Você está na página 1de 78

BIBLIOTECA DE CULTURA HISTÓRICA

George .Rudé
Professor de História, Universidade Concorclia, Montreal

Ideologia
e Protesto Popular

Tradução:
Waltensir Dutra

Revisão técnica:
Antônio Monteiro Guimarães Filho
Professor do Departamento de Sociologia da PUc, RJ
I

i"
I

';\
II
r '

ZAHAR EDITORES
,~ tTura."tMll
RIO DE JANEIRO t1.i.h1iof:t~~5<'1- J.FC,H'
•••~ ".:, "'" ~ -I .' •. ',

:~'::"~"""'1'~
...'
,~,)(':'k_1 ;::,'~.
1-'., ,:, ~'u-'
", .,
",

·.0(

. (. '.

ÍNDICE
, t!jNooO 'I e, 3' ~:, 6

Título original:
Ideology and Popular Protest
Introdução 7
Tradução autorizada da primeira edição inglesa, publicada
em 1980 por Lawrence and Wishart Ltd., Parte I
de Londres, Inglaterra Ideologia e Consciência de Classe
Copyright © 1980 by George Rudé 1 Ideologia e Consciência de Classe 13
"
2 A Ideologia do Protesto Popular 24
Direitos reservados,
A reprodução não autorizada Parte II
desta publicação, no todo ou em parte,
constitui violação' do copyright. (Lei 5,988)
Camponeses
1 Na Europa Medieval 37
2 Sob a Monarquia Absoluta 48
Capa: Miriam Struchiner, com ilustração de
3 América Latina 60
Kàthe Kollwitz ("Marcha dos Tecelões", 1897)

Composição: Zahar Editores S.A. Parte III


Revoluções
1 A Revolução Inglesa 71
2 A Revolução Americana 83
3 A Revolução Francesa 93
4 As Revoluções Francesas do Século XI X 106

Parte I V
1982
Transição para a Sociedade Industrial
Direitos para a I íngua portuguesa adquiridos por "

ZAHAI;'l EDITORES 1 A Inglaterra noSéculo XVIII 121


Caixa Postal 207 ZC·OO Rio 2 A Transição para a Sociedade Industrial, 1800·1850 133
que se reservam os direitos desta versão f 3 Pós-escrito: A Grã-Bretanha Industrial 144
I mpresso no Brasi I ) I
Bibliografia 151
INTRODUÇÃO

o objetivo desta introdução é procurar explicar ao leitor, o mais resumida-


mente poss ível, o que me levou a escrever este livro e por que ele tomou a
forma em que se apresenta.
Preocupei-me, em meu trabalho anterior, com estabelecer a iden-
tidade (ou "faces") do povo cornurn" na história, do povo que participou
de manifestações, motins e revoluções ocorridas sobretudo em "socie-
dades pré-industriais" - isto é, numa época em que a sociedade indus-
trial de hoje, com sua divisão fundamental entre patrões e trabalhadores,
capitalistas e proletários, ainda estava em processo de formação. Por isso,
inicialmente, tive maior preocupação com a questão de "quem", que
me parecia ter sido inadequadamente examinada pelos historiadores ou
cientistas sociais anteriores. A partir dessa preocupação inicial desenvolve-
se inevitavelmente a outra questão, ou seja, por que as pessoas agiram dessa
forma, o que as levou a se amotinarem ou a se rebelarem, quais os motivos
que as impeliram. Essa preocupação com a motivação levou-me a tentar,
ainda, distinguir entre o curto e o longo prazo, estabelecer uma linha de-
rnarcatória entre fatores "sócio-econômicos" e "políticos", e tentar expli-
car como os dois se relacionaram e fundiram em movimentos como o dos
sans-culottes na Revolução Francesa, ou o dos londrinos que clamavam por
Wilkes e queimaram capelas e igrejas católico-romanas nos motins das
décadas de 1760 e 1770.
Mas, como acabei por compreender, o estudo dos motivos - mesmo
quando atentamos para conceitos enganosos como as "crenças generaliza-
das" de N.J. Smelser - é insatisfatório em si mesmo, pois tende a apresen-
tar o problema de uma maneira fragmentária, não fazendo justiça à gama
completa de idéias ou crenças que sublinham a ação social e pai ítica, seja
l
dos governantes ao estilo antigo, do burguês "ascendente" ou dos grupos

( sociais "inferiores".

• Em inqlés , common people. (N. do E.l

7
8 Introdução Introdução 9

~ a esse corposubjacente de idéias que dou aqui o nome de "ideolo- revolução italiana de princípios da década de 1920, que obviamente deve
gia de protesto" (seja popular ou não). Para alguns, essa definição é dema- ser atribuída à incapacidade, dos operários (e de seu partido), de levar a
siado imprecisa e amplq/ e podem -- se tiverem a oportunidade de ler o efeito qualquer tentativa séria de convencer os camponeses a Ihes apoiarem
livro - acusar-me de usar uma frase de significado amplo quando uma defi- a causa. Antonio Gramsci, um dos principais participantes desses aconteci-
nição mais rigorosa e muito mais específica é necessária. Como pode um mentos, refletiu sobre essa falha e suas causas profundas quando prisio-
autor que se diz marxista estender o uso da palavra "ideologia" muito além neiro de Mussolini e escreveu suas conclusões a respeito, bem como so-
das limitações que lhe foram impostas por Marx e Engels, bem como por bre muitos outros temas em suas Cartas da prisão e Cadernos da prisdo,
estudiosos posteriores de nome, marxistas ou não? t certo que Marx, a ambos publicados muitos anos depois 'de sua morte. Falando da necessida-
princípio, restringiu seu uso às "idéias da classe dominante" (particular- de que têm os operários de se opor à hegemonia de seus dominantes desen-
mente da burguesia) e a viu como uma arma da dominação de classe, como volvendo uma ideologia própria, Gramsci insistia na conveniência de se
um meio importante pelo qual a classe exercia sua dominação (ou hegemo- atentar para as necessidades ideológicas das classes "tradicionais" dos cam-
nia) sobre as classes subordinadas na sociedade. Mas ele também abriu a poneses e artesãos. Partindo daí, argumentava ainda que era necessário
porta a uma definição mais ampla, ao observar que o proletariado, para al- atentar também para as idéias mais simples e menos estruturadas que cir-
e "Içar o poder, tinha de ir além da "falsa realidade" que lhe era imposta culavam entre as pessoas comuns, com freqüência "contraditórias" e con-
pelos seus governantes e desenvolver uma consciência "verdadeira", ou "de fusas, compostas de uma mistura de folclore, mito e experiência popular
classe", que lhe fosse própria. Mas, Marx e Engels escreviam (como mostra- cotidiana, Portanto, em sua opinião ideologia e consciência já não estavam
ram mais claramente no Manifesto comunista) sobre uma sociedade marca- reservadas exclusivamente aos dois principais protagonistas na sociedade
da por um processo de polarização entre as duas maiores classes adversa- moderna (Gramsci os chama de classes "fundamentais"), mas se estendiam
rias, os capitalistas e os proletários, e portanto supunham que as classes também e abarcavam as classes "tradicionais", inclusive o povo comum
"tradicionais" mais velhas, ou grupos sociais - camponeses, pequenos co- que não se dedica à produção industrial.
merciantes, artesãos e outros semelhantes - seriam absorvidos no processo Ora, se é razoável (como me parece) que Gramsci, ao escrever sobre
e que, nesse ínterim, a "ideologia" que pudessem continuar tendo perderia ideologia, pense nos grupos sociais mais amplos de um pa ís industrial do
qualquer identidade própria e simplesmente refletiria a de uma ou outra . ~ século XX - embora reconhecidamente um país onde os camponeses con-
das duas grandes classes que lutam pelo controle do Estado. Há, porém, na tinuam tendo enorme importância =, é muito mais razoável que o faça um

obra posterior de Marx e de Engels, indicações de que estas não pretendiam autor que escreve não sobre uma sociedade industrial, mas sobre uma so-
que, mesmo numa sociedade industrial em desenvolvimento onde a "pola- ciedade "pr é-industr ial". na qual as duas principais classes em que se divide
rização" era o fim do caminho, não houvesse espaço para outras formas a sociedade de hoje ainda estariam, se é que existissem, em processo de for-
intermediárias de ideologia. E m suma, a "teoria" de que Marx falou mais mação! ~ evidente que, ao escrever sobre essa sociedade,expressões como
tarde como a que "se apossa" das massas não podia ser medida apenas em consciência "verdadeira" ou "falsa" (originalmente aplicadas por Marx à
termos de sua conformidade a uma consciência "verdadeira" ou "falsa". I classe operária industrial) não podem ter qualquer relevância.
Não obstante, foi nesses termos de uma antítese rígida entre os dois extre- Mas simplesmente ampliar a definição de "ideologia" para que inclua
mos que vários marxistas posteriores - entre os quais Georg Lukács desem- as idéias "inerentes" e tradicionais ou as atitudes do povo comum, não é
penhou um papel destacado - discutiram o desenvolvimento ideológico da original (John Plamenatz, entre os autores não-marxistas que se ocuparam
classe operária na sociedade moderna. do assunto, fez o mesmo), nem adequado aos propósitos que tenho. Grarns-
Não obstante, em certos países, como a Itália, nos quais juntamente ci fala da necessidade de analisar "historicamente" a ideologia,2 mas não
com uma industrialização crescente os camponeses continuaram a desem- mostra como a "ideologia não-orgânica" (mais ou menos correspondente
<10 LISO que faço da expressão "idéias inerentes") das classes "populares"
penhar um papel significativo, foi inevitável que os marxistas viessem a
questionar a rigidez dessa antítese, particularmente depois da "fracassada" ou "tradicionais" se relaciona, ou se funde, com as idéias mais estruturadas

,
I ()\I sofisticadas das classes "fundamentais", sobre as quais escreve. Nem há

I
I
I "A teoria L .. ) torna-se uma força material tão logo domina as massas" I K. Marx,
"Introdução" à Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel, in Coltected Sctectiorn fram rhe prison notebooks of Antonio Gramsci, org. por O. Hoare e
works, 3, p. 182). l; Nllwt!11 Smith, Londres, 1971, p. 371.
10 lntroduçâo

nenhuma razão pela qual devesse mostrar isso, pois pouco contribuiria para
a análise da "hegemonia", sua principal preocupação. Mas, ao escrevermos
sobre a ideologia popular de protesto, é essencial saber como essa ideolo-
., I
gia se compõe e como historicamente os seus componentes se reuniram.
Isso não é importante em motins como os provocados pela falta de alirnen-
tos, pelo desejo de quebrar as máquinas ou por atos mais ou menos espon-
tâneos de rebelião camponesa, nos quais os assalariados, pequenos consu-
midores ou camponeses, realizam suas ações de protesto com a ajuda apenas
de seus próprios recursos ideológicos. No caso das revoluções, porém, ou
das rebeliões de camponeses ou consumidores situados no contexto da re-
volução, o quadro é muito diferente, pois então a ideologia "inerente" (co-
mo explicarei no segundo capítulo) não basta, e a ideologia nativa ou tra-
dicional do povo comum deve ser casada e fundida com uma ideologia ou PARTE I
uma "teoria" (repetindo o termo marxista) de um tipo mais sofisticado e !u
mais "avançado", vindo "de fora" - isto é, de um grupo social superior. IDEOLOGIA E CONSCIÊNCIA DE CLASSE
E iremos ver o que aconteceu quando os artesãos e pequenos comerciantes
da Paris revolucionária absorveram e adaptaram as idéias explosivas que
seus mentores pol íticos, a burguesia, haviam herdado, por sua vez, de auto-
res do lIuminismo como Montesquieu e Rousseau.
A primeira parte do livro trata do desenvolvimento de uma "teoria"
de uma ideologia de protesto - suas origens com Marx e Engels, e sua
adaptação posterior à sociedade industrial por Lukács e Gramsci, cada qual I'
a seu modo - e, num segundo capítulo, trata de minha própria formulação
da teoria, tal como se relaciona com os movimentos de protesto popular
em épocas predominantemente "pré-industr ia is", As partes 11, li I e IV apli-
cam a "teoria", tal como a concebo, a várias situações "pré-industriais":
aos camponeses (em vários pa íses e épocas) na parte 11, e, na parte 111,às
revoluções (da Revolução Inglesa do século XVII até a última das revc-
I
luções francesas em 1871); já a parte IV segue um curso próprio, acompa-
nhando o desenvolvimento do estilo e da ideologia do protesto popular na
Inglaterra, do século XVIII e de princípios do XIX até a sociedade indus-
trial da década de 1850 em diante. Além disso, o último dos capítulos "in-
gleses", ocupando-se dos problemas totalmente novos de uma sociedade
industrial, é esboçado de maneira rápida, deixando aos leitores a tarefa
de responder, por si mesmos, à pergunta: "E depois?"
~

I
I

IDEOLOGIA E CONSCIÊNCIA DE CLASSE

o estudo da ideologia como instrumento de luta e mudança social come-


çou com Marx. A noção de ideologia como um conceito filosófico, porém,
remonta a mais de meio século antes, aos philosophes do Iluminismo na
França. Um destes, o materialista Helvétius, embora não usasse a palavra,
preparou o caminho para seu uso com a frase "nossas idéias são as conse-
qüências necessárias das sociedades em que vivemos". A palavra, na verda-
de, só entrou na linguagem da filosofia uma geração depois, quando os
últimos philosophes da Revolução usaram o Institut de France, criado pe-
"
lo Diretório em 1795, para propagar as tradições racionalistas do Iluminis-
mo. Um deles, Antoine Destutt de Tracy criou, poucos anos depois, a pala-
vra "ideologia", aplicando-a à teoria das idéias em geral.'
I' O termo reaparece, mas agora como uma expressão da filosofia idea-
I lista alemã, nos escritos de Kant e Hegel, cerca de uma dezena de anos de-
I pois. Para Hegel, a mente era o "agente universal" da história e (em suas pa-
lavras) "o que se manifesta ao pensamento filosófico é a história do espírito
- velado pela sua corporificação na matéria, mas ainda claramente discer-
nível como a força motriz do processo universal". A ideologia, nesse con-
texto, era uma projeção direta do espírito ("espírito objetivo", como ele
escreveu) sem qualquer identidade distinta. Além disso, como a "ideolo-
!li•.!" era um conceito universal, era impossível considerá-Ia como instru-
mento de uma determinada classe ou grupo, e muito menos das massas
que, para os filósofos idealistas, eram de pouca importância.2
Marx e Engels, como se sabe, fizeram seu aprendizado filosófico com
l Iuqel. Entre as dívidas que tinham com" hegelianismo estavam a sua per-
manente fé na universalidade da verdade, a unidade da humanidade e a no-
<,::10 filosófica da "alienação". Acima de tudo, fizeram seu o método dialé-

I c;, Lichtheim, The Concep: ot Idealogy and Other f.ssays, Nova York, 1967,
PI', 1\ ,I!.
, Ihit], , PI'. 11·17.

13
14 Ideologia e Protesto Popular Ideologia e Consciência de Classe 15

tico de Hegel, que via o progresso como o resultado do conflito, através da filosófica de Hegel, defendem o método dialético hegeliano contra a sua re-
influência mútua dos contrários, da "tese" e "antítese". Mas, em princí- jeição total pelo "materialismo vulgar" de Feuerbach e seus seguidores.
pios da década de 1840, começaram, ainda hesitantes, a colocar sua filosofia Mas, embora ressaltando a capacidade que tem o homem de "modificar as
"de cabeça para baixo", rejeitando-lhe o idealismo e substituindo, pela no- circunstâncias", Marx estabelece rigorosos limites temporais à sua capaci-
ção do primado da matéria, a concepção hegeliana do espírito como agente dade de fazê-Io: "A humanidade", escreve ele em outra frase famosa, "só
ativo e primário da história. Essa modificação de fidelidade se manifestou se propõe os problemas que pode rssolver"."
publ icamen te pela primeira vez em A sagrada famflia, que escreveram e Chegamos assim, por esse caminho indireto, à noção que Marx tem
publicaram em conjunto em 1845. "A História" [em HegelJ, escreveram de ideologia. (Dificilmente poderíamos chamá-Ia de teoria, pois não é for-
eles, "como a verdade, torna-se uma pessoa à parte, um sujeito metaflsico, mulada de maneira global em nenhum momento, como ocorre com a sua
do qual os indivíduos reais são meramente os portadores"; e ainda: "A teoria da história.) Ela entra, a princípio, diretamente na sua linha de vi-
concepção da H istória de Hegel pressupõe um espírito abstrato ou absolu- s50, e de fogo, no momento em que ele e Engels estão profundamente enga-
to que se desenvolve de tal maneira que a Humanidade nada mais é do que jados na luta com os discípulos mais ativos de Hegel, os então conhecidos
uma massa, que mais ou menos conscientemente o carrega consiqot.:' E, corno Jovens Hegelianos. Assim, como a visão do mundo "de cabeça para
em lugar dessa visão metafísica da história, Marx e Engels colocaram sua baixo" que esses hegelianos têm é falsa, também a ideologia, que tem um
noção, recentemente adotada, do "materialismo histórico"." Em A ideo- papel tão grande em seu pensamento, torna-se uma "falsa consciência" que
logia alemã, escrita alguns meses depois, explicam o seu princípio subjacen- projeta uma "falsa realidade", Tendo em mente os enganados por aquela
te, de in ício conjecturalmente, da seguinte maneira: "A vida não é determi- nova filosofia alemã, Marx escreve: "Até aqui os homens criaram falsas
nada pela consciência, mas sim a consciência pela vida"; e mais, essa nova concepções sobre si mesmos, sobre o que são e o que devem ser". Mas nin-
visão da história "não explica a prática a partir da idéia, mas sim a forma- guém ta nto quanto a classe média alemã sob a influência da nova filosofia:
ção das idéias a partir da prática material"." Essas fantasias inocentes e como que infantis são o núcleo da filosofia moderna dos
Essa moaificação materialista de Hegel vem, como se verá, pelo me- Jovens Hegelianos (... 1 o primeiro volume da presente publicação tem o objetivo de
nos em parte, da noção de Helvétius da sujeição das idéias às sociedades desmascarar essas ovelhas ( ... 1 e mostrar como seu balido simplesmente imita. de for-
onde nascem. Com uma diferença importante, porém: para Marx, essa su- ma filosófica, as concepções da classe média alemã .. 9
jeição não era de modo algum absoluta ou unilateral, e havia uma delicada Assim, a noção que Marx tinha da ideologia, pós-hegeliana ou qualquer ou-
interação entre idéias e sociedades. Como disse em A ideologia alemã: "As
tra, não foi, a princípio, positiva.
circunstâncias fazem os homens tanto quanto os homens fazem as circuns-
Mas essas "fantasias" tinham também um outro lado, como nos diz
tâncias">: e, mais detalhadamente, nas Teses sobre Feuerbach, escritas
MillX no mesmo volume: serviam de arma útil para a dominação de classe.
logo depois: "A doutrina materialista de que os homens são produtos das
"As idéias da classe dominante, escreve ele, são, em todas as épocas, as
circunstâncias e da sua formação (... ) esquece que são os homens que mo- idéias dominantes, isto é, a classe que constitui a força material dominante
dificam as circunstâncias e que o próprio educador precisa ser educado"." dil sociedade é, ao mesmo tempo, a sua força dominante intelectual".
Assim, Marx e Engels, longe de se terem libertado totalmente da influência 1';,lIe dessa dominação consistia, evidentemente, na imposição de suas pró-
prids fantasias e "falsa realidade" à classe dominada, isto é, na moderna
~;lIcil!dade industrial de que Marx e Engels se ocupavam principalmente, ao
K. Marx e F. Enyels, The Holy Family, or Critique of Critical Criticism , Moscou.
I'lllletariado.
1975, pp. 115·16.
Mas a fé que Marx tinha no papel histórico do proletariado como o
4 Marx e Engels não pretenderam nunca terem sido os inventores do método mate- 1'111110 "coveiro" do capitalismo dificilmente se harmonizaria com uma
rialista de pesquisa histórica. Segundo Marx, esse método foi usado primeiro pelos I/,t,~rpn~tação desse proletariado como sendo, também ele, capaz de não ter
historiadores da Restauração francesa, Guizot e Augustin Thierry. II,,,I~;do que uma "falsa consciência" e de limitar sua visão apenas a uma
5 Marx e Engels. The German Ideotoçv . Nova York, 1974. pp. 47.58. A formulação
mais familiar é de 1859: "Não é a consciência que determina o ser. mas ( ... 1 o ser
social (que] determina a consciência." ("Prefácio" a A Contrib ution to the Critique
of Palitical Economy, Moscou, 1951, I, p. 363l.
6 German tdeotoqv, p. 59. 1'/1111/111.' o! Potit icn! Economv , loc. cito
7 Apud Lich theirn, p. 9, n9 19. 1 •• '/1/1.11/ Ide()/uI/V. p. 37.

._._-------_._-_. __ .. _ .. --_._- •••


16 Ideologia e Protesto Popular Ideologia e Consciência de Classe 17

"falsa realidade". Pelo contrário, para pôr fim à sua sujercao e romper ministas" - e críticos de Marx - que insistiram em que a "superestrutu-
com a "falsa realidade" que lhe fora imposta pelo capitalismo, o proletaria- ra" (inclusive a consciência e as idéias) deve, segundo a teoria marxista,
do - e era a única classe capaz disso - deve desenvolver uma consciência ser um mero reflexo direto da base de onde emana. Outros, porém, argu-
"verdadeira", ou consciência de classe, que lhe é peculiar. Só assim poderia mentaram que as idéias e a ideologia, embora em primeiro lugar devam sua
tornar-se consciente de sua sujeição e aprender a superá-Ia. Mas esse desper- existência ao ser material do homem, podem, em momentos cruciais da
tar não seria fácil, nem seria um processo fragmentário no qual proletários história, assumir, pelo menos temporariamente, um papel quase independen-
individuais simplesmente veriam a luz e a transmitiriam a outros. Seria um te. Embora as primeiras formulações "filosóficas" de Marx fossem ambiva-
fenômeno essencialmente de classe embora os meios pelos quais se realiza- lentes ou parecessem favorecer a primeira interpretação, não parece haver
ria ficassem, a pr inc ípio, muito incertos. Eis a primeira formulação de dúvidas de que escritos históricos, tanto seus como de Engels - O dezoito
Marx (que ainda traz forte marca da filosofia hegeliana): brumário de Luis Bonaparte e As guerras camponesas na Alemanha, por
Não é uma questão daquilo que este ou aquele proletário, ou mesmo todo o proleta- exemplo -, dão apoio à segunda. O próprio Marx, num trecho posterior,
riado, considera como seu objetivo. t uma questão daquilo que o proletariado é e afirmou que "a teoria se torna uma força material quando se apossa das
daquilo que, de acordo com esse ser, ele será historicamente obrigado a fazer.lo massas",13 o que poderia parecer uma solução da questão. Mas Engels,
escrevendo após a morte de Marx, achou necessário reexpor as opiniões de
Porém, mesmo nessa fase relativamente precoce de sua "libertação" de He-
ambos. Ao fazê-Io, admitiu que, no calor dos debates que sustentaram com
gel, Marx não pensava nessa transição como uma revelação súbíta ou "to-
seus adversários filosóficos, haviam provavelmente exagerado, mas insistiu
tal", que levaria todo o proletariado a um salto a frente, o que se evidencia que, em "última análise", as idéias, religião e outras formas da "superestru-
por uma frase um pouco adiante: "Não há necessidade de explicar aqui que tura" haurem sua existência da base rnater ial.l " Como é impossivel, po-
uma grande parte do proletariado inglês e francês já está consciente de sua rém, marcar o ponto exato em que a "última análise" ocorre, o debate ine-
tarefa histórica e trabalha constantemente para desenvolver essa consciên- vitavelmente continua.
cia com total clareza";"! Devemos voltar rapidamente à questão de como aquela maior "clare-
E como seria alcançada essa maior "clareza"? ~ evidente que Marx e za" de consciência de que Marx falou em A sagrada familia pode ser alcan-
Engels, embora nunca tivessem formulado uma lista de prioridades quanto cada. Como já vimos, o Manifesto dá maior ênfase à participação, mas tam-
a isso, atribu Iam uma grande importância à participação na luta de classes, bém concita os partidos operários - em particular os comunistas alemães
tanto política como econômica, tendo em vista tanto os objetivos a curto - a não deixarem, nem por um instante, "de instilar na classe operária o
como a longo prazo. "Os comunistas", diz o Manifesto comunista, "lutam reconhecimento mais claro possível do antagonismo hostil entre a burgue-
pelos objetivos imediatos, pela vitória de interesses momentâneos da classe sia e o protetariado't.v> Mensagem semelhante está implicita em O Capital
operária; mas, no movimento do presente, eles também representam e cui- e em alguns dos últimos escritos de Engels. Mas o papel específico daque-
dam do futuro desse movimentov.t? E se, como já vimos, era o "ser mate- la "força material" de que falou Marx - o papel da ideologia na luta de
rial" do homem que determinava a sua consciência, até onde poderia aque- classe - nunca foi sistematicamente exposto. Era inevitável, portanto,
la consciência, por sua vez, servir para desenvolver a base econômica - até qll(: a questão se apresentasse e fosse tratada de uma maneira mais ou me-
onde, na verdade, poderia a "superestrutura" (de que a consciência era par- 1I0S teórica nos partidos social-democratas que surgiram na Europa oci-
te) adquirir um grau de independência e modificar a base (intra-estrutura] dental nos últimos anos da vida de Marx. Mesmo na Inglaterra, onde a
de onde nascia? Isso é um conundrum interminável e tem sido um tema II!()I ia marxista teve pouca influência no movimento trabalhista, William
debatido acaloradamente, suscetível de várias interpretações desde que Munis dizia, em princípios da década de 1890, que os trabalhadores ha-
Marx escreveu sua famosa frase na Critica da economia pol/tica. Tomada vi.un deixado de desejar o verdadeiro socialismo e argumentava que a ta-
literalmente, a formulação por ele então usada parece justificar os "deter- ",1<1 mais vital de um partido socialista era fomentar uma consciência so-

10 Holy Family, p. 44. I I M.II x , "I ntroduçâo" à Contribuiçâo à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel.
11 Ibid., p, 45. 1·1 I li!!',]'; d Illocl1, 21 de setembro de 1890, Marx-Engels Selected Corresp ondence,
12 Marx e Engels, Manifest of ttie Communist Party, Foreign Languages Press, Pe- /lUI; /11.%, OIÇ!. por Dona Torr, Londres, 1934, pp. 475-6.
·1
quim, 1977, p. 75. r-, op. cit ., p. 76.
fo.·1,1I111t.'.\ClJ,
18 Ideologia e Protesto Popular Ideologia e Consciência de Classe 19

cialista real entre os trabalhadores, para que eles "compreendessem que mente. Hegel vira essa possibilidade no caso da arte, da religião e daquilo
estavam frente a frente com uma sociedade falsa, que se vissem como os que ele chamava de reino do Espírito Absoluto. Mas, prejudicado pela sua
únicos elementos possíveis de uma sociedade verdadeira't.!" Mas, na épo- noção do espírito como o "agente universal" da história, não via modo de
ca, a sua era uma pequena voz clamando no deserto. realizar essa reconciliação no caso da história. Assim, com Hegel, ela conti-
A situação foi bastante diferente na Rússia, quando lenin, quase que nuava uma abstração. Lukács procurou superar o dilema de Hegel seguindo
às vésperas da revolução de 1905, empenhou-se na criação de um partido o exemplo de Marx, isto é, colocando-o "de cabeça para baixo", e toman-
"de um novo tipo", um partido formado segundo princípios marxistas e do de Marx a sua noção dupla da consciência de classe e "falsa realidade",
também capaz de transmiti-Ias aos trabalhadores industriais recém-checa- para aplicá-Ia à sociedade. A "verdade total", argumentou Lukács contra
dos das aldeias e que se engajavam então nas primeiras e amargas lutas eco- Hegel, só podia ser atingida através da luta de classe pela hegemonia total.
nômicas contra seus patrões. Mas, longe de acreditar que a militância dos Mas nenhuma classe, para ele, seria capaz de chegar à "verdade total", isto
trabalhadores enquanto focalizada em alvos econômicos despertaria neles, é, a uma consciência da realidade, antes que a industrialização possibilitas-
automática e espontaneamente, uma consciência pai ítica de classe, lenin se isso, polarizando a sociedade em duas classes opostas, burguesia e prole-
denunciou aqueles que assim pensavam e declarou redondamente que "a tariado. Mas a burguesia não podia reconciliar seus interesses de classe com
consciência pai ítica de classe só pode ser levada aos trabalhadores de fora, nenhuma tentativa séria de acabar com as fantasias da "falsa realidade"; e,
isto é, só de fora da luta econômica, de fora da esfera das relações entre em conseqüência, o proletariado, como a classe mais "alienada", e portan-
trabalhadores e patrões". E acrescentou que "todo o culto da espontanei- to a mais desejosa de transformar-se no processo de alcançar uma nova he-
dade do movimento operário, toda a redução do papel do 'elemento cons- gemonia, podia atingir esse conhecimento "verdadeiro", ou consciência.
ciente', do papel do partido da Social Democracia significa (. .. ) o fortale- Com Marx, ele também aprendeu a ver a consciência não como uma forma
cimento da influência da (. .. ) ideologia burguesa entre os trabalhadores. de exercício intelectual, mas como o aliado íntimo da "atividade critica
Em suma, "a única opção é: ou a ideologia BURGUESA, ou a ideologia prática" (ou práxis), cujo objetivo era modificar o mundo. E, ainda uma
SOCIALISTA. Não há termo médio (. .. ) Portanto, reduzir a importância da vez, isso estava, rigorosamente, em discordância com a noção puramente
ideologia socialista de qualquer modo (. .. ) significa fortalecer a ideologia el itista de Hegel, de um Espírito Absoluto que se contrapunha à massa
burquesa'"."? Elitismo? Sem dúvida. Mas é preciso lembrar que, nas condi- ignorante.
ções então predominantes, Lenin não acreditava que fosse chegado o mo- Mas o proletariado, como disse Marx, só podia atingir esse "objetivo
mento para a criação de um partido de massa, ao mesmo tempo capaz de final" através de uma luta prolongada. Durante muito tempo esse objetivo
aprender com as massas bem como a elas ensinar. só poderia ser uma "missão" ou algo potencial para a classe. (A essa altura
Seguiu-se a Revolução Russa e, depois dos primeiros entusiasmos e de sua argumentação, Lukács cita o trecho de Marx sobre o "aquilo que o
da derrota da revolução no Ocidente, a especulação sobre a revolução e proletariado é", acima rnencionado.l "? Enquanto isso, porém, os trabalha-
uma ideologia revolucionária de classe operária tomou um rumo mais filo- dores tateiam no escuro, vítimas da "falsa consciência" que Ihes é imposta,
sófico.l~ Entre os mais ilustres intelectuais marxistas do Ocidente, que vol- lia sociedade totalmente polarizada de Lukács, pela burguesia. Uma das
taram à questão da ideologia revolucionária, estão o húngaro Georg Lu kács formas tomadas por essa "falsidade" de visão é a separação que se faz entre
e o italiano Antonio Gramsci. lukács escreveu um livro sobre o assunto: His- as lutas econômicas e políticas - e, quanto a isso, Lukács volta, natural-
tória e consciência de classe foi publicado em 1922. lukács voltava a Hegel mente, ao argumento usado por Lenin contra os "econornicistas" em
e dele tomava a noção de que, para chegar à verdade total, Sujeito e Objeto 1902. "A divisão mais surpreendente", escreve ele, "na consciência prole-
- por natureza antitéticos - tinham de fundir-se e identificar-se total- I{"ia de classe, e a que encerra maiores possibilidades de conseqüências, éa
xcparaçâo entre a luta econôm ica e a luta pol ítica". 20
Até aí, muito bem.:-Há, porém, dois obstáculos sérios a que l.ukács
!,(:jd tomado como um guia seguro para o entendimento da luta da classe
16 William Morris, "Communism", conferência realizada na Sociedade Socialista de
Hammersmith, em 10 de março de 1B93, apud Political Writings of William Mo rris ,
org. por A. L. Morton, Londres, 1973, p. 233.
17 V.I. Lenin, What is to be done? (19021, in Collected Works, V, p. 422. I" Ver p. 18 e nota 10; Lukács, Hístory and Class Consciousness , Londres, 1971,
I'· 'l(j.
18 Para um exame cuidadoso desse aspecto, ver Perry Anderson, Consíderatíons on
!O L uk.lcs, pp. 70-1.
Western Marxism, Londres, 1973, esp. pp. 54-{31.

I .. .• . "_" ,J
20 Ideologia e Protesto Popular Ideologia e Consciência de Classe 21

operaria e muito menos das lutas de outros grupos de protesto. O primeiro fala Marx. Mas, para Gramsci, a ideologia se torna mais "liberada" ainda,
é que a sociedade por ele imaginada é totalmente polarizada entre as duas ela deixa de ser reservada exclusivamente ao que ele chama de "classes
principais classes na sociedade industrial, os camponeses são tratados como fundamentais" na sociedade industrial. Há margem em seu sistema também
um anacronismo do passado e grupos intermediários, como pequenos co- para as formas menos estruturadas de pensamento que circulam no seio
merciantes ou artesãos, em nada contam (uma visão estranha, da parte de do povo comum, com freqüência contraditórias e confusas, uma mistura
quem vem de um país agrário e industrialmente subdesenvolvido como a de folclore, mito e experiência popular cotidiana: constituem o que ele
Hungria às vésperas da Primeira Guerra Mundial). E, segundo, como pode o chama de ideologia "não-orgânica". Com isso abrem-se as portas para o
proletariado chegar à sua consciência "total" como prelúdio da tomada do estudo de modos de pensar alternativos, de classe "média" ou "inferior",
poder de Estado? Pela luta, em primeiro lugar - mas não por "escaramuças que o marxismo tendeu a ignorar, pelo menos em relação à sociedade mo-
isoladas". Em teoria, portanto, Lukács segue Marx e Lenin, mas, na verda- derna. Esta perspectiva não só traz de volta à cena os camponeses e artesãos,
de, depende muito mais, para um despertar da classe operária, da perspecti- como também dá à classe operária aliados que uma sociedade puramente
va da crise inevitável do capital ismo. Assim, na prática, o proletariado é polarizada, como a concebida por Lukács, necessariamente excluiria.
deixado à margem, como espectador silencioso enquanto o capitalismo Mas a principal contribuição de Gramsci para o estudo social das
abre sua própria cova. Isso limita consideravelmente, é claro, o valor de idéias é o uso que faz do fenômeno da "hegemonia". Para ele, a hegemonia
Lukács como guia para entendermos a ideologia do protesto popular."! já não é apenas um sistema de dominação, seja de idéias ou poder pol ítico.
Isso nos leva a Gramsci, que, como Lukács, viveu durante a crise da Gramsci está mais preocupado com o processo do que com o sistema: o
derrota militar e da revolução que sucedeu ao fim da Primeira Guerra Mun- processo pelo qual a classe dominante impõe um consenso, sua dominação
dial, mas cuja experiência como militante ativo e como prisioneiro do Fas- na esfera das idéias, por meios em grande parte pacíficos. Isso acontece pe-
cismo (que foi durante dez anos) seria muito diferente da vivência de lo controle dos meios de doutrinação, na área do Estado que ele chama de
Lukács. Em seus Cadernos da prisão, escritos no cárcere mas só publicados "sociedade civil": através da imprensa, da Igreja e da educação. Assim, as
na geração seguinte, Gramsci se aproxima muito mais do que Marx e Le- pessoas se tornam colaboradoras voluntárias de sua própria sujeição. Como
nin, 'sem falar de Lukács. de uma teoria da ideologia de protesto, tanto po- então pode o proletariado, que representa a maioria, sacudir o jugo dessa
pular como proletário. Para evitar a censura, a linguagem de Gramsci é, re- servidão ideológica? Construindo, diz Gramsci, uma contra-ideologia pró-
conhecidamente, por vezes obscura e suas idéias, dispersas num texto de- pria, como um antídoto para a da classe dominante, e como preliminar
sordenado, levam facilmente à. confusão. Mesmo assim, a originalidade de essencial para sua tomada do controle do Estado. Mas deve ter seus pró-
suas opiniões sobre a ideologia é bastante clara. Ele distingue entre "ideo- prios agentes treinados, como a burguesia tem os seus, para estabelecer sua
logias historicamente orgânicas, isto é, aquelas que são necessárias a uma hegemonia: são os intelectuais "orgânicos" (Gramsci usa a expressão para
determinada estrutura, e ideologias arbitrárias, racionalizadas ou 'deseja- os agentes profissionais de ambas as classes "fundamentais"). O objetivo
das." As primeiras, que ocupam mais a sua atenção, "têm uma validade 'psi- dos intelectuais "orgânicos", trabalhando no interesse do proletariado, de-
cológica', elas 'organizam' as massas humanas, e criam o terreno em que os ve ser não só o de equipar sua própria classe com a nova ideologia - a ideo-
homens se movimentam, adquirem consciência de sua luta positiva etc.".22 loqia da "práxis" (expressão que Gramsci, como subterfúgio para a censu-
Sendo esse o seu interesse, Gramsci praticamente ignora a velha noção mar- ra, usa para "marxismo") - mas conquistar ou neutralizar e afastar de seus
xista de "falsa consciência", que tem um papel tão vital no sistema de Lu- vínculos sociais anteriores os que ele chama de intelectuais "tradicionais"
kács. É também natural, portanto, que a ideologia, embora ancorada que, refletindo os interesses das classes "tradicionais", como camponeses e
(como outros elementos da "superestrutura") à base material, tenha um .utosãos, não estão profundamente comprometidos com nenhuma classe
papel relativamente independente, como aquela "forma material" de que "Fundamental". Dessa forma/segundo Gramsci o proletariado pode cons-
nuir sua própria contra-ideologia e enfraquecer, ao mesmo tempo, as defe-
~;;IS ideológicas de seus adversários, antes de derrotá-Ios na luta pelo poder
d(~Estado.
21 Para um estudo marxista da história do trabalhismo inglês que parece muito influ-
As implicações dos escritos de Gramsci são, é claro, de importância
enciado por Lukács, ver John Foster, Class Struggle and the Industrial Bevolution
(Londres, 1974), que será examinado num caprtulo posterior. considerável para quem escreve um livro como este. Ele abandona a divi-
22 Selections trom tbe Prison Notebooks of Antonio Gramsci, org. por a. Hoare e ~.:l() qrosseira da ideologia (consciência) em "verdadeira" e "falsa" e elimina
G. Nowell Srnith, Londres, 1971, pp. 376-7. () hiato que Lukács e outros criaram entre o Eleito e o não-Eleito, que não
22 Ideologia e Protesto Popular Ideologia e Consciência de Classe 23

admite uma progressão histórica de um para o outro. A abordagem de a "Ideologia", é apresentada como um reflexo, muitas vezes, de "certos
Gramsci é mais histórica: ele se preocupa com o crescimento e o desenvol- grupos oprimidos" desejosos de realizar "uma transformação da sociedade
vimento, como se evidencia em sua noção de construção gradual de uma existente". Mas só vai até a I.
contra-ideoloqia para destruir a hegemonia da classe dominante e pelo seu Entre os não-marxistas mais recentes devemos mencionar C. Geertz,
reconhecimento das classes "tradicionais" sobreviventes que, mesmo quan- "Ideology as a Cultural Svstern", em Ideology and discontent . organizado
do a sociedade está dividida principalmente em duas classes "fundamen· por O.E. Aoter (1964), pp. 47-76; George Lichtheim, The concept of
tais", têm um importante papel a desempenhar. Seguindo Marx e Engels, ideology and other esssvs (1967); John Plamenatz, Ideology (Praeger, s.d.)
Gramsci ressalta também a importância do estudo de cada situação histó- e (em parte) C. Wright Mills, The sociological imagination (1959), * espe-
rica, de novo e em profundidade, incluindo a ideologia adequada à ocasião. cialmente pp. 8-9, 36-7. Mas também esses não se ocupam da ideologia em
("A própria 'ideologia' deve ser' analisada historicamente, em termos da relação ao protesto popular. O mesmo se aplica a dois eminentes marxistas
filosofia da práxis, como uma superestrutura.vl- ' Está, assim, preparado que, atualmente, têm escrito sobre a ideologia e assuntos correlatos: Louis
o terreno para o estudo da ideologia popular num campo mais amplo: não Althusser e Lucio Coletti. O primeiro deu valiosas contribuições à teoria
só entre os proletários da sociedade industrial, mas entre seus antecessores, marxista, retomando uma perspectiva histórica que lhe faltou freqüente:
os camponeses, os pequenos proprietários e pequenos citadinos de uma mente (como em Lenin and Philosophy and other Essays, 1971, e Politics
sociedade transitória, quando as classes "fundamentais" de hoje ainda esta- and History, 1972). Não obstante, seu método "estruturalista" é demasia-
vam em processo de formação. do r rqido para que ele possa ser considerado um guia útil na investigação his-
tórica. Colletti preocupou-se principalmente - como em From Rousseau
Nota do autor to Lenin (1972) - em reinterpretar Marx e, entre outras coisas, em defen-
der o marxismo contra o "romantismo" de Herbert Marcuse. Mas também
Pode-se objetar que, neste caprtuto , fui indevidamente seletivo, concen- não se preocupou com problemas do tipo dos que são tematizados nos
trando-rne numa meia dúzia de autores marxistas e esquecendo outros que, caprtulos seguintes.
marxistas ou não, deram contribuições importantes para o estudo da ideo-
logia no curso do século passado. Isso seria exato se fosse posslvel mostrar
que eles contr iburrarn não só para a teoria da ideologia mas (de acordo
com o tema deste livro) para o aspecto da ideologia que se relaciona com
o protesto do povo comum, tanto proletários como outros. Mencionemos
alguns dos autores mais conhecidos que escreveram no meio século trans-
corrido desde a Primeira Guerra Mundial: entre os não-marxistas, os dois
destacados teóricos cujas obras foram traduzidas para o inglês, são Karl
Mannheim e Max Weber. Em sua A ética protestante e o esptrito do capita-
lismo, Weber aceita a proposição de Marx, de que "as idéias da classe domi-
nante são, em todas as épocas, as idéias dominantes", e ilustra essa aceita-
ção em sua apresentação de súnbolos como "leqitirnações" da dominação
de classe. Não obstante, no geral Weber rejeita a teoria de classes de Marx,
opondo-lhe a noção de que o capitalismo gera sua própria ideologia capita-
lista, ressaltando ao mesmo tempo que as idéias puritanas foram um
instrumento útil no desenvolvimento do capitalismo, com o qual têm uma
afinidade "espiritual". Mas a ideologia "popular" não tem nenhum papel
nesse esquema. Isso também ocorre, ern proporções menores, com Ideolo-
gia e utopia de Karl Mannheim, no qual a noção de "Utopia", em oposição

