandemônio? va até a morte em protestos reprimidos com
A Argentina estava submersa na violência. O fogo e revoltas populares em várias províncias.
contexto repressivo da ditadura de Alejandro Por volta de 1973, o sentimento geral era de que
Lanusse (no poder de março de 1971 a maio de o único que poderia conter tal situação era Pe-
1973), a impossibilidade do povo de se manifes- rón, que, desde o exílio ao longo da década de
tar politicamente, e menos ainda de votar em 1960, havia incentivado a radicalização da ju-
Perón para canalizar suas reivindicações, leva- ventude socialista que lhe respondia. Era uma
ram lentamente ao nascimento de diferentes estratégia do general para enxugar o regime
grupos guerrilheiros, sendo o mais importante que ele mesmo encorajava com o lema da “ju-
o Exército Revolucionário Popular (ERP), de ventude maravilhosa” e a premissa de que a
tendência mais marxista, e o Montoneros, de “violência do governo justificava a violência do
origem peronista. Essas organizações guerri- povo”: ou seja, a da guerrilha.
lheiras, somadas a grupos estudantis e de bair-
ro, compunham o amplo espectro do que foi OUTROS TEMPOS
chamado de “Tendência Revolucionária”. Finalmente, em 25 de maio de 1973, o então
“Durante os anos da proscrição, foram in- governo Lanusse permitiu novamente eleições
corporados setores que, em geral, não estavam democráticas. Embora Perón ainda não tives-
associados ao peronismo clássico, como as clas- se permissão para retornar, o antigo líder no-
ses médias urbanas e profissionais, e a grande meou como seu representante o peronista Héc-
mudança ocorreu quando setores da juventude tor J. Cámpora, eleito naquela ocasião com
abraçaram o peronismo e o reinterpretaram 49,5% dos votos sob o lema “Cámpora no go-
verno, Perón no poder”. O plano era que, uma
vez nomeado presidente, Cámpora canalizasse
ENTRE OS NOVOS GRUPOS o retorno do antigo líder. Mas a história seguiu

POLÍTICOS, FORMADOS DURANTE seu próprio curso e se radicalizou. Contra a


vontade do próprio Perón, Cámpora libertou
O EXÍLIO DE PERÓN, HAVIA O todos os presos políticos das organizações

CHAMADO ˝A DIREITA PERONISTA˝ guerrilheiras no mesmo dia em que assumiu o


cargo. Era o início das tensões entre delegado

32 AVENTURAS NA HISTÓRIA
CLUBE DE REVISTAS

Finalmente, em
25 de maio de 1973,
o ditador Lanusse
permitiu novamente
eleições democráticas

e dirigente, que teriam um desfecho rápido. rón estava furioso com ele, culpando-o pela
Neste ínterim, confirmou-se que o caudilho “infiltração de marxistas no governo”. A indig-
seria autorizado a retornar. nação de Perón foi tanta, a ponto de não recep-
Porém as coisas não eram como antes. “En- cionar Cámpora no aeroporto, nem comparecer
quanto Perón estava no exílio, e era favorável ao jantar de gala que o então ditador da Espa-
aos seus interesses, deu sinais de apoio ao nha, Francisco Franco, havia preparado para
maior número possível de setores dentro do recebê-lo, alegando “motivos de saúde”.
movimento peronista. Foi um sucesso do pon- Para o historiador Hernán Confino, a insta-
to de vista político e tático, mas continha con- bilidade política que reinava na Argentina não
tradições e conflitos que estavam latentes, mas só não acabou quando Cámpora assumiu a pre-
em estado de repouso, até explodirem em Ezei- sidência, como se agravou. “Assim que Cámpo-
za”, explica Pontoriero. Em 15 de junho, Cám- ra tomou posse, muitas organizações juvenis da
pora deixa o cargo nas mãos de seu vice-pre- esquerda do peronismo começaram a se apode-
sidente, Vicente Solano Lima, para viajar à rar de instituições e estabelecimentos, fazendo
Espanha com o objetivo de acompanhar Perón valer o programa dos que lutaram pela volta de
em seu retorno triunfal e definitivo (o líder Perón ao poder. Isso obviamente gerou um con-
exilado já havia retornado uma vez, em novem- flito social e político que Cámpora não conse-
bro de 1972, para designar Cámpora como seu guiu neutralizar, apesar do bom relacionamen-
representante nas eleições). to que tinha com a ala esquerda do movimento.
No entanto, o novo presidente argentino se Em algum momento, o que poderíamos pensar
deparou com uma recepção nada esperada. Pe- é quem poderia ter impedido”, reflete.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 33
CAPA CLUBE DE REVISTAS

ENFIM, AS BOAS-VINDAS Um fato importante: Osinde era próximo de


Apesar da convicção daquela juventude de que José López Rega, secretário pessoal de Perón e de
seu líder os conduziria à “Pátria Socialista”, os sua esposa, a futura presidente María Estela Mar-
fatos pareciam apontar para outra direção. tinez – mais conhecida como Isabel –, e exerceu
Perón delegou a organização de suas boas- uma poderosa influência sobre o casal presiden-
-vindas à Argentina a uma comissão de cinco cial. Posteriormente, López Rega seria o criador
pessoas, das quais, o único representante da da organização paramilitar Alianza Anticomu-
esquerda do peronismo era Juan Manuel Abal nista Argentina, a chamada “La Triplo A”.
Medina, político e jornalista, irmão do mítico A comissão determinou que a cerimônia de
fundador dos Montoneros, Fernando. Os ou- recepção fosse realizada a poucos quilômetros
tros eram Lorenzo Miguel, sindicalista da Uni- do Aeroporto de Ezeiza, na ponte El Trébol,
ón Obrera Metalúrgica (UOM); Norma Ken- perto do hotel e do hospital de Ezeiza. Perón
nedy, representante do braço feminino do deveria descer do avião ali e, de seu palanque,
movimento peronista; o ex-coronel e secretário falaria com aqueles ansiosos jovens que dese-
de Esportes Jorge Osinde; e José Ignacio Rucci, javam vê-lo. E foi Osinde que ordenou que a
sindicalista peronista, também da UOM, se- segurança do tal evento não fosse realizada
cretário da Confederação Geral dos Trabalha- pela Polícia Federal ou Provincial, mas por sua
dores (CGT) e um dos homens de maior con- ordem, substituindo os policiais por militantes
fiança de Perón. de diferentes organizações do peronismo or-

Héctor J. Cámpora (à esquerda)


assumiu a presidência, em 1973,
com o lema “Cámpora no governo,
Perón (à direita) no poder”

34 AVENTURAS NA HISTÓRIA
CLUBE DE REVISTAS

todoxo que lhe respondiam. PERÓN DELEGOU A ORGANIZAÇÃO


O argumento pela escolha da comissão era
de que o peronismo “não podia ser custodiado DO ATO DE SUAS BOAS-VINDAS
por aqueles que o perseguiram até dois meses EM EZEIZA A CINCO PESSOAS:
atrás”. Enquanto isso, cresciam os rumores
(muitos encorajados pela direita peronista) de APENAS UMA ERA DA ESQUERDA
que os Montoneros e a organização guerrilhei-
ra Fuerzas Armadas Revolucionárias (FAR) ENCONTRO ARMADO
estavam tentando se apropriar do ato e até Em certo momento do evento, uma coluna de
mesmo assassinar Perón. montoneros chegou do sul da província de Bue-
Naquele 20 de junho de 1973, os homens de nos Aires, carregando armas curtas – principal-
Osinde, portando armas longas que guardavam mente calibres 22 e 32 – e alguns fuzis. Procu-
nos estojos dos instrumentos da orquestra – a raram aproximar-se o mais possível atrás do
Filarmônica de Buenos Aires iria tocar a Mar- palanque onde o general falaria, em frente ao
cha Peronista no evento –, ocuparam o palan- Hogar Escuela. Foi então que começou uma
que de onde finalmente o líder Perón falaria. disputa com os homens de Osinde. A princípio,
Osinde posicionou estrategicamente seus ho- o confronto ocorreu com gritos e insultos. De-
mens na casa-escola de Santa Teresa, no hos- pois com golpes e, mais tarde, por volta das 14h
pital e no hotel Ezeiza. e 14h30, com tiros tanto de trás do palanque
Somado a isso, segundo reconstrói o jorna- quanto do Hogar Escuela. A batalha entre as
lista e ex-montonero Horacio Verbitsky em seu duas facções do peronismo foi caótica.
livro Ezeiza, outros homens armados escalaram Houve corre-corre, tiros e confusão. Enquan-
as árvores próximas do local, além da chegada to alguns da multidão se jogavam ao chão ten-
de várias ambulâncias, carregadas com armas tando fugir das balas, outros, desesperados,
oriundas do Ministério do Bem-Estar Social, começavam a correr. Nesse momento, os ho-
então supervisionadas por José López Rega. mens de Osinde capturavam várias pessoas,
"O que ‘a tendência’ avaliou foi que era ne- levando-as ao Hotel Ezeiza para torturá-las.
cessário fazer uma demonstração de força e Diferentes fontes e investigações, como a reali-
convocação diante de Perón, para que ele fosse zada por Verbitsky, revelam 13 mortos e 365
convencido a se alinhar com aquele setor do feridos como resultado daquele dia desastroso.
peronismo, e não com a ortodoxia ou a direita Importante lembrar que uma investigação ofi-
do movimento”, explica Pontoriero. cial sobre o incidente nunca foi realizada.
Assim, começaram a chegar a Ezeiza as lon- Assim que Perón soube do que estava acon-
gas colunas de gente. Desde simples auxiliares tecendo em terra, seu avião desviou e acabou
até militantes e montoneros, felizes e ansiosos pousando na base militar de Morón, província
por reencontrar o líder. Desde velhos peronis- de Buenos Aires. O encontro entre a juventude
tas que viveram os governos de Perón e se con- e o velho líder foi frustrado.
sideravam beneficiados por suas políticas so- No dia seguinte, as palavras de Perón sobre
ciais, até jovens que, embora não tivessem o ocorrido desconcertaram ainda mais os jovens
vivido naqueles tempos, eram fascinados e revolucionários: “Equivocam-se aqueles que
inflamados pelas histórias e lendas de outrora. pensam ingenuamente que podem tomar o nos-
Não há um volume exato de quantas pessoas so movimento ou tomar o poder reconquistado
se reuniram naquele dia, mas os números mais pelo povo. É por isso que quero alertar aqueles
conservadores falam em cerca de 1 milhão de que tentam se infiltrar nas classes populares ou
pessoas, chegando até o mais dito entre eles: estatais, que estão indo mal por aí. Aconselho
3 milhões e meio. Todos supunham que have- aos inimigos encapuzados ou ocultos a cessarem
ria uma alegre festa popular. suas tentativas porque, quando os povos