23 Ibid .. p. 376. hliç"o brasileira: A imaginação sociológica, Rio, Zahar, 5~ ed., 1980. (N, do E.)

_____ 1_
Ideologia e Consciência de Classe 25

que estão subjacentes à teoria da "cultura da pobreza" de Oscar Lewis,


pois, como seu próprio nome sugere, refere-se à passividade e à aceitação 3
e, embora a noção de classe dela faça parte (no sentido de uma consciência
2 da inferioridade social nas relações entre "eles" e "nós").4 ela pouco pode-
ria contribuir para uma análise da ideologia de protesto popular. Até mes-
A IDEOLOGIA DO PROTESTO POPULAR mo a afirmação de Althusser de que "não há prática, exceto pela ideologia
e na ideologia" (que é bastante justa em si)S não nos leva muito longe, Te-
remos, portanto, de substitur-las todas por uma teoria nossa, própria.
A ideologia popular no período que estudamos não é uma questão
apenas interna e propriedade exclusiva de uma classe ou grupo: isso a dis-
tingue, em si mesma, da ideologia como "consciência de classe" ou sua
ant itese. como tratada no caprtulo anterior. É, com mais freqüência, uma
Nosso primeiro capitulo ocupou-se principalmente da teoria marxista mistura, uma fusão de dois elementos dos quais apenas um é propriedade
da ideologia do protesto da classe operária, ou de seu desafio à domina- peculiar das classes "populares", sendo o outro imposto de cima por um
ção da classe capitalista na moderna sociedade industrial. Vimos que, com processo de transmissão e adoção de fora. Destes, o primeiro é o que eu
exceção da noção gramsciana de classes "tradicionais", não se deixava chamo de elemento "inerente", tradicional, baseado na experiência direta,
muita margem para as lutas dos camponeses e dos pequenos comerciantes na tradição oral, na memória folclórica e não aprendido ouvindo-se ser-
e artesãos urbanos, tanto na sociedade de hoje como na sociedade "pré- mões ou discursos ou lendo livros. Nessa fusão, o segundo elemento é o
industrial" caracteristica da transição entre o modo de produção feudal e o repertório de idéias e crenças "derivadas" ou tomadas de empréstimo a
capitalista. Assim, uma teoria da ideologia destinada a atender um outro outros, que, com freqüência, adquire a forma de um sistema mais estrutu-
objetivo - definir a luta entre as duas principais classes antagônicas na rado de idéias, polrtlcas ou religiosas, como os Direitos do Homem, Sobe-
sociedade industrial moderna - será, evidentemente, irrelevante aqui. E, rania Popular, Laissez-faire e os Direitos Sagrados da Propriedade, Nacio-
como nos capitulos que seguem é dessa sociedade de transição e desses nalismo, Socialismo ou as várias versões da justificação pela Fé. Portanto,
grupos sociais "tradicionais" - ainda não consolidados em classes sociais - é importante observar duas coisas: não existe uma tabula rasa no lugar da
que nos vamos ocupar principalmente, teremos de encontrar uma nova mente, onde se possam inscrever novas idéias e onde não houvesse idéias
teoria, ou "rnodelo " da ideologia de protesto, adequado aos movimentos antes (noção cara aos que falam de "massa iqnara':"}: também não existe
"populares" da época. qualquer coisa como uma progressão automática das idéias "simples" para
Autores que escreveram antes observaram a diferença entre dois as mais sofisticadas. (Devemos lembrar que Lenin negou vigorosamente a
tipos de ideologia, aplicável àquela época e também à nossa: a diferença possibilidade da geração espontânea dessas idéias entre os trabalhadores
entre um tipo de ideologia estruturado, ou relativamente estruturado (a russos em 1902.) Mas é igualmente importante compreender - e isso tem
única "ideologia" digna do nome, segundo alguns deles), 1 e uma ideologia íntima relação com o que foi dito anteriormente - que não há nenhuma
de atitudes mais simples, mentalités ou perspectivas.? Se nos limitássemos Muralha da 8abilônia dividindo os dois tipos de ideologia, de modo que
às primeiras, não ir rarnos muito longe num estudo da ideologia "popular"; não se pode descrever simplesmente a segunda como sendo "superior"
e a segunda, embora mais adequada a um estudo como este, é já, ela pró- ou de mais alto mvel do que a primeira. Há, de fato, uma coincidência
pria, bastante inadequada. Devemos rejeitar igualmente noções como as considerável entre elas. Por exemplo, entre as crenças "inerentes" de uma

1 Por exemplo, Karl Mannheim e Cornelius Geertz (ver. p. 22 supra). O. Lewis, "The Culture of Poverty", Scientiiic American, CCXI, 1966. pp. 19·25.
2 Ver a definição de ideologia de John Plamenatz, como "uma série de crenças ou rlichard Hoggart estabelece uma distinção semelhante, ao descrever as atitudes da
idéias intimamente relacionadas, ou mesmo de atitudes, caracter rs ticas de um grupo cl;J!;SC operária moderna: ver seu caprtulo sobre "Eles" e "Nós", em The uses oi
ou comunidade" (/deology, op, cit., p. 15), Sobre a ideologia como mentelité, ver !i tarocv, Londres, 1957, pp. 72-101.
vários trechos em obras de E. Leroy Ladurie, R. Mandrou eM. Vovelle; ver também " t.onin and philosopbv, op. cit., p. 170.
p. 28 e nota 13 adiante. Mindless rabble, no original. (N do E.)

24
;;6 Ideologia e Protesto Popular Ideologia e Consciência de Classe 27

geração, e como parte de sua cultura básica, há muitas derivadas original- nando a obra de Marx como um todo, Althusser, o filósofo comunista
mente de outras crenças externas, por gerações anteriores. francês, desenvolve essa idéia: "Sem a luta de classe do proletariado, Marx
Exemplo disso é a noção do "Jugo Normando", sobre a qual escre- não poderia ter adotado o ponto de vista da exploração de classe, ou reali-
veu Christopher Hil1.6 Essa noção remonta, em última análise, às antigas zado sua obra científica. Nessa obra científica, que traz a marca de toda a
"liberdades" roubadas ao "inglês amante da liberdade" por Guilherme, o sua cultura e de seu gênio, devolveu ao movimento dos trabalhadores, numa
Normando (por vezes deselegantemente chamado de o Bastardo) e seus forma teórica, o que dele tomou numa forma pol/tics e ideoláqice."?
cavaleiros ou bandidos normandos. Enriquecida pela experiência, tornou-se Nem é isso peculiar a Marx: é impossivel não ver um elo entre as idéias
mais tarde uma importante lenda popular, que prestou serviço ao movi- democráticas de Rousseau e a luta pela democracia travada em sua Gene-
mento popular na Inglaterra até a época do Cartisrno, nas décadas de 1830 bra natal muito antes do que em qualquer outro ponto da Europa. E um
e 1840. jovem professor norte-americano sugere, em uma recente resenha de livro,
O mesmo se aplica às idéias religiosas, tais como as representadas que a experiência - e a ideologia "inerente" - dos tecelões de seda em
pelos ensinamentos de Lutero e de Calvino que, uma vez adotadas pelo Lyon, os primeiros trabalhadores da França a lutarem politicamente pelo
Estado Protestante e proclamadas do púlpito por gerações de pregadores e direito de "associação" (isso em principios da década de 1830), pode ter
pastores protestantes, baviarn-se tornado parte, no século XVII, de uma contriburdo para a formulação das teorias cooperativas dos pensadores
forma ou de outra, da cultura do povo em geral. O segundo tipo, a "ideo- socialistas franceses, Proudhon e Louis Blanc, que escreveram poucos anos
logia" derivada, só pode ser absorvida efetivamente se o terreno tiver sido depois.!?
bem preparado. Sem isso, será seguramente rejeitada, como os camponeses Mas onde, mais exatamente, deveria ser traçada a linha entre as duas
espanhóis de 1794 rejeitaram a doutrina dos Direitos do Homem (quando ideologias? Por crenças "inerentes" refiro-me, entre outras, à crença do
os alemães e italianos, e até mesmo os poloneses e irlandeses católicos, a camponês em seu direito à terra, seja através da propriedade individual ou
haviam recebido bem), ou como os povos africanos ou ilhéus do Pacifico, coletivamente. Esta é uma crença que informa os protestos dos campone-
saidos recentemente de uma sociedade tribal ou feudal, têm dificuldades ses mexicanos, colombianos ou da Nova Guiné, hoje, tal como informava
em se acomodar às benesses do laissez-faire. Esse tipo de resistência ideoló- os protestos dos camponeses europeus em suas grandes rebeliões de 1381,
gica não é peculiar ao povo comum, seja na África, na Nova Guiné ou em 1525, e 1789, os levantes contra os coletores de impostos em Tokugawa,
qualquer outro lugar. Felix Raab, australiano, escreveu sobre as diferentes no Japão, a fome de terra dos irlandeses durante a maior parte do sécu-
recepções dadas, nos séculos XV I e XV 11, por sucessivas gerações de gen- lo XI X ou a resistência do inglês aos cercarnentos " dos campos entre os
tis-homens e pessoas da Corte inglesa, às idéias radicais de Maquiavel: o séculos XVI e XVIII. Análoga à crença do camponês de que há uma justiça
que era anátema para uma geração, era aceitável para a seguinte e apenas elementar em seu direito à posse irrestrita de sua terra é a crença do peque-
um bocejo para a terceira." no consumidor, seja aldeão ou citadino, em seu direito de comprar o pão
Mas não é apenas uma questão de receptividade; talvez seja ainda a um preço "justo", determinado pela experiência e pelos costumes.J! ou
mais significativo que as idéias derivadas, ou mais "estrutur adas " sejam, a pretensão do trabalhador a um salário "justo" e não simplesmente a um
com freqüência, uma destilação mais sofisticada da experiência popular e salário que corresponda aos caprichos do empregador ou da recém-criada
das crenças "inerentes" do povo. Assim, não há de fato um tráfego numa noção da oferta e procura. A proliferação dos motins provocados pela fal-
só direção, mas uma constante interação entre elas. O próprio Marx, pos- ta de alimentos nos séculos XVIII e XIX na França e na Inglaterra e as ba-
sivelmente o maior fornecedor de idéias "derivadas" da história, escreveu
no Manifesto que "eles (os comunistas) simplesmente expressam, em ter-
mos gerais, relações reais oriundas de uma luta de classes existentes ( ... ) a
'I Lenin and philosophv . op. cit., p. 9 (grifo meu).
partir do movimento histórico que se processa sob nossos olhos.':" Exami-
10 William H. Sewell, ao resenhar The Lyon uprising of 1834 de Robert Bezucha, em
Social Historv, 5, maio de 1977, pp. 688-9. Não é um exemplo perfeito, pois as idéias
básicas dos trabalhadores lioneses e dos pequenos patrões já haviam sido, de alguma
forma, dilurrías e "politizadas " pela sua recente associação (em 1834, mas não em
6 C. Hill, "The norman vcke", in John Saville (orq.l , Democracy and the labour 1831) com os Jovens Republicanos da cidade.
movement, Londres, 1954, pp. 11-66. • Enclosure, no original. (N. do E.)
7 Felix Raab, The english face of Machiavel/i, Londres, 1964. 11 Ver, especialmente, E.P. Thompson, 'The rnoral economy of lhe english crowd of
8 Communist manifesto, op. cit., p. 50. lhe eighteenth century", Past and Present, nÇ' 50, maio de 1971, pp. 76-136.
26' Ideologia e Protesto Popular Ideologia e Consciência de Classe 29

talhas dos ludistas e dos trabalhadores que destruíram máquinas nos con- Fora com os traidores, fora 'com os mendigos, viva o belo reino de Nápoles com seu
muito religioso soberano, viva o vigário de Cristo, Pio I X, e vivam nossos ardentes
dados do Sul da Inglaterra no período pós-napoleõnico são testemunho
irmãos repubtícanos.!"
eloqüente da persistência dessas reivindicações.
Da mesma forma, o inglês "nascido livre" daquelas épocas invocava Num ruvel social inferior, os Defenders, camponeses irlandeses da década
as suas "liberdades" tradicionais e se amotinava quando estas Ihes eram de 1780, tinham uma ideologia ainda mais confusa, na qual o nacionalis-
negadas. O pequeno proprietário ou citadino resistia às tentativas dos lati- mo, os sentimentos republicanos e católicos, e a devoção às revoluções nor-
fundiários e fazendeiros "rnelhoradores", dos burgueses empreendedores te-americana e francesa, lutavam, todos, por um lugar ao sol.15
ou das autoridades civis (tal como muitos fazem ainda hoje] de transferi- Uma mistura semelhante de lealdades (embora, nesse caso, dificilmen-
los ou de desmantelar suas comunidades tradicionais em nome do progres- te seja confusão) está na continuada dedicação ao Czar. Rei ou Imperador,
so. Essas pessoas tendiam a preferir "o diabo que conheciam" a outro que observada entre os camponeses que estão em armas contra os senhores de
não conheciam e preferiam ser "antiquadas" a serem "modernas" no sen- terras ou o próprio governo real, particularmente evidente na Europa, du-
tido de que se inclinavam mais a pedir o restabelecimento de direitos per- rante o penedo da Autocracia ou Monarquia Absoluta. Na França, antes
didos ou ameaçados pela expropriação do que a reivindicar mudança ou da Revolução, os novos monarcas eram saudados com mostras de entusias-
reforma. Mas havia outros - e não só entre os "rebeldes primitivos" ou en- mo popular autêntico, e camponeses amotinados mostravam sua fidelidade
tre as sociedades primitivas - que tinham crenças milenares ou quiliastas em lemas de dupla significação, como "Vive le Roi et sans qsbetle" (como
e, portanto, inclinavam-se mais a jogar suas fortunas numa modificação em 1674) ou "Vive le Roi et que /e pain remende!" (como em 1775): E
súbita, ou numa regeneração, como a prometida pela Segunda Vinda do foram necessários dois anos de revolução e nove meses de guerra "revolu-
Cristo, ou a "boa nova" mais mundana da decisão de Luis XVI de convo- cionária" antes que até mesmo os cidadãos de Paris (para não falarmos nos
car os Estados Gerais para se reunirem no verão de 1789.12 camponeses) estivessem preparados para ver o rei ser executado por traição.
Há também os aspectos menos concretos - menos fáceis tit- do- E, da Rússia do século seguinte, Hobsbawm cita dois exemplos reveladores
cumentar - como aquilo que autores franceses como Leroy Ladurie, Man- da continuada lealdade dos camponeses para com o Czar, seu Protetor,
drou e Vovelle chamaram de menta/ités e sensibi/ité co//ective do povo muito depois de terem sido levados a odiar ou desconfiar de seus ministros.
comum, que, como os diferentes elementos da "cultura plebéia" de E.P. O primeiro é do Volga, na época de Alexandre 11, quando os camponeses
Thompson, não se limitam ao protesto. Não obstante, podem ter sua im- rebelados se dirigiram ao general enviado para contê-los nos seguintes ter-
portância sob esse aspecto também, e Michel Vovelle mostrou-nos como a mos: "Não atire contra nós, você está atirando em Alexandre Nicolaievitch,
sensibilite co//ective dos camponeses franceses e do menu peup/e urbano, está derramando o sangue do Czar "." O segundo é de Poltava. em 1902,
sob certos aspectos - como em suas novas atitudes para com a religião e quando os camponeses que pilhavam uma propriedade ouvem o assustado
com a morte, e seu comportamento em festivais populares nos últimos proprietário dizer que sempre fora amigo deles. "Mas o que podemos fa-
tempos do Antigo Regime - prenunciaram certos aspectos da ideologia zer?", respondem várias vozes. "Não estamos fazendo isso em nosso nome,
popular evidenciada nas journées revolucionárias de 1789.13 mas em nome do Czar!"!?
Esse tipo de ideologia pode tomar a forma de uma mistura de convic-
ções freqüentemente dispares, entre as quais é difícil distinguir os elemen-
tos realmente "inerentes" daqueles que foram "derivados" mais recente-
mente; isso cor responde, em geral, ao que Gramsci entendia pelo elemento 14 E.J. Hobsbawn, Primitive rebels. Manchester, 1959, p. 29. [Ed. bras.: Rebeldes e
primitivos, 2a ed., R ia, Zahar , 1978.]
"contraditório" na ideologia do povo comum italiano. Hobsbawm cita o
IS Ver o catecismo de um Defender, citado por M.R. Bearnes. Journal ot Peasant
caso do líder bandoleiro italiano da década de 1860 - a época das guerras
Studies, julho de 1975, p. 504. Para uma confusão semelhante na ideologia dos cul-
de Garibaldi - que emitiu a seguinte proclamação: lOS da carga e de movimento de greve nos tempos modernos na Nova Guiné, ver
E. Ogan, "Cargoism and politics in Bougainville, 1962-1972", Journal of Pacific His-
wrv, I X (1974), pp. 117-20, e B. Gammage. "The rabaul strike, 1929". ibid., X
(1975), pp. 3-29.
12 Ver também o breve movimento milenário dos trabalhadores agrlcolas de Kent, "Viva o rei e sem impostos do sal", e "Viva o rei e que o pão baixe de preço",
em 1838, em P. G. Rogers, 8attle in Bossenden wo od, Londres, 1961. respectivamente. (N. do T.)
13 M. Vovelle, "Le tournant des mentalités en France 1750-1789: 'Ia sensibilité' pré- 10 Primitive rebets, p. 121.
revolucionnaire", Social Historv , 5, maio de 1977, pp. 605-29. 17 lbid., p. 186.

~'L_ _
l~ _ -_ .. _----_ __
.._._ ..- .. .-. _
JC Ideologia e Protesto Popular Ideologia e Consciência de Classe 31

Mas até onde pode essa ideologia inerente, por si mesma, levar os "~J1I(~s mveis de sofisticação. Na fase mais elementar, pode tomar a forma
protestadores? A greves, motins por alimentos, rebeliões camponesas (com dt~ SIO!1i1I1S, como "Morte aos coletores de impostos" ou "Nenhuma tribu-
ou sem sucesso) e até mesmo a um estado de consciência da necessida- Id~::10 sem representação" dos norte-americanos; ou "Não ao Imposto" ou
de de mudança radical (a que os historiadores franceses chamam de pri- "Niio ao Papismo ", gritados pelos londrinos do século XVIII; ou ainda
se de conscience). Mas evidentemente não pode leva-tos até a revolução, "VivI.' te Perlement" e, pouco depois, o "Vive le tiers etet " * escandido pelo
1111.'1111 peup!e parisiense às vésperas da Revolução. Como variante, há o uso
mesmo como associados menores da burguesia. Os limites são sugeridos
por E.P. Thompson quando explica como uma cultura plebéia da Inglater- til! súnbotos como "Papada e sapatos de madeira", ou o plantio cerimonial
ra do século XVIII - a "cultura self-activating do povo, derivada de sua dI! Árvores da Liberdade e a transformação da incineração tradicional do
própria experiência e recursos" - pôde, sob vários aspectos, impedir a I'dpa na queima das imagens dos ministros de George 111, na Boston pré-
I evolucionária, Num nível de sofisticação um pouco maior, temos a incor-
hegemonia da gentry de se generalizar. Entre as realizações populares no
curso dessa resistência, Thompson assinala: a manutenção de sua cultura IHlfiU,:iío ao discurso popular de expressões radicais como "patriotas" (apli-
tradicional; a suspensão parcial da disciplina de trabalho do irucio do in- c,lIla a todos os três países) e (na França) "contrato social", "Terceiro
dustrialismo; a ampliação do alcance das Leis dos Pobres; a garantia de um I ~,lildo" e "Direitos do Homem". Esta última também deu seu nome ao
melhor abastecimento de cereal; e, além disso, "eles desfrutavam da liber- 111tl!lIilma poh'tico mais estruturado da revolução, na Declaração dos Direi-
dade de vagar pelas ruas acotovelando-se, embasbacar-se e gritar hurras, lo~" na França (agosto de 1789), que se seguiu ao programa anterior da re-
derrubando as casas dos padeiros antipáticos ou dos Dissidentes, e de uma volucão na América, proclamado na Declaração de Independência de 1776.
disposição geralmente amotinada que surpreendeu os visitantes estrangei- Os meios pelos q uais essas novas idéias eram transmitidas variavam,
ros e que quase os levou a se acreditarem 'livres'."!" n.rt uralmente. de um pais a outro, mas, de um modo geral, dependiam em
Mas conquistas populares semelhantes, na Inglaterra pré-industrial 'pande medida, é claro, do estado de alfabetização do povo comum. Não
ou em outros lugares, não poderiam ir muito além desse ponto, sem que a Ir:l estatrsticas precisas, e as provas de alfabetização de que se poderia dis-
"cultura plebéia" nativa ou a ideologia "inerente" fossem suplementadas por, como assinaturas em certidões de casamento, em relatórios policiais
por aquele elemento "derivado" de que falei antes: as idéias pohticas, filo- uic. variavam de pais a país, e mesmo entre as regiões. Mas, com a ajuda

sóficas ou religiosas que, em diferentes graus de sofisticação, são absorvidas da interpretação que Ihes foi dada pelos especialistas, podemos dizer que,
pela cultura mais especificamente popular. Esses elementos, no contexto ;'ISvésperas da "era das revol uções " do século XV 111, o menu peuple norte-
de que falo, tenderam a ser "avançados" e não "retrógrados, postulando .uncr icano, estando mais habituado à leitura da B iblia. era provavel mente
antes a reforma do que a restauração, e foram com freqüência - sempre mais alfabetizado do que o inglês, e que este (não tendo mais, a esta altura,
COIllO os norte-americanos, praticamente camponeses) era mais alfabeti-
no período daquilo que Robert Palmer chamou de "Revolução Democrá-
tica" - elementos transmitidos, por vezes de segunda mão, pelos principais lado do que o francês. Cálculos aproximados sugerem que, das cidades
questionadores da aristocracia, a burguesia nascente e ascendente. Mas maiores (e a América não tinha nenhuma que se classificasse como tal),
poderiam ser conservadores e "retrógrados", como nos movimentos de Paris e Londres talvez tivessem uma taxa de alfabetização de cerca de 40 a
"Igreja e Rei" dos camponeses franceses da Vendéia, depois de 1793, ou !IO% - os trabalhadores depois dos artesãos e as mulheres muito atrás dos
nos dos cidadãos napolitanos e romanos contra os franceses em 1798-1799, dois.19 Assim, talvez menos de metade do menu peuple parisiense, e seis
ou nos dos camponeses espanhóis contra Napoleão em 1808. Não obstan-
te, no primeiro desses exemplos, é interessante notar que os camponeses da "Viva o Parlamento". "Viva o Terceiro Estado", respectivamente. (N_ do T.l
1'1 Para um estudo da alfabetização popular na França do século XVIII, ver D.
Vendéia passaram primeiro pelo processo revolucionário e só se voltaram
Morne t, Les originesintetlectuetles de Ia Révolution françaíse, Paris, 1933, pp. 420-5;
contra a Convenção jacobina em Paris quando a Revolução pareceu colo- " (sobre Parisl, G. Rudé, The crowd in the French Revolutíon, Oxford, 1959, pp.
ear-se diretamente em oposição às suas esperanças. )10-11. Sobre a Grã-Bretanha do século XVIII, ver vários artigos em Past and present,
De qualquer modo, essa doutrinação - ou, mais exatamente, essa ""I",cialmente Lawrence Stone, "Literacy and Education in England, 1640-1900",
fusão de idéias "inerentes" e "derivadas" - ocorreu em etapas e em dife- ,," 42, fevereiro de 1969, pp. 69-139; e Michael Sanderson, "Literacy and Social
Mobititv in the Industrial Revolution in England", n056, agosto de 1972, pp. 75-104.
Ambos mostram um (ndice de alfabetização relativamente alto para trabalhadores e
r: r i.ulos (cerca de 40%) em torno de 1700-1750, e um acentuado declinio no terceiro
18 E.P. Thompson, "Eighteenth-century english society: Class struggle without 'I'Jilrtel do século, elevando-se outra vez, rapidamente, em torno de 1775. Mas não há
class?, Social History, 111121, maio de 1978, 137-65, particularmente pp.164-5. ,!.,dos nacionais fidedignos para a Grã-Bretanha antes de 1840.
s: Ideologia e Protesto Popular Ideologia e Consciência de Classe 33

ou sete em cada dez artesãos, sabiam assinar o nome ou ler a mensagem I," ,",I'Vt~~;~;t!preparado; e as circunstâncias e a experiência que, em última
revolucionária do dia, transmitida pelos numerosos panfletos e jornais diá- .1I•."I',t~, tlt:lellllinavam a natureza da combinação final. Só dessa maneira
rios escritos em linguagem simples. (Os escritos de Rousseau eram apenas 1,,,d"II,m compreender por que ossans-culottes de Paris continuaram revo-
para uma elite alfabetizada e só chegavam ao leitor plebeu, provavelmente, 1II,,",\,iIIO$, enquanto muitos de seus confrades em Lyon, Marselha e outras
em segunda ou terceira mão.) Mesmo a palavra escrita, porém, podia ser 'Id"d,~s, cujas crenças "inerentes" eram mais ou menos as mesmas, e que
transmitida por outros meios: nas provrncias francesas de 1789, por exem- 1111".111/sofrido um batismo semelhante da revolução, mais tarde, sob o
plo, trechos dos jorna is e cartas relacionados com os grandes acontecimen- '"II'dCI() de uma nova série de idéias ("girondinas"), mudaram de fidelida-
tos ocorridos em Versalhes e Paris eram lidos em voz alta do balcão do 0/", t~ porque os camponeses da Vendéia, com crenças e aspirações "ine-
hôte/ de vi//e nas cidades e mercados. Ainda mais generalizada era a palavra "'lIlt~~," semelhantes às dos camponeses do resto da França, nas condições
falada, cuja transmissão se podia fazer pelo púlpito, no exército ou, como I" t~do",inantes na primavera de 1793, permitiram que suas idéias revolu-
na Inglaterra da década de 1640, nos encontros dos eleitos puritanos. Na , IIIII;\rii.lsoriginais fossem substiturdas por outras.
França, em 1789, era na pequena oficina, na unidade típica da produção Mas a coisa não é assim tão simples, pois, em todos esses casos, e
industrial na cidade, que o artesão aprendia com seu patrão os slogans e "IJlIJ()ra "o bolo (eventualmente) desmoronasse", a insistência das crenças
discutia com ele os grandes acontecimentos na nova linguagem da época. li' iqilldis "inerentes" é tal que as novas idéias "derivadas", sejam proqressis-
Além disso, havia em Paris as lojas de vinho, os mercados e as padarias que, I,,~;ou conservadoras, que saem pelos canais de transmissão - e isso não é
tanto para homens como para mulheres, serviam de foro de debates e de 11t~t:Uliarao per íodo "pré-industrial" - provavelmente não serão iguais às
plataforma de lançamento da agitação popular e da revolta. 'II/'! por eles entraram. Assim o processo de enxerto não é nunca uma ques-
Assim, de um modo ou de outro, essas noções "derivadas" se fun- Ifi() simples de A + B. Se o elemento "inerente" constituísse um recipiente
diam nas noções e crenças "inerentes", e a nova ideologia popular tomou puramente passivo, então talvez fosse. Mas, na verdade, no caso de todas as
forma como um amálgama das duas. Não é surpresa que esse processo se classes e não apenas da classe "popular", todas as idéias "derivadas" no
tenha desenvolvido mais rapidamente nas cidades do que nas aldeias, e curso da sua transmissão e adoção sofrem uma transformação cuja nature-
muito mais depressa em épocas de revolução (das quais a maioria dos meus '<I dependerá das necessidades sociais ou dos objetivos pol íticos das classes
exemplos foram extraúíos] do que em tempos de calma social e política. que estão prontas a absorvê-Ias. Foi uma lição que Martinho Lutero apren-
Mas devemos ressaltar que, se a mistura resultante tomou uma forma mili- ,lt:u na década de 1520, quando os camponeses alemães, para grande in-
tante e revolucionária, ou uma forma conservadora e contra-revolucionária, rliqnacâo sua, tomaram seus ensinamentos literalmente e os usaram para
isso dependeu menos da natureza dos recipientes, ou das crenças "ineren- lu ndarnentar sua rebel ião contra os pr íncipes, que, para Lutero, eram ben-
tes" de que partiam, do que' da natureza das crenças "derivadas", compli- leitores e não, como para os camponeses, opressores. A burguesia francesa,
cadas pelas circunstâncias então predominantes e que E.P. Thompson cha- sentindo em fins da década de 1780 a necessidade de fazer uma revolução,
mou de "a sacudidela violenta da experiência".2o O que pretendo dizer é tomou a teoria da "soberania popular" de Rousseau, e seu "contrato so-
que há três fatores, e não apenas dois, a serem considerados: o elemento cial", como uma justificação ideológica para a sua rebelião contra a nobre-
"inerente" que, como dissemos antes, era a base comum; o elemento "de- za e o despotismo real. Isso aconteceu muito depois que o aristocrático
rivado", ou externo, que só podia ser efetivamente absorvido se o terreno I-'ilrlément francês e os aristocratas da Hungria e da Polônia haviam come-
çado a utilizar de maneira muito diferente as idéias de Rousseau - bem
como as de Montesquieu - para fortalecer o "elemento aristocrático" con-
tra a Coroa. As "ordens inferiores" francesas _. em particular, os sens-
20 A frase completa é: "Esta cultura [a "cultura plebéia se/f-activating"] (. .. ) cons-
cutottes de Paris - aprenderam a lição e, tendo adquirido a nova lingua-
titui uma ameaça sempre presente às descrições oficiais da realidade; com a vigorosa
sacudidela da experiência e a intrusão de propagandistas 'sediciosos', a multidão par-
~lem da revolução com a aristocracia liberal e a burguesia, adaptaram-na ao
tidária da Igreja e do Rei pode se tornar jacobina ou ludista, a fiel marinha czarist a se seu próprio uso e, ocasionalmente, empregaram-na com proveito contra seus
pode transformar numa frota bolchevique insurreta." Thompson, op. cit., p. 164. O antiqos professores. Voltaremos ao assunto em outro capítulo.
que é mais ou menos o que estou dizendo, mas também argumento que o processo Urna questão final-que apenas mencionaremos aqui - é o que acon-
pode reverter ou, pelo menos, tomar outro rumo: a "frota bolchevique" também teve
tece a essa nova ideologia popular, forjada no fogo da revolução, quando a
seu "K;onsladt". Ou, como iremos ver, o trabalhador dotado de consciência de classe
de Oldham (de 1830) pode tornar-se um defensor da colaboração de classe antes de fase "popular" da revolução termina, ou quando a contra-revolução come-
1848 (ver pp, 141, 144, infral. ça. Significará, por exemplo, que, após a derrota dos Levellers, os dissiden-

lm I
s: Ideologia e Protesto Popular Ideologia e Consciência de Classe 33

ou sete em cada dez artesãos, sabiam assinar o nome ou ler a mensagem I," ,",I'Vt~~;~;t!preparado; e as circunstâncias e a experiência que, em última
revolucionária do dia, transmitida pelos numerosos panfletos e jornais diá- .1I•."I',t~, tlt:lellllinavam a natureza da combinação final. Só dessa maneira
rios escritos em linguagem simples. (Os escritos de Rousseau eram apenas 1,,,d"II,m compreender por que ossans-culottes de Paris continuaram revo-
para uma elite alfabetizada e só chegavam ao leitor plebeu, provavelmente, 1II,,",\,iIIO$, enquanto muitos de seus confrades em Lyon, Marselha e outras
em segunda ou terceira mão.) Mesmo a palavra escrita, porém, podia ser 'Id"d,~s, cujas crenças "inerentes" eram mais ou menos as mesmas, e que
transmitida por outros meios: nas provrncias francesas de 1789, por exem- 1111".111/sofrido um batismo semelhante da revolução, mais tarde, sob o
plo, trechos dos jorna is e cartas relacionados com os grandes acontecimen- '"II'dCI() de uma nova série de idéias ("girondinas"), mudaram de fidelida-
tos ocorridos em Versalhes e Paris eram lidos em voz alta do balcão do 0/", t~ porque os camponeses da Vendéia, com crenças e aspirações "ine-
hôte/ de vi//e nas cidades e mercados. Ainda mais generalizada era a palavra "'lIlt~~," semelhantes às dos camponeses do resto da França, nas condições
falada, cuja transmissão se podia fazer pelo púlpito, no exército ou, como I" t~do",inantes na primavera de 1793, permitiram que suas idéias revolu-
na Inglaterra da década de 1640, nos encontros dos eleitos puritanos. Na , IIIII;\rii.lsoriginais fossem substiturdas por outras.
França, em 1789, era na pequena oficina, na unidade típica da produção Mas a coisa não é assim tão simples, pois, em todos esses casos, e
industrial na cidade, que o artesão aprendia com seu patrão os slogans e "IJlIJ()ra "o bolo (eventualmente) desmoronasse", a insistência das crenças
discutia com ele os grandes acontecimentos na nova linguagem da época. li' iqilldis "inerentes" é tal que as novas idéias "derivadas", sejam proqressis-
Além disso, havia em Paris as lojas de vinho, os mercados e as padarias que, I,,~;ou conservadoras, que saem pelos canais de transmissão - e isso não é
tanto para homens como para mulheres, serviam de foro de debates e de 11t~t:Uliarao per íodo "pré-industrial" - provavelmente não serão iguais às
plataforma de lançamento da agitação popular e da revolta. 'II/'! por eles entraram. Assim o processo de enxerto não é nunca uma ques-
Assim, de um modo ou de outro, essas noções "derivadas" se fun- Ifi() simples de A + B. Se o elemento "inerente" constituísse um recipiente
diam nas noções e crenças "inerentes", e a nova ideologia popular tomou puramente passivo, então talvez fosse. Mas, na verdade, no caso de todas as
forma como um amálgama das duas. Não é surpresa que esse processo se classes e não apenas da classe "popular", todas as idéias "derivadas" no
tenha desenvolvido mais rapidamente nas cidades do que nas aldeias, e curso da sua transmissão e adoção sofrem uma transformação cuja nature-
muito mais depressa em épocas de revolução (das quais a maioria dos meus '<I dependerá das necessidades sociais ou dos objetivos pol íticos das classes
exemplos foram extraúíos] do que em tempos de calma social e política. que estão prontas a absorvê-Ias. Foi uma lição que Martinho Lutero apren-
Mas devemos ressaltar que, se a mistura resultante tomou uma forma mili- ,lt:u na década de 1520, quando os camponeses alemães, para grande in-
tante e revolucionária, ou uma forma conservadora e contra-revolucionária, rliqnacâo sua, tomaram seus ensinamentos literalmente e os usaram para
isso dependeu menos da natureza dos recipientes, ou das crenças "ineren- lu ndarnentar sua rebel ião contra os pr íncipes, que, para Lutero, eram ben-
tes" de que partiam, do que' da natureza das crenças "derivadas", compli- leitores e não, como para os camponeses, opressores. A burguesia francesa,
cadas pelas circunstâncias então predominantes e que E.P. Thompson cha- sentindo em fins da década de 1780 a necessidade de fazer uma revolução,
mou de "a sacudidela violenta da experiência".2o O que pretendo dizer é tomou a teoria da "soberania popular" de Rousseau, e seu "contrato so-
que há três fatores, e não apenas dois, a serem considerados: o elemento cial", como uma justificação ideológica para a sua rebelião contra a nobre-
"inerente" que, como dissemos antes, era a base comum; o elemento "de- za e o despotismo real. Isso aconteceu muito depois que o aristocrático
rivado", ou externo, que só podia ser efetivamente absorvido se o terreno I-'ilrlément francês e os aristocratas da Hungria e da Polônia haviam come-
çado a utilizar de maneira muito diferente as idéias de Rousseau - bem
como as de Montesquieu - para fortalecer o "elemento aristocrático" con-
tra a Coroa. As "ordens inferiores" francesas _. em particular, os sens-
20 A frase completa é: "Esta cultura [a "cultura plebéia se/f-activating"] (. .. ) cons-
cutottes de Paris - aprenderam a lição e, tendo adquirido a nova lingua-
titui uma ameaça sempre presente às descrições oficiais da realidade; com a vigorosa
sacudidela da experiência e a intrusão de propagandistas 'sediciosos', a multidão par-
~lem da revolução com a aristocracia liberal e a burguesia, adaptaram-na ao
tidária da Igreja e do Rei pode se tornar jacobina ou ludista, a fiel marinha czarist a se seu próprio uso e, ocasionalmente, empregaram-na com proveito contra seus
pode transformar numa frota bolchevique insurreta." Thompson, op. cit., p. 164. O antiqos professores. Voltaremos ao assunto em outro capítulo.
que é mais ou menos o que estou dizendo, mas também argumento que o processo Urna questão final-que apenas mencionaremos aqui - é o que acon-
pode reverter ou, pelo menos, tomar outro rumo: a "frota bolchevique" também teve
tece a essa nova ideologia popular, forjada no fogo da revolução, quando a
seu "K;onsladt". Ou, como iremos ver, o trabalhador dotado de consciência de classe
de Oldham (de 1830) pode tornar-se um defensor da colaboração de classe antes de fase "popular" da revolução termina, ou quando a contra-revolução come-
1848 (ver pp, 141, 144, infral. ça. Significará, por exemplo, que, após a derrota dos Levellers, os dissiden-

lm I
.14 Ideologia e Protesto Popular

tes radicais ingleses, em Burford, em 1649, ou dos sens-culottes parisienses


em 1795, ou dos ouvriers franceses em junho de 1848, toda a experiência
pol ítica por eles conseguida no curso da revolução ficou perdida e teria de
começar novamente quando se seguisse o próximo ciclo de revoluções,
após uma pausa adequada? Não, evidentemente não. A reação poderia ser
bastante real, como foi sob o Protetorado de Cromwell e a Restauração na
Inglaterra, e sob o Império Napoleôn ico e Restauração na França. Mas o
que é também verdade é que a tradição revolucionária popular, tendo leva-
do uma existência subterrânea fora das vistas das autoridades, sobreviveu
e reapareceu sob novas formas em novas condições históricas, quando o
"povo" - os recipientes do conjunto anterior de idéias "derivadas" -
também havia sofrido uma transformação. Mas também isso será examina-
do nos capítulos seguintes. r \ li 11' II