AVENTURAS NA HISTÓRIA 35
CAPA CLUBE DE REVISTAS

LOGO, PERÓN SE MANIFESTOU cimento foi, segundo Perón, “a palha que quebrou
o lombo do camelo”, pois, para ele, foi como se
CONTRA OS MONTONEROS, “matassem um filho”, aquele que nunca teve.

RESPONSABILIZANDO-OS POR Embora suas reuniões com os Montoneros


continuassem – sempre sem sucesso –, em janei-
TEREM MOTIVADO OS TIROS ro de 1974, o governo enviou ao Congresso um
projeto de lei para alterar o Código Penal, na
esgotam a paciência, tendem a trovejar a lição”, tentativa de deter os guerrilheiros do ERP e dos
lançou o dirigente com veemência. Montoneros (a organização, aproveitando a re-
A partir desse momento, as organizações vogação das leis repressivas do último governo,
radicalizadas tentaram interpretar aquele curto- realizou 185 ataques, uma média de um por dia,
-circuito entre elas e Perón, com a esperança de de julho a dezembro de 1973). Vários deputados
poder remediá-lo. “Por um lado, surge a ideia que respondiam a Montoneros se opuseram a
de ‘condução pendular’: Perón dá um pouco a essas mudanças e, posteriormente, por ordem do
cada parte do movimento para se estabelecer líder Mario Firmenich, oito renunciaram aos
como uma espécie de árbitro condutor. Por ou- cargos. Quem resistiu à saída foi o historiador e
tro lado, vem a ‘teoria do cerco’: Perón realmen- jornalista Rodolfo Ortega Peña, que seria assas-
te não quer fazer o que está fazendo, mas está sinado pouco tempo depois. Sua morte, pelas
cercado por pessoas da direita de seu movimen- mãos de “La Triple A”, em 31 de julho de 1974, é
to que o aconselham mal, López Rega no pri- considerada o primeiro grande ato criminoso
meiro ponto. Entre essas duas questões orbitará daquela organização paramilitar. Em seu funeral,
a dificuldade que a juventude peronista de es- os militantes pendurariam uma bandeira onde
querda terá para, de um lado, criticar a lideran- se lia um presságio dos tempos vindouros: “O
ça de Perón, mas, de outro, ser uma intérprete sangue derramado não será esquecido”.
dela. Se nos referimos aos acontecimentos frios, Perón continuou com a frente interna aberta.
Perón finalmente escolhe em qual tendência Num grandioso ato em 1º de maio, em come-
política deve se apoiar”, diz Confino. moração ao Dia do Trabalho, o general expulsou
O desastre culminou em uma discussão acir- os montoneros da Plaza de Mayo, depois de
rada entre Osinde e o ministro do Interior, Es- chamá-los de “estúpidos” e “imberbes”. “Hoje,
teban Righi, que culpou o ex-coronel pela má verifica-se que alguns imberbes afirmam ter
administração do ato. Mas, a essa altura, Perón mais méritos do que aqueles que lutaram du-
já havia se manifestado contra os Montoneros, rante vinte anos”, disse o dirigente.
responsabilizando-os por terem motivado o
início dos tiros. Por sua vez, militantes de es- A CHEGADA E A PARTIDA
querda denunciaram uma “emboscada” da di- Em 1º de julho de 1974, morria Juan Domingo
reita do governo. Perón. Ele sabia que estava morrendo já antes de
sua decisão de retornar para a Argentina. “Não
RESPOSTA MONTONERA tenho outra solução senão voltar lá e colocar as
Na sexta-feira, 13 de julho, Cámpora, de quem coisas em ordem. Cámpora abriu as prisões e
Perón já havia se distanciado, apresentou sua infiltrou os comunistas em todos os lugares”,
renúncia. Novas eleições foram organizadas, até disse o então exilado a Antonio Puigvert, seu
que o general venceria com 63% dos votos, em 23 urologista, segundo contou o médico espanhol
de setembro. No entanto, a violência entre Perón mais tarde. “A intervenção de Perón na cena po-
e os guerrilheiros continuou a crescer, tendo um lítica é disciplinar. Podemos pensar que talvez
de seus momentos decisivos quando, dois dias Perón tenha sido um tipo profundamente epocal:
após a vitória de Perón nas urnas, os montoneros o Perón dos anos 60 é um Perón mais terceiro-
mataram Rucci com mais de 20 tiros. O aconte- -mundista e o dos anos 70 é um Perón mais mi-

36 AVENTURAS NA HISTÓRIA
CLUBE DE REVISTAS

litar que tenta comandar as tropas”, avalia. autor do livro Os 70's, a Década Que Sempre Vol-
Enquanto isso, Pontoriero concorda que o ta, esse acontecimento marcou “a primeira vez
político que volta de Madri é “um Perón de or- que Perón dividiu as águas definindo que sua
dem”, que, longe de fazer a revolução, quis paci- doutrina continuava peronista e que, portanto,
ficar o país, colocar suas instituições em ordem não tinha nada a ver com a Pátria Socialista que
e gerar uma economia estável com a ajuda do os Montoneros idolatravam”. Por sua vez, Ver-
setor empresarial e sindicatos relacionados. “O bitsky subscreve a tese da emboscada premedi-
massacre de Ezeiza pode ser visto como um in- tada contra a juventude dessa vanguarda revolu-
dicador de um salto nas formas de luta política cionária em mãos da direita do peronismo.
para o uso de meios cada vez mais violentos que
incluíam a possibilidade de assassinar o adver- MASSACRE OU INCIDENTE?
sário político. E é também um indicador de como Seja como for, o episódio continua a ser discu-
se processa a Guerra Fria dentro do peronismo, tido e reinterpretado. O jornalista, escritor e
a ideia de ‘infiltrados’ e de ‘purificação’, apresen- ex-montonero Aldo Duzdevich, autor do livro
tando a esquerda peronista como infiltrados Lealdade: os Montoneros Que Ficaram com
marxistas dentro do peronismo”, analisa. Perón, esteve em Ezeiza no dia 20 de junho.
Ao longo dos anos, muitos jornalistas e histo- Para Duzdevich, a visão que costuma existir
riadores relataram e repensaram o que aconteceu sobre o que aconteceu naquele dia é uma “de-
em Ezeiza. Segundo o jornalista Ceferino Reato, turpação” e é “simplificada”. Ele até ques-

Portando armas longas,


direita peronista celebra sobre
o palanque, durante uma
pausa no tiroteio contra as
alas da esquerda

AVENTURAS NA HISTÓRIA 37
CAPA CLUBE DE REVISTAS

Portando armas
curtas, manifestantes
peronistas de esquerda
se posicionam atrás do
palanque e tentam evitar
os tiros da direita

EMBORA NUNCA TENHA Foi uma confusão, e não uma emboscada. Se


somos duas forças opostas e você me mata qua-
TIDO INVESTIGAÇÃO OFICIAL, tro e eu três, foi uma batalha em que você me

DIFERENTES FONTES REVELAM venceu por um, mas não um massacre. O mais
grave é que o tal ato foi frustrado”, pontua o
13 MORTOS E 365 FERIDOS ex-montonero, que lembra ter voltado do even-
to “com absoluta tristeza porque a possibilida-
tiona se o termo “massacre” é o mais adequado. de de ver Perón havia sido frustrada”.
“Se lermos os jornais da época, mesmo os Duzdevich afirma também que nenhum dos
de centro-esquerda como o La Opinión, a pa- torturados no Hotel Ezeiza pertencia à juventu-
lavra ‘massacre’ não aparece em nenhum deles. de peronista, o que sustentaria a hipótese de que
Fala-se de ‘incidentes’ atrás do palanque ou o ocorrido foi uma confusão, em parte devido à
‘setores de luta’ e, na realidade, foi isso. Não inexperiência e improvisação dos homens de
houve tiros do palanque para a multidão à fren- Osinde, e não a um plano deliberado de assassi-
te, pois, nesse caso, o número de mortos seria nato. “Entre os torturados estava um policial de
incalculável, e nada disso aconteceu na frente Mendoza que vinha com o grupo CNU. E teria
do palanque. Descobrimos, de fato, o que havia sido espancado por ser integrante dos Montone-
acontecido depois do ato. Escutamos os tiros ros”, afirma ele, que acrescenta que os montone-
porque as balas assobiaram e ouvimos, pelos ros também carregavam ambulâncias com armas
alto-falantes, a narração do que estava aconte- entre suas colunas, assim como as enviadas pela
cendo. Mas não houve tiroteio ou caos geral. Previdência Social do lado oposto.

38 AVENTURAS NA HISTÓRIA
CLUBE DE REVISTAS

Para o jornalista, a história de “um terceiro confusos, vou sentar e conversar com eles e
Perón fascista que traiu os Montoneros” foi uma convencê-los a parar de se enrolar’”.
invenção desses últimos para justificar a poste- Após a morte de Juan Domingo Perón, as-
rior escalada de violência que protagonizaram, sumiu a presidência a viúva María Estela Mar-
incluindo o assassinato de Rucci. Aponta como tínez, que, após um governo marcado pela
sinal dessa “vitimização”, como ele diz, o fato ineficácia e repressão ilegal, tendo o apoio da
de que, em vários relatos, ex-militantes se refe- ala peronista da direita, foi derrubada em 24
rem que os 5 mil quadros armados que se diri- de março de 1976. E assim começou a última
giram a Ezeiza portavam “apenas armas curtas”, e a mais sangrenta ditadura militar da Argen-
enquanto do palanque disparavam “com armas tina, a chamada Reorganização Nacional Pro-
longas”. “Fui com uma pistola 7,65, e não com cesso. Somente em 1983, o país conseguiu re-
uma bandeira na mão. As armas curtas não são cuperar a democracia.
um anel ou uma pulseira. Elas são para matar”,
diz Duzdevich, que, embora reconheça que hou-
ve uma luta entre as diferentes facções para ca- Imagem mais famosa do
evento frustrado mostra o
pitalizar o ato, não houve a intenção de iniciar jovem Juan José Rincón
um tiroteio antecipadamente. sendo puxado por um dos
homens de Osinde
Ainda que não tenha havido investigação
oficial sobre o ocorrido, Duzdevich não acredi-
ta que as mortes em Ezeiza tenham sido mais do
que as 13 confirmadas, e afirma que depois do
ocorrido, em revistas como El Descamisado, que
funcionava como órgão de imprensa dos Mon-
toneros e a juventude peronista, registram-se
apenas “dois ou três velórios”. Ele também men-
ciona uma foto famosa daquele dia que costuma
ser usada para ilustrar a repressão, em que um
jovem de suéter leve é puxado pelos cabelos até
o palanque pelos homens de Osinde (ao lado).
No entanto, ele diz que, em 2010, o pesquisador
e escritor Enrique Arrosagaray descobriu que
esse jovem era um militante da ortodoxia pero-
nista, Juan José Rincón, o que corrobora a tese
da grande confusão vivida durante o episódio.
Para o ex-guerrilheiro, os Montoneros pro-
vavelmente sabiam desde o início que, quando
Perón voltasse à Argentina, haveria um con-
fronto para disputar o poder. “Os Montoneros
saíram do controle de Perón. Ele não sabia o
que estava acontecendo na Argentina, viveu no
exílio por 18 anos, não tinha a percepção de
quem estava no país e não havia os meios de
comunicação que temos agora”, descreve, e
IMAGENS GETTY IMAGES

acrescenta: “Perón não conseguiu captar exa-


tamente qual era o perfil desses grupos que se
aproximavam do peronismo como as FAR e os
Montoneros. E dizia: ‘ bem, eles são bons, estão

AVENTURAS NA HISTÓRIA 39
BRASIL CLUBE DE REVISTAS

Tripulação do navio nos


primeiros dias da rebelião

40 AVENTURAS NA HISTÓRIA
CLUBE DE REVISTAS
EM 1910, MARINHEIROS
INSATISFEITOS COM OS MAUS-
TRATOS SE REVOLTARAM E
TOMARAM PARTE DA FROTA
DE NAVIOS DE GUERRA DO
BRASIL. ENTRE AMEAÇAS DE
BOMBARDEIO, A CAPITAL DA
NAÇÃO, O RIO DE JANEIRO,
VIVEU DIAS DE TERROR
POR FERNANDO GRANATO, AUTOR DE
O NEGRO DA CHIBATA (ED. OBJETIVA)

AVENTURAS NA HISTÓRIA 41
BRASIL CLUBE DE REVISTAS

A
Baía de Guanabara, no Rio de Ja- os quadros inferiores. Como diziam os oficiais,
neiro, estava repleta de navios es- as chicotadas e lambadas tinham o objetivo de
trangeiros na manhã de 16 de no- “quebrar os maus gênios e fazer os marinheiros
vembro de 1910. As embarcações compreenderem o que é ser cidadão brasileiro”.
haviam aportado com autoridades Na noite seguinte aos castigos sofridos por
para a posse do marechal Hermes da Fonseca Marcelino Menezes, os demais marinheiros do
na Presidência da República. No Encouraçado Minas Gerais, recolhidos em seus beliches,
Minas Gerais – o maior navio de guerra brasi- decidiram que a situação não podia continuar
leiro, atracado a poucos metros do cais do por- daquela forma. “Isso vai acabar”, disse o ma-
to – o clima não era nada festivo. Ao raiar do rujo João Cândido, um negro alto, de 30 anos,
dia, toda a tripulação fora chamada ao convés que despontava como o líder absoluto da re-
para assistir aos castigos corporais a que seria volta que se aproximava.
submetido o marinheiro Marcelino Rodrigues Depois de muita conversa, decidiram tomar
Menezes. Ele tinha ferido a navalhadas o cabo o poder dos navios à força, na noite de 22 de
Valdemar Rodrigues de Souza, que o havia de- novembro. Na data estabelecida, tudo aconte-
nunciado por tentar introduzir no navio duas ceu dentro da estratégia programada. O sinal
garrafas de cachaça. Sua pena: 250 chibatadas. combinado entre os marujos para dar início ao
Esse seria o estopim para a eclosão da chamada movimento foi a chamada das 10 horas. Na-
Revolta da Chibata, movimento deflagrado pe- quela noite, o toque do clarim não pediu silên-
los marinheiros contra os maus-tratos, que pa- cio, e sim combate.
ralisaria o coração do Brasil por quatro dias e
custaria a vida de dezenas de pessoas, entre ABAIXO A CHIBATA
civis e militares. E apenas quase um século de- Cada um assumiu o seu posto e a maioria dos
pois, os primeiros documentos sobre o conflito oficiais já estava em seus camarotes. Não hou-
foram revelados (leia quadro na página 45). ve afobação. Cada canhão foi guarnecido por
Naquela manhã, depois de ser examinado cinco marujos, com ordem de atirar para ma-
pelo médico de bordo e considerado em per- tar contra quem tentasse impedir o levante.
feitas condições físicas, o marinheiro Marce- Logo depois do toque da corneta, o coman-
lino Menezes, conhecido como “Baiano”, foi dante Batista das Neves – que estivera num
amarrado pelas mãos e pés e submetido ao jantar a bordo do cruzador francês Duaguay
castigo. Primeiro soaram os tambores. Em Trouin – voltou ao seu navio em companhia
seguida, o comandante do navio, Batista das do ajudante de ordens. Conversou rapidamen-
Neves, ordenou a entrada dos carrascos, que te com o segundo-tenente Álvaro da Mota Sil-
apanharam uma corda de linho e amarraram va – que assistia à faxina no convés – e reco-
nas pontas pequenas e resistentes agulhas de lheu-se aos seus aposentos.
aço. A guarda entrou em formação. Tiraram No momento em que descia as escadas in-
as algemas das mãos do marujo e o suspende- feriores do navio e se despedia do comandan-
ram, nu da cintura para cima, no “pé de car- te, Mota Silva recebeu uma forte pancada no
neiro”, uma espécie de ferro que se prendia peito, um golpe de baioneta desferido em cheio
num corrimão. Os oficiais assistiram à ceri- por um marinheiro que estava de tocaia. O
mônia em uniforme de gala, com luvas brancas segundo-tenente tropeçou, mas ainda conse-
e armados de suas espadas. Alguns viraram o guiu apoiar-se com a mão esquerda na arma
rosto para o lado, para não ver a tortura. do marujo e com a direita sacou sua espada.
A punição pela chibata foi um hábito her- Com a força que ainda lhe restava, atravessou
dado pelo Brasil da Marinha portuguesa. Os o estômago do marinheiro que, aos gritos, deu
castigos tinham a função de educar na marra alguns passos e caiu.
os supostos maus elementos que compunham Atraídos pelo ruído, muitos marujos foram