(\ I\II'() N ESES

35

l _
NA EUROPA MEDIEVAL

',,01"" '"I''' i', 1"''''''11'' " LI:.II dllS camponeses, começando pela Europa me-
011"".01 11, .0"11"'""" Ilpi"II d.• 1'llIopa na Idade Média era um pequeno agri-
,,,11'" 1111,01'I"" VIVI,' li,' ',li •• "~"d, IIlW trabalhava para o seu senhor e para
I t tu- ,li'" " '''I,' '" """'11'.0 'I"'~I culiivusse olivais ou vinhas no cálido
,1111'.0 ,""" ,1"1\11",111"",,,,,,,,, '"1 111'Ic, 'HI (depois] batata, ou criasse carnei-
"" 11,01" ".o', 101.0"" ,,,', "viol ••" cl" I '~'.'" li do Oeste mais úmidos e menos
''''''I'''' ,,,I,,,, "'" "',',c'I" 1,01",,,"1,, ,1111"·.lIlwi'~III(l. I~ notável, como explica
11;"1",,, 11111,,,, ,,,'",, II,I,,,I,,,f,, 11111.01.111111101 C;IIII!lolwsa medieval tinha
1'''11111 di,dlpll'l 1'·11'1 qd'd,1I 11111 1111',.'" '.lljI'·'llhlil" 011 I!IU mercadorias urba-
t ' 11" ,·11 ·tI'l 1,1111111" 1111""1111/11101111111 doi c"lvdl/,II,::IO fllI~di(~viJl.t

.• ,,,,,,, '1,01 ,., ,I" ,I"",,,, '.1111.11,;'"lI:'"~ 11'·",1,.' 1.11111)lia Ialta de habili-
,I",f •.. ,," I,·. 111
•. r-. ,," li.' 1'"1",,:.,01,, '.,,111 'I'W () C.l11I1)(lI1ÚScultivava, mas
li" ".1,,, r u.' "'01"1,,,1••, 100i'·
-. 01"',01,,':I',c'.1 dI) :,,'~clllo X em diante, entre o pe-
'I"""" "'fI""II,,, '"1" 11,01'.011",1'101.o hd:,'~ d,: toda <I riqueza, e o magnata
"111,,,,01','11'" "" 11111"111111'1111'
'111I:, dir,~ta ou indiretamente, era dono da
'",''''' """" ,f" ,,,,,,,,, ,,·,11111'.1 q c.unponés à servidão, Nesse sistema "feu-
.101 ", """1,,,,,,,, '''.I.IV,IIII Ilq;rdllS ao rei ou ao duque pela vassalagem pes-
"cI ,. "",1"",, exércitos
01" '.'" V".:0 ,~'1I1;',lllS ou da sujeição a seus tributos,
, .., ""',11" "'11,1 (,10'11111,1"(:1),/11) arrendamentos "militares") e controle e ju-
, ; . I;..,'" '""",, .• "'.",,,, ,1111;c.unponeses. Assim, o camponês se transformou
'" 1111,,01.1" ,," '.0'1v, '. 1'1,~~() i, "~'Tél e, mesmo que não estivesse legalmente
,I,,, I" ,'" ·,,,1,,. "I" 1'1""" por contrato a trabalhar tantos dias por ano na ter-
, •• 1•• ",·,,1,"1 ,. " ""1,,1;0' 111" uma multiplicidade de outros serviços, em di-
"1,,,,,,, "" "111 1" ,,<I'ilo. I ais obrigações nenhum excedente deixavam ao
'''li '''"C'·'. 1111II'lhllidil oportunidade de explorar sua própria gleba, de
, 1" " 1111'11,,,,11'.11"c,"lôrn ico de seu direito de pastagem e respiga ou

11,,,,,,''\' 11 "" "Pousun t societv, peasant movements


I"li, and feudal ism in me-
li, .1I '''''I''''', 11,,",y !\. Landsberger (org.l, Rural revolt: Peasant movements and
/fI

•• ".1. !..II'I/I', 1III\dll~:;, lD74. p. 69.

37
38 Ideologia e Protesto Popular Camponeses 39

de colher lenha no campo comum ou na floresta. A justificação original d,lIlc~ da terra tomava a forma de pedidos de menores arrendamentos e me-
dessa servidão humana era a de que o senhor tinha nisso a recompensa pela 1111:,serviços onerosos ou da abolição dos monopólios mais antipáticos des-
proteção que proporcionava aos camponeses em seu tribunal senhorial. (cur.ulos pelos senhores."
Isso poderia ter algum sentido no começo do feudalismo, quando a justiça J: mbora as rebel iões camponesas tendessem a se concentrar em fins da
tradicional entrara em colapso e as monarquias medievais que surgiam l i l.n lr: Módia, quando o velho sistema feudal baseado na vassalagem e servi-
eram assoladas pelo banditismo dos barões e pela guerra civil. Mas sem dú- d:Ic, 1!',laVa em processo de dissolução na Europa ocidental, houve casos de
vida deixara de ter significação já no século XI, na Europa ocidental e me- 1'11I11:slo camponês violento que remontam quase que ao per íodo inicial do
ridional, em que os tribunais e as coletas de impostos senhoriais já se ha- 1"lIrI.rlisIllO, em regiões prósperas como a Normandia ou o Norte da Itália.
viam transformado em meios de coagir e explorar o camponês no interesse 11.'1uxempkis di! afirmação, pela força, do direito de caça e pesca pelos cam-
do senhor e não de oferecer-lhe proteção contra bandidos sem lei. I'"III'!;C~!;nor mandos contra o seu duque em 996; e, entre 882 e 905, de uma
Se a servidão pessoal era a principal característica do feudalismo na dl·.\lIII.I entre camponeses do Lago de Como e seu senhor, a Abadia de San-
Europa ocidental (no Leste, por motivos que serão sugeridos em outro ca- 111/\111111ósio, em Milão, em relação aos serviços exiqidos.ê E, como aconte-
prtulo, a servidão só chegou ao seu zênite no século XVIII) sua operação • 111111111111eqüência, essas exigências iniciais foram seguidas de outras que
não era, de modo algum, universal. Embora o preceito nu/le terre sans ..•.. Ipl oxuuavnm mais da essência da questão, da existência da própria servi-
seiqneur" fosse geralmente observado, havia pequenos bolsões de campo- dali. I !.\.IS uuplicações mais amplas também foram por vezes mencionadas
neses livres em certas regiões da Alemanha e da Escandinávia (e, de manei- 1""1111'101Iar.nnun te existam registros oficiais) nas declarações atribu ídas
ra bastante generalizada, na Itália do Norte). que desfrutavam a condição li' ". 1'1{'lllll'!; C'III1IIOlll!ses. F icarnos sabendo, assim, que os camponeses nor-
de homens livres (alguns permaneceram assim até o auge da reação feudal 111.11111 ••.. 11;IJlddn', dI! n!)(i teriam dito "nus sumes homes come it te sunt'"
que ampliou a servidão, no século XIV e depois), desligados do solo ou do I' '1"". 1111111;1 dl·.plll.1 ';Ilhll! os serviços feudais em fins do século XIII na
seigneur. E havia muitos outros que, embora formalmente ligados à 'terra IlItll.IIIIIIII. 11'. I.IIIIIUIIII!·.C!·.Cllil,lI<1l1l"nulli servire volumus". **4 (~ difícil
do senhor, ainda eram praticamente sujeitos, no sentido de que tinham de I 1111.1'''"\111. '1"1' "vc -.·.I'"I 11'..1110 1iIIlIIl<l!Jt!1lIcomo a desta última citação
pagar o arrendamento tradicional pelo uso de sua terra, levar seu trigo para '.11111IrI!IIIIII.1IlJllrloI. li 1101',('IJI~IIIpodu tor sido transcrita nesses termos por
ser moído no moinho do senhor, pagar multas (ou tributos) quando seus 11111 "'''111101."11.lrlVIJ,,'ldll, IJtlllll~lllstlaSSIJ o acontecimento].
filhos ou filhas se casavam ou quando qualquer parte de suas propriedades /\ '1"1".\.111 11.1..•.1VltI:IÚ pessoal e da possibilidade de sua eliminação
mudava de mãos (operação conhecida na França como lods et ventes), ou 1111.11.11111.111111'11111. II~v.llllad;1 rlc Iorrna mais aguda e mais direta nos levan-
ainda pagar numerosos outros tributos que variavam de um domínio se- Ic". rllI 1111'.da leI.tllt! Média, corno na violenta Jacquerie dos camponeses
nhorial para outro, ou de região a região. Além disso, os senhores tinham 'I.IIII:I'!.I";, dI) 1 ]~)B, precipitada pela derrota militar da nobreza em Poitiers,
outros privilégios na compra ou venda de cereais, nos direitos de caça e ;11'11111'0 nuns antes. E, mais especificamente mesmo, na Revolta Camponesa
pesca e no acesso às pastagens comuns. Privilégios e formas de servidão 11I'Ilc~!;"de 13B1, e na Guerra Camponesa Alemã de 1525. Esse avanço da
semelhantes não foram, de modo algum, peculiares à Europa Medieval, Idl'lIll1'1ia camponesa na direção da forma mais madura de expressar uma
como iremos ver nos capítulos subseqüentes. c'xic,i;llI:i" tle igualdade de ststus e liberdade em relação à servidão como di-
Nessas circunstâncias, não é de surpreender que as reivindicações e 11!llo !~ notado por G.M. Trevelyan em seu comentário sobre a revolta de
protestos camponeses se centralizassem na solução das injustiças relaciona- 1:1111: "O levante de 1381 mostra, fora de qualquer dúvida, que o campo-
das com a servidão, ou na redução dos serviços e tributos onerosos bem III:!; havia compreendido a concepção da liberdade pessoal total, que consi-
como na liberdade dos monopólios opressivos desfrutados pela nobreza e rll~1<lva degradante o trabalho forçado e que considerava a liberdade como
pelos gentis-homens. Mas, como H ilton nos diz, a exigência de terra, ou o 11111 direito seu".5
confisco das grandes propriedades (reivindicações familiares aos modernos
movimentos camponeses) raramente era feita pelos camponeses rebeldes
na Idade Média, em particular no que se relaciona com a terra arável. E ele Hilton, p. 76.
tbitt., p. 75.
acrescenta que o equivalente medieval da exigência posterior de proprie-
"Somos homens como eles são", em francês antigo no original. IN. do T.)
•. "Nâo queremos servir", em latim no original. (N. do T.l
·1 lbid., p. 78.
• "Nenhuma terra sem senhor" em francês no original. (N. do T.) -, lj. M. Trevelyan, England in the age of Wycliffe, p. 185; epud Betty e Henry Lands-

l __
- _
Camponeses 41
40 Ideologia e Protesto Popular

U,"t.es aos principais alvos de seu ódio, John de Gaunt, Hales, o Tesourei-
Mas em todos' esses movimentos do fim da Idade Média (como tam-
11', e os advogados em geral. Hales sofreu o maior castigo: ele e o chanceler,
bém no levante húngaro de 1514 liderado por Dózsa). os camponeses en- 6
!;lItlbury, foram arrastados pelas ruas e decapitados em Tower Hil1.
contraram I(deres fora de suas fi leiras, e parece que, em cada caso, a sua
Enquanto isso, o conselho real resolvera adotar uma posição conci-
ideologia inerente, nascida diretamente de suas privações e frustrações sob
li.uór ia. e promoveu-se um encontro entre o jovem rei Richard II e Wat
o domínio senhorial, foi ainda mais enriquecida pelas idéias desses líderes
I yler e seus rebeldes, em Miles End. Decidiu-se ali a abolição da servidão e
que eram geralmente do clero menor ou da pequena nobreza, mas com
dd condição de vilão, bem como dos serviços feudais, e que a terra até en-
freqüência também soldados desmobilizados, ou camponeses mais ricos
l.io ocupada em arrendamento servil passaria a ser arrendada com direitos
que haviam conseguido sua liberdade pela comutação ou se haviam indis-
plenos para o arrendatário; estabeleceu-se também que os monopólios e res-
posto com as autoridades.
trições sobre a compra da terra acabariam. No dia seguinte, conselhos mais
O pano de fundo dos acontecimentos de 1381 na Inglaterra nos é
sóbrios predominaram, e, numa segunda reunião, Walworth, o prefeito de
proporcionado pela escassez da mão-de-obra provocada pela Morte Negra
londres, feriu morta Imente Tyler, o que deu motivo ao episódio extraordi-
de 1340 e pela Guerra dos Cem Anos com os franceses, que já durava, com
nário em que o jovem rei se uniu aos rebeldes e prometeu tomar o lugar de
intervalos, quarenta anos. A escassez de mão-de-obra teve como conse-
lvler e ser o seu I íder. Foi um gesto muito oportuno, pois os rebeldes
qüência a redução, ou reversão, do processo de trocar serviços por paga-
(corno ocorre com freqüência em levantes camponeses) não tinham quei-
mentos em dinheiro, que os senhores haviam considerado vantajoso quan-
xas do rei e receberam bem a sua oferta. Foram, portanto, colhidos numa
do a força de trabalho era abundante e a aquisição do dinheiro era questão
.urnadilha. retiraram-se em direção ao norte, para Clerkenwell; e dispersa-
de importância primordial, mas que, uma vez que o preço do trabalho se
havia elevado no mercado, já não Ihes parecia tão atraente. Essa reversão rarn-se em calma.
Mas as informações circulavam com relativa lentidão, e foi necessário
das políticas de liberalização (expressa mais notavelmente no restritivo
al!Jum tempo para que a má notícia do assassinato de Tyler chegasse aos
Estatuto dos Trabalhadores aprovados pelo Parlamento a partir de 1346)
condados ao norte de Londres. Houve, por isso, tempo para que lhes che-
foi agravada pela imposição de um tributo per capita (em 1380) de um
!FJSse primelro a "boa nova" de que o rei havia liberado todos os servos
xelim, sobre todas as pessoas, nobres, servos ou livres. O imposto, que na-
(! abolido os serviços feudais. Quando essa notícia, levada por cavaleiros
turalmente pesou mais para os camponeses mais pobres, (já então havia
que corriam pelas estradas do interior, chegou às aldeias, estimulou os cam-
surgido uma classe mais rica de camponeses que empregavam o trabalho de
poneses de outros distritos a seguirem o exemplo dos homens de Kent e de
outros) foi a fagulha que ateou a chama da revolta. O levante começou
Essex, Ocorreram levantes na região de East Anglia a 12 de junho (no mes-
com a resistência violenta à coleta do tributo em Essex, onde os aldeões se
mo dia do primeiro encontro de Miles End) e, cinco dias depois, nos con-
amotinaram e mataram os soldados mandados para reprimi-Ias. Em junho,
dados de Cambridge e Hertford. No primeiro, a principal queixa dos cam-
os motins se espalharam por todo o país e, em Kent, rebeldes armados sa-
poneses eram os tributos senhoriais excessivos e, em vinte aldeias, foram
quearam o castelo de Rochester, ocuparam Canterbury e abriram os por-
feitas fogueiras para a queima de documentos pertencentes aos grandes
tões das prisões. Esses habitantes de Kent eram liderados por Wat Tyler,
proprietários de terras impopulares. E, numa antecipação interessante dos
um artesão -urbano, e John 8all, sacerdote e principal ideólogo do movi-
ilc:ontecimentos mais famosos que ocorreriam em França no verão de 1789,
mento, que deu o tom da rebelião, ao perguntar: "Quando Adão cavava e
um algumas aldeias a queima de documentos foi acompanhada de saque e
Eva fiava, onde estavam os nobres?"
dl!struição da própria casa senhorial. E, como em Londres, ataques foram
Os homens de Kent e Essex marcharam sobre Londres em colunas
leitos a funcionários ligados à coleta do odiado imposto per capita, bem
separadas, libertando presos (inclusive o próprio 8all) das prisões de Mar-
como a juízes e advogados. Mais uma vez, porém, como no Grande Terror
shalsea e King's Bench, em Blackheath. "Houve então", como nos conta a
de 1789, no condado de Cambridge onde, como registra Oman, "eram
Cambridge Medieval History, "uma evidente traição no próprio governo da
comuns todas as formas de violência", os camponeses foram notavelmente
cidade". E, com esse apoio, os rebeldes entraram na capital em dois pon-
moderados na sua distribuição de justiça, e só se tem conhecimento seguro
tos, abriram mais prisões e saquearam e destrufrarn propriedades perten-

I, Essa exposição, e o que a segue, baseia-se em grande parte na Cambridge medieval


berger, "The english peasant revolt of 1381", in H. Landsberger (org.1 Rural revott.
t.ist orv, vol. 7; apud B. e H. Landsberger, in H. Landsberger (orq.l , pp. 96-8.
p.127-8.

l .___._ ..- - -'.- ----


I
42 Ideologia e Protesto Popular , Camponeses 43

da ocorrência de duas mortes (uma, de Edmund Waller, um rico juiz).? A


rebelião difundiu-se para o Norte, pelas cidades e aldeias do condado de
York. Mas a perda dos principais Iíderes (pois 8all, entre outros, fora no-
vamente preso) deu novo alento ao governo e à nobreza. Em fins de junho
I (,
Negra, que estava no cerne de toda a Rebelião. E voltando rapidamente
ideologia dos camponeses:
experiência do esmagamento
partir da década de 1350 que, combinada
foi (como observou Trevelyan) a sua própria
de suas esperanças pela reação da nobreza a
com a pregação de John Ball, o
padre "louco" de Kent, que os tornou receptivos à noção de que a liber-
à

tudo estava acabado, e a rebelião durara apenas um mês.


dade pessoal e a igualdade de status já não eram uma miragem fugidia mas
Observamos certas semelhanças entre a Revolta Camponesa Inglesa
(em circunstâncias adequadas) uma meta realizável.
e outras rebeliões da época ou de séculos posteriores: a veneração pela
Os camponeses alemães tiveram, em 1525, maiores oportunidades do
pessoa do rei e o ódio pelos seus "maus" conselheiros; a cuidadosa discri-
que os camponeses ingleses de deixar um registro mais fiel dos objetivos
minação na seleção de vítimas (em total contradição com os caprichos
de sua rebelião. O mais importante desses registros foram os Doze Artigos
mais sangrentos de Jacquerie, menos organizada); a destruição de documen-
da Suábia, compostos, em nome dos camponeses do sudoeste e na cidade
tos relativos às obrigações dos camponeses para com seus senhores, tanto.
de Memmingen, por um peleiro entre 27 de fevereiro e 1? de março de
na praça da aldeia como no incêndio da própria casa senhorial. Outras ca-
1525. E mais ainda do que a Rebelião Inglesa, a Guerra Camponesa Alemã
racterísticas, porém, foram pecualiares ao acontecimento e às circunstân-
nasceu de uma profunda controvérsia religiosa - a Reforma - precipitada
cias das quais nasceu a Rebelião. Uma delas foi o imposto per capita que,
pelas famosas Teses de Lutero, de meia dúzia de anos antes. Por isso o mo-
ao contrário do que aconteceu em outros levantes camponeses da época,
vimento refletiu, inevitavelmente, a exigência de uma maior liberdade den-
uniu aldeões e citadinos numa causa comum. Isso é evidente pela composi-
tro da Igreja que, na maioria dos manifestos camponeses, surgiu lado a lado
ção dos rebeldes e pela conivência ativa de cidadãos bem colocados em
COIIl a reivindicação da abolição da servidão e dos serviços e tributos feu-
Londres, que favoreceram sua entrada na cidade a 11 de junho. As relações
entre os londrinos e os habitantes de Essex - onde a principal queixa era a
servidão - eram particularmente próximas: um relatório preparado pelos
t doli~, mais onerosos. E, também inevitavelmente,
dill~t,:.·i•• t: tll !ldlli/'II,:.To dos exércitos camponeses
um papel importante
coube a pastores que de-
na

I
VlolIII"1101iml'il 'lI'::i•• a l.utcro, ou a seus seguidores mais militantes. De fato,
xerifes de Middlesex mostra que dois açougueiros londrinos (entre outros)
" IIlIeI"" d.1 IlPI,lIli/a\::i(\ r:'llllpOllCSiJ foi formado pelas Uniões Cristãs que,
vinham, desde 30 de maio, viajando pelo interior, transmitindo o apelo às
1111111" lI,,:," II'It"O~,,"III:IIII: plovilll.:iLlI, reuniam as numerosas irmandades ou
armas: "A Londres/". "Se esses londrinos", escreve um historiador dos
,1",111\:,1:,ti" t:1I~1111~:, plOll~~;Wlllt!S, nascidas na esteira da Reforma luterana.
acontecimentos, "não criaram a revolta em Essex, pelo menos organiza-
I ~sa~ lIIliiit!s 111111,,'11 o qllúdl uplo objetivo de recrutar novos membros, apre-
rarn-na, dirigiram-na

poneses, que formavam


e deram-lhe o objetivo preciso que seu ódio escolhe-
ra"." E, como já se tornou bastante evidente, não podiam os próprios cam-
as tropas de choque da rebelião, ser classificados
t ,;t~IlIJI uma trcute única contra iJ nobreza, realizar operações militares e co-
locar em prática as reformas desejadas. No conjunto, as uniões haviam con-
scquido arr cqirnentar. um mês após o início do movimento, nada menos de
como um único grupo ou classe. Entre os participantes estavam servos, co-
:mo.ooo partidários armados, e isto apenas na região sudoeste da Alemanha.
mo os de Essex, cuja principal reivindicação era a abolição de sua condição Além disso, havia grupos menores de rebeldes, surgindo espontaneamente
de vilões. Em outros lugares, o principal apoio era dado pelos ex-vilões que
sem a orientação dos pastores luteranos, que atraíam ou criavam seus pró-
haviam conseguido a liberdade pela comutação de seus serviços, mas tive-
prios líderes locais - artesãos, comerciantes, o clero menor etc. - para
ram seus salários limitados pelos Estatutos dos Trabalhadores; havia, ainda,
que Ihes dessem coesão, redigissem suas exigências e os ajudassem a definir
os camponeses mais ricos, cuja principal reclamação era a de que os Esta- I
mais claramente a sua ideologia de protesto."
tutos não só continham os salários, como também favoreciam aos senho- A Guerra Camponesa Alemã teve, porém, origens que remontavam a
res, limitando a mobilidade da mão-de-obra que desejavam contratar. Mas J
I: muito antes do desafio luterano. Foi a última de uma longa série de "conspi-
a questão central, que obscurecia todas as outras, era a própria servidão. rações" camponesas cuja origem comum estava no aumento da exploração
Era a determinação dos senhores - e do governo que Ihes protegia os inte- teuda I que, como na Inglaterra, foi uma característica da época. Nas pro-
resses - de tornar os servos ainda mais dependentes deles, depois da Morte

~ Henry Cohn, "The peasantry of Swabia, 1525". in Janos Bak (org.) The german
7 Sir Charles Oman, The great revott: apud B. e H. Landsberger, p. 98.
peesent war, número especial do Journal of Peasant Studies, 3, outubro de 1975,
8 C. Pe ti t-Du taill is, "Introdução" aLe soutêvement des travailleurs d'Angleterre en
pp.12·13.
1381, Paris, 1898, p. Ixxii; apud B. e H. Landsberger, p. 123.

11-
l..... .__ --- 1-
44 Ideologia e Protesto Popular Camponeses 45

priedades da Suábia, na Floresta Negra e na Alsácia Superior, regiões que tinha de ser destruída. Mas o movimento foi traído, e o Bundschuh, domi-
se tornaram centros da revolta camponesa, a servidão era imposta com nado; e tanto o imperador como os príncipes, alarmados, exigiram a puni-
maior rigor ou (como também na Inglaterra um século antes) fora reintro- ção exemplar dos participantes e cúmplices. Mas Joss Fritz conseguiu enga-
duzida em lugares onde estava em decl ínio, o direito de arrendamento ha- nar seus perseguidores e organizou um novo Bundschuh em Breisgau, no
via sido reduzido, os tributos feudais tinham sido aumentados em reação ao Reno, em 1513. Dessa vez, ampliou seu programa, tornando-o atraente
aumento dos preços nas cidades, e o acesso às terras comuns fora limitado. para círculos mais amplos, tanto na cidade como no campo. Mas o plano
Além disso, é significativo que essas áreas de revolta se situassem perto de foi novamente traído, e mais uma vez, Joss fugiu e organizou uma terceira
cidades e fossem áreas onde as relações entre a cidade e o campo eram conspiração - um outro Bundschuh - em 1517, para ser outra vez traído.
excepcionalmente íntimas, tendo o sudoeste, em particular, experimenta- Em Württemberg, um movimento semelhante, conhecido como Armer
do um crescimento rápido de população. E isso, por sua vez, aguçara as di- Konrad (Pobre Conrad, um apelido camponês) e envolvendo citadinos e
ferenças sociais nas aldeias, melhorando a situação do camponês mais abas- aldeões, teve destino semelhante em 1514.
tado e forçando o camponês médio, e o de pequena gleba, à pauperização.
A Guerra Camponesa da década seguinte aprendeu as lições desses
Em 1476, ocorreu a primeira desta série de "conspirações" campone- dois tipos de movimentos. De um lado, a sociedade secreta, com o risco
sas, no Bispado de Würzburg, centro notório pelo governo ineficiente e re- constante de ser traída por um dos participantes, foi abandonada em favor
pressivo, onde, sob a influência de um jovem pastor músico que se transfor- do movimento de massa de camponeses com Iíderes eleitos ou nomeados.
mou em pregador, conhecido como "Hans, o Flautista", o movimento te- De outro, o movimento regional limitado foi substituído por um raio de
ve a princípio um caráter religioso-ascético e, inspirado pela pregação de operações mais amplo. E, naturalmente, em 1525 havia surgido o fenômeno
Hans, atraiu multidões de 40.000 camponeses e mais ao santuário da Vir- de Martinho Lutero que, muito para seu alarma e desgosto, foi adotado
gem em N iklashausen. Mas Hans, que tinha outros objetivos em mente, ~: como conspiração e Iíder-em-chefe pelos camponeses rebeldes.
associou-se logo a dois cavaleiros, Kunz de Thurnfeld e seu filho Michael, e,
O levante começou em principias de fevereiro de 1525 na Floresta
com sua ajuda, transformou os pios e devotos peregrinos camponeses numa
Negra, perto de Freiburg. Em princípios de março se havia estendido pela
força de insurgentes armados, cujo objetivo deveria ser capturar o castelo
maior parte da Suábia, da Francônia e da Turíngia, chegando até o sul, ao
do bispo de Würzburg. Dos 34.000 homens armados que atenderam ao
Tirol, e, a leste, à Caríntia. Enquanto isso, um exército de 300 a 400.000
apelo do Flautista, mais da metade depôs as armas e se dispersou pacifica-
rebeldes, baseado em seis acampamentos armados, operava na Alta Suábia,
mente quando o bispo, surgindo com uma força armada, prometeu refor-
apenas. As cidades também participavam, e foi na cidade de Memmingen,
mas. Os outros foram mandados embora pouco depois, deixando Hans pre-
em Allgau que (como dissemos) os Doze Artigos foram proclamados em
so. Mais tarde, ele foi queimado na fogueira.
nome de todos os camponeses da Suábia, reunidos no Alto Allqàu, Segui-
O levante seguinte de certo relevo foi altamente organizado e ocor- ram-se outras rebeliões e, em meados de abril, a guerra varreu uma área
reu em 1502. Conhecido como o Bundschuh (ou União dos Sapateiros). equivalente a dois terços de toda a Alemanha.
seguiu-se a outros levantes mais limitados ocorridos nos 70 anos anteriores, Os Doze Artigos da Suábia que, mais do que qualquer outro, tornou-
e que tiveram o mesmo nome. Essas primeiras revoltas do Bundschuh haviam se o manifesto oficial da rebelião, não era um documento particularmente
se relacionado, em grande parte, com a resistência aos impostos. Mas a de militante. Começava (como outros) com uma afirmação do direito de liber-
1502 encontrou um organizador modelar num jovem servo (o que era um dade dentro da Igreja - e, nesse caso, tomando a forma da exigência de
fenômeno raro na época), Joss (Joseph) Fritz, de Untergrombach, próxi- que os pastores deveriam ser eleitos livremente pelo seu rebanho. Seguiam-
mo de Bruhsal. Joss combinou com êxito os fortes sentimentos reliqiosos se outras exigências no sentido de restringir o funcionamento do feudalis-
de seus companheiros camponeses com a compreensão da necessidade de mo, como a limitação do pagamento do dízimo, a abolição da servidão, o
um ataque frontal ao próprio feudalismo. Seu programa era abolir, em restabelecimento do direito tradicional do camponês de caçar e cortar ma-
nome da "divina justiça", toda opressão e senhorio, acabar com a servidão, deira na floresta, a abolição do tributo por morte do feudatário, a limita-
dissolver abadias e mosteiros e pôr fim para sempre ao pagamento de arren- ção dos serviços a serem prestados, o pagamento de arrendamentos justos,
damentos, dízimos, impostos per capíta e outros tributos. As águas, os o restabelecimento da justiça equitativa pelos tribunais e o respeito aos
prados e florestas seriam comuns a todos. Seu tema central era: "Apenas direitos comuns tradicionais sobre o campo e a floresta. Assim, ao mesmo
a Justiça de Deus", o que significa, é claro, que a ordem feudal existente tempo em que exigiam sua liberdade pessoal, os camponeses mostravam

l _ _ L..-I __
46 Ideologia e Protesto Popular Camponeses 47

hostilidade antes aos excessos do feudalismo do que ao sistema feudal 1()SOS tributos e serviços e assegurar o respeito às velhas tradições, bem co-
em si.IO mo a administração imparcial da justiça. (Havia nisso, portanto, um pouco
Outros rnan.testos foram, com freqüência, mais militantes em seu da atitude avançada e um pouco da atitude retrógrada). Havia outros, é
tom; e isso, como Enqelssuçer e, dependeu da presença nos acampamentos claro, como as "massas vagabundas" de que fala Engels, que se preocupa-
de um núcleo de camponeses revolucionários que subscrevessem o progra- vam mais com os salários do que com serviços ou tributos, e mais talvez
ma mais radical de Thomas Münzer, ex-disclpulo de Lutero e agora seu com o saque dos mosteiros e castelos cercados do que com a libertação
implacável adversário. I 1 Mas esses camponeses eram uma pequena minoria. para si mesmos ou para quem quer que fosse. Além disso, havia a pequena
A grande massa camponesa, tendo expresso suas reivindicações, voltava minoria militante de seguidores de Thomas Münzer que pretendia criar
para casa, deixando aos seus porta-vozes a tarefa de negociar com magistra- Lima comunidade cooperativa ou uma comunidade na posse dos bens, e
dos e príncipes. Engels, embora reconhecendo que essa era urna debilidade cujos olhos, portanto, voltavam-se para meta muito mais alta do que a sim-
séria, também acreditava que outro elemento debilitante era construído ples derrubada do feudalismo. E, à margem da Guerra Camponesa, estavam
pelo número considerável de citadinos livres e aldeões desempregados os cavaleiros e outros nobres menores, que já haviam travado a sua guerra
("massas vagabundas de proletariado de baixa categoria") quese infiltravam ("a Guerra dos Cavaleiros") contra a nobreza feudal, e se colocavam com
nos acampamentos dos rebeldes e mostravam mais disposição de falar do freqüência ao lado dos camponeses, bem como os burgueses das cidades,
que de lutar. Isso, insiste ele, desmoralizou seriamente os carnponeses.t? muitos em rebelião aberta, cujo antifeudalismo provavelmente se limitava
E nquanto isso, os príncipes, que de in ício reagiram lentamente, ha- à busca de mercados livres e instituições efetivas.
viam - com a bênção de Lutero - mobilizado seus exércitos e foram aos Assim, a Guerra Camponesa Alemã, em termos de história desempe-
poucos acabando com os rebeldes que ainda estavam em ação, região por nhou dois papéis. Como é evidente, teve um papel significativo na história
região, sem encontrar nenhuma oposição em grande escala, ou decidida. dos movimentos camponeses alemães e no desenvolvimento da ideologia
Thomas Münzer, que tinha apenas 28 anos, foi preso na Turíngia em maio •• camponesa que tinha corno centro a liberdade pessoal. Além disso, ela po-
e torturado até a morte pelos nobres que o capturaram. Os últimos cho- de ser vista - como o foi por Engels e alguns modernos historiadores ale-
ques ocorreram na Suábia e na Francônia, em fins de julho e, com eles, os mães - como parte da crise econômica, religiosa e social da Reforma, que
últimos grupos camponeses renderam-se, encerrando-se a Guerra Campone- marcou uma etapa importante no longo período de transição do feudalis-
sa seis meses depois de iniciada. mo para o capitalismo.' J Mas essa foi uma fase relativamente inicial, pois
Finalmente, como interpretamos a ideologia dos heterogêneos exér- o capitalismo - na época o único sucessor possível do feudalismo - só se
citos dessa Guerra Camponesa? Não era, o que não é de surpreender, tão estabeleceu firmemente na Alemanha mais de dois séculos depois. E, na-
disparatada quanto a composição desses exércitos. De um lado havia a quele momento, a burguesia, mesmo os que estavam mais fortemente en-
grande massa de camponeses, pequenos proprietários em sua maioria, que trincheirados em suas cidades livres, nada ganharam com a guerra: a velha
não estavam preparados para lutar fora de seus distritos, mas estavam, sem nobreza feudal e o clero perderam muitas propriedades, e os camponeses,
dúvida, ansiosos - fosse pela luta ou pela negociação - para conquistar a apesar de todas as suas lutas, nada obtiveram pois as concessões prometidas
liberdade pessoal livrando-se da servidão, conter os senhores que resolviam no calor da batalha eram esquecidas uma vez passada a crise. Viram-se de
seus problemas financeiros às expensas do camponês, aumentando os one- novo submetidos ao sistema de servidão de que haviam tentado se libertar.
Só os príncipes (eis como Engels conclui sua exposição) foram os verdadei-
ros vitoriosos, tendo, com êxito - e com a ajuda de Lutero =, saldado suas
contas com o velho clero não-reformado, os magnatas feudais e os campo-
10 Cohn, Journal of Peasant Studies, 3, pp. 14-18.
11 F. Engels, "The peasant war in Gerrnanv", in F. Engels The German rev otutions, neses rebeldes que, para alcançar sua liberdade, tiveram de esperar outros
Chicago, 1967. pp. 77-79_ [Ed. bras.: As guerras camponesas na Alemanha, Grijalbo, dois séculos, ou mais.!"
São Paulo, 1977)
12 Engels, p. 80. Esse ponto é questionado por outros historiadores que, ampliando a
área de discussão, mostram o exemplo da China moderna, onde os exércitos de Mao
foram recrutados em grande parte entre os "desenraizados" (ver, por exemplo, 13 Ver várias colaborações ao número sobre Guerra Camponesa Alemã de Journal
Edward F riedman, em Journal of Peasanc Studies, número especial sobre a Guerra of Peasant Studies, vol. 3, particularmente R. Wohlfeil, E. Engelberg e G. Vogler,
Camponesa Alemã, vol. 3, pp. 121-21. Há, porém, muitas evidências de outras revolu- pp.98-116.
ções que apóiam a interpretação de Engels. 14 E ngels, pp. 114-17.