42 AVENTURAS NA HISTÓRIA
CLUBE DE REVISTAS

Mais de 2 mil rebeldes tomaram


quatro navios de guerra e ameaçaram
bombardear o Rio de Janeiro

ao convés, para onde subiram também outros


oficiais procurando conter os revoltosos. A A CERIMÔNIA DE PUNIÇÃO
tribulação, bradando vivas e aclamando “liber-
dade” e “abaixo a chibata”, avançou contra o
PELA CHIBATA FOI UM HÁBITO
pequeno grupo de superiores para massacrá-lo. HERDADO PELO BRASIL DA
O comandante Batista das Neves ainda tentou
acalmar os ânimos e manter a disciplina. Ata- MARINHA PORTUGUESA
cado, reagiu e lutou de espada em punho cerca
de 10 minutos, até ser atingido na cabeça, por aos outros navios aliados: o São Paulo, o Bahia
golpes de machadinha. e o Deodoro. O estrondo do primeiro tiro de
O marujo Aristides Pereira, conhecido como canhão, vindo da direção do mar, fez tremer a
“Chaminé”, chegou perto do corpo estendido cidade do Rio de Janeiro. Nem cinco minutos
do comandante, certificou- se de que ele esta- depois, novo tiro. Dessa vez, janelas e vidraças
va morto. O corpo permaneceu horas no con- foram quebradas em casas do centro da cidade.
vés e alguns marinheiros ainda fizeram graça O líder do movimento ordenou que todos
com o comandante morto, imitando movimen- os holofotes iluminassem o Arsenal da Mari-
tos de ginástica à sua volta. A ironia referia-se nha, as praias e as fortalezas. Expediu também
ao fato de que Batista das Neves obrigava os uma mensagem por rádio para o Palácio do
marujos a fazer ginástica pesada todas as ma- Catete, sede do governo federal, informando
nhãs, para compensar a relativa imobilidade que a esquadra estava rebelada para acabar com
física da vida de bordo nos navios. os castigos corporais.
Cinquenta minutos depois, quando cessou O presidente recém-empossado, marechal
a luta no convés, João Cândido mandou dispa- Hermes da Fonseca, e todo seu ministério as-
rar um tiro de canhão, sinal para dar o alerta sistiam, no Clube da Tijuca, à apresentação

AVENTURAS NA HISTÓRIA 43
BRASIL CLUBE DE REVISTAS

Os amotinados,
instalados em
sofisticados navios
de guerra, dispunham
grande poder de fogo

Avisou que mandaria torpedear as embarca-


DIANTE DA IMPOSSIBILIDADE ções caso não houvesse rendição. A repercussão
DE COMBATE E COM O PERIGO da notícia, no entanto, gerou pânico na cidade.
O presidente preferiu então abrandar a reação.
IMINENTE DE UM BOMBARDEIO, O Ele dispunha de 2630 homens para enfrentar
os 2379 rebeldes. O poder de fogo dos amoti-
PRESIDENTE RESOLVEU NEGOCIAR nados – instalados naqueles que eram alguns
dos mais sofisticados navios de guerra do mun-
da ópera Tanhauser, de Wagner, numa ines- do – entretanto, era muito maior. Diante da
quecível recepção que ainda fazia parte dos impossibilidade de combate e com o perigo
festejos pela vitória eleitoral. Depois do pri- iminente de um bombardeio, Hermes da Fon-
meiro tiro de canhão, ele voltou imediatamen- seca convenceu-se de que era muito mais pru-
te para o Catete. dente negociar com os marinheiros revoltosos.
Em seu gabinete, Hermes da Fonseca foi Enquanto o governo se debatia atrás de uma
avisado de que a Marinha estava revoltada e solução, a esquadra rebelada permanecia aten-
que a estação de rádio do Morro da Babilônia ta, com a rotina de navios em guerra. Cada
captara a primeira mensagem dos rebeldes: soldado tinha uma função predeterminada.
“Não queremos a volta da chibata. Isso pedi- Foram designados turnos de trabalho para que
mos ao presidente da República, ao ministro nunca um serviço ficasse desguarnecido.
da Marinha. Queremos resposta já e já. Caso Astuto e desconfiado, o Almirante Negro –
não tenhamos, bombardearemos a cidade e como passou a ser chamado João Cândido pela
navios que não se revoltarem. Assinado: Guar- imprensa – determinou que uma barca abaste-
nições Minas, São Paulo e Bahia”. cesse os navios de água. Antes que o líquido
De início, o governo resolveu endurecer. fosse descarregado, no entanto, ele ordenou que

44 AVENTURAS NA HISTÓRIA
CLUBE DE REVISTAS

o condutor da embarcação provasse para ver se


não havia veneno. Com seu uniforme branco,
PERSEGUIÇÃO
João Cândido e a Revolta da Chibata sempre
já bem velho e desgastado, um pé calçado num foram tabu nas Forças Armadas. Durante
chinelo e outro numa botina, a única marca que toda a sua vida, o ex-marinheiro foi persegui-
diferenciava o líder dos demais marujos era um do pela liderança no movimento de 1910. Na
lenço vermelho que levava amarrado ao pesco- década de 1970, quando os compositores
ço. Aquele era o seu distintivo. João Bosco e Aldir Blanc quiseram fazer uma
Em tempo recorde, a anistia foi aprovada a homenagem a ele, na canção O Mestre-Sala
toque de caixa pelo Congresso Nacional e, na dos Mares, tiveram problemas com a
manhã de 26 de novembro, com o sol brilhando censura. Pesquisadores também encontra-
sobre a Guanabara, os navios iniciaram a apro- vam resistência. Por isso tudo, somente mais
de 90 anos depois surgiram os primeiros
ximação para a rendição. Os morros, o cais e as
documentos oficiais sobre o levante. Nos
praias estavam lotados de curiosos, alguns com
arquivos da Marinha, dois chamam a
binóculos, para assistir à chegada dos marinhei-
atenção. No primeiro, expedido em 28 de
ros. A bordo o clima era de festa e euforia. dezembro de 1910, o comandante Francisco
Mas a anistia não durou dois dias. Em 28 de Marques da Rocha, responsável pelo
novembro, os marinheiros foram surpreendidos Batalhão Naval da Ilha das Cobras, se
pela publicação do decreto número 8400, que defende da denúncia publicada no Diário de
autorizava demissões, por exclusão, dos praças Notícias de que 16 marujos haviam morrido
do Corpo de Marinheiros Nacionais “cuja per- sufocados numa cela sob seus cuidados. Ele
manência se torne inconveniente à disciplina”. pede que seja enviada ao quartel “pessoa
O decreto abriu uma brecha para que a Marinha idônea para tomar a temperatura do xadrez
excluísse de seus quadros quem bem entendes- onde se deram os óbitos de insolação”.
se, sem grandes formalidades. As demissões Segundo relato de João Cândido, sobreviven-
te do massacre, o calor da cela passava dos
foram muitas. Vários navios ficaram sem pes-
40 graus e, corroídos pela sede, os presos
soal suficiente para os serviços essenciais.
chegaram a beber a própria urina. Depois,
Instaurou-se um novo clima de tensão nas tiveram seus pulmões infiltrados pela cal
Forças Armadas – pela publicação do decreto jogada com o pretexto de desinfetar o
– e as autoridades encontraram justificativa ambiente. O outro documento traz a “anam-
para pensar na convocação de um regime de nese” (exame) feita em João Cândido logo
exceção, com poderes amplos e irrestritos para após sua internação no Hospital Nacional de
o presidente da República. Alienados, tido pelos militares como louco.
Circulavam boatos de que na Ilha das Cobras Datado de 18 de abril de 1911, o boletim
– sede dos Fuzileiros Navais, localizada em fren- atribui a tragédia na cela ao fato de João
te ao cais do porto e ao lado da Ilha Fiscal – o Cândido estar sofrendo de “perturbações
batalhão de terra organizava outro motim. Os psico-sensoriais” e que o paciente “via diante
de si os companheiros mortos”. O historiador
boatos partiram das próprias autoridades, inte-
José Murilo de Carvalho falou da importância
ressadas em incitar uma segunda rebelião para
desse relatório: “É documento precioso por
decretar o estado de sítio. Os oficiais esperavam retratar João Cândido no momento mais
apenas o primeiro tiro para entrarem em ação doloroso de sua vida, os meses que se
e deflagrarem o conflito armado. seguiram à traumática experiência de assistir
No dia 9 de dezembro, houve a rebelião es- à morte por sufocamento de 16 companhei-
perada na Ilha das Cobras. Às 9 horas e 30 ros na prisão. Vemos um homem arrasado
minutos foi dado o toque de recolher e, em vez pela lembrança do martírio dos colegas e
de se dirigirem para suas camas, parte dos pela traição do governo, lutando para
fuzileiros permaneceu no pátio, em grande preservar sua sanidade mental”.
algazarra, dando vivas à liberdade. Um pri-