l ___ 1-
Camponeses 49

Portanto, não é de surpreender que, sob a monarquia absoluta tanto


como sob os reis medievais, os camponeses não-emancipados continuassem
a desafiar a ambição ou a brutalidade de seus senhores e, em repetidas
2 oportunidades, a exigir a suspensão de todas as restrições pessoais. Mas o
elemento mais comum da revolta camponesa na "idade do absolutismo"
SOB A MONARQUIA ABSOLUTA foi a rejeição aos impostos devidos ao Estado ou ao monarca e não ao
pagamento de tributos e obrigações ao senhor, ou mesmo à prestação de
serviços pessoais a este. A razão não é difícil de identificar: o fim das obri-
gações devidas ao senhor era uma reivindicação constante que acabaria
sendo solucionada pela rebelião camponesa, ao passo que a época em que
Luís XIV construiu Versalhes, e outros governantes construrrarn Sans
Souci, Schonbrunn e São Petersburgo, foi também uma época de guerras
Na época do que é habitualmente chamado de Ancien Régime na Europa, onerosas entre os grandes Estados da Europa, com o dispêndio de somas
quando a monarquia absoluta, numa ou noutra de suas várias formas, era enormes para a manutenção de exércitos em campanha e da expansão da
a forma de governo dominante, o feudalismo discutido no capitulo anterior máquina estatal para maior glória do monarca absoluto, ou "déspota escla-
havia sofrido várias modificações. Na Europa ocidental, estava desapare- recido". França, Prússia, Áustria e Rússia, sob esse aspecto, tiveram uma
cendo, no sentido de que os arrendamentos militares eram uma coisa do experiência comum e, em quase todos esses parses (a Prússia foi a grande
passado e a servidão já havia desaparecido completamente na Inglaterra e exceção), houve revoltas camponesas em grande escala, freqüentemente
diminuta rapidamente na França, na Alemanha ocidental e na Espanha. apoiadas e por vezes lideradas por elementos descontentes do clero ou
Na Europa oriental, porém, a servidão estava longe de diminuir - pelo
" aristocracia.
contrário, estava em ascensão, particularmente na Rússia, onde esse sis- Para ilustrar esse ponto, valer-nos-emos de exemplos da Rússia, Áus-
tema se difundiu rapidamente na época de Catarina 11, à medida que o tria e França, e procuraremos ver não só o que os camponeses fizeram, mas
Império se expandia para o sul e o oeste, com as novas conquistas que se (na medida em que nossas fontes d (spares nos permitam) também o que
fizeram aos poloneses e turcos. Mas, em todos os parses em que a servidão Ihes passava pela cabeça. Na Rússia, onde o moderno Estado-nação apenas
sobrevivia e onde o velho sistema feudal de ocupação da terra persistia, começava a despontar, após um longo perr'odo de maus governos e suces-
mesmo sob forma modificada, o camponês continuou vitima da indigni- sões disputadas, sob os Romanov, em princípios do século XVII, essas lutas
dade de pagar uma multiplicidade de serviços e tributos - mais do que internas foram muito mais amargas e violentas do que em outros lugares.
nunca, aliás, durante a segunda "reação feudal" de fins do século XVIII - A revolta liderada por Stepan (Stenka) Razin, a primeira das duas grandes
e a sofrer a humilhação suplementar de ser tratado e desprezado como um rebeliões da época, nasceu diretamente dos esforços dos dois primeiros
ser inferior. No século XVIII - sob a monarquia absoluta ou sob o governo czares Romanov, Mikhail (1613:45) e seu filho Aleksei (1645-76), para
de prrncipes - os camponeses de Hildesheim, na Alemanha (é o que nos criar um Estado unitário tendo Moscou como centro, sob condições de
diz Jerome Blum) tinham nada menos de 138 obrigações diferentes para guerras permanentes com seus vizinhos. A tentativa exigiu a instituição de
com seu senhor, ao passo que, na Livônia, 356 dias de trabalho eram dedi- impostos onerosos, a restrição de liberdades tradicionais (inclusive o direi-
cados aos senhores pelas farnllias camponesas. Até mesmo na França, rela- to que tinham os camponeses de uma considerável margem de liberdade
tivamente emancipada, onde os camponeses tinham, em geral, melhor sorte pessoal), a limitação das pilhagens habitualmente feitas pelos bandos de
do que em outros parses, Turgot, quando era intendente em Limoges, ad- cossacos, para não fa larmos da reorganização da Igreja Ortodoxa às expen-
mitiu que seus camponeses pagavam de 50 a 60% de sua renda bruta anual sas dos roskols (ou "velhos crentes") e da elevação a altos cargos de ho-
I
em tributos ao rei e aos seus seiçneurs.t mens "novos", recrutados fora das fileiras da velha nobreza dos boiardos,
I o que levou a roubos e depredações escandalosas das verbas públicas, irri-
tando a opinião conservadora e impondo miséria ainda maior aos campo-
neses já em dificuldades. Assim, era natural que esses elementos prejudi-
cados e ofendidos tivessem, mais cedo ou mais tarde, um papel na revolta
1 J. Blum, The end ot the old arder in rural Europe , Princeton, 1978, pp. 50, 71. de Stenka Razin, deflagrada no vale do Volga em 1667. Stenka pertencia

48

l _ - - _ .. _----------------------------
50 Ideologia e Protesto Popular Camponeses 51

à classe superior dos Velhos Cossacos, estabelecidos no Don, e foi deste c da aspiração mais positiva de vê-lo terminar - magicamente. por assim
meio que saíram os seus primeiros recrutas. Mas o movimento cresceu dizer, aceitando a mão que Stenka estendia para dar-Ihes a llbertação.?
como bola de neve. com a adesão de servos fugidos. roskols sujeitos à per- A rebelião de Emelyan Pugachev. um soldado cossaco analfabeto,
seguição governamental. artesãos urbanos. pequenos comerciantes e solda- que irrompeu em setembro de 1773 e terminou em dezembro de 1774,
dos livres. Foi um exército heterogêneo. assim formado. que surgiu alguns enquadra-se na mesma tradição. Também começou entre cossacos, cujas
meses depois. ante a cidade-fortaleza do sul. Astrakhan. por ele finalmente liberdades haviam sido ainda mais reduzidas; teve a mesma qualidade de
conquistada e transformada numa república cossaca. Já então (cerca de bola de neve e o mesmo apelo milenário generalizado. prometendo justiça
1669) Stenka começou a surgir como o defensor dos oprimidos e. em se- para os velhos crentes e liberdade para a nação Bashkir, a leste dos Urais,
tembro de 1670. ao avançar para o norte para tomar Nizhny-Novogorod. e provocou uma revolta camponesa (inclusive, desta vez, dos camponeses
Tambov e Penza, ele usou essas cidades para lançar uma grande revolta operários nas fundições do Ural). Pugachev, como Razin, tendo tomado
camponesa em toda a área delimitada pela volta que faz o médio Volga. algumas fortalezas e marchado para o norte e oeste para o Volta, chefiava
Nas aldeias, os camponeses se levantaram, derrubaram os senhores. saquea- uma força mista de cossacos, camponeses, velhos crentes, bandidos e vaga-
ram a terra. destru íram propriedades. constituindo grupos errantes que bundos que marchou na direção de Moscou, a capital tradicional (embora
muitas vezes se uniram aos exércitos de Stenka em seu avanço para o norte então substituída como capital, desde a época de Pedr o, por São Peters-
e oeste, em direção a Moscou. burgo). Ambos os movimentos provocaram pânico semelhante entre os
governantes e forçaram-nos a - tardiamente - reunir suas forças e man-
Enquanto isso. Samara e Saratov também cairarn. mas Simbirsk recu-
dar um exército para afastar os rebeldes do caminho da capital e derrotá-
sou-se a abrir suas portas. e Stenka foi derrotado pelo prmcipe Baryatinsky
los no campo. Em ambos os casos, o h'der, tendo sido adorado quase como
com um exército de 70.000 soldados czaristas em duas sangrentas batalhas
um deus, foi aprisionado pelos seus próprios seguidores, amarrado com
em outubro de 1670, e obrigado a retirar-se para sua base original nos pân-
segurança e entregue às autoridades para execução, quando a sua mortali-
tanos de Don, A rebelião continuou de maneira esporádica em meia dúzia
dade se tornou evidente e seu valor como totem foi destruído.
de distritos até o inicio de 1671, Mas a estrela de Razin começou a apagar-
Mas houve duas diferenças importantes. Onde Stenka Razin se intitu-
se e seu valor totêmico reduziu-se. Os cossacos ou cherkassk voltaram-se
lara republicano para conquistar apoio dos cossacos e se satisfizera com o
contra ele. prenderam-no em seu Quartel numa ilha e, em abril, mandaram-
titulo de gosudar, que podia ser aplicado igualmente a um alto dignatário
no preso para Moscou, onde foi enforcado em junho de 1671.
como o Patriarca Nikon, Pugachev pretendia - como outros tantos "Falsos
Ouais eram os objetivos da rebelião de Stenka Razin e dos campo- Dimitris" na Época das Agitações antes dele - ser o "verdadeiro czar" -
neses rebelados, em particular? O próprio Razin parece ter ampliado seus nesse caso. Pedra 11, que havia sido assassinado pela guarda palaciana com
objetivos e radicalizado suas exigências â medida que a rebelião avançava a conivência de Catarina, sua mulher e sucessora. Posando de "protetor
e novos grupos a ela aderiam. Seu programa final inclui'a a destruição da do povo" (de acordo com a reputação de Pedro entre os camponeses, co-
grande nobreza hereditária, dos governadores, da burocracia e da máquina mo o "czar libertador"}." que havia escapado milagrosamente às balas
moscovita do Estado que funcionava em toda a Rússia. Quanto ao czar, de seus assassinos, Pugachev conquistou os cossacos do distrito de Yaik nos
apesar de suas ocasionais pretensões republicanas, Stenka sempre expres- Urais do Sul e prometeu restabelecer suas liberdades tradicionais, em rela-
sou uma imorredoura lealdade e respeito a ele. Também parece ter plane- ção às quais estavam em revolta aberta. Marchou para leste, onde fez pro-
jado, sob um czar patriarcal, uma espécie de democracia de pequenos pro- messas semelhantes de liberdade ao povo Bashkir e aos velhos crentes, e su-
prietários da qual naturalmente fariam parte os camponeses, liberados da biu até o Volga para levar uma mensagem semelhante à de Razin em 1670
servidão e de suas pelas feudais. Assim, as metas de Razin eram revolucio-
nárias. mas também certamente utópicas, pois ele não dispunha de um apa-
rato estatal alternativo e não tinha planos de criá-Ia para substituir o antigo.
E qual o papel dos camponeses nesse movimento? Teriam sido cha- 2 Roland Mousnier, Peesent uprisings in seventeentb-centurv Frence, Russia and
mados a desempenhar qualq uer papel ativo em sua própria libertação? China (tradução inglesa de Fureurs aevssnnesi, Londres, 1971, pp. 196-229.
• Durante seu breve reinado, os decretos de Pedro de fevereiro de 1762 haviam
Muito pouco, à parte a matança de seus senhores, como já vi mos. E não há
trunsf or rnado os servos dos mosteiros em camponeses do Estado, tomado as terras da I
provas (pelo menos segundo a exposição de Roland Mousnier) de que tives- lqreja, suspenso temporariamente a campanha contra os velhos crentes e reduzido 'IIi
I
sem Qualquer ideologia clara, além de seu ódio pelo sistema que os oprimia o preço do sal.

----'-------_ .. _------

l _
52 Ideologia e Protesto Popular Camponeses 53

aos servos, (que representavam metade da população) e aos camponeses do E. mais especificamente. também se informava do Volga que os campone-
Estado, ao longo da área média do rio. Mas - e essa foi a segunda diferen- ses acreditavam "que se fosse possível acabar com todos os pomeshchiki,
ça - ele também liberou os grupos camponeses com maior consciência de então haveria liberdade para todos (... ) e não haveria impostos per capita ou
classe - os camponeses-operários das fábricas e minas dos Urais.? outros impostos de recrutamento [ou) vendas do Estado [monopólios] ".5
Como Razin, o movimento de Pugachev não tinha um programa Esses relatórios, apresentados por Philip Longworth, sugerem que os
revolucionário coerente, sendo constituido de uma combinação de elemen- camponeses russos de 1774 partilhavam da violência punitiva dasjacqueries
tos freqüentemente di'spares, Mas formulou várias metas razoavelmente espontâneas de seus antepassados deum século antes; e também que, dada
bem-definidas, correspondendo aos interesses da multiplicidade de grupos a intrusão dramática na aldeia dos homens de Pugachev, suas metas haviam
que se aglutinaram em torno de sua bandeira. Incluíam (como disse o líder sido ampliadas e definidas com mais precisão. Não obstante, foram os carn-
em várias fases da sua rebelião) o envio de Catarina para um convento, a poneses-operários que. começaram a tomar a iniciativa através de seus pró-
suspensão de impostos opressivos e outros ônus para o povo, a expropria- prios I (deres (embora transitoriamente) e mostraram ind {cios de uma ideo-
ção dos pomeshchiki (a nobreza rural, que era a bête noire dos campone- logia que chegava a lembrar a sofisticação relativa dos camponeses ingleses
ses), a pu nição dos boiardos e funcionários pela sua "hospitalidade" (um de 1381.
toque de ironia), o restabelecimento dos velhos costumes, inclusive a fé Fora da Rússia, as mais firmes rebeliões camponesas no sul e leste
dos velhos crentes e a ampliação das liberdades dos cossacos ao povo da Europa foram nessa época, as que ocorreram nos domínios austríacos.
em geral. Esse último ponto era o mais positivo de todos e muito seme- Ao contrário do exemplo russo, foram iniciadas pelos próprios camponeses
lhante a uma das reivindicações de Razin: substituir o governo corrupto e e eclodiram em reação à promessa de reforma agrária feita de cima, e não
as instituições de Catarina II por uma democracia ao estilo dos cossacos, às promessas de um hder de fora, num momento de intensa opressão e
o que, presumidamente, representaria a abolição da servidão e do trabalho crise polrtica. De maneira geral, elas se dividem em dois grupos principais:
forçado na indústria. as que precederam (ou prenunciaram) as históricas reformas agrárias de
Podemos supor que esse último ponto correspondesse de perto aos José II e as que se Ihes seguiram. Entre as primeiras está a rebelião campo-
desejos dos próprios camponeses: suas freqüentes explosões de ódio contra nesa na Silésia dirigida contra o Robot, ou trabalho compulsório, na época
os detestados pomeshchiki mostra isso, sem qualquer dúvida. ~ ainda mais da imperatriz Maria Teresa, em 1767. Quatro anos depois, a primeira das
provável que os camponeses-operários contratados que trabalhavam nas patentes de Robot (decretos) foi aplicada à Silésia. Mas não havia ainda
fundições e minas dos Urais acreditassem que a liberdade podia ser conse- sido aplicada a outros lugares, embora já circulassem rumores de que José,
guida pela luta: nas décadas anteriores a essa rebelião houve numerosas que governava juntamente com sua mãe desde 1765, planejava uma carta
greves de protesto contra as condições de quase escravidão impostas por geral de "liberdades" para os camponeses. Alimentado por esse rumor,
N. Dernidov e outros patrões ambiciosos. Parece bastante lógico que, quan- ocorreu um levante na Boêmia em 1775, quando 15.000 camponeses mar-
do os representantes de Pugachev leram seu manifesto de "liberdade" na charam sobre Praga. Foi sem dúvida mais do que uma coincidência (e pro-
zona fabril do Sul dos Urais, os trabalhadores que ouviram (é o que diz um va da consideração que os camponeses tinham por José) o fato de terem
relatório oficial) tenham "gritado, 'Contente em servi-lo, ao Czar '. e 500 escolhido para I{der um jovem com uma grande semelhança com o próprio
homens se reuniram como voluntários para servir a Puqachev"." Em outros imperador. Eles exigiam que os funcionários e os senhores das terras colo.
lugares, nas aldeias a leste do Volga (continua o relatório) os camponeses cassem imediatamente em vigor a carta que, erroneamente, acreditavam já
se reuniram e gritaram que "estava chegando o momento em que suplan- ter sido proclamada em Viena. Assim, foi antes uma manifestação de apoio,
tariam as autoridades e nada teriam a temer, não importa o que fizessem". e não de oposição, ao governo imperial, e, para recompensar os campone-
ses pela sua confiança, a corvéia padronizada foi então aplicada à Boêmia,
como havia sido antes aplicada à Silésia, enquanto Maria Teresa ordenava
que o velho Robot manual fosse comutado por um pagamento em dinheiro
3 Para boas exposições, ver M. Raeft, "Pugachev's Rebellion", in F.R. Forster e J.P. em suas propriedades privadas.
Greene (orçs.). Pre-conditions of revotution in early modem Europe , Baltimore.
1970; R. Portal, "La Révolte de Pouqachev", Études d'histoire modeme et contem-
poreine, vol. 1. 1947; e P. Longworth. "The Pugachev Revolt: The Last Great Cossack
Peasant Rising". in H. Landsberger lorq.l , Rural protesto particularmente pp. 195-220.
4 Ver Longworth. p. 196; e também R. Portal. L'Oural au XVII,e siécle, Paris. 1950. 5 Longworth. pp. 197.226.

i.. ~

l _ mOo I
54 Ideologia e Protesto Popular Camponeses 55

Maria Teresa era apenas uma reformadora limitada, mas quando ela devia-se ao fato de que desenvolvera-se, entre os camponeses, uma dife-
morreu (em 1780) José, que tinha a peculiaridade entre os déspotas - rença social maior do que na Rússia ou nos domínios austrracos. No alto
"benevolentes" ou não - de desejar sinceramente melhorar a sorte dos da escala havia surgido um campesinato ao estilo dos kulsks, que se distin-
camponeses, começou a colocar seus planos em prática. Estes tomaram a guia dos demais por sua maior riqueza e pela capacidade de vender a preços
forma de três patentes. A primeira, a Strafpatent, limitava os direitos que mais altos no mercado. Nas escalas intermediárias, estava a massa dos pe-
tinha o senhor de punir seu camponês; a segunda, e a mais importante, a quenos proprietários (os laboureurs) muitos dos quais não tinham terras
Patente de Emancipação, abolia a servidão pessoal, dando ao camponês suficientes para produzir para o mercado. No ponto mais baixo, estavam os
o direito de deixar a propriedade e de casar-se com quem quisesse (não métayers (meeiros) que eram geralmente pobres, com freqüência tão po-
abolia totalmente os serviços, embora restringisse sua extensão); e a tercei- bres quanto os camponeses sem terras cuja sobrevivência dependia do tra-
ra, a Patente da Tributação, ordenava a substituição corvéia in natura por balho para outros como journa/iers e que ocupavam a mais baixa posição
um pagamento em dinheiro, mas só se aplicava aos camponeses em terras na aldeia. Os interesses desses grupos, naturalmente, variavam: os campone-
"rústicas" (ou que não eram domínio do senhor) e aos que pagavam um ses mais abastados (os coqs de vil/age) eram hostis aos direitos coletivos
imposto imobiliário de pelo menos dois fio rins por ano, excluindo com tradicionais (como o respigo ou a vaine pâture) que impediam a amplia-
isso cerca da metade da população camponesa. ção de suas propriedades (não obstante, foram contra a divisão das terras
Assim as patentes, tal como foram aplicadas por etapas entre 1781 e comuns, que Ihes eram bastante úteis como pasto acessivel}: os proprietá-
1789, constituíram uma decepção; além disso, houve a usual demora ouro- rios "médios" e pobres eram os mais ardorosos defensores dos direitos
crática na efetivação prática das leis, uma vez que nem os senhores de ter- coletivos, ao passo que os meeiros e os sem terra - ou mesmo os proprie-
ras, nem as autoridades, inseguras de sua posição, se mostraram entusias- tários camponeses mais pobres - tendo fome de terra, teriam recebido
madas com as suas provisões. Em conseqüência disso, ocorreram revoltas, bem uma parte das terras comuns e também, não tendo excedente para
tanto dos camponeses excluídos pela lei como dos que estavam impacien- vender, estavam interessados em baixos preços para os alimentos e (se
tes por dela beneficiar-se. Em 1784 houve uma revolta dos camponeses journa/iers) em que os salários não ficassem muito atrás do preço do pão.
excluldos na Transilvânia (e que tinha, além disso, conotações religiosas Não obstante, havia duas questões em relação às quais a aldeia em geral se
e étnicas) e, em 1786, outra na Morávia. Em 1789, revoltaram-se os cam- unia: a primeira era os impostos elevados que sobrecarregavam a todos e a
poneses austríacos, impacientes com a longa demora. Um protesto mais segunda, a persistência do sistema agrário feudal, com sua proliferação de
desesperado foi provocado pela decisão de José, que enfrentou uma rebe- obrigações e deveres que impedia até mesmo ao mais abastado e mais inde-
lião de seus súditos nobres da Hungria e de outros lugares, de revogar as pendente coq de vil/age sentir que a terra era realmente sua. Assim, como
cláusulas do decreto de Emancipação de 1789, um ano depois de sua apro- já vimos pelos exemplos da Áustria e da Rússia, qualquer uma dessas ques-
vação. E ainda mais desesperado porque muitos dos arrendatários, preven- tões podia levantar os camponeses como um todo e levá-Ios a agir em con-
do o gozo de seus benefícios, haviam vendido sua parelha de bois e natural- junto. Além disso, quando as colheitas eram más e os preços subiam, os
mente se consideravam miseravelmente ludibriados. Seguiu-se urna recusa camponeses mais pobres tendiam a destacar-se das fileiras e a agir sozinhos
generalizada à prestação do Robot. Mas o ânimo dos camponeses, antes contra o accapareur (ou açambarcador) que substituta temporariamente o
estimulado pela esperança de uma vida melhor, fora esmagado, e não se seigneur ou o gabe/eur como o pior amigo de aldeão. 7
seguiu nenhuma revolta aberta." A emancipação tornou-se, portanto, um No século XV II - quando a tributação para custear as guerras de
negócio não-terminado, que só seria concluído com a revolução de 1848. Richelieu e de LUIS XIV foi a questão dominante - o gabe/eur, ou qual-
Na França, sob a monarquia absoluta dos três Lurses. a revolta carn- quer outro tipo de taxateur, tornou-se o alvo principal da violência campo-
ponesa teve uma história mais variada do que na Austria e na Rússia, mas nesa. Roland Mousnier e outros historiadores dedicaram sua atenção a uma
lá, como na Rússia, o ressentimento contra os impostos elevados teve um meia dúzia de movimentos mais importantes: os motins de Bordéus de
papel importante. Acima de tudo, na França, a maior variação da rebelião 1635, os dos croquants em Saintonge e Périgord em 1636-1637, os dos

7 Fontes úteis, no caso, são G. Lefebvre, Études sur Ia révolution française, Paris,
6 E.M. Link, The emancipation ot tbe Austrian peasant 1740-1798, Londres, 1949; 1954, pp. 246-68, e Barrington Maore, Social origins of dictatorship and democracy,
e E. Wangermann, From Joseph 11 to tbe Jacobin Trie!s, Oxford, 1959, passim. Boston, 1966, pp. 70-4.

- - -_._--------------------
56 Ideologia e Protesto Popular
Camponeses 57
vs-nu-pieds da Normandia em 1639 e - após a pausa proporcionada pelas
vorazes.'? Porchnev acrescenta outra observação: a de que, com o movi-
duas F rondas e pelos primeiros anos do reinado pessoal de LUIS XI V - a
mento dos croquants de princrpios do século XV 11, a revolta camponesa
renovação dos motins contra o imposto do sal na Bretanha e em Bordéus.
tornou-se secular perdendo o elemento religioso tão familiar ao século
Os historiadores não são unânimes quanto à significação desses movimen-
ante rio r.1I
tos e chegaram a conclusões diferentes. Assim, o historiador soviético
Boris Porchnev, que fez o estudo mais detalhado de todos os motins até O movimento dos ve-nu-pieds (1639) que tem o seu norne devido aos
1650, insiste em que, embora os camponeses fossem apoiados e, com fre- trabalhadores do sal, descalços, de Avranches e de Coutances, no Oeste da
qüência liderados pelos citadinos ou pela nobreza rural, devem ser tratados Normandia, também foi dirigido contra a gabe/le e teve o seu apoio de
como um movimento especificamente camponês, nascido principalmente massa dos camponeses e trabalhadores do sal, e seus lIderes entre a nobre-
da hostilidade camponesa (muito mais coerente do que a dos nobres dis- za empobrecida e os padres das paróquias. Um destes, Jean Morei, padre
sidentes) para com os impostos exorbitantes e as exações feudais." Roland de Saint-Gervais em Avranches, serviu como o principal publicista do mo-
Mousnier, por sua vez, mais reputado como historiador da administração, vimento e como secretário do apócrifo Jean Nu-Pieds - um nome reminis-
dá maior ênfase à influência "externa", à iniciativa e orientação proporcio-
cente dos Ludds, Swings, Rebeccas, e outros heróis de uma longa tradição
nadas pela cidade e pela aristocracia, reduzindo o papel dos camponeses ao de I(deres anônimos da revolta popular."?
de subserviência e de expectativa dos acontecimentos. Não obstante, admi- Mas havia mais do que impostos em questão nos levantes campone-
te com relutância: "E claro que compreendo que os camponeses eram per- ses dos últimos 25 anos do reino do Rei Sol, com suas guerras, fomes e
feitamente capazes de se rebelarem sozinhos contra o ônus dos impostos. perseguições religiosas. Foi a época da grande insurreição camponesa no
Mas a atividade dos senhores, sob esse aspecto, e especialmente dos senho- Languedoc calvinista, conhecida como a Guerra dos Camisards, a última
res rurais, é irrefutável em muitos cascs".? das guerras religiosas francesas.P Mas havia ainda mais do que isso, por-
Na maior parte desses episódios, o imposto que provocou particular que também estavam em questão as obrigações do camponês para com seu
irritação foi a gabeI/e, ou o imposto sobre o sal, que tinha a peculiaridade senhor, e, pouco depois, em Quercy e Périgord, regiões católicas, os cam-
de ter de ser pago numa certa quantidade fixa de sal, quer se quisesse com- poneses ampliavam seu campo de operações desafiando toda a ordem exis-
prã-lo ou não, e que em certas regiões (os pays de Ia grande gabeI/e) era
tente ao se recusarem a pagar os impostos ao rei, o d (zirno à Igreja, ou a
prestar serviço manual para a manutenção das estradas. O longo reinado de
muito mais oneroso do que em outras. Na década de 1630 foram os cro-
quants - os "camponeses pobres" - que se destacaram no protesto, pri- LUIS XI V terminou com uma explosão final de motins camponeses provo-
cados pela desastrosa colheita e pela fome de 1709, bem como pelas novas
meiro em Bordéus e Agen em 1635, mais tarde em Saintonge e Poitou em
exigências dos coletores de impostos para a Guerra de Sucessão da Espanha.
1636, e em Périgord em 1637. O que pensavam os amotinados é bastante
Depois de 1709 (ou mais exatamente, em torno de meados da déca-
claro pela sua ação violenta contra os gabeleurs e as frases registradas pelas
da de 1720), a rebelião camponesa, tão familiar aos observadores na época
autoridades. Em Angoulême, o lema era "Abaixo a gabeI/e!", e em Agen,
no ano anterior, "Morte aos gabeleursl " e (significativo das fidelidades tra- de LUI's XIII, Mazarino e Lurs XIV, diminuiu, para só reaparecer, e com
dicionais) "Vive le Roi et sans gabel/esl". Além disso, os croquents de redobrado vigor, às vésperas da Revolução Francesa. Além disso, o princi-
Saintonge afirmaram (embora talvez não fossem os camponeses falando pal objeto do protesto camponês modificara-se, e nem os impostos nem as
por si mesmos) que eram "bons franceses" e não receberiam em sua compa- Obrigações feudais tiveram um papel mais do que secundário nas émotions
nhia nenhum senhor ou príncipe em desacordo com a corte do rei, deixando do perlodo de 1730 a 1788. t certo que essas queixas não desapareceram
claro pela exposição de suas reivindicações que não estavam à procura de totalmente, como mostra o estudo da provlncia da Savóia (reconhecida-
reformas, mas de uma volta aos bons costumes que existiam antes da época mente, só se tornou parte da França em 1792) entre 1650 e 1792, feito
em que começaram a ser perseguidos pelos gabeleurs e outros coletores

10 Mousnier, pp. 46, 57, 62.


11 Porchnev, p. 49. Na Inglaterra, o caso foi muito diferente, como veremos num
B. Prochnev, Les soulévements populaires en France au XVlle siéc!e , Paris, 1972.
caprtulo posterior.
Mousnier, Peasant uprisings, p. 52. Para uma análise dessa controvérsia, ver J.H.
12 Mousnier, pp. 87-113.
M. Salmon, "Venal Office and Popular Sedition in Seventeenth-Century France",
Past and p resent, nC? 37, 1967, pp. 21-43. 13 Para uma exposição breve, mas abalizada, ver Philippe Joutard, "La Cévenne ca rni-
sarde". Histoire (Paris) n'? 1, maio de 1978, pp. 54-63.

f __0. __
58 Ideologia e Protesto Popular
Camponeses 59

por Jean Nicolas, jovem pesquisador francês. Nicolas mostra que, embora
mento dos preços agn'colas entre a década de 1720 e a de 1770 beneficiou
o protesto aberto e violento contra o sistema senhorial tenha dirninuido
acentuadamente depois de 1730, as explosões contra os impostos, os dfzi- consideravelmente os grandes camponeses e os camponeses "médios", que,
mos, a corvéia real e as invasões das terras comuns persistiram, tendo bas- portanto, se inclinavam menos do que no século anterior a reivindicar im-
tado a crise econômica, a reação senhorial e a fermentação polrtlca da postos e tributos feudais menos onerosos; e segundo, porque os campone-
ses pobres, como todos os outros pequenos consumidores, não tinham
década de 1780 para trazer à superf rcie todas as velhas queixas, general izar
o protesto, dar-lhe maior penetração e recolocar a rebelião camponesa na nenhuma parcela dessas vantagens (na verdade, pelo contrário) e, face ao
ordem do dia.!" aumento dos preços, expressaram seu descontentamento através da arma
Enquanto isso, o protesto camponês tomou outra forma e o espe- tradicional dos motins de alimentos que, embora não tivesse sido abando-
nada nos dias tempestuosos de Richelieu e Luís, havia sido eclipsada pelos
culador do trigo (o accapareur) entrou em cena; já não era o camponês
protestos mais violentos.!?
próspero ou "médio" que vendia para o mercado, mas o camponês pobre
Foi essa, portanto, a situação durante mais de 60 anos. Mas, quando
e consumidor, juntamente com o plantador de vinhas (que também tinha
os preços do trigo e do vinho começaram a cair depois de meados da dé-
de comprar seu pão) e o pequeno consumidor da cidade, que se amoti-
naram quando os preços subiram. Nessa fase, o motim provocado pela cada de 1770, enquanto os preços industriais subiam na crise de 1788 e
os seigneurs buscavam compensação para isso pressionando os seus arren-
fome passou a ser a forma principal de protesto e continuou assim nos
datários com o aumento de tributos e obrigações, e quando a crise pol (tica
60 anos seguintes. Entre os autores que observaram esse fenõmeno, Daniel
na capital se agravou, mais uma vez a aldeia cerrou fileiras e, dentro do
Mornet, o historiador "cultural", registrou seu aparecimento em 40 dos
contexto da revolução, lançou uma maciça rebelião nacional contra todo
65 anos que pesquisou, isto é, o perfodo entre 1724 e 1789 e, de acordo
o sistema senhorial. Dessa vez, o movimento era totalmente independente
com seus cálculos, ocorreu em 22 dos 26 anos entre 1763 e 1789.15 A
e teve porta-vozes próprios que apresentavam aos châtelains aterrorizados a
mais notável dessas explosões foi a chamada "Guerra da Farinha", que se
generalizou por meia dúzia de provrncias em torno de Paris (incluindo esta) ordem de destruir seus registros, pretendendo, em muitos casos (como em
1775), que esta vinha do próprio rei ("de par le Roy"). A recém-criada
em pouco mais de duas semanas, em abril e maio de 1775. A principal exi-
Assembléia Nacional, formada de burgueses e nobres de mentalidade libe-
gência - reveladora da ideologia básica do pequeno consumidor - era a
ral, não podia senão inclinar-se ante a tempestade. Mas, com freqüência,
do "psin à deux 5015" (pão a dois sous a libra) com reduções proporcionais
no preço dominante da farinha e do trigo. Acreditava-se geralmente - e, suas propriedades estavam em jogo e por isso aceitaram uma solução conci-
mais do que qualquer outra coisa, isso deu o impulso aos levantes - que o liatória que deixava intacta grande parte do velho sistema. Como escreveu
um historiador inglês,
próprio rei havia ordenado a redução dos preços, e com uma certa justiça,
pois o pnncipe de Poix, que era o representante do rei em Versalhes, havia
Se um advogado medieval pudesse ser transportado para a França de 1790 e lhe
fixado o preço do pão ao ru'vel exigido alguns dias depois do irucio dos fosse dito que Jacques Bonhomme, camponês, estava obrigado a levar seu cereal ao
motins.I'' E dessa vez, como nas outras rebeliões do tipo, não houve assis- moinho do senhor [como realmente estava, se não tivesse comprado sua redenção].
tência externa de outros grupos. Os consum idores pobres, quer camponeses a real izar tantas corvées durante o ano, a pagar rachat ou scepte a cada mudança de
propriedade, e que sua terra estava sujeita a champart e lods et ventes, ele teria sem
ou outros, ficaram entregues à própria sorte.
hesitação proclamado esse camponês como um servo c teria ficado surpreendido ao
Como surgiu essa nova situação? Em suma, como C.-E. Labrousse saber que não era um servo, mas um homem livre. 18
mostrou amplamente, aconteceu por duas razões. Primeiro, porque o au-
O camponês tinha ainda, portanto, muita coisa a fazer; a tarefa só
foi conclurda com a ajuda dos jacobinos no verão de 1793. Dessa vez, tam-
bém os camponeses, como os citadinos antes deles, há muito estavam em
14 J. Nicholas, "Sur les Émotions Populaires au XVllle siécle: le cas de Ia Savoie", contato com a nova ideologia revolucionária. Mas isso, como a própria
Annales bist. de Ia révolution française, nO 214, 1973, pp. 593-607; n<? 215, 1974, Revolução, pertence a outro capúulo ,
pp. 111·53.
15 D. Mornet, Les origines inteltectuelles de Ia révolution frariçaise, Paris, 1947,
pp.444·8.
16 Para uma breve exposição, ver G. Rudé. The crowd in history, Nova York, 1964, 17 C.-E. Labrousse, "I ntrodução" a La crise de J'économie française à Ia fin de I'ancien

pp. 22·32. régime e au début de Ia revotution , Paris, 1944, pp. ix-xli.


18 Sydney Herbert, Ttie fali af feudalism in Frence , Nova York, 1969, p , 130.

l
Camponeses 61

o sistema de propriedade da terra na América Latina tinha a marca


de suas origens coloniais, o que não é de surpreender. O padrão tradicional
era tripartido, e sua forma variou naturalmente de pais a país, de acordo
3 com características geográficas e geológicas muito diferentes. Sua forma
mais comum, porém, era a seguinte: os colonizadores ricos (geralmente de
AMÉRICA LATINA origem espanhola) ocupavam os /atifundia ou heciendes, ernpreçavarnurna
grande parte da população rural, e constituíam o cume da pirâmide social;
os pequenos proprietários, ou rencheros, que possu íam pequenas fazendas,
com freqüência exploradas de forma comunal, e viviam sob a constante
ameaça de invasão pela hacienda vizinha, ocupavam o escalão intermediá-
rio; na base da pirâmide social estava a grande maioria dos peões, os tra-
balhadores sem terra, com pequenas hortas, mas dependendo, para a sua
Uma diferença importante entre a Questão camponesa na América Latina e sobrevivência, principalmente do trabalho servil, executado durante uns
nos países europeus Que examinamos nos dois capítulos anteriores é Que, tantos dias por semana para os ricos donos das grandes propriedades. Nes-
na primeira, a partir do século XVI, a terra foi colonizada por uma potên- se sistema, uma proporção cada vez maior da área - fosse de plantação de
cia estrangeira - na maioria das vezes, pela Espanha - o que reduziu a po- café, ou pasto -- tendia a se tornar propriedade das haciendas, enquanto os
pulação nativa, em grande parte índia, apenas à condição de servos ou agricultores pequenos e médios ficavam com uma parcela sempre decres-
peões Que trabalhavam longas horas para seus senhores estrangeiros e des- cente da terra. Um levantamento das condições de ocupação da terra em
frutavam de pouca coisa que se pudesse chamar de direitos civis. Em con- sete pa íses latino-americanos rea Iizado em 1963 pela Comissão Interameri-
seqüência disso, nesses países, a Questão camponesa teve sempre conota- cana de Desenvolvimento Agrícola mostra isso." No Equador, Guatemala e
ções raciais e a luta pela liberdade econômica foi sempre acompanhada, ou Peru, cerca de nove em cada dez pessoas da população rural são representa-
obscurecida, pela luta pela sobrevivência étnica, que teve como uma de suas das pelos rancheros e trabalhadores sem terras, e cerca de duas em cada
formas - como ocorreu entre os camponeses índios da Colômbia - uma três pessoas nos demais pa íses estudados, com a única exceção da Argenti-
guerra constante em duas frentes: contra as grandes propriedades (ou hacien- na que é mais próspera." Pelo menos em teoria, uma das tábuas de salvação
desi, e contra a usurpação pelos colonizadores camponeses brancos ou mes- dos camponeses pobres e sem terras era proporcionada tradicionalmente
tizos. I Uma segunda característica foi o profundo abismo que separava a pelas terras e direitos comunais aos quais, como na Europa medieval, todos
aldeia, relativamente "atrasada" e analfabeta, da cidade modernizadora e os membros da comunidade rural tinham acesso. Na prática, porém, devido
relativamente "avançada". Finalmente, quando os sindicatos surgiram na à avidez dos haciendados, isso jamais representou grande segurança, pois
década de 1920, como emanação da cultura das cidades, encontraram por uma das características mais ou menos permanentes do cenário rural lati-
organizar uma população rural que estava mergulhada na ignorância e na no-americano foi a usurpação das terras comuns - a que se deu o nome de
superstição, situação cuja superação exigiu dos movimentos camponeses "saque dos pueblos" - pelas haciendas, seja por meio da ocupação direta
cerca de meio século." (como no Peru, já no século XVIII) ou, em épocas mais recentes, pelo uso
de tribunais e legislaturas que em geral se mostram instrumentos dóceis nas
mãos dos proprietários.

1 Eric Hobsbawrn, "Peesanr rnovements in Colombia", lnternetionet Journal of


Economic and Social History, nOB, Is.d., 1976?l, p. 182.
2 Além disso, até a década de 1940, °
banditisrno foi um fenômeno freqüente no
3 Os sete outros pai'sas foram Argentina, Brasil, Colômbia, Chile, Equador, Guate-
campo e que pode ter servido, ocasionalmente, como auxiliar da revolta popular {Pan-
mala e Peru. Landsberger (orq.l , Rural Protest, p. 182.
cho Villa, por exemplo, era um ex-bandidol. Mas onde, como ocorria em certas re-
giões da Bol rvia e da Colômbia, foi uma conseqüência da relação de patronagem-clien- 4 G. Huizer e K. Stavanhaqan, "Peasant movements and land reform in Latin Ame-
tela, na qual o. bandido operava sob a proteção de uma parte do sistema, parece ter rica: Mexieo and Bolivia", em Landsberger, Rural Protest , pp. 378-9. Foi no Equador,
servido de freio, e não de estrrnulo, à organização do protesto coletivo. Ver Linda onde a peonagem sobreviveu até 1975, que as disparidades foram maiores, com 1 %
Lewin, "The Oligarchical Limitations of Social Banditry in 8razil", Pest and Present, das fazendas compreendendo 57% de toda a terra agri'cola Uournet of Peasant Studies,
IV (2), janeiro de 1977, p. 226)
nO 82, fevereiro de 1979, p, 116·46, particularmente 140-6.