AVENTURAS NA HISTÓRIA 45
BRASIL CLUBE DE REVISTAS

meiro tiro foi disparado, não se sabe vindo de haviam tomado parte no primeiro levante. João
onde. As luzes da ilha foram apagadas e os Cândido foi preso assim que colocou os pés em
marinheiros começaram a caçar os oficiais. No solo e levado ao quartel-general do Exército. No
escuro, disparando tiros de fuzis, eles grita- dia 24 de dezembro, o Almirante Negro e mais
vam: “Viva a liberdade. Morram os oficiais”. 17 companheiros foram transferidos para a Ilha
A luta durou toda a madrugada, a manhã das Cobras e colocados numa prisão sem ilumi-
do dia seguinte e só parou ao entardecer, com nação e com ventilação imprópria, localizada
a morte da maioria dos amotinados. Por todos no subterrâneo do Hospital Militar.
os lados, junto aos canhões e metralhadoras Na madrugada de 25 de dezembro, dia de
destruídas, havia corpos de marinheiros. As Natal, o guarda da prisão notou movimento
forças fiéis aos oficiais estavam preparadas e estranho na cela e ouviu gritos. O fato foi co-
esmagaram os rebeldes. municado ao oficial de serviço e, em seguida,
O governo federal decretou o estado de sítio, o recado chegou ao comandante Marques da
tendo como justificativa a revolta dos fuzileiros Rocha, responsável pela Ilha das Cobras. Ne-
navais na Ilha das Cobras. As autoridades de- nhuma providência foi tomada.
terminaram o desembarque imediato da tripu- Na manhã seguinte, o comandante Marques
lação dos navios Minas Gerais e São Paulo, que da Rocha, que havia levado as chaves, abriu
finalmente a prisão. A cena chocaria até mesmo
o mais insensível dos militares: jogados num
EM TEMPO RECORDE, A ANISTIA extremo estavam 16 corpos de marujos mortos

FOI APROVADA A TOQUE DE CAIXA por asfixia. Num outro canto, em estado de
choque, os dois únicos sobreviventes – João
PELO CONGRESSO NACIONAL. Cândido e o soldado naval João Avelino. Aca-
bava assim uma das mais violentas rebeliões
PORÉM NÃO DUROU DOIS DIAS militares no Brasil.

Forças de terra na Praia


de Santa Luzia, centro
do Rio de Janeiro

IMAGENS FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL

46 AVENTURAS NA HISTÓRIA
CLUBE DE REVISTAS

SALVE O NAVEGANTE NEGRO


João Cândido Felisberto, o Almirante
Negro, virou um símbolo da luta contra
a opressão no Brasil. Nascido numa
propriedade rural na divisa entre Brasil e
Argentina, era filho de escravizados
libertos e passou a infância acompanhando
o pai, um tropeiro que fazia longas viagens
conduzindo gado. Entrou para a Marinha
como aprendiz aos 14 anos, pelas mãos de
um vizinho, o almirante Alexandrino de
Alencar. Aos 15, foi para o Rio de Janeiro,
já na condição de praça da 40ª Companhia
do Corpo de Marinheiros Nacionais. Serviu
na tripulação do Cruzador Andrada e no
Encouraçado Riachuelo e logo destacou-se
pelo espírito de liderança. Aos 20 anos, era
instrutor de aprendizes marinheiros.
Conheceu toda a costa brasileira, e fez
viagens internacionais para a Argentina e o
Chile. Em 1909, quando completou 29
anos, João Cândido foi escalado para uma
missão especial na Inglaterra, onde
assistiria à montagem final do
Encouraçado Minas Gerais, sofisticado
navio de guerra encomendado pela
Marinha brasileira aos estaleiros Vickers-
-Armstrong. Como era de difícil manejo, um
grupo de marinheiros foi enviado à Inglaterra
para se familiarizar com os equipamentos.
Os brasileiros voltaram da Europa mais chegava aos ouvidos dos oficiais da
maduros. Motivados pela organização Marinha, amargava novo desemprego.
política dos marujos ingleses, eles passaram Além dos problemas políticos, o ex-mari-
a discutir a própria situação: os humilhantes nheiro viveu dramas pessoais, incluindo o
castigos à base de chibatadas tinham que suicídio da mulher, que ateou fogo ao
acabar. Líder e mentor do movimento, João corpo em plena Praia de Botafogo. Dez
Cândido foi também um dos mais injustiça- anos depois, uma de suas filhas, que havia
dos. “Fui colocado numa cadeia durante presenciado a morte da mãe, repetiu a
18 meses e, depois de solto, ainda tentei tragédia, queimando-se nos fundos dos
trabalhar no mar”, disse João, em depoi- armazéns ferroviários do bairro da Pavuna.
mento ao Museu da Imagem e do Som (MIS), Angustiado e deprimido, João Cândido
em 1968. “Mas fui sempre muito perseguido, viveu seus últimos anos descarregando
até na Marinha Mercante”. Tuberculoso, sem peixes no entreposto da Praça XV, no
dinheiro e apenas com a roupa do corpo, o centro do Rio. Morreu aos 89 anos, em
líder da Revolta da Chibata, aos 32 anos, 1969, quase no anonimato. Não fosse uma
vivia de favores e pequenos bicos pela viatura da Polícia do Exército, que vigiava o
cidade do Rio de Janeiro. Chegou a enterro, ninguém diria que naquela cova
conseguir serviços em embarcações rasa estava sendo sepultado o famoso
particulares, mas, logo que a notícia Almirante Negro.

AVENTURAS NA HISTÓRIA 47
CIVILIZAÇÕES CLUBE DE REVISTAS

A pequena

48 AVENTURAS NA HISTÓRIA
CLUBE DE REVISTAS

SITUADA NO TOPO DE UMA MONTANHA, A teriam atraído colegas de profissão e outros


cristãos para práticas religiosas.
REPÚBLICA DE SÃO MARINO É UM ENCLAVE
O próprio bispo de Rimini o teria ajudado a
CIRCUNDADO PELA ITÁLIA QUE PERMANECE criar uma pequena comunidade, enviando-lhe
INCÓLUME DESDE O IMPÉRIO ROMANO mais refugiados cristãos, que teriam se juntado
POR ODAIR CHICONELLI a pastores e lenhadores da região. Para atender a
todos, Marino teria construído, no topo do mon-

E
la é 122 vezes maior que o Vaticano, te que recebera como doação de uma rica senho-
30 vezes maior que Mônaco, e quase ra, uma modesta capela dedicada a São Pedro,
três vezes maior que Nauru. Mas seu em torno da qual seus seguidores se instalariam
território de 61 km2 é dez vezes me- ao longo dos anos, formando uma povoação que
nor que a área do Pentágono, edifício-sede do levaria o nome do santo. Em seu leito de morte,
Departamento de Defesa dos Estados Unidos, Marino teria dito “Deixo-vos livres dos dois ho-
em Arlington, Virgínia. Encravada no topo de mens”, referindo-se ao imperador romano e ao
uma montanha a 227 km de Roma e a apenas papa, o que se transformaria no fundamento da
17 km do Mar Adriático, a República de São República de São Marino, que seria fundada em
Marino é um enclave totalmente circundado 3 de setembro de 301. Como se tratava de uma
pela Itália, que permanece incólume desde o comunidade pobre, localizada em região de di-
Império Romano. Segundo a tradição, Marino, fícil acesso, ela não seria atacada por invasores
um cortador de pedras, teria chegado à cidade bárbaros, embora tivesse de se sujeitar às leis dos
de Rimini, na costa do Mar Adriático, no ano lombardos, que controlariam a maior parte da
257, para trabalhar na restauração do porto. península, a partir do século 6.
Cristão originário da Ilha de Rab, na atual Cro- A pedido do papa, em 756, os francos entram
ácia, teria sido perseguido pelos romanos ainda na Península Itálica e derrotam os lombardos,
politeístas, e buscado refúgio no Monte Titano, que passam a se submeter à sua supremacia.
onde passou a viver como um eremita. Consi- Pepino III, o rei franco, então concede ao Sumo
derado um homem santo, sua fé e seu carisma Pontífice territórios e cidades, incluindo a

AVENTURAS NA HISTÓRIA 49
CIVILIZAÇÕES CLUBE DE REVISTAS

Como se tratava de uma to com os Malatestas, de Rimini, e com o papa.


A vantagem estratégica proporcionada pelos 739
comunidade pobre, em região metros de altura do Monte Titano os faria apoiar
o anseio são-marinense de autonomia integral e
de difícil acesso, acabou não fortalecer a sua capacidade militar. Em 1291, o
papa Nicolau IV reconhece a República de São
sendo atacada pelos bárbaros Marino, e os bispos de San Leo e de Montefeltro
a libertam dos laços feudais, sessenta anos mais
pequena república. Em 774, Carlos Magno ex- tarde. Em 1463, por ter contribuído para a vitória
pulsaria esse povo bárbaro, confirmando a con- do papa contra Segismundo Malatesta, a repú-
cessão do seu pai, o que levaria a República de blica recebe como recompensa os povoados de
São Marino a se subordinar ao bispo de Mon- Fiorentino, Montegiardino e Serravale; no final
tefeltro e ao papa. No século 10, diante das ame- do mesmo ano, Faetano se juntaria a eles, expan-
aças de ataques de húngaros, sarracenos e nor- dindo o território são-marinense, cuja extensão
mandos, a república constrói a sua primeira tem-se mantido inalterada desde então.
fortaleza; mais tarde, outras duas seriam ergui- Em 1600, São Marino atualiza os Estatutos
das. As três se transformariam em símbolo da Municipais, que vigoravam desde o século 12,
identidade nacional, constituindo, em conjunto incluindo as instituições, práticas de governo e
com três muralhas circulares, as principais es- sistema judiciário em seis livros, escritos em la-
truturas de defesa de São Marino, em confor- tim, sob o título de Statuta Decreta ac Ordina-
midade com o seu ideal supremo, inspirado nas menta Illustris Reipublicae ac Perpetuae Liberta-
últimas palavras de Marino e consignado em tis Terrae Sancti Marini. Considerados por alguns
seu brasão: libertas, ou seja, liberdade. como a mais antiga constituição do mundo, fo-
ram complementados com a Declaração de Di-
OLIGARQUIA reitos do Cidadão, em 1974. No século 17, o Du-
No ano 1000, uma assembleia formada por che- cado de Urbino, seu tradicional defensor e aliado,
fes de família, denominada Arengo, passa a deter passa a integrar os Estados Papais, mas a Repú-
os poderes legislativo, executivo e judiciário, em- blica de São Marino consegue se manter inde-
bora o território são-marinense ainda estivesse pendente, embora Roma insistisse em lembrar
sob a tutela papal. No século 13, criam-se o Con- que a sua autonomia era resultado de mera con-
selho dos Sessenta, o Conselho dos Doze e os cessão papal. Com o objetivo de pressioná-la,
cargos de Capitães-Regentes – dois cônsules que milícias mercenárias papais ocupam o seu terri-
exerciam os poderes executivo e judiciário, fun- tório, em 1739, mas são ordenadas a se retirar,
cionando como chefes de Estado e de Governo, após cinco meses, devido à reação dos seus cida-
a partir de 1243. Na mesma época, seria criado o dãos e de outros países europeus.
Grande Conselho Geral, composto por 20 nobres, Em 1792, Napoleão Bonaparte invade a pe-
20 proprietários de terras e 20 habitantes de as- nínsula italiana e consolida vários estados ita-
sentamentos rurais. Até o século 16, seus mem- lianos em repúblicas. Entretanto, o general res-
bros seriam eleitos pelo Arengo, mas novos esta- peita a soberania da república são-marinense,
tutos determinariam que o próprio Conselho chegando a oferecer-lhe novos territórios, di-
passasse a elegê-los. O resultado foi o gradual plomaticamente declinados pelo Capitão-Re-
estabelecimento de uma oligarquia, sistema de gente Antônio Onofri com o argumento de que
governo que prevaleceria por mais de três séculos. “guerras terminam, mas vizinhos permanecem”.
IMAGENS GETTY IMAGES

Embora muito pequeno, São Marino era visto Em 1815, o Congresso de Viena reorganizaria a
pelos Montefeltros, senhores do vizinho Ducado Europa e reconheceria São Marino como uma
de Urbino, como um aliado que funcionava como república independente. Durante o chamado
uma fabulosa sentinela avançada em seu confli- Risorgimento italiano, ocorrido entre 1815 e

50 AVENTURAS NA HISTÓRIA
CLUBE DE REVISTAS

1870, a pequena república se dedica a “dar asilo uma república independente desde o século 13”.
aos vencidos pela força ou pelo infortúnio, aos Depois de ter sediado um dos maiores impé-
perseguidos pela maldade ou pela desventura”. rios da humanidade, a Itália moderna abriga em
Entre eles estavam refugiados envolvidos em seu território dois outros estados soberanos, que
vários movimentos revolucionários, incluindo estão ligados à sua história por meio do cristia-
o italiano Giuseppe Garibaldi, que se juntara a nismo. Por um lado, a ascensão e o declínio do
Giuseppe Mazzini para promover a unificação poder temporal da Igreja Católica Apostólica
do país. Em 1862, o recém-criado Reino da Itá- Romana que se consumaram na criação do Sta-
lia reconhece a soberania de São Marino. to della Città del Vaticano, em 1929; por outro,
o poder da fé cristã, que, neste caso, além de
DIARQUIA mover montanhas, transformou uma na Sere-
Em março de 1906, depois de 335 anos, a Assem- níssima República de San Marino. Tendo resis-
bleia dos Chefes de Família, o Arengo, volta a se tido a romanos, bárbaros, mercenários e forças
reunir. Em maio do mesmo ano, é aprovada a lei de ocupação nazistas, entre outros, há mais de
que determina a eleição dos membros do Grande 1600 anos, ela segue como a mais antiga repú-
Conselho Geral a cada três anos, pondo fim à blica ainda ativa do planeta.
oligarquia que governava o país. Esse Conselho,
que funciona como um parlamento, é responsá-
ODAIR CHICONELLI É PROFESSOR DE LÍNGUA INGLESA
vel pela eleição dos dois Capitães-Regentes, ge-
E PESQUISADOR DE HISTÓRIA. ESCREVEU ESTE TEXTO
ralmente de partidos diferentes, que governam ESPECIALMENTE PARA A AVENTURAS NA HISTÓRIA.
por períodos de seis meses, bem como dos mem-
bros do Congresso do Estado, instituição que
Piazza della
congrega os secretários do poder executivo. Des- Libertà, batizada
de 1925, a república está dividida em nove mu- em homenagem
às últimas
nicípios: Città, Borgo, Serravalle, Acquaviva, palavras de
Marino
Chiesanuova, Domagnano, Faetano, Fiorentino
e Montegiardino. Cada um deles possui um Ca-
pitão Municipal, que preside um Conselho Mu-
nicipal, formado por cidadãos eleitos a cada cin-
co anos para representar uma população total de
34.017 pessoas.
Atualmente, a economia de São Marino está
baseada na indústria de aparelhos eletrônicos,
tintas, cosméticos, joias e roupas; turismo de
excursão e de convenção; cultivo de trigo, uvas e
cevada; produtos artesanais de cerâmica, madei-
ra e ferro forjado, além de laticínios e pecuária.
Segundo o Banco Mundial, sua renda per capita
é de cerca de US$ 48.000, uma vez e meia maior
do que a da Itália e sete vezes maior do que a do
Brasil. Em 2008, a Unesco incluiu o Monte Tita-
no e o Centro Histórico de São Marino na lista
de Patrimônios da Humanidade, argumentando
que “são um testemunho excepcional do estabe-
lecimento de uma democracia representativa,
baseada em autonomia cívica e autogovernança,
com continuidade ininterrupta como capital de