óO
62 Ideologia e Protesto Popular

Conseqüentemente, diante da falta de compensação legal efetiva, os


I sua subsistência,
Camponeses

eram obrigados a trabalhar três ou quatro dias por sema-


63

camponeses em geral - e nisso se distinguem dos camponeses europeus - na, habitualmente corn a ajuda de suas famílias, seja na própria hacíenda
retaliaram com a ocupação de terras que eram legalmente suas. Essa talvez ou na residência urbana do fazendeiro. Além disso, várias comunidades ín-
tenha sido a forma mais comum de luta de classes na aldeia latino-america- dias "livres" tinham um controle precário das terras comuns e, em troca,
na, onde a militância pode, portanto, ser medida com mais freqüência em trabalhavam alguns dias para as autoridades locais. Foi sobre essas comuni-
termos do número de ocupações de terras pelos camponeses do que em ter- dades que recaiu o peso principal de uma usurpação quase que contínua;
mos de motins ou de rebelião em grande escala. A maioria dessas explo- foi, portanto, na perda desses direitos que os primeiros movimentos de
sões, antes do aparecimento dos sindicatos camponeses e cooperativas na protesto na Boi ívia se concentraram. Um desses movimentos foi chefiado,
década de 1920, foi mais ou menos espontânea e local, envolvendo em pri- já em 1898-1899, por Zárate Willca, mais tarde assassinado por um gover-
meiro lugar a ocupação pacífica, mas desenvolvendo-se quase que inevita- no liberal que os camponeses haviam ajudado a colocar no poder. Outro
velmente, quando chegavam os soldados, em confrontações violentas, com levante, ocorrido em 1927, reuniu nada menos de 50 mil homens, mas foi
grande perda de vidas camponesas. Esses movimentos ocorreram em áreas esmagado pelo exército depois de um mês de lutas. A inquietação generali-
dispersas do México e da Boi ívia em fins do sécu 10 X IX. Mais recentemen- zou-se, 'envolvendo tanto os camponeses de Iíngua espanhola como os de
te, tomaram a forma de ocupações maciças por milhares de camponeses I ínqua índia (embora nem sempre em conjunto), depois da derrota da Bo-
insurgentes nos altiplanos peruanos, em fins da década de 1940 e novamen- lívia pelo Paraguai, na Guerra do Chaco (1933-1935). Toda a nação índia
te em 1963-4,5 e (mais sensacionalmente) durante a sangrenta Víolenzía na começou então a mobilizar-se sob uma sucessão de Iíderes, entre os quais
Colômbia, entre 1949 e 1958, quando comunidades inteiras, organizadas José Rojas, Luis Ramos Ouevedo e Antonio Mamani Álvarez, que ajuda-
agora não à base de classe, mas numa base rigorosamente de "clientela" rurn os camponeses a levantar os olhos acima das meras soluções de reivin-
(dependendo de sua filiação aos partidos conservador ou liberal) travaram dicações imediatas e a aspirar a abolição do sistema de peões nas grandes
uma luta que terminou em sangue, com o custo de entre 100 a 200 mil vi- propriedades e uma mudança radical em toda a estrutura (feudal) social e
das." Por vezes esses choques foram totalmente inúteis, como nas batalhas da polltica. Orqanizuram-se sindicatos e federações e - sob a liderança de
Víolenzía colombiana, que nenhuma vantagem proporcionaram aos campo- ()IWVI~d() I~ i\lvan~/ foi convocado o primeiro Congresso (ndio, reunido
neses, pelo contrário, simplesmente serviram para unir os manipuladores (~"r I " 1'", ern maio dI! 1 ~JIj!J. SI!!juiu·sc urna guerra civil e, em agosto de
i
políticos das duas facções em luta e, tornando impossível o funcionamento I !J1j!J, Alvar I!/ fl!l circular um panfleto convocando os índios bolivianos
dos sindicatos, deixaram os camponeses sem defesas contra novas perdas. "sem distinção de classes sociais ou de seitas de qualquer espécie" a se em-
I
Nas Sierras centrais do Peru, porém, particularmente no Vale de Ia Conven- penharem "numa revolução permanente" até que o governo conservador
ción, no Departamento de Cuzco. os camponeses, liderados pelas próprias fosse derrubado e o país tivesse uma constituição liberal. Assim, o movi-
autoridades da aldeia, tiveram êxitos consideráveis em sua reivindicação de mento camponês tornou-se auxiliar importante do governo liberal que, em
700 mil acres de pastos dashacíendas vizinhas, entre 1963 e 1965.7 1953, aprovou uma constituição que deu in ício ao longo - e ainda incom-
Movimentos mais generalizados, de caráter nacional, ocorreram den- I
pleto processo de acabar com a peonagem, dividir as haciendas e resdistri-
tro do contexto da revolução, na Boi ívia e no México. Na primeira, antes bu ir a terra entre os antigos servos índios." I
da grande reforma de 1952, os fazendeiros eram uma pequena minoria de No México, a revolta camponesa e a revolução nacional estiveram
!'
brancos de língua espanhola, aliados aos barões do estanho locais, que ex- ainda mais unidas do que na Bolívia. Antes de 1810 - o ano inicial da revo-
ploravam uma maioria de índios, em grande parte colonos (servos) vivendo lução chefiada por Morelos, que deu ao país a sua independência - o siste-
na fazenda e que, em troca do direito de cultivar pequenas glebas para a ma agrário mexicano era semelhante ao da Boi ívia. Tinha, não obstante,
características próprias, das quais a mais importante era o fato de que os
haciendados eram, com freqüência, proprietários absenteístas - o que só
aumentava a ira dos camponeses =, e a hacíenda em expansão, contando
Huizer e Stavenhagen, pp. 379-81; Hobsbawm, pp. 185-6. com a proteção governamental, invadia freqüentemente as terras dos ren-
6 "Chispas: From Peasant tO 'Bandit' ", Journal af Peasant Studies, II (2), janeiro
de 1974, pp. 245-52.
7 Para uma boa exposição das operações de uma aldeia muito bem sucedida e orga-
nizada, ver "The Account of Don Victor", Journel ot Peasant Studies, II (3), abril de 8 Huizer e Stavenhagen, pp. 380-1, 392·9; também "Antonio Mamani Álvarez: a Call
1975, pp. 355-9. to Bolivian lndians", Jaurnal of Peasant Studies, 111 (3), abril de 1976, pp. 394-7.

L__
Ideologia e Protesto Popular Camponeses 65
64

cheros e as terras comunais dos índios para ampliar as suas reservas de mado em Iíder guerrilheiro de uma força de 20 mil homens do Norte, pa-
rnâo-de-obra. Não é de surpreender, portanto, que, quando o latifundiário ra continuar a guerra contra Carranza. O New York Times, sensível aos
liberal Francisco Madero levantou a bandeira da revolta e tomou o poder à interesses dos Estados Unidos, declarou pressagamente, em março de 1919,
ditadura de Díaz, em 1910, os camponeses entraram rapidamente em ação que o retorno à normalidade em Morelos dependeria da "queda total e da
em todo o pa ís para conseguir a restituição de terras que Ihes haviam sido exclusão permanente, ou extinção, de Zapata (... l ele está fora de qualquer
roubadas. Ao partir para o ex ílio, o ditador deposto observou: "Madero anistia"."! Três semanas depois, Zapata foi atra Ido a uma emboscada e as-
soltou um tigre; vamos ver se pode controlá-to."? sassinado por um grupo de oficiais de Carranza, A revolta camponesa come-
O "tigre" revelou-se a mais prolongada e melhor organizada das revo- çou a perder ímpeto. Um ano depois, Villa celebrou a paz com o sucessor
luções camponesas dos tempos modernos e sem dúvida a mais sensacional de Carranza, Obregón, retirando-se para uma fazenda, onde foi assassinado
da história do México: a revolução liderada por Emiliano Zapata no Sul e em 1923.12
por Pancho Villa, ex-bandido, no Norte. Zapata era filho de um pequeno Mas a reforma "de cima" continuou e, apesar da batalha permanen-
ranchero, tendo nascido por volta de 1875 na aldeia de Anenecuilco, no te travada pelos fazendeiros, e que compreendia terror e assassinato, o
Estado de Morelos, ao sul da Cidade do México. Seu pai cultivava uma gle- programa de reforma avançou sob sucessivos presidentes, sendo o sistema
ba de terra comunal, mas perdeu-a, juntamente com os outros aldeões, de peonagem substitu ído pela mobilidade dos trabalhadores livres, e o nú-
para a hacienda vizinha. Assim, desde tenra idade, Emiliano participou das mero de recipiendários de terras - principalmente camponeses que viviam
tentativas dos aldeões de recuperar suas terras. Aos trinta anos, foi eleito nas comunidades aldeãs - aumentou de 7.733 por ano em 1915·1920, pa-
presidente do conselho da vila, mas devido à sua atitude militante - embo- ra 52.600 em 1921·1934, e para 135.000 por ano em 1935.1940.13 Esse
ra a essa altura ainda perfeitamente legal - foi mandado fazer o serviço mi- grande salto final (houve outros, menores, depois) foi dado sob o regime
liberal-democrático de Lázaro Cárdenas, eleito presidente em 1934, Em
litar na Cidade do México, o que lhe ampliou os horizontes e lhe propor-
cionou um treinamento útil para o seu futuro papel de líder camponês.
Voltando à vila, Zapata promoveu uma união entre esta e duas ou-
( Cárdenas os camponeses encontraram, finalmente, um amigo sincero, que
não só distribuiu a terra aos pobres em escala maciça (só em 1936, cerca de
150.000 hectares de terras irrigadas foram distribuídos a 35.000 carnpone-
tras vilas com problemas semelhantes. Quando falharam os recursos legais
para restabelecer seus direitos, ele e seus companheiros atenderam ao cha- ses na região algodoeira de Lagunal, como que também os organizou em
mado de Madero à revolução e ajudaram a derrubar D íaz. Mas logo eviden- unidades de defesa armadas para combater os "Guardas Brancos", criados
ciou-se que o apoio do novo presidente à solução do problema agrário no pelos latifundiários com o fito de impedir o avanço da reforma agrária.
interesse dos pequenos camponeses era relutante. Por isso, Zapata resolveu Um Código Agrário, que servia de carta geral dos direitos camponeses, foi
agir por si mesmo e, em novembro de 1911, formulou um programa iride- aprovado em 1934, e, quatro anos depois, os camponeses, para mostrar sua
pendente de reforma agrária, conhecido como o Plano Ayala, e entrou em gratidão, deram o apoio pol ítico da recém-fundada Confederação Nacional
~uê:r(d contra 1I,ladê:rOe seus sucessores, para a reauzaçáo de seu plano. En- dos Camponeses ao governo. Foi o ponto culminante da Revolução Mexi-
quanto isso, seus guerrilheiros redistribuíam a terra de acordo com o plano cana que, uma vez terminado o mandato de Cárdenas em 1940, entrou
nas áreas que conquistavam. Não souberam, porém, aproveitar seu sucesso num perfodo de consolidação a partir do qual diminuiu o ritmo da reforma
e marchar sobre a capita I. Por isso, inevitavelmente, a sorte voltou-se contra e que praticamente representou o fim da fase "popular" da Revolução que
Zapata quando um novo e decidido presidente - Carranza - assumiu o go- havia durado trinta anos.!"
verno. E m janeiro de 1915 Carranza "roubou" uma grande parte do Plano
Ayala, iniciando com isso a história de vinte anos de reforma agrária mexi-
cana, e armou trabalhadores militantes urbanos para conter a revolta carn-
ponesa.IO Zapata re tir ou-se para as montanhas ao sul da cidade do México, 11 The New York 18 de março de 1919; apud John Womak, Zapata and tbe
Times,
onde formou uma aliança com Pancho Villa, o "bandido social" tr ansfor- mexican revolution, Londres, 1968, p. 321.
12 Para essabreve exposição da carreira de Zapata, ver Huizer e Stavenhagen, pp. 382·
83; e também Womack, passim. Segundo Cumperland a Revolução pode ter custado,
na época da morte de Villa !1923l, dois milhões de vidas. Charles Cumberland, Me-
9 Eric Wolf, Peasant Wars of ttie Twentietb Centurv , Nova York, 1969, p. 3. xico: The struggle for modernitv , Nova York, 1968; apud Wolf, p. 44.
10 Frank Tannenbaum, Ttie Mexican Agrarian Revotutions. Nova York, 1928, pp. 165- 13 Wolf, p. 45.
71; spud Huizer e Stavenhagen, p. 383. 14 Huizer e Stavenhagen, p. 387.

l
66 Ideologia e Protesto Popular
Camponeses 67
Como vimos, essa fase popular teve qualidades muito próprias. De
um lado, em nenhuma outra revolução (sem excetuar nem mesmo a Revo- E o que se pode dizer, agora, sobre a ideologia dos movimentos do
lução Chinesa e a Revolução Francesa) os camponeses tiveram um papel século passado na América Latina? Não é de surpreender que não se possa
tão importante e independente. E - exceção feita dessa vez à Revolução dar uma resposta simples, pois a experiência camponesa diferiu muito en-
Francesa - em nenhuma outra os camponeses conseguiram, pela luta e tre países e gerações. Não obstante, nos primeiros movimentos que men-
pela organização independente, êxito tão grande. Seu programa era a refor- cionamos, houve uma certa uniformidade, pois a esta altura, quer falemos
ma agrária, formulado em seus aspectos essenciais por Zapata e Ayala em do Equador, do Peru, da Bolívia ou do México, a reação dos camponeses à
1911, "roubado" por Carranza para isolar Zapata e Villa em 1915, e quase repressão ou à tomada de suas terras foi puramente defensiva, e, como na
completado "de cima" - mas com uma permanente intervenção campone- sociedade "pré-industrial" em outros lugares, os camponeses mostravam-se
sa - por Cárdenas, depois de 1934. Tendo dito isso, porém, devemos reco- empenhados na restauração do passado, neste caso, a devolução aos seus
nhecer que os camponeses mexicanos apresentaram sérias limitações quan- donos tradicionais da terra, mantida em comum ou de propriedade indivi-
do se tratou da tomada do poder. Os lideres dos exércitos camponeses - dual, roubada ou ameaçada de expropriação. Essa atitude - o desejo de
Zapata, camponês e filho de camponeses, e Villa, o bandido ao estilo de restabelecer ou manter o passado e não de reivindicar algo de novo - per-
Robin Hood transformado em líder guerrilheiro - não se sentiram inclina- siste até a atualidade. Podemos citar o exemplo dos pastores índios na Sier-
dos a aventurar-se longe de sua base nativa, ou seja, Morelos no caso do pri- ra Central do Peru, que, já em 1913, resistiram - através de seu sindicato e
meiro, Chihuahua no caso do segundo - nem a tentar a tomada do poder. de seu jornal, o Causa Campesina - às tentativas dos donos de haciendas
Só quando forçados pela necessidade entraram na Cidade do México, da de forçá-los a abandonar seu tradicional sistema paternalista, que Ihes per-
qual se retiraram tão logo poss ível. Como Eric Wolf explica: mitia o livre movimento, em troca de outro sistema, que se propunha a
transformá-Ios em proletários que trabalhavam por um salário mínirno.!?
Assim, embora os exércitos de Villa e as forças de Zapata tivessem sido instrumentais
na derrubada do poder do regime de O faz e de seu epígono Victoriano Huerta, não Também no Peru, vemos, pelo relato de Don Victor, o sagaz e velho líder
foram capazes de dar o passo decisivo para estabelecer uma nova ordem no México. das "invasões" camponesas das terras das fazendas e gobemador de sua al-
Zapata foi incapaz de transcender as reivindicações de seus camponeses revolucioná- deia, que, quando acusado de ser membro da APRA, o partido de oposição
rios, concentrados numa estreita área do México, e Villa, glorificado na guerra, não ilegal, declarou solenemente que "não tinha política".18 (O que pode ter
tinha a compreensão das exigências sociais e políticas. Simbólico dessa incapacidade
sido, é claro, um recurso para enganar seus interrogadores.) Podemos, por
trágica dos dois grupos foi o seu histórico encontro na Cidade do México, em fins de
1914, quando celebraram sua união fraterna, mas não puderam criar uma máquina vezes, acompanhar a transição da ideologia de protesto de uma fase inicial
pai ítica para governar o pa ís.15 para outra, mais avançada, como na Boi ívia, onde houve acentuado con-
traste entre o pensamento subjacente ao protesto até princípios da década
Em suma, não tinham o desejo de criar para o México uma constituição de 1940, quando as exigências camponesas não iam além da restituição dos
que atendesse às necessidades dos pequenos proprietários e trabalhadores direitos ou terras perdidos, e a ideologia avançada dos servos índios que,
como um todo. Os camponeses eram a "sua gente", a reforma agrária era o dirigidos por Iíderes como Rojas e Álvarez, aspiraram, após o Congresso de
auge de sua ambição e foi o que, com o tempo, acabaram conquistando. A 1945, a uma reforma constitucional total.
pol ítica nacional e as soluções pol íticas nacionais foram por eles deixadas No Equador, a transição parece ter sido mais recente, pois a Refor-
para outros, para os liberais de classe média, advogados, militares e outros. E ma, iniciada em 1964, se fez em ritmo tão lento que se calculou, quatro
isso, apesar de todas as suas realizações (é o que nos diz a história) - e aqui anos depois, seriam necessários outros 170 anos para que todos os arrenda-
a experiência mexicana não difere de nenhuma outra - é o máximo que se tários "feudais" do país recebessem terras. Uma segunda reforma agrária
pode esperar dos movimentos liderados pelos carnponeses.!? (A capacida- seguiu-se, com a intenção de intensificar o ritmo, em 1973. Mas a servidão
de de Mao de liderar a tomada do poder por um exército nacional campo- e a semi-servidão continuaram, como fica evidenciado numa canção ·com-
nês - mas com a ajuda constante dos dirigentes das cidades - é algo total- posta pelos membros da Federação de Camponeses do Equador por oca-
mente diferente.)

IS Wolf, p. 37. 17 "Peru: Letters from Shepherd's Union Bulletin", Journal ot Peesent Studies , I (il,
16 Para um estudo desse ponto, ver H. Landsberger, em Rural protesto pp. 47-51; ver outubro de 1973, pp. 112-16.
também Wolf, loc cito 18 "The Account of Don Victor", Journal of Peasant Studies, II (31, abril de 1975,
p.357.

l
68 Ideologia e Protesto Popular

srao de um encontro de Iíderes camponeses em 1975. Não foi, evidente-


mente, composta por um camponês típico, mas o anseio por terra e liber-
dade, há tanto contido, surge nos seguintes versos finais:
Já não seremos servos,
não haverá parias.
quando os camponeses
fizerem a Reforma Agrária.
O padre de minha aldeia
me disse para esperar.
Mais não posso tolerar,
eu quero a Reforma Agrária. 19

No México, os camponeses foram atraídos a Morelos em 1810 - co-


mo os servos russos haviam sido atraidos por Pugachev alguns anos antes - PARTE III
pela esperança milenária de uma regeneração súbita. Houve pouco indício
disso na revolução de 1910, quando os camponeses já haviam travado bata- REVOLUÇÕES
lhas por fins imediatos e esperavam de Madero, simplesmente, justiça. Mas
a crença na necessidade de um retorno a um passado melhor, a uma época
em que o haciendado era menos voraz, certamente persistiu. O próprio Za-
pata - e sem dúvida seus colaboradores (ntirnos - foi motivado por uma
ideologia que se voltava tanto para o passado como para o futuro. De um
lado, levava sempre consigo uma imagem da Virgem de Guadalupe, que re-
produzia em suas bandeiras de luta como mostra de seu profundo apego à
religião. De outro, porém, logo substituiu sua exigência elementar de "jus-
tiça" e de restabelecimento 'os direitos tradicionais por uma reforma agrá-
ria geral. Podemos acompanhar essa transição nas poucas semanas que se-
param a redação de um Memorial por zapatistas em fins de setembro de
1911 do Plano Ayala, aprovado apenas dois meses mais tarde. No Memo-
rial, a principal exigência ainda é "que seja dado aos pueblos aquilo que
merecem pela justiça, em terras, madeira e água ... ", ao passo que, em no-
vembro, duas semanas antes do próprio Plano Ayala, essa exigência foi
abandonada e substitu ída pela reivindicação mais avançada de que fosse
"baixada uma lei agrária que procurasse melhorar as condições dos traba-
lhadores dos campos". Ambas as exigências aparecem reunidas, juntamente
com várias outras, no plano de Ayala, lançado do quartel general de Zapata
a 25 de novembro. Tudo isso foi reformulado, quatro anos depois, no pro-
jeto zapatista de uma Lei Agrária que ia muito-além das provisões de Ayala
e foi concebido como uma resposta direta - e muito melhor - ao decreto
"roubado" de. reforma de Carranza, que iniciou o longo processo legislati-
vo para libertar o camponês mexicano, de janeiro de 1915.20

19 "The Agrarian Heform", Journal of Peasant Studies, 111 121, janeiro de 1976,
pp.225-6.
20 Womack, pp. 393-411.

69

l
·)
1

A REVOLUÇÃO INGLESA

Passemos agora ao estudo de algumas revoluções. As revoluções, além de


outras peculiaridades, são notórias como canteiros de ideologias, particular-
mente ideologias populares de protesto. Uma caracteristica comum às
revoluções que examinarei nos quatro caprtulos seguintes é terem ocorrido
todas (com uma exceção, ainda assim discutível) num perjodo "pré-indus-
trial", em que a luta pelo poder ou pela sobrevivência - seja pelo controle
do Estado ou por objetivos mais limitados - não se limitava a dois adver-
sários apenas. Reconhecidamente, cada uma das revoluções que examinare-
mos foram campo de batalha de dois adversários principais - em todas,
com exceção da última, esses contendores foram (de maneira muito geral)
:i) I
a burguesia "ascendente" e a classe feudal ou aristocrática que esta burgue-
sia ascendente procurava afastar das alavancas do controle social e pol ítico.
Há, porém, mais do que isso: em cada uma dessas revoluções - e, novamen-
te, isso não se aplica à última - esteve presente um elemento popular adi-
cional que também lutava por um lugar ao sol, embora seja evidente que
esse elemento veio a se destacar mais em certos casos do que em outros. Na
Revolução Inglesa do século XVII, houve não só os Iíderes do Parlamento
e do New Model Arrnv, os presbiterianos e os independentes (todos, de
um modo geral, representativos de um desafio "burguês") mas também os
Levelters," os Diggers,** e os sectários das classes inferiores que também,
de alguma maneira, apresentavam um desafio em nome de grupos sociais
subalternos. Na América do Norte, além dos plantadores do Sul, dos comer-
ciantes de Boston e dos Filhos da Liberdade, houve também os marinheiros
e artesãos, os Jack Tars e os White Oaks, cujo desafio foi, neste caso, breve e
relativamente calmo. Na França, em 1789, o Terceiro Estado oficial - a
burguesia e seus aliados aristocratas-liberais - tiveram de fazer frente a um

• N iveladores, dissidentes radicais. (N. do T.)


Cavadores, grupo religioso que cultivava terras comuns. (N. do T.)

71
l
72 Ideologia e Protesto Popular Revoluções 73

desafio dos camponeses e dos sens-culottes urbanos muito mais sério do poneses - antes do in (cio da revolução. E quando esta começa, ou está
que o desafio enfrentado pelas classes dominantes da Inglaterra e da Arné- em vias de começar, devemos continuar e examinar os meios pelos quais as
rica do Norte. E igualmente não deixaram de aparecer indivlduos provindos novas idéias "derivadas" foram transmitidas às classes inferiores, as fases
das classes inferiores que, durante as Revoluções Francesas do século XIX, dessa transmissão e a natureza exata da nova ideologia popular que surgiu
questionaram e desafiaram as aspirações puramente burguesas, como surqi- depois da fusão da velha e da nova. Finalmente, devemos examinar o papel
ram também na alemã, na austr raca, na italiana e em outras explosões revo- desempenhado pela ideologia popular na revolução e, se formos capazes
lucionárias de 1848, o "ano das revoluções". Assim, por mais "burguesas" de fazê-to. estudar sua sorte, uma vez terminada a revolução ou, pelo me-
que essas revoluções tenham sido, foram também a sementeira de um desa- nos, a fase "popular" da revolução. Tudo isso pode parecer bastante óbvio,
fio, vindo "de baixo", que abriu outras perspectivas, apresentando uma e indigno da ênfase que lhe estou dando, não fosse pelo costume - mais
espécie de "revolução dentro da revolução" (embora não exatamente no comum na América do Norte do que na Inglaterra e na França - de aplicar
sentido em que a expressão foi usada por Régis Debrav}.' e cuja natureza modelos pré-fabricados a situações revolucionárias e deixar que os aspectos
variou de uma para outra. Mas, em cada caso, o desafio, embora criando um especrficos se resolvam por si mesmos.
problema para os revolucionários principais, não foi inteiramente mal-rece- Passemos então ao assunto principal deste cap rtulo. a revolução in-
bido, pois, sem o apoio de seus aliados das classes inferiores nas aldeias e glesa do século XVII. O sistema de governo naquela época era o dos pri-
ruas, como poderiam aqueles ter derrubado Carlos I ou Luis XVI de seus meiros Stuarts, um despotismo em evolução, embora não comparável, em
tronos, posto abaixo a Bastilha ou sistema feudal, ou ainda mandado para soberania inquestionada, ao da monarquia absoluta que se desenvolvia na
o exílio um Carlos X, um Luís Filipe ou um Metternich? Não obstante, França. Na Inglaterra, a soberania era partilhada, embora em proporções
uma vez completadas essas tarefas, houve logo uma separação: Cromwell decrescentes, pelo Parlamento de Westminster, que representava as classes
executou sumariamente os tevellers, os únicos que lhe ofereceram uma dos proprietários de terras e os grandes comerciantes, e, mais significativa-
resistência séria, pouco depois da execução de Carlos; os jacobinos e os mente, nos condados, onde as grandes propriedades da aristocracia e seu
sens-culottes puseram fim a sua aliança logo que Luís foi morto e a velha controle dos ju rzes de paz servia como um contrapeso ponderável à
aristocracia silenciada; e, na revolução francesa de 1848, a associação entre autoridade da Coroa. A própria sociedade era aristocrática no sentido de
a "blusa" e o "redingote" foi bastante útil para exilar LUIs Filipe e insti- que era dominada pelos grandes proprietários de terras que, embora a ser-
tuir a República. Antes porém que a república pudesse receber uma forma vidão tivesse sido abolida um século antes, conservavam um controle quase
mais "democrática", os aliados de classe média e inferior das jornadas de feudal sobre seus arrendatários e agregados. (Isso se evidenciará na facili-
fevereiro foram levados a um desfecho sangrento em junho. E, é claro, dade relativa com que os proprietários rurais de ambos os lados da Guerra
incorporando esses acontecimentos e transcendendo-os, havia sempre a Civil serão capazes de recrutar seus exércitos.) A pequena nobreza (gentry)
batalha das idéias.? era pela tradição um ramo menor da aristocracia. Não obstante, sua cres-
Mas, evidentemente, não basta ápresentar o problema nesses termos cente participação no comércio colocava-a ainda mais próxima da classe
gerais. Toda revolução, embora partilhando com as outras essas caracter ís- dos comerciantes. As "pessoas intermediárias" (como os contemporâneos
ticas comuns, tem uma face própria e deve ser tratada como um aconteci- e os historiadores julgaram conveniente chamá-Ias) eram os pequenos pro-
mento em si. Para chegar a esses aspectos especificos das revoluções - no- prietários rurais, os agricultores, os arrendatários e os negociantes de teci-
tadamente no que se relacionam com a ideologia popular - temos de dos do interior, bem como os "trabalhadores manuais", os donos de pe-
começar detendo-nos em questões como: a sociedade em que a revolução quenas lojas, os mestres artesãos e seus aprendizes nas cidades. E, na base
ocorreu; a ideologia predominante da classe dominante e dos principais da pirâmide social, estava o "povo inferior" - os camponeses comuns e os
candidatos ao poder às vésperas da revolução; as idéias "inerentes" das aldeões, os jornaleiros, os criados e a chamada "ralé" das cidades. De per-
classes "populares" - os trabalhadores, os pequenos proprietários e carn- meio com essas classes inferiores, havia outras menos estáveis e de cateqo-
rização mais difícil - os "homens sem patrão" e sem ra ízes, descritos por
Christopher Hill em seu World Turned Upside Down. 3

1 Régis Debray, Revolution within the revotution? Nova York/Londres, 1967.


2 Para um desenvolvimento do tema, ver G. R udé, "Revolution and Popular loeoío-
sv". in M. Allain e G.R. Conrad (orqs.). France and North America: the revotutionery I' 3 Christopher Hill, The world turned upside down, Londres/Nova York, 1972,
experience, Lafayette, Luisiana, 1974, pp. 142·58. pp.32-45.
Ideologia e Protesto Popular Revoluções 75
74

no (embora consideravelmente mais nos do segundo do que nos do primei-


Dessas classes e grupos, como em todas as revoluções, alguns se
ro), interpretados pelas gerações de teólogos puritanos. Mas os puritanos,
mostrariam significativamente mais "revolucionários" do que outros. Ouan-
como argumentaram Hill e outros, foram tão atingidos pelas incursões do
do chegou o momento, a maioria dos aristocratas verificou que convinha
"despotismo" real, que Ihes ameaçava as liberdades, quanto pelas práticas
melhor aos seus interesses - e talvez também às suas tradições - apoiar o
e inovações "papistas" do arcebispo Laud. Isso explica, é claro, porque
rei, embora cerca de um terço deles, por várias razões, se colocasse ao lado
Laud e Strafford, agentes ao mesmo tempo do "papisrno" e da "repressão",
do Parlamento. A pequena nobreza também se dividiu em proporções se-
tornaram-se os alvos principais da fúria popular, antes mesmo de iniciada
melhantes, embora nesse caso as fidelidades se invertessem e, no seu caso,
a guerra civil. De maneira geral, podemos dizer que essa ideologia dominan-
as divisões tendessem a corresponder a limites regionais - os do Norte e
te da revolução, embora emanando em primeiro lugar dos comerciantes e
do Oeste (com exceções notáveis, como iremos ver) optaram pelo rei, e os
da pequena nobreza, bem como do clero puritano, cujos sermões essas clas-
do Sul e do Leste, pelo Parlamento. Os comerciantes - particularmente
ses ouviam, impregnou de maneira geral as camadas "médias" e "inferior"
os dos portos e das cidades manufatureiras - juntaram-se ao Parlamen-
do povo, tendendo a tornar-se a ideologia de todos.
to. Das pessoas "inferiores" ou "médias", a ralé (como ocorre com freqüên-
Mas esses últimos grupos também entraram na revolução com uma
cia nas revoluções) teve um papel reduzido, ou nulo, exceto talvez como os
ideologia própria, cuja natureza dependeu, naturalmente, das ocupações e
observadores barulhentos que repetiam as frases dos outros. Já os peque-
classes a que pertenciam. De longe, a maior classe era a formada pelos
nos camponeses e jornaleiros tiveram um papel importante nas primeiras
pequenos fazendeiros, arrendatários e camponeses pobres (fossem foreiros,
desordens, mas, à medida que a revolução evoluiu para uma guerra civil
arrendatários ou simples trabalhadores). Ao longo dos anos anteriores à
prolongada, foram os homens "médios" - os fazendeiros, os artesãos e
revolução, a fortuna dos pequenos proprietários vinha caindo. Isso se mani-
outros - que, juntamente com os "religiosos", foram os revolucionários
festou de várias formas: crescentes impostos sobre as heranças, troca obri-
mais persistentes." Estes, uma vez começada a luta, constituiriam as ver-
gatória dos aforamentos pelos arrendamentos, "rendas extorsivas", expul-
dadeiras tropas de choque da revolução, assim como os sans-cu/ottes pari-
sões em massa pelos senhores devidas ao não pagamento de arrendamentos
sienses (embora de composição social um tanto diferente) na Revolução
ou multas, ou - característica de uma recente "reação feudal" - a exação
Francesa de 1789.
de multas e obrigações há muito esquecidas, cujos efeitos prejudiciais eram
Qual a ideologia dessas classes em choque? (Devemos entender, é
agravados por uma sucessão de más colheitas e um crescimento rápido da
claro, que elas não permaneceram estáticas e que as ideologias dos revolu-
população rural. Além disso, os senhores estavam cercando as terras deso-
cionários das classes "superior", "média" e "inferior" se modificaram com
cupadas e comuns e, com a colaboração da Coroa, drenando pântanos e
o avanço ou o decl mio da revolução.) A ideologia dominante da revolução
brejos - como em Somerset e Lincoln - em prejuízo dos antigos direitos
foi proporcionada pelos comerciantes e pela pequena nobreza, que, nos
do povo. Para se defenderem, os camponeses recorreram, em primeiro lu-
condados e cidades, bem como no próprio Parlamento, colocaram em rno-
gar, ao litígio e, quando este falhou, à ação direta: a década anterior à
vimento a revolução e lhe deram I(deres. Era composta de dois elementos,
revolução testemunhou uma considerável revolta camponesa contra os cer-
um deles secular e o outro religioso, com uma considerável superposição
camentos, os diques e o trabalho de drenagem, para consternação dos gran-
entre eles. O elemento secular preocupava-se com a proteção da proprie-
des proprietários rurais e do governo, sobretudo quando os tribunais se
dade, o comércio e as "liberdades" do Parlamento contra os excessos e o
recusavam a condenar os infratores presos e a Câmara dos Comuns, preo-
"despotismo" do rei e de seus principais ministros, o arcebispo Laud e
cupada em não perder os votos dos arrendatários livres, procurava antes
o conde de Strafford. Essas idéias eram derivadas de lutas anteriores sobre
conciliar do que reprimir. Através dessa experiência, os camponeses acres-
a Common Law e a Magna Carta, vistas como bastiões das liberdades do
centaram à sua preocupação tradicional com o direito de posse da terra e
Parlamento contra as pretensões ao Direito Divino real, e, mais geralmente,
de livre uso das terras comuns uma nova consciência pol (tica, dirigida con-
de toda a tradição do "Jugo Normando". A ideologia religiosa tinha uma
tra a Câmara dos Lordes e, cada vez mais, à medida que a crise se desenvol-
história mais recente, baseando-se nos ensinamentos de Lutero e de Calvi-
via, contra o próprio rei.s

4 Ver Brian Manning, The english peop!e and tbe english revolution , Peregrine, 1978,
Manning, pp. 128-54.
especialmente pp. 258-65.
76 Ideologia e Protesto Popular Revoluções 77

E nquanto isso os artesãos e os outros pequenos produtores das cida- Mas idéias novas eram também expostas dos púlpitos, o principal
des e do campo tinham seus problemas próprios. Na indústria, o conflito meio para sua comunicação, particularmente aos que não sabiam ler: as
básico não era entre patrões e trabalhadores - isso seria coisa do futuro - idéias relacionadas com as novas divisões dentro da Igreja Protestante e os
mas entre artesãos e comerciantes. As questões que os dividiam eram, mais direitos do Parlamento de resistir à opressão, de recorrer às armas contra o
comumente, o preço e a qualidade daquilo que o artesão produzia. A indús- seu rei e, mais tarde, de decapitá-Io. Um meio de comunicação alternativo
tria principal da Inglaterra era, na época, a tecelagem. A venda dos produ- era proporcionado pelos artesãos itinerantes, os "homens sem patrão", que
tos de tecelagem nos mercados estrangeiros era controlada em grande parte iam de aldeia em aldeia." Mais tarde, quando tornou-se mais aceso o deba-
por companhias monopolizadoras, das quais a maior era a dos Merchant te pol rtico entre os vencedores, e a guerra civil já se aproximava do fim, o
Adventurers. A longa depressão no comércio levou a acerbas disputas entre principal foro de discussão e de intercâmbio de idéias e doutrinação foi,
os tecelões e comerciantes da província, de um lado, e as grandes compa- sem dúvida, o Exército, como por ocasião dos famosos debates de Putney,
nhias, de outro, em torno da partilha de um mercado decrescente, com em 1647. Havia além disso, é claro, os jornais e folhetos que proliferaram
os dados cada vez mais viciados em desfavor dos provincianos. A luta eco- durante os primeiros anos da revolução, quando a imprensa era livre e pu-
nômica foi ainda mais agravada pela luta política dentro das cidades autôno- bl icava versões resum idas dos discursos dos I(deres para os que pudessem
mas em relação ao governo municipal, nos quais os privilégios das oligar- lê-Ios ou tivessem condições de ouvir sua leitura. É evidente que essa pro-
quias formadas pelos comerciantes ricos (como na City de Londres) eram paganda era mais prontamente aceitável por alguns grupos do que por
contestados pela coletividade dos artesãos, apoiados pelos lojistas e peque- outros: para alguns, fixou metas pohticas e estimulou à ação; a outros,
nos comerciantes. Esses adversários da oligarquia foram naturalmente para os quais não oferecia soluções para males presentes, deixava relativa-
atrajdos para o Parlamento, em busca de proteção e, antes mesmo da revo- mente frios. Para ver como os diferentes grupos reagiram de fato à revolu-
lução, Manning cita numerosas petições de cidadãos "médios" que expres- ção, estimulados quer pela velha experiência, quer pela nova propaganda,
sam seu ressenti mento pelo abandono dos seus antigos di reitos e exigem talvez seja útil dividir o perrodo ativo da revolução - isto é, o período
o restabelecimento do tradicional direito do voto." As classes "inferiores" durante o qual se pode dizer que o elemento popular participou politica-
tinham, é claro, preocupações ainda mais prementes, e as multidões londri· mente - em três partes: a primeira, os anos de 1640·1642, desde as primei-
nas realizaram manifestações contra Strafford em maio de 1641, fazendo ras sessões do Parlamento Longo até a deflagração da gueúa civil; a segun-
acompanhar o seu grito por "Justiça!" pelo mais velho e mais tradicional' da, dos anos de guerra civil e execução de Carlos I (outono de 1642 a janeiro
grito por "Pão 1"7 de 1649); e a terceira, de silenciamento do debate polrtico que se seguiu
Além disso, era comum a todos os grupos (mas, sem dúvida, com ex- à morte de Carlos I (1649-53).
ceções significativas no Norte) a preocupação geral com a verdadeira fé, a O aspecto mais notável do primeiro perfodo, que se centralizou na
religião protestante tal como entendida pelos pregadores puritanos. A lon- luta pol ítica entre o rei e o Parlamento em Westminster, foram os tumultos
ga experiência e a lembrança folclórica das perseguições de Maria, a Sangüi- continuados nas ruas de Londres, dirigidos contra Strafford, os bispos da
nária, e de Filipe de Espanha Ihes haviam ensinado que o "papisrno " signi- Igreja da Inglaterra e os lordes "papistas", Essas atividades populares ser-
ficava escravização e "sapatos de madeira", constituindo o principal inirni- viam aos interesses do grupo radical no Parlamento e aos "separatistas"
go das "liberdades" inglesas. Isso era parte da ideologia tradicional do povo, religiosos e levaram à execução de Strafford em maio de 1641. Os manifes-
que a levou consigo para a revolução. Sob esse aspecto, não era necessária tantes, embora descritos por contemporâneos a eles contrários como "ralé
a imposição de novas idéias para que o povo tivesse uma experiência inte- grosseira", "pessoas inferiores" ou "cães cabeças-redondas", eram mais
lectual mais ampla. Mesmo assim, foram necessários os sermões dos preqa- freqüentemente artesãos e aprendizes (habitualmente filhos de homens de
dores, o pânico provocado pelas guerras na Escócia e na Irlanda, a crise "boa família"), e não criados, mendigos ou a "turba" comum. Essas mani-
econômica e a "tirania" de Carlos I para reacender a chama, criar uma irna- festações poh'ticas, porém, tinham geralmente conotacões econômicas: o
gem ainda mais vil do velho inimigo papista e aguçar ainda mais os temores pão era diffcil, e a manufatura estava em crise. A mesma combinação de
populares. motivação pai ítica e econômica entre a multidão encontra-se quando a agi-