AVENTURAS NA HISTÓRIA 51
ENTREVISTA CLUBE DE REVISTAS

DESENHOS DO
HORROR NAZISTA
APÓS PASSAR POR TRÊS CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO, THOMAS GEVE, ENTÃO
COM 15 ANOS, USOU PAPEL E LÁPIS DE COR PARA RETRATAR O HOLOCAUSTO
POR FABIO PREVIDELLI TRADUÇÃO ISABELLY DE LIMA

os 13 anos, o judeu Thomas Geve foi deportado, ao Logo após o fim da guerra,

A lado de sua mãe, para o campo de concentração Aus-


chwitz-Birkenau, em 29 de junho de 1943, durante a
Segunda Guerra Mundial. Os dois fizeram parte do Trans-
o senhor transformou seus
sentimentos em desenhos.
De alguma maneira isso foi
porte 39, um dos últimos a deixar Berlim, e logo foram se- parte de um processo de
parados e jogados à própria sorte. Durante 22 meses, Thomas superação dos traumas
passou por três campos de concentração e diversos momen- vividos?
tos de incerteza. Perdeu amigos, familiares (incluindo sua Desenhar foi a forma que
mãe), mas jamais a vontade de viver. encontrei para descrever
Em 11 de abril de 1945, aos 15 anos, quando foi libertado minha vida durante os 22
de Buchenwald, um dos maiores centros criados pelos na- meses nos campos de
zistas, Thomas se tornou um veterano de guerra que sobre- concentração. Experiências
vivera ao terrível período do Holocausto. Finalmente livre, que jamais conseguiria
o jovem se sentou sozinho à mesa do barracão e começou a descrever em palavras. Eles
desenhar, usando uma pilha de cartões da SS e lápis colori- mostram a vida como ela era,
dos. O resultado virou história: mais de 80 desenhos, listas para mim e para quem
e esboços que detalham a vida dentro dos campos. vivenciou os acampamentos
Com o passar dos anos, Thomas conseguiu reunir suas comigo. Eu os desenhei
memórias em palavras e juntá-las às ilustrações para criar principalmente para comparti-
um testemunho e lançar seu livro O Menino Que Desenhou lhar com meus pais, que eu
Auschwitz, que acaba de chegar ao Brasil, publicado pela esperava encontrar depois que
Alta Life Editora. A obra narra um mundo de medo, cruel- a guerra acabasse.
dade e brutalidade, onde os homens nazistas eram condu- Naquela época, ainda não
zidos pelo ódio e pela divisão. No entanto, o autor também havia percebido a importância
mostra a vida daqueles que lutaram bravamente para se histórica dos meus desenhos.
manter vivos, com esperança e ânimo. Um relato poderoso Foi apenas uma vontade
que deve ser lido e mantido, para que novas gerações sempre pessoal de colocar tudo no
se lembrem que atrocidades do passado nunca devem se papel. Mais tarde, quando
repetir. Neste mês, a AVENTURAS NA HISTÓRIA teve a voltei para a escola e concluí
honra de conversar com Thomas. meus estudos, acrescentei

52 AVENTURAS NA HISTÓRIA
CLUBE DE REVISTAS

meu testemunho por escrito.


Já na minha vida de adulto, fui
partilhando informações em
outros livros, exposições,
testemunhos e documentários.
Em junho de 1945, dois meses
após a libertação, quando
cheguei junto com cerca de
uma centena de outros
meninos sobreviventes para
recuperação em Zugeberg, um
‘Como trabalhávamos’ mostra o trabalho forçado em Auschwitz
internato na Suíça, os profes-
sores que viram meus dese-
nhos decidiram encorajar os
outros meninos a desenhar
suas experiências também. O
conceito de arteterapia ainda
não existia naquela época, mas
todos provavelmente entende-
ram que o desenho poderia nos
ajudar a falar sobre o que
passamos e, assim, auxiliar na
liberaração de algumas das feri-
das do passado.

Naquele período, muitos


editores optaram por não
publicar livros de sobrevi-
ventes porque queriam ‘Seleção para a morte’ retrata como funcionava a divisão entre os prisioneiros que continuaram no
campo e os que partiram para as câmaras de gás
conteúdos mais otimistas.
Isso contribuiu de alguma
forma para o revisionismo
histórico? Havia pessoas
que não acreditavam nos
horrores cometidos pelos
nazistas?
Sempre houve (e ainda há)
pessoas que não quiseram
(ou querem) ouvir as histórias
duras da guerra. Alguns
ouviram e leram, mas não
conseguiram se conter.
Infelizmente, também houve
quem afirmasse, como ainda
hoje alguns afirmam, que as
coisas não foram tão ruins
assim ou nem aconteceram. ‘Estamos livres’ revela o momento da libertação de Buchenwald

AVENTURAS NA HISTÓRIA 53
ENTREVISTA CLUBE DE REVISTAS

“Vi minha mãe por 15


segundos e isso gerou um
efeito muito poderoso
em mim. Fortaleceu
minha determinação de
sobreviver e lidar com
os desafios que fizeram
parte da minha vida”

Desenho mostra a entrada de Auschwitz-Birkenau

Porém, os testemunhos que que aconteceu, mas também pessoas que eram estranhas
continuam a ser revelados, com isso. E, assim, farão tudo umas às outras. Felizmente eu
expostos e recolhidos até hoje o que puderem para garantir falava alemão – uma coisa
são demasiados para que que as partes mais sombrias muito valorizada no acampa-
alguém possa realmente negar da história da humanidade mento, e também ser jovem
o duro passado. nunca mais aconteçam, me ajudou, pois as pessoas
Na libertação, senti o desejo fazendo o possível para criar estavam mais abertas para
de documentar as coisas que um mundo diferente e melhor conversar e compartilhar
vi e vivi nos campos da daquele que vivemos. informações comigo. Os
maneira mais precisa, o mais recém-chegados falavam
detalhada possível e com Quando você teve a real sobre o mundo exterior com
grande fidelidade à verdade. A dimensão do que estava os prisioneiros veteranos, que,
princípio, para compartilhar acontecendo? Como em troca, davam a eles
com meus pais. Mais tarde, encarou a sua realidade? informações vitais sobre a vida
escolhi compartilhar com o Acho que demorei cerca de no campo. Eu era jovem e
resto do mundo e fazer minha um mês para entender determinado a aprender o que
parte como testemunha ativa, completamente a vida no me cercava, pois a vida em
para que as gerações futuras acampamento. Muitas coisas Berlim, durante os anos de
pudessem aprender sobre o foram mantidas sob o véu do guerra, já havia me ensinado o
que realmente aconteceu sigilo e eram confidenciais valor do conhecimento. Eu
conosco que estávamos lá. A para os prisioneiros. Levou sabia que tinha que aprender
verdade não pode e não será tempo para conhecer e o mais rápido e o máximo
mais escondida. Aliás, eu entender profundamente tudo possível para sobreviver.
espero que as gerações aquilo. Havia também o
futuras continuem a investigar desafio da comunicação por Entre os seus desenhos, há
e manter a verdade para causa dos diferentes idiomas, algum de maior significado
aprender não apenas sobre o além da desconfiança entre as para você? Por quê?

54 AVENTURAS NA HISTÓRIA
CLUBE DE REVISTAS

‘Na Rampa’ retrata o triste momento em que as famílias se separam

Sim, o Na rampa. Este dese- humanidade. Este desenho foi


nho, a meu ver, é um dos mais escolhido muitas vezes para
significativos e tristes porque fins educacionais e memoriais
retrata a chegada do povo a em todo o mundo. Também foi
Auschwitz, sendo retirado dos estampado na parede do
trens para o processo de Pavilhão Judaico do Museu de
seleção. Os soldados da SS Auschwitz.
classificavam os inocentes em
três grupos: homens para o No livro você relata sobre a
trabalho; mulheres para o última vez que viu sua mãe,
trabalho; e crianças (geralmen- em Auschwitz. Qual foi a
te menores de 15 anos), sensação desse reencon-
idosos, doentes, deficientes e tro? E como ele te deu
fracos, que ainda não sabiam, forças para sobreviver?
para a morte. Todos os bens Ver minha mãe novamente,
dos recém-chegados eram ainda que por 15 segundos,
deixados para trás e saquea- ouvir sua voz, e sentir o toque
dos. Aquela situação, em que de sua mão, gerou um efeito
pessoas tiram a propriedade e muito poderoso em mim. Isso
a liberdade de outras pessoas me encorajou profundamente
IMAGENS DIVULGAÇÃO / ALTA LIFE EDITORA

em um instante e as separam e fortaleceu minha determina-


para trabalhos forçados ou ção de sobreviver às dificulda-
para a morte imediata, des diárias e a lidar com os
pessoas inocentes, cujo único perigos e os desafios que
“pecado” foi ser diferente, é, a fizeram parte da minha vida
THOMAS GEVE É SOBREVIVENTE
meu ver, um dos momentos por 22 meses nos campos de DE GUERRA E AUTOR DE O MENINO
mais tristes da história da concentração. QUE DESENHOU AUSCHWITZ

AVENTURAS NA HISTÓRIA 55
COLUNA RICARDO LOBATO CLUBE DE REVISTAS

A SUÍÇA NA
SEGUNDA GUERRA
uerido(a) leitor(a), na coluna deste mês Muito se fala que a nação apenina fez uso de

Q vamos falar de um país que é mundial- sua neutralidade para fazer comércio com o
mente conhecido por seus relógios de Terceiro Reich, entretanto, como um país neu-
precisão, suas fábricas de chocolate, suas esta- tro, se focarmos, por exemplo, nas transações
ções de esqui, seus canivetes multifuncionais comerciais de ouro da Confederação Suíça
e também por sua neutralidade. Se você pensou (nome oficial do país) entre setembro de 1939
na Suíça, acertou! Todas as vezes que o mundo e junho de 1945, a Alemanha é apenas o quar-
se vê chacoalhado por um novo conflito arma- to maior parceiro comercial. Antes dela estão
do – especialmente se este for na Europa – três dos principais Aliados: Estados Unidos,
fala-se da neutralidade suíça. Com o advento Grã-Bretanha e Canadá (respectivamente). O
das ações militares mais recentes na Ucrânia, comércio com ambos os lados do conflito tam-
não faltam manchetes e comentaristas dizendo bém foi um “ativo” para se evitar uma invasão.
que “a neutralidade da Suíça foi posta à prova”. Quando a Segunda Guerra começou em
Mas será mesmo? 1939, a Suíça já vinha se preparando para o
A resposta para esta pior. Ser um país neutro é
questão está, claro, na His- Ser um país neutro difícil, ainda mais se suas
tória. Vamos então falar do fronteiras são com dois dos
que aconteceu no país na é difícil, ainda mais maiores beligerantes, no
última vez que grandes po- se suas fronteiras são caso Alemanha e França.
tências se enfrentaram em De modo a se prevenir de
solo europeu. Não estamos
com dois dos maiores uma possível invasão, a Su-
falando da dissolução da beligerantes íça (que já conta com os
Ioguslávia nos anos 1990 – Alpes como barreira natu-
sim, a Ucrânia não é a primeira guerra na Eu- ral) fortificou (mais ainda) suas fronteiras e
ropa pós-1945 –, mas da última grande guerra adaptou sua infraestrutura para fins militares.
continental, a Segunda Guerra Mundial. Além, claro, de ter construído bunkers e casa-
Para compreender a posição da Suíça entre matas por todo o território.
1939 e 1945 é preciso primeiro entender sua Para mais, outro grande ativo da neutrali-
política de neutralidade. Ela data do fim de um dade suíça é sua vasta quantidade de pessoal
conflito anterior, as Guerras Napoleônicas. Foi militar na reserva. O serviço militar é manda-
com o fim do domínio bonapartista na Europa, tório para os homens e, logo após a invasão
em 1815, que o país adotou, formalmente, uma alemã da Polônia em 1º de janeiro de 1939, os
política externa baseada na neutralidade militar suíços começaram a mobilização em massa. Em
– não se envolvendo, portanto, na beligerância três dias foram mobilizados 430 mil homens,
de outras nações. É a mais antiga política de com mais 210 mil mantidos como pessoal de
neutralidade em vigência, não tendo sido que- apoio – dos quais 10 mil eram mulheres. No
FOTO GETTY IMAGES

brada na Grande Guerra de 1914 a 1918, nem na auge da mobilização (por volta de 1942), a Su-
Segunda Guerra Mundial. Todavia, ser neutro íça tinha 850 mil militares na ativa. Se isto é
não quer dizer não ser afetado pelo conflito. muito para os padrões atuais, pensando nos

56 AVENTURAS NA HISTÓRIA
CLUBE DE REVISTAS

anos 1940 e, em um país que tinha uma popu-


lação de pouco mais de 4 milhões de pessoas,
era algo a se considerar ao se planejar uma in-
vasão à “Fortaleza Helvética”.
E isso foi levado em conta pelos generais
alemães. Diante dos diversos incidentes de fron-
teira entre forças suíças e alemãs durante a Ba-
talha da França (1940), onde consta que a Luf-
twaffe invadiu o espaço aéreo suíço pelo menos
197 vezes, os suíços abateram pilotos alemães
em 11 delas. Hitler ficou enfurecido que equi-
pamento alemão fosse usado para abater aero-
naves alemãs – boa parte do material de guerra
suíço fora adquirido junto à Alemanha nos anos
1930 – ordenando então que planos fossem
esboçados para a invasão do país.
Com o codinome “Operation Tannenbaum”
(Operação Árvore de Natal, em tradução livre),
os planos iniciais de invasão e ocupação da
Suíça foram apresentados a Hitler em junho de
1940, logo após a capitulação da França. Apesar
de terem sido descartados apenas em 1944,
quando a Alemanha já não era mais a máquina Vinte e cinco de setembro de 1939:
de guerra que atropelou a Europa, os fracassos fronteira suíça é fortemente guarnecida
para a proteção de sua neutralidade
na Batalha Britânica, a prioridade em focar
recursos na invasão da União Soviética, e o
custo da campanha (tanto material quanto hu- pousar na neutra Suíça e ir para um campo de
mano), fizeram com que os planos fossem ra- internação do que na Alemanha e acabar em
pidamente esquecidos. Consta que na análise um campo de prisioneiros.
final do Reich, nem a potencialidade de se apos- Há muitas outras histórias para se contar
sar das reservas de ouro do país valeria o risco sobre esta nação alpina nos anos de guerra. As
e o custo da invasão – era melhor uma Suíça missões médicas junto à Wermacht na União
neutra que uma Suíça junto aos Aliados. Soviética; o papel da Cruz Vermelha Interna-
Por falar neles, estes também tiveram seus cional “contrabandeando refugiados” para um
incidentes com os suíços. Entre 1939 e 1945, o país livre; o “porto seguro” para muitos inte-
AS OPINIÕES DOS COLUNISTAS NÃO SÃO DE RESPONSABILIDADE DA REVISTA

espaço aéreo do país foi violado mais de 6 mil lectuais e cientistas; e, claro, o centro interna-
vezes por aeronaves Aliadas. A maior parte era cional da espionagem para os dois lados do
de bombardeiros ingleses ou norte-americanos conflito. Esta última será tema de um artigo
voltando de missões contra a Alemanha, Itália ainda neste ano, onde falaremos da Suíça, Su-
ou outro país ocupado. Sendo neutra e estando écia, Portugal e Espanha na Segunda Guerra
bem no centro da Europa sob domínio nazi, o Mundial. As outras histórias também serão
cálculo dos pilotos Aliados era simples: se suas contadas, afinal, ainda temos muito a desbravar
aeronaves estivessem avariadas, era melhor em nossas Aventuras na História!

RICARDO LOBATO É SOCIÓLOGO E MESTRE EM ECONOMIA, OFICIAL DA RESERVA DO EXÉRCITO BRASILEIRO E CONSULTOR-
-CHEFE DE POLÍTICA E ESTRATÉGIA DA EQUILIBRIUM – CONSULTORIA, ASSESSORIA E PESQUISA @EQUILIBRIUM_CAP

AVENTURAS NA HISTÓRIA 57
MEMÓRIA CLUBE DE REVISTAS

A PRIMEIRA
No dia 16 de junho de 1963, às 9 horas e 29 minutos (horário local),
a nave soviética Vostok 6 decolou da base espacial de Baikonur
rumo ao espaço, levando como única tripulante, Valentina Tere-

MULHER
chkova, que, aos 26 anos de idade, se tornaria a primeira mulher e
primeira civil a viajar ao espaço. Surpreendentemente, Terechkova
sofria de vertigem, detalhe que ocultou dos seus superiores. Por
causa do seu pânico das alturas, sofreu náuseas e vômitos durante

NO ESPAÇO
os três dias que durou sua viagem pelo espaço. A missão de
Terechkova fazia parte de uma pesquisa do programa espacial
soviético, que pretendia determinar se as mulheres tinham a mesma

58 AVENTURAS NA HISTÓRIA
CLUBE DE REVISTAS

resistência física e psicológica que os homens no espaço.


Graças à sua popularidade mundial e à sua posição política na
União Soviética, Terechkova se dedicou a ajudar cidadãos
vulneráveis, dando assistência pessoal a vários orfanatos em
Moscou. Além disso, foi uma batalhadora incansável do movimento
feminista soviético na luta pela igualdade e recebeu muitas
IMAGENS GETTY IMAGES

medalhas e condecorações ao longo da vida de diferentes institui-


ções e países. Acima, pôster colorido produzido pela editora
estatal soviética celebra a conquista espacial de Tereshkova com
os dizeres: “Vida longa à primeira mulher cosmonauta!”.
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EDIÇÃO 241 | JUNHO/2023

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