6 Ibid.,pp.155.77.
7 Ibid., p. 115. ~ Hill, pp. 36-7.

L__
78 Ideologia e Protesto Popular Revoluções 79

tacão se estendeu depois da tentativa do rei de prender cinco membros do principais, uma secular e outra "religiosa", embora as duas, pelos motivos
Parlamento em janeiro de 1642 - a Kent, Sussex, Northampton e, parti- já explicados, se confundissem inevitavelmente. A linha mais secular asso-
cularmente, aos distritos onde era mais desenvolvida a manufatura de teci- cia-se com os level/ers e os diggers, os quais, embora seus programas dife-
dos, Essex e Suffolk. Esses distritos, que por longo tempo foram os centros rissem muito, ofereciam ambos soluções pol úícas e sociais para males ter-
mais dedicados à causa do Parlamento, sofriam de uma depressão econô- renos. Tais grupos surgiram dos acalorados debates entre oficiais do exérci-
mica aguda. to (favoráveis aos grandes comerciantes e donos de propriedades rurais)
Quando, passando à segunda fase, a guerra civil começou, em fins do e os "agitadores", que representavam as fileiras da tropa, realizados em
verão de 1642, houve insurreições populares generalizadas e espontâneas Putney em 1647. Alguns leve//ers pediam, a principio, a igualdade da pro-
nos condados do Norte e do Leste, que invocavam o nome do Parlamento priedade, merecendo assim o rótulo de leveller (nivelador) a eles aplicado
e eram dirigidas contra os "papistas", os "maldosos" e os "cavaleiros". pelos seus cr úicos. Mas, com a continuação do debate, o grupo principal
Homens e mulheres, da classe "média" e "inferior", delas participaram; de level/ers (inclusive John Lilburne, seu principal porta-voz) rejeitou as
observou-se que, mesmo nas agitações urbanas, os principais participantes idéias coletivistas, embora continuasse, em suas petições e manifestos, a
eram camponeses que vinham de suas vilas para ajudar os citadinos, com condenar o monopólio, a pedir a abolição do dízimo (com compensação
freqüência armados apenas de porretes e foices." No sul, os camponeses para os proprietários,' porém) e da prisão por dividas. e a reivindicar a
aproveitaram-se das condições incertas para revidar, atacando os parques reforma jurídica e o fim do cercamento das terras comuns e .não usadas.
de caça dos senhores e recusando-se a pagar o arrendamento. Assim, num Tiveram, portanto, uma pol (tica social de âmbito considerável, calculada
certo sentido, pelo menos nessas áreas a rebelião camponesa foi uma conti- para granjear o apoio dos pequenos proprietários, embora ficasse muito
nuação da que havia sido iniciada antes, de uma forma mais controlada, e aquém da aspiração mais radical dos pobres sem propriedades - os criados,
não teve relação direta com a luta entre o rei e o Parlarnento.!" Além disso, os miseráveis, os trabalhadores e os que não eram economicamente livres.
os levantes populares espontâneos em apoio ao Parlamento não foram mui- Na verdade, o principal grupo dos Levellers (os leve//ers "constitu-
to além do primeiro ano de guerra civil: uma vez terminado o medo inicial cionais") deixou esses grupos sociais (os pobres sem propriedades) de fora
que tinham dos "papistas" (ou pelo menos, desaparecido esse medo do não apenas de seu programa social como de seu próprio programa consti-
seu distrito), a colheita ao que parece melhorou e os camponeses se mos- tucional. Muita tinta já foi gasta sobre o problema de até onde foram os
traram ansiosos por retornarem aos seus campos. E também, a partir dessa leve/lers no caminho da democracia? Nos debates de Putney, havia quem,
fase, as "pessoas inferiores" - os camponeses e os citadinos mais pobres - como o coronel radical Rainborough, fosse a favor da ampliação do sufrá-
começaram a perder o entusiasmo pelo Parlamento, que não oferecia solu- gio para incluir todos os adultos do sexo masculino (inclusive o "menor
ção para os seus problemas.'! homem que existir na Inglaterra "I. Mas a decisão final de Lilburne e seus
A maior parte dos fazendeiros e artesãos, porém - os de "ruvel mé- companheiros, embora a formulação variasse por vezes, era em favor de
dio" =, continuaram a lutar e muitos chegaram a servir no New Model algo parecido com o voto familiar, mas excluindo não apenas os criados e
Arrnv, lado a lado com os "capitães de casaco de burel", de Cromwell, mendigos, como também todos os homens que trabalhassem em troca de
ao fim de 1644. Também os "religiosos" continuaram sendo partidários salãrlos.'? Esses grupos, portanto, na medida em que recusassem aceitar
decididos do Parlamento, e sa íam principalmente das camadas "médias" sua sorte, tinham de procurar defensores em outros crrcuíos. Estes surgi-
da popu lação , E foi dessas camadas médias, e não dos trabalhadores como ram, em suma, no movimento dos diggers, ou true leve/lers (verdadeiros
um todo, que uma nova ideologia popular da revolução, uma combinação niveladores), que pregavam a ocupação, pela força, das terras desocupadas
de elementos velhos e novos, começou então a surgir. Tinha duas linhas e das terras comuns, pelos pobres sem propriedades, o que se fez pela
primeira vez em St. George's Hill, perto de Cobham, em Surrey, no mês
de abril de 1649. Surgiram uma dezena de outras colônias de diggers, prin-
cipalmente no sul e no centro da Inglaterra, nos dois anos seguintes. Seu
9 Manning, pp. 186, 189, 222, 229.
10 ibid., pp. 202-15. Nas palavras de Manrunq: "A caça dos senhores e dos gamos em
fins do verão e no outono de 1642 tinha uma ligação remota com o desafio que
o parlamento fazia ao rei; os revoltosos com freqüência pouca simpatia tinham pelo
Parlamento ou interesse pelas disputas entre o rei e as duas casas" (p. 211). 12 Para interpretações recentes, ver C.S. Macpherson, The politícal theory af passes-
li Manning, pp. 186, 189, 222, 229. sive indívidualism, Oxford, 1962; Manning, pp. 308-40; Hill, pp , 86-120.

l-- _.
80 Ideologia e Protesto Popular Revoluções 81

principal representante foi Gerrard Winstanley, que não só formulou solu- Lawrence Clarkson, ex-batista que se transformou em ranter, acreditava
ções para males agrários como também imaginou uma comunidade coope- que "nenhum homem pode ser livre do pecado enquanto não tiver cometi-
rativa do futuro, na qual toda a propriedade seria comurn.P A obra de do esse pretenso pecado como não-pecado (... ) E nquanto não tivermos
Winstanley sobreviveu, para enriquecer futuras especulações sobre a socie- deitado com todas as mulheres como uma única mulher sem julgar isso
dade perfeita. Mas o movimento dos diggers teve vida efêmera e uma das pecado, não poderemos deixar de pecar".16 Essa tentativa de "revolução
razões disso foi ter despertado pouca simpatia entre os arrendatários livres sexual" da década de 1650, diz H ill, é um prenúncio interessante de certos
e pequenos proprietários, bem como entre os cidadãos "de nível médio", aspectos da "contra-cultura" da década de 1960. Mas uma questão mais
que representavam o corpo principal dos levellers. Isso não surpreende, relevante no presente contexto é qual o significado que isso teve para o
pois seus interesses como pequenos proprietários constituíam um obstá- protesto popular - a "revolução dentro da revolução" - dos revolucioná-
culo que os tornava tão relutantes quanto os senhores e a pequena nobreza. rios da Inglaterra do século XVII? Houve certamente uma ligação entre
em abrir as terras comuns à invasão pelos pobres rurais. Já antes da queda alguns dos sectá rios e o movimento polrtico radical - através de Winstanley,
dos diggers, porém, o movimento polrtico dos Levellers havia sido sufoca- por exemplo, e um de seus líderes, James Nayler, um quaker com fortes
do, depois de uma tentativa de amotinar o exército em maio de 1649. tendências a ranter e a level/er, escreveu em 1654, num artigo em que de-
Já se disse que os levellers "constitucionais", por suas concessões e nunciava os ricos, que Deus "fez todos os homens do mesmo molde e
hesitações em perturbar as classes proprietárias, não discordavam funda- sangue para viver na face da Terra"."? Parece, também, que os ranters en-
mentalmente do tipo de sociedade capitalista que surgia da revolução ingle- contraram adeptos em Londres e no exército entre os aprendizes e os [o-
sa.!" Feito sem outros comentários, esse juízo parece excessivamente rigo- vens.18 Pode ter havido, portanto, um "hiato de gerações" entre os parti-
roso, pois a tentativa dos Levellers de criar uma democracia de pequenos dários e adversários das seitas. Hill também sugere, sem entar em detalhes,
produtores ainda não havia (apesar dos gregos antigos) sido feita antes, -, que os ranters e os seekers tinham uma mensagem particular para os "ho-
nem voltaria a ser, até a revolução na França, século e meio depois. Não mens sem patrão", que se ressentiam da autoridade, tendo sido sugerido
obstante, é certo que os levellers falávam por uma classe que esperava até mesmo (mas não por Hill) que os ranters em particular tinham uma
ampliar suas propriedades dentro de uma sociedade aquisitiva e não tinha, atração "proletária". Pode ser, mas é diflcil de provar. Se assim fosse, e se
portanto, qualquer intenção de, uma vez terminado seu período de imatu- essas noções podem ser consideradas, com justiça, como parte da ideologia
ridade, "virar o mundo de cabeça para baixo". Mas isso, de acordo com dos jovens e dos pobres, teremos de indagar se foi como protesto ou como
Hill, era precisamente o que as seitas religiosas radicais - os rsnters, seekers compensação pelo que a revolução deixou de oferecer. ~ certo que, para o
e quakers - pretendiam fazer. inglés do século XV 11, a religião, inclusive suas manifestações menos orto-
Como Winstanley, com quem essas seitas tinham uma certa afinidade doxas, podia ser uma arma vital no arsenal do protesto; e onde estariam
intelectual, elas rejeitavam o Pecado e o Inferno, bem como a Ética Protes- John Lilburne, ou o "capitão" de Cromwell, ou mesmo o próprio Crom-
tante, que era um elemento central no ensinamento calvinista tradicional. well, sem ela? Mas os gritos e gestos de desespero dos sectários parecem-se
A mais extremada delas, os renters, deram uma volta teológica completa mais a um recuo do que a uma chamada em favor de um avanço para um
rejeitando Deus e a imortalidade. "Tudo (é) feito pela Natureza", procla- futuro melhor. Sob esse aspecto, podem ter desempenhado um papel seme-
mava um cartão de Natal dos ranters, citado por Hill , "Eles vivem tagare- lhante ao das seitas evangélicas da Grã-Bretanha do século XI X, que ofere-
lando sobre Deus", continua o cartão, "mas não existe esse espantalho". 15 ceram aos ex-militantes trabalhistas que nelas ingressaram uma compensa-
Numa séria violação da ética calvinista, a liberdade sexual tornou-se um ção pelas derrotas temporais.!? E, como prova dessa interpretação, Hill
dos pontos de destaque da filosofia dos ranters. Um de seus representantes, nos diz que vários dos seekers mais conhecidos tinham ligações radicais
Abiezer Coppe, pregou em certa ocasião que "o adultério, a fornicação, a
sujeira, não são pecados" e que "a comunidade das mulheres é legal".

16 Ibid., p. 254.
17 Ibid., p. 199.
13 Sobre Winstanley, ver Hill. pp. 86-99,267-75; e C. Hill (orq.l , Winstanley. The law 18Ibid.,p.152-3.
of freedom and otber writings. Londres, 1973. 19 Para provas dessa interpretação, ver E.P. Thompson, Tbe making of the english
14 Hill, The wortd rumed upside down , p. 99. working cless, Londres, 1962, pp. 427-9. E.J. Hobsbawm, Labouring men , Nova York,
IS tbid., p. 148. 1965, pp. 22-33; e Hobsbawm e Rudé, Captain swing, Londres, 1969, pp. 288-91.
82 Ideologia e Protesto Popular

anteriores, e se haviam decepcionado, ou mesmo desmoralizado, com a


incapacidade mostrada pelo exército para criar uma sociedade democrática
depois de 1647.20 É certamente significativo que os rsnters, os seekers e
2
outros só tivessem florescido em princ (pios da década de 1650, isto é, de-
pois que os tevellers, os mais coerentes defensores de uma sociedade igua-
A REVOLUÇAO AMERICANA
litária, haviam sido reduzidos a um virtual silêncio.
Assim, em termos de protesto popular, ficamos com os levellers e
os diggers. Destes, os segundos deixaram uma literatura considerável, mas
nenhuma marca no curso da História - o que só os levellers fizeram. F alha-
rarn , reconhecidamente, quanto a conquistar seu grande objetivo de uma
sociedade de pequenos produtores. Não obstante , conseguiram, ainda que
temporariamente, a república que haviam desejado. Deixaram também um
A sociedade norte-americana da década de 1760 diferia, em vários aspec-
legado que é difícil de descrever precisamente, embora algumas de suas
tos, da sociedade inglesa de um século antes. E ntre outras coisas, não havia
idéias democráticas fossem transportadas, com os commonwealthmen,
na América do Norte nenhum vestígio significativo do sistema feudal, que
para os Estados Unidos:" e, não fosse pelo desaparecimento da atividade
não se incluiu entre os remanescentes que acompanharam os colonizadores
popular na Inglaterra depois de Sedgemoor (1685), seria mais fácil mapear
ao novo continente em princípios do século XVII, nem as condições que
de maneira mais exata a influéncia que tiveram sobre o movimento popu-
estes encontraram do outro lado do Atlântico eram propícias à sua repro-
lar-democrático, e não mais sobre o setor particular dos homens do "ruvel
dução. Não havia os pares hereditários nem os senhores rurais do tipo bas-
médio", que começou novamente em meados do século XVIII na Inglater-
tard-feudal que ainda sobreviviam na Inglaterra quando foi deflagrada a
ra. Nesse sentido suas idéias, embora tenham permanecido subterrâneas
guerra civil. Os pequenos proprietários e agricultores, embora ainda tives-
durante a Restauração, voltaram à superfície um século depois. E Hill cita
sem problemas com a terra e os arrendamentos, pouca semelhança guarda-
as palavras de um inimigo dos radicais do exército, Clement Walker, que
vam com os camponeses que, no continente europeu, continuaram a existir
podem servir de epitáfio:
até o século XI X ou mesmo até o século XX. Mas, por outro lado, uma
Eles revelaram todos os mistérios e segredos do governo (... ) aos vulgares (. .. ) e parte considerável da economia norte-americana, embora nunca tivesse si-
ensinaram tanto à soldadesca como ao povo a olhar para dentro deles, a ponto de tor-
do feudal no sentido europeu, era operada pelo trabalho escravo de 500 mil
çar todos os governos aos primeiros princípios da natureza (. .. I. Com isso tornaram as
pessoas tão curiosas e tão arrogantes que jamais terão humildade suficiente para se negros, e as relações sociais que prendiam estes aos donos de escravos nas
sujeitarem a um governo civil22 plantações de algodão e fumo do Sul, embora, em suas origens, remontas-
sem ao tráfico escravista das nações européias - França e particularmente
Grã-Bretanha -, não tinham equivalente, mesmo levando-se em conta os
bolsões de escravidão na Rússia de Catarina, nos Estados europeus.
Sob alguns aspectos importantes, porém, havia grandes semelhanças
entre a sociedade inglesa e a norte-americana na época em que se encerrou
a Guerra dos Sete Anos. Uma delas era, é claro, a religião, pois a tendência
puritana em grande parte do pensamento pol ítico norte-americano foi, co-
mo bem se sabe, uma conseqüência do puritanismo inglês. Nos dois países,
a gentry, através da propriedade da terra, teve um papel predominante, so-
cial e político. Em ambos, o capitalismo estava ainda na fase mercantil, e
os comerciantes (e não os fabricantes) é que controlavam as questões rela-
cionadas com indústria e comércio. Mesmo aqui, porém, havia diferenças
significativas. Uma delas era a de que, enquanto Londres, principal porto e
20 Hill, p. 154. capital, tinha, em meados do século, uma população de cerca de 700 mil
21 Caroline Robbins, The eighteenth-century commonwealth, Cambridge, Mass., 1959. habitantes, Filadélfia, a maior cidade e porto das Treie Colônias, tin'hauma
22 Apud Hill, p , 58.

83
84 Ideologia e Protesto Popular Revoluções 85

população de 25 mil habitantes. Isso complica o problema de se procurar ferior da sociedade, que, em Boston em 1687, controlavam 9% da riqueza tributável.
comparar a vida urbana e as atividades das duas comunidades. A outra ficaram coletivamente com apenas 5% em 1771. Em Filadélfia, os situados na metade
inferior do espectro da riqueza viram sua parcela de bens cair de 10,1 para 3,3% no
grande diferença - e era fundamental - estava em que, enquanto os co-
mesmo períod02
merciantes e a gentry inglesa podia esperar uma atenção cuidadosa do Par-
lamento para com seus desejos, os norte-americanos, não tendo instituições Continuando a ilustrar, o autor mostra, examinando os dois pólos existen-
representativas centrais próprias, tinham sua sorte decidida por outros. tes no interior da sociedade "popular", o "desmoronamento da segurança
Conseqüentemente, a Revolução Americana, quando foi feita - em 1765 econômica da classe média" e o aumento notável no dispêndio per capita
ou em 1766, dependendo do capricho dos historiadores - deveria ter fatal- na assistência aos pobres, que duplicou em Boston entre 1740 e 1760, do-
mente como seu primeiro objetivo a criação de um Parlamento da escolha brando novamente antes do fim do período colonial, ao passo que em
dos próprios colonos, bem como o exame da questão da soberania nacional Nova York a incidência da pobreza aumentava quatro vezes entre 1750
e do afrouxamento ou rompimento dos laços que a ela se opunham. e 1775.3
Mas, embora esse tivesse de ser o objetivo principal, com o qual con- Sendo esses os problemas, não é de surpreender que, particularmente
cordavam todas as classes com diferentes graus de entusiasmo (exceto, para- em épocas de crise econômica, como em princípios da década de 1760 e
doxalmente, aqueles que realmente necessitavam da liberdade - os escra- 1770, tenha havido uma reação popular, na forma de agitações e levantes,
vos).' os norte·americanos, como os ingleses ou os franceses, estavam divi- que ocorreram de maneira intermitente nas cidades e no campo. No inte-
didos entre si e teria portanto de haver o conflito social que precedeu à rior, houve três explosões principais: os levantes agrários de Nova Jersey na
luta pela independência nacional e com ela se fundiu, ou que a acompa- década de 1740; as agitações dos arrendatários no Vale do Hudson nas déca-
nhou paralelamente, quando a revolução irrompeu. Os historiadores discor- das de 1750 e 1760; e a insurgência a nordeste de Nova York que, começan-
daram, naturalmente, quanto à importância desse segundo conflito, mas do em 1764, só terminou quando foi deflagrada a guerra, com a criação do
sua existência não oferece quaisquer dúvidas. Sua configuração, e as ques- estado separatista de Vermont, em 1777. Em cada um desses casos, a ques-
tões que suscitou, diferiram, naturalmente, na cidade e no campo. Neste tão não foi tanto a ocupação individual, mas as condições de ocupação
último estavam os latifundiários, de um lado, e os pequenos agricultores e existentes em comunidades rurais inteiras. Em conseqüência, tais movi-
pequenos proprietários, do outro: a questão que os colocou em choque foi, mentos tenderam a ser demorados, e não erupções breves ou súbitas. Ten-
na maioria dos casos, a ocupação ou a propriedade da terra (e não a escas- deram também a ser melhor organizados do que os levantes urbanos, exce-
sez de alimentos, como ocorreu com freqüência na Europa daquela época). to no Vale do H udson, onde o movimento ocorreu em duas etapas, das
Nas cidades maiores (Filadélfia, Boston, Charleston e Nova York) estavam. quais a segunda (a de 1766) foi melhor organizada e mais estruturada. Os
de um lado, os comerciantes ricos, que se tornavam sempre mais ricos e revoltosos elegeram formalmente um líder, William Prendergast, um agri-
mais poderosos com o passar do século e, do outro, os artesãos mais prós- cultor de Dutchess, e uma comissão de doze; além disso, formaram compa-
peros, os artesãos e trabalhadores menores, para os quais bons salários e nhias de mil ícias com capitães eleitos em seu comando. Os insurgentes de ,

condições de trabalho e comércio eram assuntos de importância primor- Nova Jersey foram mais longe: nomearam uma comissão coordenadora an-
dial. A essência da questão era a crescente concentração da riqueza em nú- tes mesmo que a luta começasse, dividindo-se em alas, recolheram impostos e
mero cada vez menor de mãos nas principais cidades da América do Norte. criaram seus tribunais próprios, no curso da disputa. Os rebeldes de Nova
Depois de estudar essa questão com a ajuda de registros tributários e de su- York, em princípios da década de 1770, formaram uma força militar a
cessões, Gary Nash, de um grupo de jovens historiadores radicais, escreve: que deram o nome de Green Mountain Boys (Rapazes da Montanha Ver-
Em principias da década de 1770, os 5% da cúpula dos contribuintes de Boston con- de), para cuja dispersão teria sido necessário o próprio Exército Britânico
trolavam 49% dos bens tributáveis da comunidade, embora esse número fosse, para (então ocupado em outras atividades]." .
1687, apenas 30%. Em Filadélfia, os vinte maiores contribuintes aumentaram sua
parcela da riqueza de 33% para 55% entre 1693 e 1774. Os localizados na metade in-

G. Nash, "Social Change and the Growth 01 Prerevolutionary Urban Radicalism",


in A. Young (org.l, The American Revolution. Explorations in the History of Ameri-
1 Os historiadores escreveram que um negro ICrispus Attucksl foi morto no "massa- can Radicalism [citado aqui como Explorationsl, DeKalb, 1976, p. 7.
cre" de Boston e que muitos outros lutaram em Bunker Hill; mas é mais provável que 3 Ibid., pp. 8-9.
os negros se tivessem colocado ao lado da I nglaterra, do que dos norte-americanos, e 4 Edward Countrvrnan. "Out of the Bounds of the Law. Northern Land Rioters in
sua luta pela libertação da escravidão não ocorreria senão mais de 50 anos depois. the Eighteenth Century", in Explorstions, pp. 37·69.
86 Ideologia e Protesto Popular Revoluções 87

Nas cidades, as explosões populares foram naturalmente mais varia- trução pol ítica de um grupo de comerciantes radicais, entre os quais James
das e tenderam a ser também mais espontâneas. Tenderam a inda a ter Otis e Samuel Adarns.?
maior relação com a pol ítica (e certamente numa fase anterior) do que os Os motins da Lei do Selo de 1765 marcaram uma nova etapa. Assina-
movimentos semelhantes na Inglaterra. Pauline Maier argumentou que mui- laram, entre outras coisas, o ponto a partir do qual a "resistência" (termo
tas revoltas do século XVIII na Amérida do Norte, rurais ou urbanas, fo- de Pauline Maier) dos norte-americanos às autoridades britânicas tornou-se
ram do tipo vigilante e que, através delas, o povo comum buscou defender contínua até o rompimento das relações e a guerra em 1776. Assinalaram
os interesses de suas comunidades quando as autoridades legais deixaram também o ponto em que as multidões urbanas de trabalhadores, artesãos
de íazê-lo. Ela cita, entre seus exemplos, a intervenção freqüente da mas- e marinheiros, tomando elas próprias a iniciativa ou seguindo a liderança
sa da população de Boston para limitar a propagação das casas de tolerân- dos "patriotas" da classe média, começaram a parecer aos seus antigos I íde-
cia e manter os alimentos na colônia, em épocas de escassez.! Outros histo- res de classe média como uma ameaça quase tão grande quanto seus opres-
riadores - notada mente Gary Nash, Edward Countryman e Dirk Hoerder sores britânicos. O exemplo mais conhecido desse tipo de iniciativa combi-
(todos colaboradores do volume "radical" de Alfred Young) - questiona- nada (e da ideologia mista que há sob ela) talvez sejam os acontecimentos
ram esse ponto e substitu íram a noção de "comunidade" pela de "classe". de Boston em agosto de 1765, quando os líderes whig, conhecidos como
Insistiram em que, depois da década de 1730 pelo menos, as manifesta- os Nove Fiéis, organizaram a oposição aos novos impostos criados pelos in-
ções populares na América do Norte, como as ocorridas na Europa, surgi- gleses. Concitaram os mestres artesãos do norte e do sul da cidade a pôr
ram tipicamente em reação ao agravamento das condições econômicas, en- fim à sua tradicional disputa sobre as comemorações do Dia do Papa e, va-
volvendo o desemprego e o aumento dos preços, e que, antes mesmo de lendo-se de sua longa experiência, cerraram fileiras numa manifestação pa-
meados do século, os motins urbanos haviam começado a assumir um cará- cífica. Como ato de resistência simbólica, permitiram-se carregar efígies
ter político que se harmonizava com as necessidades de classe dos grupos das autoridades responsáveis pelo selo e chegaram até mesmo ao ponto de
de cidadãos "médios" e pobres. Em Boston, num dos maiores levantes da derrubar um edifício ainda em construção que pertencia a Andrew Oliver,
primeira metade do século, em 1737, os amotinados, indignados com o um mestre do selo. Mas, a essa altura, a multidão assumiu o controle, aban-
controle do mercado público pelos interesses dos grandes comerciantes, donando a orientação 'dos Iíderes, e transformando a manifestação pac ífica
destruíram o mercado em Dock Square, sendo o ataque acompanhado de num ataque violento às mansões de Oliver e Hutchinson. Acontecimentos
muita "falação contra o governo & os ricos ... ".6 Nasch argumenta que o semelhantes em Nova York tiveram resultado ainda mais violento. Em con-
início de um despertar político popular foi apressado pelo "despertar" reli- seqüência disso, a Lei do Selo foi revogada; um outro resultado, ainda mais
gioso provocado nas ruas de Boston e da Filadélfia por George Whitefield e significativo, foi que tais motins criaram uma distância entre as multidões
seus companheiros revivalistas em 1739 e 1741, e por um pregador itine- de classe média. E, como observou o general Cage, comandante-em-chefe
rante, James Davenport, que os seguiu com uma mensagem escandalosa- britânico, num exame retrospectivo dos acontecimentos, " ... houve, a par-
mente radical dirigida às classes mais pobres e que provocou considerável tir de então, tantos esforços para impedir as insurreições do Povo quanto
preocupação entre os cidadãos conservadores. O radicalismo popular dese- antes esforços houvera para provocá-Ias". Assim, a partir de então - ao
volveu-se ainda mais com o levante de 1747 contra o recrutamento forçado longo de episódios como dos impostos Townshend e da não-importação,
em Boston que, quase duas décadas antes dos motins da Lei do Selo, colo- do caso do Libertv e do anti-recrutamento, do "Massacre" de Boston e do
cou o povo em confronto com Thomas Hutchinson, um comerciante rico caso do chá - as relações entre a multidão e os líderes whig ou liberais
e amigo do governo, que mais tarde se tornaria vice-governador, presidente continuaram nitidamente frias. E, com freqüência, como aconteceu em
do conselho e principal juiz da colônia. Na prolongada campanha que se relação ao recrutamento, os marinheiros, os trabalhadores e artesãos foram
seguiu, durante a qual Hutchinson foi se tornando cada vez mais impopu- entregues à própria sorte. Depois de 1774, com a ocupação militar britânica
lar, os artesãos e trabalhadores contaram com a liderança e receberam ins- em apoio à "coerção", as massas de Boston silenciaram; e os "patriotas"
tiveram que defrontar-se com um radicalismo popular mais estruturado e
menos violento."

7 Ibid. pp. 18-27. I


P. Maier, From resistance to revolution, Nova York, 1972, pp. 3-5. 8 Ver, a respeito, principalmente Dirk Hoerder, "Boston Leaders and Boston Crowds,
Apud Nasch, p. 15. 1765-1766", in Exploretions, pp. 235-62.
Ideologia e Protesto Popular Revoluções 89
88

Filadélfia, que era a maior cidade norte-americana, e o maior porto, escola argumentaram que, uma vez que as massas na América não esta-
possuía uma diversidade de população e de otfcios maior até mesmo do vam empobrecidas (como as massas francesas em 1789). nem sofriam pri-
que a de Boston ou de Nova York. Como em Boston, seus artesãos (tanto vações extremas, deve-se supor que com a crise da Lei do Selo e as medidas
os "trabalhadores manuais" como os "artesãos inferiores") e trabalhadores coercitivas tomadas contra Boston, passaram a partilhar da ideologia dos
tinham uma longa história de lutas contra a pobreza, o desemprego e os comerciantes e da pequena aristocracia.
aumentos de preços, e (como convinha a uma cidade de rápido crescimen- Os colaboradores do volume Exploretions, de Young, discordaram
to industrial) seus artesãos, em particular, já se haviam tornado "um grupo geralmente dessa opinião, acreditando que a camada "inferior" de cidadãos
polltico consciente, com suas próprias organizações e r eivindicações'"? A tinha impulsos ideológicos próprios. Entre eles Joseph Ernst faz a pergun-
ta, muito pertinente: "Que americanos, ou grupos de americanos, subscre-
primeira reunião política restrita a esses trabalhadores manuais ocorreu
em 1770. Dois anos depois, os mestres artesãos fundaram a sua Sociedade veram quais interpretações, e por quê?", E argumenta que houve realmente
Patriótica, para promover seus próprios candidatos e a pai ítica de seu inte- três tipos de ideologia, refletindo os interesses dos diferentes grupos so-
resse. Além disso, na época da chegada de Thomas Paine à cidade (1774), ciais. Em primeiro lugar, havia a ideologia "do alto", do tipo de Baylin,
que se centralizou no princípio constitucional e foi, portanto, peculiar à
havia sido criada uma milfcia, recrutada em grande parte entre os artesãos
gentry ·e a outros grupos que se ocupavam do governo e eram capazes de
e trabalhadores, elegendo seus próprios oficiais entre os comerciantes, e
que, como o New Model Army da época de Cromwell, começou a criar compreender e reagir a abstrações filosóficas. Em segundo, havia a ideolo-
uma "escola de democracia pol ítica" às vésperas da revolução. Não foi, na gia mais terra a terra dos homens práticos - comerciantes e trabalhadores
- que se poderiam unir numa oposição comum às conseqüências econômi-
verdade, por coincidência, que Filadélfia, onde o radicalismo popular che-
cas do "sistema imperial", não obstante se dividirem em relação aos melho-
gou ao auge antes da Guerra da Independência, foi escolhida por Paine pa-
ra sua residência quando veio para a América em 1774; foi ali que escre- res meios para acabar com ele, envolvendo questões imediatas como a
"não-importação" ou a proteção da indústria local. E, em terceiro, havia
veu seu grande trabalho, Common Sense, menos de dois anos depois.'?
a ideologia menos sofisticada - a "mentalidade" ou "ideologia de beira
Antes de examinarmos como se desenvolveu a ideologia popular, de-
de calçada" - dos pobres urbanos, dos desempregados e famintos, que
vemos estudar brevemente o conjunto de idéias que inspiravam os "patrio-
(insiste ele) deve ser distinguida da ideologia das classes "artesanais e
tas" das classes altas - a gentry e os comerciantes - e os levaram, através
trabalhadoras't.P
da "resistência", ao passo fatal da revolução. A velha tese apresentada por
Maior ênfase é dada à ideologia das classes inferiores - sejam arte-
Charles Beard e os "progressistas", de que a revolução se podia explicar em
. .'1 sanais ou de trabalhadores pobres - pelos outros críticos de Baylin neste
grande parte em termos de um conflito de interesses econômicos, foi hoje
volume - Nash, Hoerder, Foner, Countryman. E é só através de colabora-
em dia igualmente abandonada tanto pelos historiadores radicais e como
ções como as suas (e Jesse Lemisch não deve ser omitido) que podemos co-
pelos liberais. A alternativa liberal mais popular foi a apresentada por Ber-
meçar a acompanhar o desenvolvimento de uma consciência popular revo-
nard Baylin a partir de meados da década de 1960. Diz ele em geral que,
embora o choque de interesses econômicos não possa ser esquecido, os lucionária através de suas várias etapas: desde as crenças puramente "ine-
rentes" e tradicionais que estiveram na base dos primeiros levantes até o
colonos que herdaram uma tradição inglesa de resistência à "tirania" e ao
envolvimento pol ítico e o compromisso com a revolução, Podemos, de
governo arbitrário, convenceram-se depois de 1763, que o governo inglês
fato, seguir essa evolução voltando as evidências mencionadas antes. Pri-
pretendia impor à América do Norte grilhões semelhantes aos que os pró-
meiro, as décadas anteriores, caracterizadas por uma atividade em grande
prios ingleses haviam estado sujeitos sob os Stuarts, um século antes. Nas-
ceu assim a noção de uma "conspiração contra a liberdade". E foi a con- parte independente voltada para questões como os preços dos alimentos e
vicção crescente da existência dessa "conspiração" que, "acima de tudo o desemprego e mesmo pela atividade das massas como um cão de guarda co-
(... ) levou os colonos à revolução."!' E, como corolário, Baylin e sua munal facilmente tolerado (como insiste Pauline Maier). Nessa fase, os
motins populares parecem ter sido inspirados pelas noções tradicionais de

9 Eric Foner, "Tom Paine's Republic: Radical Ideology and Social Change", in
Exploratians, pp. 194-6.
10 lbid., pp. 194-7.
Ii B. Baylin, Tbe ídeological origins ot the Amerícan Revolutions, Harvard, 1967, 12 J. Ernst, "Ideology and an Economic Interpretation of the Revolution", in Expio-

p. 95; apud Nash, p. 5. rstions, pp. 161-82.

------
90 Ideologia e Protesto Popular Revoluções 91

justiça ou propriedade social; isto é, sem nenhuma intrusão, ou com pouca, propriedades de dois inimigos tradicionais e ameaçando destruir mais uma
da orientação pol Itica e ideológica de outros grupos. dúzia delas. Assim, a ideologia da multidão, embora enriquecida e passando
A partir de meados do século, o cenário se modifica e, como o exem- a contar com um enfoque mais preciso graças aos "patrióticos", whigs,
plo de Boston bem ilustra, houve um breve período de talvez uns doze anos também se valeu de tradições mais antigas e de experiências próprias. I 5
durante o qual surgiu um novo radicalismo pol (rico, levando os artesãos e Em Filadélfia, como já vimos, o radicalismo popular tomou forma
trabalhadores a uma aliança com um grupo radical de classe média, no cur- mais cedo e chegou a uma fase de amadurecimento superior antes da Guer-
so da qual os elementos populares e "intermediários" se articularam contra ra de Independência. Mas, por quanto tempo esse radicalismo popular con-
os comerciantes ricos e os aspirantes conservadores a altos cargos como tinuou a marchar em uníssono com o dos "patriotas" da classe média? E,
Thomas Hutchinson. A essa altura, o alvo da hostilidade popular era, mais em aliança com os "patriotas" ou não, terá ele conservado existência inde-
freqüentemente, o inimigo interno, na forma do comerciante rico, do que o pendente depois que a guerra explodiu? As evidências recolhidas pelos his-
inimigo imperial externo. Mas não houve nunca uma linha de separação toriadores quanto a esse ponto são muito frágeis. Em Boston, como já vi-
nítida entre os dois e a hostilidade à Inglaterra poderia surgir facilmente mos, a multidão deixou de se manifestar depois de 1774, em grande parte
entre as classes mais pobres antes que a nova política de tributar as colô- devido à presença dos soldados, mas talvez também porque a tolerância
nias fosse proclamada em Westminster em 1763. Uma queixa antiga dos oficial para com as multidões, sobre a qual escreve Pauline Maier, se ti-
bostonianos era sua freqüente sujeição ao recrutamento para a Marinha vesse então reduzido bastante, Em Filadélfia, onde o radicalismo popular
Real. Numa dessas ocasiões, em 1747, o povo reagiu vigorosa mente, to- certamente se manteve ativo, passou a ser dirigido para canais mais dura-
mando conta da cidade e sitiando o governador em sua mansão. E certa- douros de organização pol ítica e militar e desempenhou certo papel na for-
mente pouco contribuiu para a futura popularidade de Hutchinson o fato mação da Constituição da Pensilvânia de 1776. Mas, quase inevitavelmente,
de ele próprio ter se destacado como o defensor público da pol ítica do a guerra provocou profundas divisões não só entre os "patriotas" de classe
qovernador.' ' inferior e seus aliados, mas dentro do próprio radicalismo popular. A uni-
Não obstante, repetindo o que dissemos antes, a crise da Lei do Selo dade continuou, ao que parece, na luta contra o monópolio e a inflação
de 1765 foi o ponto decisivo, pois o movimento popular fundiu-se então durante 1779, mas, um ano depois, quando os artesãos se separaram dos
com o movimento dos "patriotas" de classe média, passando a Grã-Breta- artesâos pobres e dos trabalhadores em relação aos méritos relativos do
nha a ser, para ambos, o principal inimigo. Um aspecto dessa transição, em laissez-faire e dos controles, um grupo de milicianos, representando o últi-
termos de ideologia, é o descrito por Alfred Young em seu estudo do ritual mo grupo, marchou sobre a cidade, no motim de "For t Wilson". Esse in-
do tradicional Dia do Papa em Boston: mais ou menos nessa data (diz ele) I,
cidente, somado à conversão gradual de Thomas Paine ao Iaissez-faire r di-
a velha cerimônia protestante da queima do Papa, que datava dos dias de vidiu o movimento radical popular que, na década de 1780, deixou de ter
Guy Fawkes, foi transformada na queima, em efígie (outro antigo costume impacto sobre a guerra ou a vida pol ítica da cidade.t "
inglês) dos ministros de Sua Majestade.14 O outro aspecto, mas concreto, Portanto, o radicalismo popular, seja na forma de atividade das mas-
foi revelado nos acontecimentos de agosto de 1765, quando (devemos lem- sas ou de organização pol ítica, parece ter desempenhado um papel decres-
brar) os "patriotas" de classe média dos Nove Fiéis, para demonstrar seu cente uma vez iniciada a guerra. Pode-se até mesmo duvidar se, fora das
descontentamento com a política britânica, convocaram uma marcha pa- cidades maiores e das áreas rurais do norte, teve qualquer influência no
cífica dos artesãos da cidade. O povo comum, porém, que tinha queixas sentido de levar o povo comum para a causa "patriota". Mas, à falta de um
mais antigas e mais variadas, embora atendendo ao chamado dos "patrio- conhecimento mais seguro, podemos deixar a resposta a Alfred Young:
tas", também aproveitou para vingar-se de velhas ofensas, destruindo as Dadas as desigualdades da sociedade colonial [que se ayravaram muito durante a guer·
ral, o caráter pró-dcrnocrático do cenário político e o caráter pré-moderno da vida de
grande parte do pais. não deve surpreender-nos o fato de que muitos norte-america-
nos comuns tivessem prioridades maiores do que a libertação do dornmio da Grã-Bre-

13 Para o melhor estudo da reação dos marinheiros ao recrutamento em fins do


período colonial, ver Jesse Lemisch, Jack Tar in lheSt ree t. Mer chant Seamen in
the Politics of Revolutionary America", William & Mary Ousrterlv; 25 119681, pp.
371-407.
14 O estudo de Alfred Young, "The Crowd in the Coming of the Revolution: from I S Nash, in Explorations, pp, 27·32.
Ritual to Revolution in Boston", ainda aguarda publicação.

J
16 Foner, pp. 197·220.
92 Ideologia e Protesto Popular

tanha. Os negros queriam sua liberdade pessoal, os agricultores sem terra queriam ter-
ras e as mulheres queriam continuar a preocupar-se com sua "esfera" tradicional, a
manutenção do lar. Talvez o que devesse nos intrigar seja justamente que tantos ou-
tros nor te-arner icanos de situação humilde tenham colocado suas aspirações na inde-
pendência. Os historiadores ainda não focalizaram proporcionalmente o assunto.!? 3

A REVOLUÇÃO FRANCESA

De todas as revoluções, tenham elas irrompido em épocas industriais ou


"pré-industriais", nenhuma foi tão bem documentada quanto a grande
Revolução Francesa do século XV" I, e, em nenhuma outra, o historiador
teve acesso a uma tão rica coleção de documentos relativos à vida, às ati-
vidades e ao modo de pensar do povo comum. Portanto, o problema, neste

\ cap (tulo , não será tanto reunir as evidências existentes, mas fazer uma sele-
ção cuidadosa do abundante material de modo a mantê-Ias dentro de limi-
tes razoáveis.
Como já se observou muitas vezes, a sociedade francesa às vésperas
da Revolução era mais trpica do Antigo Regime do que qualquer outra da
Europa. Suas principais caracterrsticas eram: monarquia absoluta, ainda
muito semelhante à criada por t.urs XIV mais de um século antes; uma
aristocracia mantida pelo privilégio e pela riqueza; um sistema de proprie-
i'· dade da terra que ainda era essencialmente feudal;' uma burguesia comer-
cial que rivalizava com a inglesa em riqueza e posição, mas à qual faltavam
todos os meios de controle pol (tico: uma burocracia de altos funcionários
(detentores de otrcios) venais (e isso é peculiarmente francês) que se havia
tornado rica e independente a ponto de ameaçar a segurança do trono que
a havia criado: um imenso campesinato (havia um camponês para cada sete
ou oito habitantes), a maior parte do qual estava legalmente livre, mas en-
contrava-se presa ao seu seigneur (como já vimos) por numerosos serviços
e obrigações que sobreviviam do passado medieval. E nas cidades, como
também ocorria na Rússia, Prússia, Itália, Inglaterra e Espanha, uma gran-
de população urbana envolvida em numerosos otrcios e ocupações, em

lOusa da palavra "feudal" é, aqui, obviamente controvertido, mas o autor não se


sentiu suficientemente convencido pelos argumentos apresentados por um grupo de
historiadores "revisioriistas" britânicos e norte-americanos Iprincipalmentel, p.ara

j
17 A. Young, no "Posfácio" de Explorations, p. 453 abandoná-Ia

93
____ . 10... - __ h I
Revoluções 95
94 Ideologia e Protesto Popular
ideologia revolucionária que possibilitasse à burguesia - os novos gqver-
sua maioria pobre, dependendo, para a sua sobrevivência, do pão barato
nantes - e ao povo comum fazer causa comum da destruição dos privilé-
e abundante. gios .da aristocracia e do absolutismo real. De onde veio essa ideologia? No
Todos esses grupos e classes sociais eram potencialmente revolucio-
caso da burguesia, não é difícil responder à pergunta. Assim como os revo-
nários ou estavam empenhados em alguma forma de mudança pol ítica e
lucionários ingleses do século XVII foram inspirados pela Bíblia e pela afir-
social. A aristocracia, dividida entre a nobreza hereditária e a noblesse de
mação tradicional do Parlamento de suas "liberdades" contra o rei, assim
robe (enobrecida pela compra de of rcios}. mas capaz de unir-se em momen-
Q.S revolucionários franceses de classe média tiveram sua ideologia de uma
tos de crise, buscava fazer pender em seu favor o equillbrio de forças que
fonte puramente secular: os escritos dos phi/osophes' do século XVIII,
Ihes fora imposto por Luis XIV um século antes quando lhes retirou todo
particularmente os de Housseau e Montesquieu, de cujos ensinamentos
o controle pol ítico efetivo - na verdade, todo o século foi marcado pelas
aprenderam a proclamar os princlpios do Contrato Social, dos Direitos do
tentativas periódicas da aristocracia no sentido de recuperar seu poder. A
Homem e Soberania Popular. E esses princípios, através detodas as mudan-
burguesia queria uma posição social mais elevada e uma parcela do governo
ças e vicissitudes da revolução, continuaram sendo as linhas mestras básicas
compatível com sua riqueza. Os camponeses queriam livrar-se de todos os
da burguesia revolucionéria.
õnus feudais sobre a terra e (a maioria deles) preservar sua comunidade O povo comum - os camponeses e o menu peup!e urbano - veio a
aldeã tradicional. E o menu peup/e urbano (as classes mais pobres) queria
adotar vocabulário e idéias semelhantes, como já fica evidente pelos seus
um governo que Ihes garantisse um abasteci mento regular de alimentos
s/ogans e ações nos meses ou semanas que antecederam a queda da Bastilha.
baratos, em particular o pão (seu principal alimento).
Mas, basicamente, como vimos em capúulo anterior, essas classes entraram
Não é de surpreender, portanto, que as sucessivas crises econômicas
na Revolução com idéias próprias, "inerentes" e tradicionais: os campone-
das décadas de 1770 e 1780, a que nos referimos em capitulo anterior."
ses reivindicavam a terra e a manutenção da integridade da sua comunidade
quando agravadas por uma crise financeira que se seguiu à Guerra Ameri-
aldeã." e os pobres urbanos exigiam um "preço justo" na distribuição do
cana, tivessem resultados tão explosivos. pão. Mas como chegaram a ampliar seus horizontes e, inclusive, a desenvol-
Como se sabe, a aristocracia foi a primeira a reagir, com o movimento
ver uma ideologia polúica mais ampla, derivada da ideologia recentemente
conhecido como révo/te nobi/iaire, que terminou, como resultado da pres-
adotada pela nova classe dominante revolucionária, a burguesia?
são aristocrática e popular combinada, com a decisão histórica de t.urs XVI
Os historiadores que se ocuparam dessa questão (e que não consti-
de convocar os Estados Gerais, pela primeira vez em 175 anos, para uma
tuem de modo algum a maioria dos que trataram o tema) abordaram-na de
reunião em Versalhes, em maio de 1789. Como também se sabe, a partir
L' diferentes maneiras, e veremos que termos como mentalité e sensibi/ité
desse momento a burguesia, que até então estava dividida entre os que I
não correspondem exatamente ao que entendo por elemento "inerente"
apoiavam os Parlamentos e a aristocracia e os que apoiavam o governo real, l
na ideologia e, ainda menos, ao que E.P. Thompson quer dizer com "cul-
uniu suas forças e, com a ajuda de uma insurreição popular em Paris, for-
tura plebéia"_4 Dos autores franceses que estudaram a "culture" (no sen-
çou a aristocracia (transformada em seu principal inimigo) à defensiva,
tido francês) e a mentslité , Robert Mandrou talvez tenha sido o primeiro
formando uma Assembléia Nacional, aceita pelo rei. Em conseqüência des-
a explorar esse terreno. E m seu De /a eu/ture popu/aire aux 17e et 18e
sa aliança entre a burguesia e o povo, a Bastilha foi tomada, acontecimento
siéctes, 5 ele usa a chamada coleção "azul" de livros da Biblioteca de
que marcou o verdadeiro iru'cio da Revolução. Enquanto isso, os campo-
Troyes, cujos leitores eram, presumidamente, das classes inferiores, para
neses se revoltavam no verão de 1789, queimando os castelos dos nobres
discutir o grau em que as "novas" idéias, ou quaisquer idéias, sobre a
rurais e os arquivos senhoriais, e convencendo assim a Assembléia Nacional
história, a ciência ou a pai itica. estavam sendo absorvidas pelo menu
(composta de burgueses, clero e senhores liberais) a levar em conta suas
necessidades e a dar o primeiro e decisivo passo para acabar com o sistema
senhorial de posse da terra.
Mas é claro que isso não poderia ter sido feito - nem poderiam ter
• Em francês no oriqinal. (N. do E.)
ocorrido os fatos subseqüentes da Revolução - sem a existência de uma 3 Para um estudo recente da perspectiva e das reivindicações camponesas às vésperas
da Revolução, ver Florence Gauthier, La voie pev senne dans Ia révolution française:
/'exemple de Ia Picardie (Paris, 1977).
4 Ver p. 28, supra.
2 Ver pp. 64·5 supra, e a "Introdução" de Labrousse a sua Crise de t'économie tren- s Paris, 1964; nova impressão, 1978.
çsise, pp, ix-xli.
96 Ideologia e Protesto Popular
Revoluções ')7

peuple, a quem esses livros eram dirigidos, em meados do século XVIII.


À primeira vista, como os amotinados eram principalmente aldeões, tais
Não encontrou qualquer indício de que tais idéias estivessem exercendo
motins parecem-se a um movimento camponês em grande escala, pressa-
influência, sobretudo porque os autores tinham o cuidado de evitar que
giando a grande rebel ião camponesa de 1789. Mas, num exame mais deta-
seus livros contivessem qualquer coisa que pudesse levar o povo comum
lhado, evidencia-se que não foram movimentos rigorosamente camponeses,
que os lia a ousar, mesmo na imaginação, ir além dos horizontes seguros
mas de pequenos consumidores, não muito diferentes, exceto pelas suas
da sociedade aristocrática em que viviam. Por isso a imagem de "cultura"
proporções, de muitos outros do gênero que irromperam de maneira inter-
popular que emerge desse estudo é totalmente conformista e estática;
mitente em perrodos de escassez entre as décadas de 1720 e 1780. Não
conseqüentemente, o estudo de Robert Mandrou, embora tendo um certo
havia neles nenhum vest rqio das "novas" idéias (Émi/e e o Contrato Social
valor negativo, não faz progredir em nada a nossa investigação.
de Rousseau haviam sido publicados mais de dez anos antes) nem houve
M ichel Vovelle levanta questões diferentes: que ind (cios havia de
qualquer tentativa de um acerto de contas com os senhores ou o clero (a
uma sensibilité (de uma maneira geral, perspectivas ou sentimentos] pré-
menos que estivessem, como outros proprietários, acumulando ou armaze-
revolucionária autêntica entre o povo comum da França, em qualquer
nando cereais). Na verdade, apesar de explicações anteriores contrárias,
momento antes de 17897 Num trabalho recente (publicado em inqlés)."
não houve ind (cios também de nenhuma "interferência" pol rtica. nem
o autor apresenta significativa evidência de que, pelo menos no Sul, vinha
mesmo dos inimigos de Turgot na Corte." E, como já disse, movimentos
ocorrendo uma mudança, a partir de 1750, nas atitudes de classe média
semelhantes, com a sua caracter rstica familiar de impor um preço "justo"
para com a morte, o enterro, os nascimentos ileqrtimos, o casamento, Deus
ao trigo continuaram, em menor escala, até a revolução - e, de fato, muito
e a religião, e que essa mudança era provocada, em parte, pelas obras dos
depois dela.
philosophes. Também encontrou evidências, menos seguras, de uma modi-
Para os assalariados, o método alternativo de protesto social era a
ficação semelhante de atitude entre artesãos e comerciantes, em relação às
greve; e houve várias confrontações desse tipo - em particular, entre os
práticas funerárias, em particular, mas muito pouco em relação a outros
trabalhadores no papel, impressão e construção, e os carregadores - nos
aspectos e certamente nenhum indrcio de que os escritos "novos" ou "filo-
últimos quinze anos antes da revolução. Um historiador francês do traba-
sóficos" do Iluminismo tivesse chegado até esses grupos. Mas também indi-
lho Mareei Rouff, que escreveu sobre esses movimentos há mais de meio
ca outras fontes de cultura popular, como o charivari, o carnaval e a con-
século, considerou de particular interesse a greve dos carreqadores que, em
frérie (com suas associações religiosas). A ideologia primitiva, e com fre-
1786, marcharam sobre o Palácio Real em Versalhes para apresentar suas
qüência brutal, revelada nessas manifestações, pode, segundo ele, ser segui-
reivindicações. Rouff chegou a afirmar que esse movimento foi quase um
da até os motins dos primeiros anos revolucionários, inclusive os notórios
prelúdio à revolução." Essa opinião nos parece, porém, muito otimista,
massacres de setembro de 1792.
pois as greves (como observou Daniel Mornet duas décadas depois) ainda
Como meu objetivo é mostrar como o elemento "derivado" da ideo-
tinham relativamente pouca importância, e eram muito menos freqüentes
logia popular sofreu a superimposição do elemento "inerente" já existente
e menos significativas do que os motins provocados pela falta de alimentos.
e por ele acabou sendo absorvido, meu tratamento será, é claro, diferente
Estávamos ainda na idade da pequena oficina, quando o mestre artesão
dos acima citados. Pareceu-me melhor procurar acompanhar o aparecimen-
trpico trabalhava junto com sua meia dúzia de jornaleiros e aprendizes.
to de umaprise de conscience e de uma ideologia revolucionária examinan-
Esses assalariados adotavam, de segunda mão, as opiniões de seus mestres,
do os diferentes modos de atividade popular e o pensamento que os acom-
exceto em momentos ocasionais de disputas salariais. Portanto, não é de
panhou durante os últimos 15 anos do Antigo Regime. Comecemos com a
surpreender que não procuremos entre eles ind Icios de um despertar po h'-
"guerra das farinhas" (guerre des farines) que mencionamos num caprtulo
tico popular, até que os próprios mestres estivessem prontos para receber
anterior." Foram motins que agitaram meia dúzia de províncias (inclusive
e transmiti r a rnonsaqem.!"
Paris e Versalhes] situadas num raio de 150 a 220 quilômetros da capital.

s Para um tr aturnent o mais cornpleto, resumindo todas as evidências, ver Edgar Faure,
6 M. Vovelle. "Le tournant des mentalités en France 1750-1789: Ia sensibilité pré- La disgrâce de Turgot, Paris, 1961.
révolutionnaire" (em tradução inglesa), Social history 5, maio de 1977, pp. 605-29. 9 M. Rouff, "Unegrévedegagne·deniersen1786à Paris", Revuehist., CLXV (1910},
7 Ver pp. 58·9, supra. pp.332-46.
10 G. Rudé, The crowd in tbe french revolution, Oxford, 1959, pp. 21-2,134,146.
98 Ideologia e Protesto Popular Revoluções 99

Assim, devemos voltar nossa atenção para outro aspecto - para o oportunidade não foi aproveitada. Os delegados trabalhadores simplesmen-
motim por alimentos que, embora apolrtico em 1775, como já vimos, lI! prepararam um cahier destinado a favorecer a Fabrique como um todo;
começou a "politizar-se" em princi'pios do outono de 1788 ao final da não houve nenhuma referência às necessidades especificas dos trabalhadores,
"revolta aristocrática". A ocasião foi a notrcia da volta do Parlamento para ou mesmo às necessidades do povo em geral. E, disciplinadamente, envia-
Paris, depois de seu segundo exi'lio e a animação popular que isso desper- ram pessoas educadas, como comerciantes e advogados, para representá-Ios
tou num período de preços em aguda ascensão. Foi a coincidência desses em Versalhes.'? ContinUaram a não se mostrar à altura da ocasião e a desem-
dois fatos que levou os trabalhadores dos faubourgs às ruas. Hardy, o livrei- penhar um papel secundário ante seus patrões, mesmo durante o período
ro cuja livraria, próxima ao boulevard Saint Germain, no bairro da Univer- da contra-revolução, no verão de 1793.
sidade, lhe oferecia um excelente ponto de observação do que acontecia Por que aconteceu isso? A única resposta que faz algum sentido é a
nas ruas, anotou em seu diário em princt'pio de setembro que os soldados de que os trabalhadores lioneses estavam organizados numa vasta corpora-
haviam sido mandados para lá para atemorizar o povo, "dont le [Gouver- cão (Fabrique), que incluía também seus empregadores. E, apesar de sua
nernent ] avait à craindre 1'1nsurrection "." E, como os preços continuassem militância e consciência de classe, faltava-Ihes a intimidade da pequena ofi-
a subir, ele notou um fato significativo: as donas-de-casa proletárias come- cina parisiense, que aproximava mestres e jornaleiros em intima associação
çavam (a partir de novembro) a desviar suas queixas e imprecações dos e agia como uma das duas principais correias transmissoras das idéias revo-
padeiros para o governo e os príncipes reais, e até mesmo para o próprio lucionárias (burguesas). (A outra, como já dissemos, era o mercado, ou a
rei.!' Foi o começo da compreensão pol úica popular, o alvorecer de uma padaria.) E essa, em contraste com Lyon, era a situação em Paris, onde a
crise de conscience, que ia muito além das frases gritadas antes em apoio maior parte da indústria consistia dessas pequenas oficinas, com seu acen-
ao Parlamento, porque a questão - a questão do pão - atingia o povo mui- tuado ar medieval. Mas antes de mais nada - antes que houvesse idéias
to mais profundamente. Mas ainda não era o começo de uma ideologia revolucionárias a transmitir - era necessária a oportunidade proporcionada
revotucionârie ; isso ainda estava por vir. pela convocação real para que os Estados Gerais se reunissem em Versalhes.
Talvez se pudesse esperar que essa ideologia surgisse primeiro em O resultado (como Georges Lefebvre nos recorda) foi etetrtzante.':' De um
Lyon, onde o povo comum - ou os tecelões de seda da grande Fabrique, lado, despertou a "grande esperança" de uma regeneração nacional, que,
pelo menos - tinha uma tradição muito mais antiga e mais permanente de como testemunhou Arthur Young em suas viagens pelo campo francês,
mil itância do que os artesãos de Paris. O século XV 111 presenciara uma sé- entusiasmou tanto os camponeses quanto os moradores das cidades.!" Se-
rie de conflitos violentos entre os tecelões, liderados pelos seus mettres- gundo, provocou uma grande onda de literatura, na forma de cahiers,
ouvriers (que também empregavam mão-de-obra) e os rnarchands-fabricants, panfletos e petições, que passaram a ser preparados para a grande assem-
que controlavam a indústria. Na última grande confrontação - a de 1786 bléia de Versalhes. Entre esses papéis estava um documento que viria a ter
- os tecelões lutavam pela Tarifa (ou salário-mínimo) e pela primeira vez importância capital: o folheto do Abbé Sieves, Ou'est-ce que le tiers état?,
se consideravam como uma classe explorada pelos seus patrões. A hosti- onde, pela primeira vez, se declarava que o Terceiro Estado (a burguesia),
lidade nascida entre eles foi tal que, quando a Fabrique foi mais tarde representando a nação como um todo, estava, nessa condição, pronto a
convocada a reunir-se e nomear delegados para redigir um cahier de doléen-
assumir o governo do pars. quer a nobreza se unisse ou não a ele. A expres-
ces (caderno de reclamações) para que o Terceiro Estado local levasse para são "Terceiro Estado", repetida nos mercados, nas esquinas e nas numero-
Versalhes, os maitres-ouvriers (representando os trabalhadores da seda) sas oficinas, passou logo a fazer parte da linguagem popular. Comprovei
conseguiram afastar os comerciantes e ocupar todos os lugares. Assim,
seu uso por um artesão parisiense, registrado num relatório da -pai ícia, de
ofereceu-se aos trabalhadores uma oportunidade para serem ouvidos não só 21 de abril.!" Uma semana depois, era uma das frases gritadas nos motins
em Lyon, mas em Versalhes também. Mas, por espantoso que pareça, a

12 Ver M. Garden, Lv on et les lv onneis au XVI/J€ siécle, Paris, 1970, particularmen-


te pp. 552-92; J. Jaurés, Histoire socieiiste de Ia révolution française, A. Soboul (org.l,
• "De quem o [Governol tinha a temer a Insurreição". (N. do T.)
7 vais .. 1968-1973. Paris, I, pp. 177-8.
11 S. Hardv, "Mes ou journal d'événements tels qu 'ils parviennent à ma co n-
loisirs,
1) G. Lefebvre, Ouetre-vinçt-neut . Paris, 1959, p. 112.
ncissance" (Ms. em 8 vols., 1764-1789. Bibl. Nationale, fonds français. n<!s 6.680-7). 14 A Young, Trave/sinFranceduringthevears 1787-1788-1789 .. , Nova York, 1969,
VIII, pp. 73. 154-5, 250: registros de 5 de setembro. 25 de novembro de 1788, 13 de
p.144.
fevereiro de 1789. 15 Arch. Nat. Y 18.762.

--- -_._--------------
100 Ideologia e Protesto Popular
1
Revoluções 101

de Réveillon, no faubourg Saint Antoine; as outras eram "Vive /e Roi!" cionais, "inerentes", baseadas na hostilidade secular da população rural
e "Vive M. Necker!" (ambos eram os heróis populares do momento). contra os tributos e impostos feudais, e que permaneceram adormecidas
Pouco depois, a frase ampliou-se a um desafio mais militante, "Es-tu du durante grande parte do século XVIII, voltaram a despertar e uniram os
tiers etet?" ("~s do Terceiro Estado?"). que (assim registra ele) saudou o camponeses, por mais divididos que estivessem entre os que tinham terra e
futuro general sens-culotte , Jean Rossignol, à sua chegada a Paris naquele os sem-terra,' entre os proprietários ricos e os pobres, numa classe única
verão, para assumir seu posto de our ives-lornaleiro.!" E Arthur Young teve que, com uma influência notavelmente reduzida das cidades, pôde realizar
de responder afirmativamente à mesma pergunta - para salvar a pele, o que Lefebvre chamou de uma "revolução camponesa" em julho-agosto
como acreditava - numa estrada do interior, semanas depois. Nessa época, de 1789. Mas como já observamos em outro lugar, os camponeses não esta-
parece que a expressão tiers état, na boca do povo - e a ele se seguiriam vam satisfeitos com a solução parcial da questão da terra posta em prática
dentro em pouco outras como "contrato social" e "direitos do homem" - nos dias que se seguiram. Conseqüentemente, a rebelião camponesa, embo-
sofrera uma transformação. Para o povo, ela já indicava a "nação" ou a ra não atingisse nunca as culminâncias do verão de 1789, persistiu, com
"burguesia" (e Sievés tanto queria dizer uma como a outra), mas ele mesmo, ocasionais explosões violentas, até a solução final - "final", isto é, no que
o povo comum, ou pelo menos os seus representantes que haviam tomado concerrie aos camponeses "médios" e abastados - dada pelos jacobinos em
posição contra a "aristocracia". Como, de outro modo, explicar a escolha junho-julho de 1793. (Os acontecimentos da Vendéia foram, é claro, um
da frase "Vive /e tiers etet!" pelos que destruíram a casa de Révéillon, em problema diferente, e a eles voltaremos adiante.)
abril? Ora, Révéillon e seu companheiro, a outra vítima, Henriot, ambos Mas tudo indica que só em relação a Paris (e não a Lyon, a Ruão ou III
'I
fabricantes no faubourg, eram representantes eleitos de seus distritos no Bordéus, entre as cidades) os historiadores tenham realizado um trabalho
Terceiro Estado, em Paris. Uma outra adaptação da frase, na linguagem exploratório que possibilita a apresentação de um quadro razoavelmente
vulgar, ocorreu pouco depois. Ao se aprofundar a crise política em Ver- fiel da evolução subseqüente da ideologia popular. Essa evolução dependeu
salhes, com a continuada recusa da "ordens privilegiadas" de se unirem em parte dos meios proporcionados pelos democratas burgueses e outros
ao Terceiro Estado na formação de uma Assembléia Nacional, todos os - em termos de jornais, de comícios a céu aberto, de sociedades populares
adversários do tiers se tornaram inimigos da Nação e, nobres ou não, j: (iniciadas em 1791), das galerias da Assembléia Nacional e do Clube Jaco-
também "aristocratas". E, à medida que, em reação tanto à crise polrtica bino - e, em parte, da experiência direta do povo ao participar mais plena-
como econômica, uma proporção cada vez maior do menu peup/e - tra- mente da revolução. A fase importante que se segue nesse processo, depois
balhadores e artesãos - era varrida pela corrente revolucionária, essas pri- l. de outubro de 1789, foi marcada pelos dramáticos acontecimentos do ve-
meiras lições e vocabulário da revolução começaram a ser absorvidos por rão de 1791: a tentativa de fuga de t.urs XVI e seu retorno forçado a Paris,
círculos cada vez mais amplos. Às vésperas da tomada da Bastilha, Jean- sua suspensão provisória e a subseqüente reintegração no trono levaram
Nicholas Pepin, um carregador empregado de um fabricante de velas de
r a uma poderosa oposição democrática e radical à maioria liberal-monar-
sebo, preso entre a multidão que enchia as ruas da cidade, explicou seu quista, da qual uma parte destacada coube ao rival dos jacobinos, ao Clube
comportamento em termos que hoje já se tornaram familiares: dos Cordel iers, * mais plebeu.!" A agitação teve como conseqüência uma
nova radicalização dos artesãos e trabalhadores de Paris (já então chamados
... estávamos levando ajuda à Nação contra os inimigos que queriam destruir todos os
parisienses: e [acrescentou ele] os inimigos eram a nobtesse.V' de sons-culottes pelos seus adversários mais refinados), que começaram a
freqüentar as reuniões das seções e a se inscrever na Guarda Nacional (em-
Seria justo, porém, assinalar que os acontecimentos que se registra- bora ainda estivessem oficialmente excluidos destas instituições) e af luí-
vam em Versalhes - agravados, de certo, pela crise econômica - tiveram rarn ao Campo de Marte em julho de 1791 para assinar, ou marcar com um
um efeito mais profundo nas aldeias do que nas cidades. Não que as novas x , uma petição em favor da abdicação do rei, oportunidade em que foram
idéias da revolução entusiasmassem muito os camponeses (como já disse- violentamente dispersados pelos sabres e pelas balas. A essa altura, já com-
mos, noções como "le tiers étet" chegavam às aldeias consideravelmente
depois de sua difusão nas cidades), mas sim porque as velhas idéias tradi-

• Cordeliers, franciscanos. O clube teve esse nome por se ter localizado num antigo
convento franciscano em Paris. (N. do 'L)
16 A. Mathiez, i.es grandes journées de Ia constituunte, Paris, 1913, pp. 23-5. 18 A melhor exposição desse processo ainda é a feita por Mathiez em Le Clube des
17 Arch. Nat. Z2 4.691. Cordeliers pendant Ia crise de Varennes et le massacre du Ctiemp de Mars, Paris, 1910.

-j .,'
,
102 Ideologia e Protesto Popular Revoluções 103

pareciam às reuniões das sociedades populares, exigindo o direito de voto,


dil\dJ, o direito de cassar os deputados quando desejassem, de desfilar
e até mesmo liam a imprensa radical.'? Tudo isso serviu para educar ainda
.11 mados ante a Assembléia quando assim quisessem, e mesmo de convocar
mais os sans-eu/ottes no vocabulário e nas idéias da burguesia revolucioná-
d rubel ião das seções ("l'insurreetion est te plus secré des devoirs"i, * se o
ria - jornalistas, oradores e pol i'ticos - que, com suas bases nos Clubes
qoverno faltasse aos seus deveres para com o povo.
Jacobino e Cordelier, estavam dando à revolução uma decisiva inclinação
Em conseqüência, como Soboul mostrou amplamente, as relações
para a esquerda. entre os sans-cu/ottes e os jacobinos se foram tornando tensas. A hostili-
A próxima etapa importante no desenvolvimento de uma ideologia dade dos sans-eulottes (a dos assalariados, em particular, quando ameaça-
popular ocorreu com a vitória dos jacobinos sobre seus rivais girondinos na dos com uma redução maciça dos salários) ajudou a provocar a queda dos
Convenção Nacional e a emergência de uma maioria jacobina fortemente jacobinos - com os quais os próprios sans-culottes ironicamente caú arn,
apoiada pelos sans-eu/ottes, cujas exigências os jacobinos tiveram de ouvir vt'tirnas de uma conspiração dos adversários da direita e da esquerda, mas
(como nas Leis do Máximo, que estabeleceram um teto aos preços, em se- com a qual só a direita levou vantagem.
tembro de 1793). Enquanto isso, estimulados pelos jacobinos, os sans- Assim, os ssns-culottes, como os jacobinos, foram silenciados e por
eu/ottes estavam assumindo o controle das 60 seções, a maioria das quais já muitos meses ruminaram suas queixas e esperaram um dia melhor. Esse dia
dominavam em agosto, bem como passando a ocupar, gradualmente, a não chegou nunca mas, estranhamente, o auge da independência dos sans-
maioria dos lugares de conselheiros na Comuna da cidade. Assim, na época eu/ottes - de ação e de pensamento - ocorreu em seus dois levantes finais,
em que os jacobinos formaram seu "governo revolucionário", em fins do de Germinal e Prairial do Ano III (março e maio de 1795), quando invadi-
ano, os sans-cu/ottes não só tinham os principais postos de comando na ram a Assembléia, exigindo pão, a liberdade dos "patriotas" presos (jaco-
capital, como estavam também criando um estilo de vida e uma polrtica binos e "hébertistas"), o restabelecimento da Comuna de Paris (reduzida à
próprios, diferentes dos de seus mestres, os [acobinos.ê? Suas idéias quanto impotência pelos "termidorianos") e da Constituição democrática de ju-
à propriedade eram as de todos os pequenos produtores e comerciantes, tí- nho de 1793 (congelada "temporariamente" pelos jacobinos, mas total-
picas dos que falavam e votavam nas seções: opunham-se ao seu uso irres- mente descartada pelos seus sucessores). e forçaram os relutantes remanes-
trito pelos cidadãos mais ricos, que pretendiam o direito de fazer o que centes jacobinos da Assembléia a expressar suas exigências. O episódio
quisessem com ela. Mas não tinham a intenção de apoiar uma "lei agrária" terminou em derrota e provocou apenas maior perseguição, tanto aos jaco-
ou de dividir a propriedade em proporções iguais. Propunham-se, no má- binos como aos sens-culottes, que foram então, pelo terror, silenciados de
ximo, a reivindicar uma limitação do tamanho das propriedades e dos direi- maneira mais eficiente e permanente do que antes. Mas teve sua importân-
tos de propriedade no interesse de uma comunidade de pequenos produto- cia como marco do ponto alto da ideologia popular independente durante
res como eles mesmos. Essa reivindicação foi expressa de maneira mais a Revolução Francesa (se excetuarmos as idéias igualitárias e comunistas
coerente e expl ícita pela Seetion des Sans-Cu/ottes, de 2 de setembro de de 8abeuf, que não tiveram repercussão popular na época). Pela primeira
1793, quando insistiram, entre outras coisas, em que "ninguém deve ter vez na revolução, os sans-eulottes organi zaram uma joumée pol (tica pró-
mais de uma oficina, ou de uma 10ja"Y Também exigiram a tributação pria, marcharam para derrubar a Assembléia com frases, bandeiras e I(deres
progressiva no interesse dos pobres e igualdade de benef rcios sociais (éga- próprios, e expressaram suas exigências próprias, impregnadas de uma ideo-
lité de jouissanee) inclusive educação gratuita e pão barato; faziam igual- logia também própria.ê?
mente objeções à fusão das pequenas oficinas em unidades maiores para
A lembrança desses "dias" e dos que os antecederam sobreviveu, e
a produção de guerra. Suas reivindicações políticas criaram grandes proble- iremos ver que ela volta à vida em revoluções e événements subseqüentes
mas para o governo jacobino, pois exigiam "democracia direta", ou seja, o
na história posterior da França. Materialmente, os sans-eulottes muito
direito de reunião permanente em suas seções e sociedades populares, e pouco ganharam com a revolução: o direito de voto e os controles dos pre-
ços dos alimentos foram suspensos antes do fim de 1795. Mas deixaram,
.\

19 Ver o interrogatório polic.al de Constance Evrard, cozinheiro de 23 anos, preso


depois dos choques do Campo de Marte, em meu Crowd , pp. 86-7.
20 Sobre isso, e grande parte do que se segue, ver Albert Soboul, Tho parisian sens- "A insurreição é o mais sagrado dos deveres." (N. do T.I
culottes and tbe trencb revolution 1793-1794, Oxford, 1964.
22 Sobre esse episódio e seus antecedentes, ver K. Thónesson, La défaite des sens-
2J lbid., p. 64. c ul o t tes , Oslo, 1959.
Revoluções 105

104 Ideologia e Protesto Popular


abastados, cuja política, desde o início da revolução sempre fora moderada
e cujos clubes jacobinos, exceto por um breve período em Lyon, haviam
sem dúvida, a sua marca nos acontecimentos. Primeiro, serviram como tro-
sido antes do tipo "girondino" do que "jacobino". A expulsão dos deputa-
pa de choque da revolução em todos os grandes acontecimentos públicos
dos girondinos da Convenção e sua perseguição subseqüente foram o sinal
que sucessivamente derrubaram a Bastilha, trouxeram o rei e a rainha de
para as revoltas que, inevitavelmente, atraíram o apoio monarquista. Os
volta a Paris em outubro, derrubaram a monarquia, afastaram os girondi-
mestres artesãos dessas cidades parecem ter sido arrastados ao campo
nos da Assembléia e levaram os jacobinos ao poder, obrigaram a Conven-
"federalista", e os jornaleiros, embora com freqüência hostis aos comer-
ção por estes dominada a promulgar as leis do Máximo e outras medidas ciantes, ao que tudo indica estavam muito enfraquecidos pela divisão para
sociais. Segundo, embora nunca tivessem mais do que um punhado de luga-
que puJessem tentar intervir e foram arrastados pela maré. (Para um breve
res nas Assembléias Nacionais da revolução, foi a primeira vez que peque- estudo dessas divisões e do alinhamento dos partidos em Bordéus, ver Alan
nos artesãos e comerciantes governaram uma cidade do tamanho de Paris
Forrest, Societv and Politics in Revolutionary Bordeaux, Oxford, 1975,
durante todo um ano particularmente crítico. E, terceiro, (e isso é quase
particularmente pp. 159-80.)
repetir o que dissemos antes), apesar da perda de seus ganhos mais "mate-
Para a fusão dos elementos "inerente" e "derivado" da ideologia
riais", a tradição da ação popular de massa e a tradição da democracia "dire-
popular nessas situações, remetemos o leitor de volta à argumentação apre-
ta", iniciadas pelos ssns-culottes de Paris, e muitas das idéias que as acom-
sentada à p. 32, supra.
panharam, sobreviveram. Disso voltaremos a falar no capítulo seguinte.

ADENDO

Paris não era, é claro, típica da França, embora a euforia do verão de 1789
provavelmente tenha sido nacional, levando-se em conta a lentidão com
que as notícias viajavam. Houve uma certa divisão entre os camponeses já
em fins de 1791, particularmente em certas áreas da Bretanha, onde a im-
posição de novos padres depois da Constituição do Clero e sua condenação
pelo Papa causaram grande descontentamento. Mais tarde, a divisão se
general izo u.
O grande ano da d iscordância foi 1793 quando não apenas Vendéia,
seguida pelas guerrilhas camponesas (chouans) da Baixa Bretanha e do No-
roeste da Normandia, mas também meia dúzia das maiores cidades da Fran-
ça se colocaram em revolta aberta. O ponto de ruptura na Vendéia ocorreu
com a levée en messe," que não apenas se acreditava administrada com
injustiça pelos burocratas que recebiam ordens da distante Paris, como
também (e com justa razão) se considerava como uma ameaça aos campos,
que ficariam sem mão-de-obra para a colheita próxima. Assim, os campone-
ses bretões, embora tão ansiosos quanto o resto dos camponeses da França
em completar a "revolução" nas aldeias, foram lançados aos braços da mais
reacionária nobreza do Antigo Regime, sustentada em grande parte pelo
"ouro de Pitt" (que nesse caso não foi ilusóriol).
A "revolta federal", centralizada principalmente em Lyon, Marselha
e Bordéus, foi em grande parte promovida pela classe dos comerciantes

• Expr essão que significa: convocação para o serviço militar de todos os homens vá-
lidos de uma população. IN. do E.)
Revoluções 107

A população das cidades havia crescido, mas em algumas poucas apenas,


como Lille, Roubaix ou Saint Étienne, por causa da industrialização. Paris,
a grande cidade das revoluções - mais ainda no século XIX do que no sé-
4 culo XVIII - tinha uma população de cerca de 550 mil habitantes em
1800, que duplicou em 1850 e chegou a um milhão e 750 mil por volta
AS REVOLUÇÕES FRANCESAS DO SÊCULO XIX de 1870. Embora os distritos industriais - centros de oficinas ferroviárias,
algodão e engenharia leve - começassem a surgir a partir da década de
1840, Paris continuou sendo principalmente uma cidade de pequenas ofi-
cinas, manufatura, pequenos ofícios, muitos dos quais domésticos, e mes-
mo na época da Comuna, em 1871, apenas um, em cada dez de seus traba-
lhadores industriais, estava empregado em indústria de grande escala ou
em empresas com cem trabalhadores ou mais. I
As revoluções francesas do século XI X, embora tenham eclodido em con- Mas essa não era toda a história: embora a transformação social e in-
seqüência de problemas e situações bastante particulares, tiveram muito dustrial fosse lenta, a grande divisão que marcava a nova sociedade indus-
em comum e podem, portanto, ser tratadas num mesmo capítulo. Ao con- trial já estava em processo e, em fins da década de 1820, pelo menos, o
trário das três grandes revoluções examinadas, elas ocorreram numa socie- ouvrier já substitu íra o sens-cutotte de orientação pequeno-burguesa como
dade que, embora sujeita a mudança gradual, já tinha as suas principais ca- o principal protagonista do protesto social, e os assalariados, mesmo os que
racterísticas r+eter rninadas pela revolução de 1789 e pela revolução industrial trabalhavam como compagnons em pequenas oficinas, já não estavam tão
que começou, um pouco hesitante, em fins da década de 1820. Através da presos aos cordões do avental de seus mestr es-artesãos. E, o que era igual-
primeira revolução, a sociedade aristocrática do Antigo Regime, embora ti- mente significativo, por causa, certamente, da influência generalizada da
vesse recuperado um certo terreno sob os monarcas da Restauração que se Revolução Francesa, o ouvrier teria, na década de 1840, com a imaginação
seguiram a Napoleão, tornara-se essencialmente burguesa e esperava apenas enriquecendo a experiência, assumido o título de pralétaire (usado pela
o impacto de uma revolução industrial para diriqir-se firmemente para primeira vez mais ou menos em seu sentido moderno por Blanqui em
uma rota que a levaria à sociedade industrial e capitalista da década de 1832) numa época em que o trabalhador inglês, embora objetivamente
1880. melhor qualificado, ainda não estava subjetivamente preparado para isso.
Como em outros lugares, as principais caracter ísticas dessa sociedade Mas também esse processo foi gradual, e vamos procurar acompanhá-Io
foram o aparecimento de uma classe industrial empregadora e de uma clas- através das sucessivas revoluções de 1830, 1848 e 1871.
se de trabalhadores industriais, ou proletários, e uma tendência gradual à Em julho de 1830 Carlos X, o segundo dos monarcas da Restauração,
polarização entre elas. Mas, ao contrário da Grã-Bretanha, esse processo na foi derrubado do trono por uma aliança de burgueses liberais (embora ri-
França foi lento, em grande parte devido à sobrevivência prolongada das cos), aos quais negara as liberdades consagradas pela Carta de 1814, e
classes intermediárias tradicionais (como observou Gramsci em relação à ouvriers dos vários ofícios de Paris. Depois de três dias de luta -Ies Trais
Itália) de pequenos lojistas, pequenos produtores autônomos e, acima de Glorieuses" - o pretendente orleanista, Luís Filipe, foi elevado ao trono
tudo, de um grande campesinato a que a Revolução de 1789 dera uma certa por um acordo pol ítico de banqueiros e jornalistas, e aclamado pelo povo
estabilidade que, durante tojo o século XIX, desafiou a penetração da in- na Municipalidade. Esse é o resumo da narrativa tradicional da revolução.
dustrialização capitalista. Por fim, também a França embarcaria na rápida Mas é claro que ela encerra outros aspectos, como os historiadores rnoder-
expansão capitalista, mas isso ficava para o futuro e, na sociedade predorni- nos - muitos dos quais norte-americanos - bem mostraram. Em primeiro
nantemente "pr é-industrial" de que nos ocupamos neste capítulo, a rnu- lugar, o resultado não agradou a todos: dos dois aliados, Ia blouse et le
dança foi relativamente lenta e seu padrão, desigual. É certo que havia cin-
co mil máquinas a vapor em operação na França em 1847, quando sete
anos antes esse número era de apenas dois mil (mas a isso se compare o nú-
mero dez vezes maior na Gr â-Bretanha). A rede ferroviária francesa era L. Chevalier, La formation de Ia population parisienne au XIXe siécle, Paris, 1950;
C.H. Pouthas, La population française pendantla premiére m oitié du XIXe siécle, Pa-
de cerca de três mil quilômetros em 1850, ao passo que a Inglaterra contava
ris, 1956.
com os 7,5 mil quilômetros e mesmo a Alemanha já tinha cerca de 4.500. • As Três Gloriosas (jornadasl. (N. do T.I

106
"11'
108 Ideologia e Protesto Popular Revotuções 109

redinçote, como os chamou Edgar Newman.? a blouse (os trabalhadores) se processo, a solução criou "tarefas inacabadas" de um outro tipo, como
foram enganados, e a vitória explorada no interesse exclusivo do redinçote as experiências dos anos seguintes mostrariam. Para os ouvriers, a luta ini-
(os empregadores). Mas os trabalhadores se recusaram a tirar as castanhas ciada em 1830 foi apenas o começo. Os primeiros jornais dos trabalhado-
do fogo para a burguesia e, tendo desempenhado seu papel, começaram a res, o Journal des Ouvríers e outros, começaram a surgir em 1831, e dedi-
apresentar reivindicações próprias. Foram os tipógrafos, cujos empregos cavam muitas colunas à gritante necessidade de associação. Outros aconte-
dependiam da sobrevivência dos jornais de Paris, que deram o exemplo: cimentos das décadas de 1830 e 1840 também foram de primordial impor-
ficaram tão alarmados com as antiliberais Ordenanças de Saínt Cloud de tância, de modo que, antes de passarmos à revolução de 1848, devemos
Carlos X quanto os jornalistas e pai íticos burgueses. Por isso, foram os pri- examinar a série de insurreições operárias deflagradas primeiro em Lyon e
meiros a sair às ruas, liderando os outros trabalhadores de Paris, que Oavid mais tarde em Paris, bem como a evolução ideológica que as acompanhou.
Pinkney mostrou terem constituído o grosso (como seus antecessores em No curso dessas batalhas, lutando tanto na frente econômica como no pia-
julho de 1789) dos manifesta ntes. Seus motivos eram duplos: proteger seus no pol ítico, nasceu a classe operária francesa.
empregos e Iiberdades e expressar seu ressentimento patriótico, juntamente Foi em Lvon. como já vimos no capitulo anterior, que, em con-
com seus aliados burgueses, contra as ações despóticas do rei Bourbon.? seqüência dos violentos conflitos dentro da indústria da seda, entre os
Mas havia outros motivos também: a revolução eclodiu na esteira de uma cenuts [rnes tre ; e jornaleiros tecelões de seda) e os fabricantes-comercian-
profunda crise econômica que provocou acentuado aumento no preço dos tes, surgiu pela primeira vez, às vésperas da Revolução de 1789, uma rudi-
alimentos, e muitos tinham suas idéias próprias sobre o governo que se de- mentar consciência de classe. A indústria da seda, como a própria cidade
via seguir. Não era, como se disse com freqüência, a República, mas segun- de Lyon, foram profundamente marcadas pela revolução. Ali, como em
do o estudo de Newman sobre o que o povo realmente queria em 1830, outros lugares da França, a Lei Chapelier de 1791 proibira aos trabalha-
um retorno a Napoleão." dores se associarem. A indústria da seda (que representava metade do co-
Entre esses fatores, porém, e como sempre, havia também outras mércio da cidade e um quarto de sua renda) se havia recuperada em 1830 e
formas de retorno ao passado: os motins de alimentos ao estilo antigo ex- a travessava um per iodo de grande prosperidade. Mas o descontentamento
plodiram como em 1775, em reação ao alto preço do pão; os camponeses dos canuts (em lugar de acalmar-se) aumentara com a extensão da indústria
de Ar iêqe, disfarçados de demoiseltes, expulsaram os guardas florestais para pelo campo, com os novos métodos do laissez-faire, que Ihes negava a pro-
defender seus direitos tradicionais aos pastos:" em nome da "liberdade", teção paternalista da velha Fabrique, e pela introdução, nos primeiros anos
os trabalhadores destruíram máquinas que os privavam do direito de tra- do século, do tear Jacquard, que poupava mão-de-obra. Além disso, para
balhar e, também em nome da "liberdade", mas de um modo muito mais dar a esse descontentamento uma ex pressão mais eficiente, muito antes dis-
significativo dos novos tempos, exigiram o direito de organizar-se em asso- so acontecer em outras regiões da França os tecelões lioneses que viviam
ciações de trabalhadores, ou sindicatos, para defender seus salários e con- dentro dos limites da cidade moravam e trabalhavam nos subúrbios densa-
dições de trabalho. mente povoados de La Croux Rousse e de Parrache, que já constitu íam
Assim, a revolução de 1830, no que se relaciona com a burguesia li- então distritos de classe operária caracter Isticos."
beral, completou a "tarefa inacabada" da primeira revolução, dando um E mbora uma rápida euforia unisse csnuts e comerciantes depois da
abrigo constitucional seguro aos "princípios de 1789". Não obstante, nes- queda de Carlos X em Paris, o encanto foi quebrado dentro em pouco pela
recusa dos segundos em levar a sério a renovada reivindicação dos canuts
de uma tarif (escala de salários e preços). Assi rn, em novembro de 1831, os
tecelões que, depois dos acontecimentos de julho, tinham fácil acesso às
2 Edgar Newman, "The Blouse and the Froek Coar: The Allianee of the Common armas, levantaram-se em rebelião, cantando seu famoso slogan, "s/ivre en
People of Paris with the Liberal Leadership and the MidcJle Class during the last Years travaí/lant ou mourir en combettent" (Viver trabalhando ou morrer lutan-
of the Bourbon Restoration in F rance", Journal af Modern History, X L VI, março de
1974. p. 27.
do), dominaram a guarnição local com inesperada facilidade e se viram do-
3 David Pinkney, "The Crowd in the F reneh Revolution of 1830", American Hist.
Review, LXX, '1964, pp. '-17.
4 E. Ne wrnun, '"What lhe CrowcJ Wanted in the French Revolution of 1830", in J.
Merriman (orq.), 1830 in France, pp. 17-40.
5 John H. Merriman, "The Dernciseues 01 lhe Ariége, 1829·1831", in J. Merriman 6 Sobre isso e grande parte do que se segue. ver Robert Bezucha. The Lv ons upris-
(or ç.}, 1830 in Frence, Nova York, 1975. pp. 87-118. ing of 1834, Cambr idqe, Mass. 1974.

------------------------_ ..
110 Ideologia e Protesto Popular R evoluções 111

nos da cidade. Um jornal advertiu: "Os bárbaros que ameaçam a sociedade dedicavam sucessivamente aos movimentos políticos e trabalhistas - uma
não estão no Cáucaso, nem nas estepes tártaras; estão nos subúrbios de inovação, em si, importante.)? O segundo motim em Paris ocorreu em abril
nossas cidades industriais"." Mas os trabalhadores careciam de organização de 1834, poucos dias depois de chegar à cidade a noticia dos acontecimen-
e lucidez política: não sabiam o que fazer com a sua vitória. Por isso aceita- tos de abril em Lyon. Seguiu-se ao fechamento da Tribune, jornal radical
ram um compromisso e voltaram aos seus distritos. republ icano, e à prisão dos Iíderes da seção de Paris da Sociedade dos Di-
A batalha seguinte ocorreu pouco depois. Os tecelões jornaleiros, reitos do Homem. Os soldados dispararam contra os manifestantes traba-
tendo descoberto a necessidade de organização, seguiram o exemplo de lhadores nos distritos do Marais e do Temple, ao norte da Municipalidade.
seus mestres, inscrevendo-se na Sociedade de Deveres Mútuos que, em de- O movimento teve escala bem menor do que o primeiro, mas foi imortali-
zembro de 1833, se havia transformado num órgão menos exclusivo e mais zado num cartoon de Daumier, "O Massacre da Rue Transnonain", A ter-
militante, e prepararam-se para uma greve geral. Duas coisas aconteceram, ceira explosão ocorreu quatro anos depois e teve objetivos pol íticos mais
enquanto isso: o governo de Paris interveio e proibiu totalmente o mutua- precisos do que as outras: tomou a forma de uma tentativa armada de der-
lismo, bem como outras associações de trabalhadores, e começou a prender rubar o governo, liderada por Auguste Blanqui e sua Sociedade das Quatro
seus membros. O partido republicano local (com sua ramificação, a Socie- Estações, em 1839,
dade dos Direitos do Homem), até então desprezado pela comunidade dos A esta última rebelião pai ítica dos trabalhadores na década de 1830,
tecelões, colocou-se ao lado da causa dos mutualistas, protestou contra a seguiu-se uma trégua que durou até 1848. Mas, enquanto isso, outros acon-
nova lei de associações e deu apoio significativo ao segundo levante dos te- tecimentos de igual significação tomavam forma. Um deles foi o apareci-
celões quando este irrompeu em abril de 1834. O levante - a maior per- mento de sociedades republicanas com um programa radical democrático
turbação civil ocorrida na França entre 1830 e 1848 - durou seis dias e que não só deram educação pol ítica aos trabalhadores, como também os
deixou mais de 300 mortos. A essa altura, as autoridades e a guarnição lo- recrutaram, em grande número, como seus membros. A maior e a mais im-
cal estavam preparadas, e os tecelões e seus aliados republicanos foram der- portante delas foi a Sociedade dos Direitos do Homem que, já em 1834,
rotados, deixando 500 presos nas mãos da justiça. Apesar disso, o fato teve tinha cerca de 3.000 membros, quatro quintos dos quais eram trabalhado-
grande importância histórica, pois marcou o ingresso do maior grupo de res industr iais.!? Outro fato importante foi o aparecimento, entre as déca-
trabalhadores industriais da França em uma associação política - por mais das de 1820 e 1840, de vários escritores - uma nova geração dephilosophes
débil que fosse a princípio - com o movimento republicano. Mas (como - que, embora formados nos princípios democráticos de classe média da
insiste Robert Bezucha) a verdadeira educação pol ítica dos trabalhadores revolução de 1789, deram com freqüência um novo conteúdo "socialista"
de L yon, afrontados pela exploração que o governo fez de sua vitória, se- à noção jacobina dos Direitos do Homem e dirigiram seus folhetos e livros
guiu-se ao levante, em lugar de ser simultânea a ele." tanto à classe operária como aos leitores de classe média. As obras mais
A primeira das insurreições lionesas provocou uma série de protestos influentes desses autores foram as propostas de Saint-Simon e de Fourier
e rebeliões de trabalhadores em outras cidades da França, sobretudo por- para uma sociedade industrial planificada; o sonho comunista primitivo de
que delegados de Paris, Marselha e outras cidades haviam acorrido a Lyon uma utopia icariana, de Etienne Cabet; os escritos de Pierre Leroux sobre o
para aprender-lhe o exemplo. A primeira das explosões em Paris, e a mais socialismo (ele criou a palavra); a Conspiração dos iguais de Buonarroti ba-
violenta, ocorreu nos dias 5 e 6 de junho de 1832, em seguida ao funeral seada na malograda "conspiração" de Babeuf de 1796; a Organização do
de um popular general bonapartista, no convento de Saint Méri, na popu- trabalho de Louis Blanc, o modelo das oficinas "sociais" esboçadas em
losa área central do mercado: 70 soldados e 80 manifestantes foram mortos 1848; e O que é a propriedade?, de Proudhon, o manifesto de criação do
e de uma centena de prisioneiros feitos, grande número era de artesãos - anarquismo. Alguns desses autores (Louis Blanc, por exemplo) inspiraram-
tanto mestres como aprendizes. Vários deles reaparecerão em outros mo- se no movimento da classe operária em Lyon, do mesmo modo que Marx,
tins: um deles, padeiro jornaleiro, preso por participar de uma disputa sa- mais tarde, iria valer-se das lições do movimento dos trabalhadores fabris
larial poucas semanas depois. (Esse ponto, embora possa parecer trivial, é da Inqlaterr a para escrever O capital. 11
importante porque ilustra que, nessa época, os mesmos trabalhadores se

Ver meu The Crowd in Historv , Nova York, 1964, p. 165.


10 Bernard Moss, "Parisian Workers and lhe Origins 01 Republican Socialism, 1830-
? Journal des Oébets, 8 de dezembro de 1831, apud Bezucha, p. 48. 1833", in J. Merr irnan 10rgJ, 1830 in France, pp. 203-17, esp. 211·14.
Bezucha, pp. 148·74, particularmente pp. 148, 174. 11 Ver pp. 26·7, supra.
li:! Ideologia e Protesto Popular Revoluções 113

Armados de idéias como essas - uma combinação de sistemas utópi- le quanto a que, do ponto de vista da burguesia, "uma segunda batalha era
co-socialistas e soluções mais práticas para atender a necessidades imediatas necessária para desligar a república das concessões socialistas" e que "a
- os parisienses puderam entrar na revolução de 1848 com uma ideologia, burguesia tinha de negar as exigências do proletariado com armas nas
derivada em grande
que pelo menos os dirigentes
parte de escritores profissionais
- os Iíderes e membros
da classe média, mas
dos clubes democrá-
rnãos'"!" Quando o confronto ocorreu, em junho, como Tocqueville pre- 'I
vira e esperara, os dois homens, embora diametralmente opostos em suas
ticos - já haviam digerido antes da revolução começar, dando, nesse pro- opiniões políticas, concordaram quanto à sua natureza. Para Tocqueville
cesso, aos velhos princípios democráticos dos jacobinos um caráter pró- foi "uma luta de classe contra classe, uma espécie de Guerra Servil"; e, pa-
prio, Alexis de Tocqueville, observador astuto, sentiu o novo espírito e ra Marx, "a primeira grande batalha (... ) entre as duas classes que dividem
advertiu a Câmara dos Deputados, um mês antes da revolução, que as a sociedade moderna", Para ambos, o resultado - a inevitável derrota dos
"classes operárias estão gradualmente formando opiniões e idéias que não trabalhadores, que foram forçados à batalha - colocou a república bur-
I
irão apenas derrubar esta ou aquela lei, ministério ou mesmo forma de go- guesa sobre bases mais sólidas. Não obstante, Marx via mais longe e disse
verno, mas a própria sociedade't.J? que, a partir daquele momento, a revolução (e não apenas na França) signi-
A revolução que se seguiu ocorreu em duas fases principais: em feve- ficava "a derrubada da sociedade burguesa, ao passo que, antes de feverei-
reiro e junho de 1848, Em fevereiro, como em julho de 1830, os trabalha- ro, significava a derrubada da forma de Estado".16
dores e a burguesia de Paris (dessa vez, era a burguesia "média" e profissio- E contudo, ainda que os "dias" de junho tenham sido a linha divisó-
nal) juntaram forças para derrubar o governo de Luís Filipe. Mas também ria da história de que falou Marx, seria absurdo imaginar que mesmo os
desta vez, a aliança, embora de vida curta, deu aos trabalhadores vantagens mais politicamente articulados entre os trabalhadores que lutaram nas bar-
temporárias com a formação de um governo provisório no qual os socialis- ricadas tivessem consciência disso, E les ainda eram, em sua maioria, os
tas estavam representados e que colocou rapidamente em prática várias me- artesãos dos ofícios tradicionais de Paris. É certo que haviam ocorrido mu-
didas sobre as quais havia acordo, como o sufrágio adulto masculino, uma danças desde 1789 e 1830. Entre outras coisas, com o advento das ferro-
moratória às dívidas e a declaração da Segunda República, Antes mesmo vias, as oficinas de reparo e pátios de manobras ferroviárias e outras ocupa-
que a aliança se desmoronasse, algumas semanas mais tarde, Marx, que ti- ções correlatas tinham sido instaladas ao norte da cidade. Houve, portanto,
nha poucas ilusões, classificou o resultado como a criação de uma "repú- ferroviários e mecânicos, e também um número considerável de trabalha-
blica burguesa", embora "cercada pelas instituições sociais", Tocqueville dores de construção, que lutaram nas barricadas lado a lado com os peque-
provavelrnente também não tinha ilusões mas, como campeão da proprie- nos mestres e jornaleiros das artes tradicionais e com eles aparecem nas
dade, viu os perigos existentes e declarou que os acontecimentos de teve- longas listas dos condenados à prisão ou banidos depois da derrota, Ocor-
reiro se "haviam processado totalmente fora da burguesia e contra ela", e rera, portanto, uma importante mudança na composição dos amotinados,
acrescentou (quase como se previsse o "espectro que paira sobre a Euro· desde as primeiras revoluções, mas que não foi tão acentuada quanto a mu-
pa ", de Marx) que o "socialismo continuará sendo sempre a característica dança de sua ideologia, As palavras-de-ordem de junho não clamavam pela
essencial e a recordação mais temível .da Revolução de Fevereiro",13 derrubada do capitalismo (este ainda não era o problema) mas, depois das
Os proprietários em geral devem ter partilhado dos sentimentos de lições aprendidas na década de 1830, pediam "a organização do trabalho
Tocqueville quando, depois das eleições de abril, ele "viu a sociedade divi- pela associação" e aquela "República Democrática e Social", da qual as
dida em duas partes: os que nada possuíam unidos numa ambição comum; esperanças pareciam ter sido esmagadas pela derrota de junho e que rece-
os que possu íam alguma coisa unidos num terror comum", Era portanto beram um golpe ainda mais devastador com a subida de Luís Napoleão ao
inevitável uma confrontação entre as duas partes, uma batalha nas ruas, e, poder, primeiro como presidente, depois como imperador, Mas havia os
quanto mais cedo ocorresse, rnelhor.!" Marx concordou com Tocquevil- que, mesmo na derrota, nutriam essas esperanças, o que se prova pela so-
brevivência de uma nota ditada à pai ícia da prisão de La Roquette por An-
toine Bisgamblia, mecânico obscuro e analfabeto, preso em junho. Nela,

12 The Hecoltec tions af Alexis de Tocqucvil!e, org. por J.P, Mayer, Nova York, 1959,
pp, 11-12.
13 K. Marx, Clsss struqçtes in Frence, 1848·1850, Londres, s.d., p. 59; Tocqueville,
Recoltections, pp. 78 e segs. 15 Marx,pp.85-7.
14 RecoJ/ecrions, pp. 111.12,
16 Recottections, p. 150; Marx, pp. 88·9.
114 Ideologia e Protesto Popular Revoluções 115

ele expressou suas convicções - e esperanças do futuro - da maneira clore sincrético espontâneo"."? Essas "aquisições" haviam, em 1849, che-
seguinte: qado a incluir o apoio generalizado das aldeias ao partido démocrate-socia-
Todos sabem que não faço concessões com a minha consciência e que enquanto hou- liste de Ledru-Rollin no Maciço Central, nos vales do Ródano e do Saônes,
ver um sopro de vida em meu corpo, eu o utilizarei para o triunfo da República De- e nas regiões litorâneas do Sul.20 Dois anos mais tarde, quando Luís Napo-
mocrática e Socia!.1 7 leão deu o primeiro de seus golpes de Estado em Paris, 25 ou 30 mil cam-
poneses dos departamentos alpinos e litorâneos tomaram armas "não [nas
Paradoxalmente, após a derrota dos trabalhadores parisienses e a di-
palavras de Peter AmannJ em apoio de uma constituição estranha, mas em
zimação de seus quadros dirigentes por fuzilamento, prisão e desterro, fo-
favor de uma repúbl ica revolucionária em elaboracâo. "21 M. Agulhon acres-
ram os camponeses - principalmente os camponeses e artesãos das aldeias
centa que, no Var, o mais militante dos departamentos mediterrâneos, fo-
do Sul - que tomaram a defesa da República Democrática, através dos vo-
ram os camponeses organizados, muitos deles trabalhando em ocupações
tos dados a Ledru-Rollin e a seu partido social-democrático nas eleições
sem i-industriais (como os trabalhadores da cortiça na aldeira montanhosa
de 1849, e (de maneira menos geral) pela rebelião armada contra o primei-
de La Garde-Freinet), os primeiros a pegar em armas, e seus alvos imedia-
ro dos golpes de Estado de Lu ís Napoleão, em dezembro de 1851. Digo
tos foram os figurões - os industriais, comerciantes, fazendeiros e outros
"paradoxalmente" devido ao papel anterior e à reputação negativa que foi
- que, por sua vez, armaram-se em apoio a Napoleão.22
atribu ída pelos historiadores aos camponeses pela sua virtual abstenção
Na revolução seguinte, porém - a última da história da França no
(exceto nos motins de alimentos ao estilo antigo) em fevereiro, por sua
século XI X - os camponeses não tiveram nenhum papel a desempenhar. A
intervenção contra os trabalhadores de Paris em junho, e pela votação ma-
Comuna, estabelecida em Paris em março de 1871, durou apenas dois me-
ciça em favor de Lu ís Napoleão para presidente, em dezembro de 1848
ses e, embora os par isienses tivessem conquistado apoio de várias outras
(Marx chamou-a, ironicamente, de a "verdadeira revolução camponesa").
cidades, meia dúzia das quais criaram também suas Com unas de curta vida,
Isso era compreensível, tendo em vista o profundo ressentimento dos cam-
não houve nenhuma tentativa séria de envolver os distritos rurais até algu-
poneses pela criação, pelo governo provisório, do "imposto dos 45 centí-
mas semanas antes da queda de Paris ante as tropas do governo federal em
metros", destinado a financiar benefícios sociais, e que pareceu aos cam-
Versalhes (a memória parisiense do papel dos camponeses em junho de
poneses uma subvenção a Paris feita às suas expensas. Além disso, a essa
48 pode ter alguma coisa com isso). Foi, portanto, um movimento pura-
altura havia poucos ind ícios de simpatia camponesa pelas idéias democrá-
mente urbano e, ao contrário de qualquer outra revolução daquele século,
ticas e "social istas" dos trabalhadores, ou mesmo para as soluções demo-
pela primeira vez na história os trabalhadores (prolétaires) organizaram um
crático-burguesas propostas por Lamartine ou Ledru-Rollin. Mas as atitu-
governo próprio.
des conservadoras dos camponeses, provocadas pelos ganhos substanciais
Mais precisamente, porém, que tipo de governo era? Teria sido (co-
da primeira revolução, já se estavam modificando e, em certas regiões do
mo Engels o definiu em 1891) "a ditadura do proletariado",23 ou foi _
Sul, se vinham modificando continuamente desde 1830. Maurice Agulhon,
como disse Marx na época, "a forma pol ítica finalmente descoberta sob a
cujos estudos da cultura e da política camponesa naqueles anos abriram
qual realizar a Emancipação Econômica do Trabalho", ou (como variante)
perspectivas totalmente novas, cita um relatório oficial de 1832 que ex-
"o prenúncio de uma nova sociedade" - de fato, a ditadura em embrião, e
pressava o alarme oficial com doutrinação dos artesãos de Draguignan, a
não já desenvotvidar?" Qualquer que seja a fórmula que aceitarmos (e, pa-
capital semi-rural do Var , por idéias democrático-liberais que Ihes eram
transmitidas em casas de vinho e em cafés por "intelectuais inexperientes"
e elementos déc!assés (a frase parece familiar!). 1 H E continua, descrevendo
como a cultura tradicional dos camponeses, longe de agir como uma barrei- 19 M. Agulhon, 1848 ou I'apprentissage de Ia Répubtique, 1848·1852. Paris, 1973,
ra conservadora à radicalização, fundiu-se com ela e produziu (citando p. 108; apud P. McPhee, "Popular Culture, Symbolism and Rural Radicalism in Nine-
Agulhon outra vez) "a integração das novas aquisições políticas com o fol- teenth-Century F rance", Jo urnot of Peasan t St udies, V 121, janeiro de 1978, p. 240.
20 McPhee, p. 239.
21 P. Amann, "The Changing Outlines 01 1848", American Hist. Review, LXVIII,
julho de 1963, pp, 938 -53.
22 La République eu vil/age, pp. 357-9.
17 Arch. Prél. de Police, Aa429. fo. 441. 23 "Introdução" de F. Engels à Guerra civil na França, de Marx, escrita para a edição
18 M. Agulhon, La République eu village (tes popularions du Var de Ia Révolution à alernâ oe 1891.
Ia Seconde Républiquel, Paris. 1970, p. 255. 24 "Address to the General Council of the I nternational Workingmen's Association
116 Ideologia e Protesto Popular Revoluções 117

ra os objetivos deste capítulo, não estamos obrigados a escolher uma) não dores (eram, porém, uma reduzida minoria). 26 Assim composto, era pouco
há dúvida de que os homens e mulheres que iniciaram a revolução toman- provável que o Conselho tomasse muitas medidas que pudessem levar os
do os canhões de Montmartre a 18 de março eram artasãos trabalhadores trabalhadores de Paris ao socialismo. Mas, apesar de todas as suas falhas e
das paróquias próximas e suas mulheres; e de que o Comitê Central da do pouco tempo no poder, a Comuna representou um novo tipo de Estado
Guarda Nacional, formado semanas antes, não estava muito errado quan- popular: fixou um máximo para os altos salários, declarou a moratória nos
do, dois dias depois, anunciou ao mundo que "os proletários da Capital [ti- despejos, aboliu dívidas e o trabalho noturno nas padarias e, acima de tudo,
nham] tomado a cidade". Além disso, quando a Com una foi esmagada em estimulou a participação popular no governo, inclusive das mulheres, para
fins de maio e feitos 36 mil prisioneiros, dos quais mais de 13 mil foram a rea Iização de suas tarefas.
condenados pelos tribunais militares ao fuzilamento, à prisão ou ao dester- Assim sendo, em que sentido se pode falar de um avanço na ideolo-
ro, a grande maioria deles era de artesãos e trabalhadores: o elemento assa- gia popu lar, em relação à de 1830 e de 1848? N o sentido de que muitos
lariado era apreciavelmente maior do que havia sido entre os prisioneiros de milhares mais de trabalhadores - e não apenas líderes - foram conquista-
junho de 1848. Assim, no vocabulário francês da época (embora talvez não dos para o socialismo (embora nem sempre o da Internacional) e, apesar do
no nosso) é razoável chamá-Ias prolétaires. Também entre os Iíderes, e ao crescimento lento das fábricas em Paris, eles agora se consideravam prolé-
contrário dos Iíderes das revoluções anteriores, um grande número era de taires, e não mais ouvriers e muito menossans-culottes. Assim, o capitalis-
trabalhadores. Dos 81 membros do Conselho Geral da Comuna, livremente ta, corno a antitese do prolétsire, era o inimigo; mas, numa época em que a
eleito em março (e, portanto, uma medida tão válida quanto qualquer indústria capitalista em grande escala ainda estava em sua infância, parti-
outra), 33 eram trabalhadores artesãos (principalmente de ofícios tradicio- cularmente em Paris, o "capitalista" era, com mais freqüência, um comer-
nais), 30 eram intelectuais - jornalistas, médicos, escritores, advogados; ciante ou banqueiro, e parecia haver ainda margem para um entendimento I,,
11 eram empregados não-operários; e, dos restantes, cinco eram homens de com a burguesia "intermediária" e profissional. Portanto, para eles o alvo
negócios e dois eram soldados profissionais.ê" Assim, a composição social, não era apenas o Estado dos trabalhadores da Internacional: ainda restava a
se não largamente proletária, era predominantemente "popular". República Democrática e Social, pela qual se havia lutado com tanto ardor ;: I
O que sabemos de sua ideologia, tanto da ideologia dos lfder es como nas barricadas de junho e que agora, vinte e três anos depois, estava sendo
da dos liderados? O Conselho Geral tinha uma composição mista, com fi- finalmente realizada sob a Comuna. Mas, como Marx compreendeu perfei-
delidades que se voltavam tanto para o passado como para o presente. O tamente, a Com una era a "precursora de uma nova sociedade", e não a sua
grupo mais coeso, dentre os maiores, era provavelmente o formado pelos realização, E, entre o velho e o novo, com as suas raízes profundamente
34 democratas republicanos, ou neojacobinos (Delescluze foi o exemplo mergulhadas no passado, podemos talvez descrevê-Ia como a última das re-
mais "heróico"), que tinham os olhos voltados para o Comitê de Salvação voluções "pré-industrlais", e não como a primeira das novas.
Pública de 1793 (Marx teve alguma coisa a dizer sobre isso, e não era lison-
jeir cl. Os socialistas, ou "socialistas", eram portanto, pelo menos nominal-
mente, a maioria; mas estavam divididos de duas maneiras. Havia onze par-
tidários de 81anqui (ainda preso em Ver salhes] , com sua fé convicta na
insurreição e na ditadura, homens de ação que desprezavam qualquer con-
cessão e qualquer idéia de planejamento de uma nova for ma de sociedade.
Vinte e seis eram internacionalistas, que buscavam orientação da seção
francesa da Internacional dos Trabalhadores; estavam, contudo, divididos
ainda entre anarquistas que seguiam Proudhon, morto alguns anos antes,
mas ainda um herói entre os artesãos independentes e pequenos emprega-
dores, e socialistas marxistas que planejavam criar um Estado dos trabalha-

on the Civil War in France. 1871 ", ;0 E. Schul kind (orq.). The Paris Communc of
1871. Tbe View from lhe Lett , Londres, 1972, p. 212.
25 Roger L. Williarns, The Freoch Revotution of 1870·1871, Londres, 1969, p. 140. 26 Ibid.

,
Q c

I~~-" ~.-~-'--
A INGLATERRA NO SÉCULO XVIII

j
A Inglaterra no século XVIII - pelo menos depois dos turbulentos anos da "
"

rainha Ana - era relativamente estável. E continuaria a sê-Io até o impacto


da Revolução Francesa e da Revolução l ndustrial , que começou a ser sen- ,
tido em princrpios da década de 1790, aproximadamente. Encerraremos
nessa época o presente cap rtulo, deixando os anos mais turbulentos da
história social que se seguiram, para o caprtulo posterior.
Desde a Revolução Gloriosa, que pôs termo às lutas entre o rei e o
Parlamento, o pai's vinha sendo governado por uma monarquia "limitada"
que se estabelecera firmemente com a sucessão hanoveriana e a diminuição
das lutas entre whigs e tories que havia caracterizado o reino da rai nha Ana.
Com a limitação da autoridade real, a soberania dividiu-se - pelo menos é
o que diziam os constitucionalistas - entre o rei, os lordes e a Câmara dos
Comuns. Na prática, porém, a divisão se fazia entre a Coroa e a aristocracia
latifundiária, que dominava as duas Casas do Parlamento. De fato, a pró-
pria sociedade ainda era aristocrática no sentido de que os interesses agrá-
rios dominavam não só o Parlamento como também os governos locais, a
administração da justiça e o patroc inio das artes. E eram a aristocracia e a
gentry (pequena nobreza) que, muito mais do que a classe dos comercian-
tes ou a corte hanoveriana, impunham sua ideologia (ou sua "hegemonia",
como disse Gramsci) aos outros grupos sociais.
Havia, porém, uma exceção importante a essa penetração cultural
geral, mesmo entre as classes proprietárias. Na City de Londres, os comer-
ciantes e homens de negócio haviam construído, ao longo de séculos, um
baluarte próprio. No século XVIII, apesar de não se terem registrado lutas
mais violentas, houve muitos conflitos entre, de um lado, a City (represen-
tada pela plutocrática Corte dos Aldermen e pela Corte do Conselho Co-
mum, mais plebéia) e, de outro, o rei e o partido majoritário no Parlamen-
to (já então geralmente whig) em relação à politica comercial e econômica.
Esse conflito em torno de interesses econômicos refletia-se na luta entre
taccões pol íticas, sendo notável a coerência com que a Citv - fosse torv ,
whíg ou "radical", - viu-se em oposição à po h-
como o foi sucessivamente
,
I
'I
121 j: I
"
122 Ideologia e Protesto Popular Transição para a Sociedade Industrial 123

tica de Westminster e St. James entre a década de 1720 e princrpios da dé- motins urbanos de todos os tipos, desde o simples "tumulto" à insurreição.
cada de 1780.1 Naquela época, como iremos ver, o interesse burguês esta- Vamos examinar um de cada vez e analisar sua ideologia - seja ela "ine-
va representado apenas pelas classes comerciais: a burguesia manufatureira rente" ou "derivada".
ainda não havia surgido como uma força de peso, como mostraremos no Comecemos com o protesto rural que, como eu já disse, havia sido
caprtulo seguinte. relativamente silenciado e que não conheceu a violência que ainda acom-
Na base da pirâmide social estavam, naturalmente, as classes traba- panhava a rebelião camponesa ao estilo antigo na Europa oriental e reapa-
lhadoras ou "populares" onde eram poucos os que tinham direito de voto. receria como tal na França (como já vimos num caprtulo anterior), termi-
Contudo, como veremos mais adiante, exceto os mais miseráveis e desfa- nada a trégua de 60 anos. Também na Inglaterra os choques turbulentos do
vorecidos, uma vez unidos, os membros dessas classes tinham, ainda assim, século anterior eram coisa do passado. Como disse E.P. Thompson, "a épo-
considerável vigor poh'tico. Nas cidades, essas classes compreendiam o que ca e as pessoas haviam mudado: o século XVIII produziu franco-atiradores,
Daniel Defoe, em um ensaio penetrante escrito em 1709 definiu como "os furadores de cercas, ladrões de lenha e caçadores ilegais, mas raramente
trabalhadores", "os pobres", e "os miseráveis"? isto é, os pequenos lojis- qualquer levée en masse do carnpesinato .":' Na Inglaterra, os 'últimos ves-
tas e artesãos, os trabalhadores não-especializados, mas que contavam com trqios do feudalismo no campo haviam sido varridos e o comercialismo "

empregos mais ou menos regulares, e, no último grupo, a classe "afundada" capitalista tomara o seu lugar. Os conflitos existentes no campo ocorreram
em reação às mudanças que estavam sendo provocadas pela revolução agrá-
dos cronicamente pobres ou doentes, os miseráveis, mendigos, vagabundos,
biscateiros, e outros mais que Patrick Colqohoun incluiu,em fins do século, ria, no curso da qual os senhores e os agricultores fecharam os campos, 'I
no que chamou de elemento "criminoso". Defoe acrescentou, para o carn- construrrarn cercas, dividiram terras comuns e colocaram torniquetes" e
po, "a gente do campo, agricultores etc. que não passam nem bem nem porteiras destinadas à cobrança de pedágios nas estradas. Os mais ricos
mal". Entre eles, pretendia incluir, evidentemente, os arrendatários livres e entre eles reservaram parques e florestas inteiros para a caça. Os trabalha-
menores e os pequenos proprietários, ao passo que os trabalhadores rurais dores e pequenos arrendatários pagaram-Ihes na mesma moeda e derruba-
e os aldeões contavam entre "os pobres". Esta poderia ser uma análise bas- ram as cercas e torniquetes, araram as terras fechadas e invadiram as flores-
tante adequada da população pobre e trabalhadora do século XV 111. Mas, tas em busca de lenha e de caça. Houve motins contra os torniquetes no
logo depois, com a revolução agrária, ocorreram importantes mudanças West Country, em 1727, 1735 e 1753, e no West Riding, em Yorkshire,
sociais que tiveram o efeito de eliminar muitos arrendatários livres e aldeões, no mesmo ano. Na década de 1720, o "Rei João" e seus cavaleiros masca-
de aumentar o número de trabalhadores e dar maior importância a muitos rados atacaram os parques de caça em Windsor.4 A hostilidade ao cerca-
agricultores que deixaram então de "não passar nem bem nem mal". A mento dos campos foi ainda mais decidida: em 1710 em Northampton, em
partir de então, o que restava do antigo campesinato começou a dispersar- 1758 em Wilthshire e Norwich. Em sua maioria, porém, os motins ocorre-
se e a aldeia de estilo moderno, com sua divisão tripartida entre o senhor, ram depois da Lei do Cercamento de Terras (Enclosure Acr) de 1760, que
o agricultor e o trabalhador, começou a tomar forma. foi seguida de motins em Northarnpton e no condado de Oxford em 1765,
Apesar de toda a placidez relativa do cenário social, não faltavam em Boston (Lincs) em 1771, em Worcester em 1772, em Sheffield em
tensões e conflitos menores, colocando em oposição esses arrendatários 1791 e no distrito de Nottingham em 1798. Houve, de certo, muitos ou-
livres e sem terras, artesãos urbanos e os assalariados e pequenos consumi- tros não noticiados pelos jornais. Não foram causados danos pessoais aos
dores contra as classes abastadas dos comerciantes, a pequena aristocracia proprietários das terras ou aos agricultores, e a pai ítica não teve qualquer
e os agricultores "em processo de melhoria" - e ocasionalmente o gover- influência nesses movimentos: a preocupação predominante era o restabe-
no e o próprio Parlamento. Por uma questão de comodidade, dividirei esse lecimento dos direitos tradicionais da aldeia que, na opinião dos aldeões,
protesto popular em quatro grupos principais: protesto rural, disputas estavam sendo sacrificados, com apoio do Parlamento, em favor da sede de
industriais, motins por alimentos (ou motins de pequenos consumidores) e

3 E.P. Thompson, Whigs and tiunters: rhe origin af the blaek ect , Londres, 1975,
pp.23·5.
L.S. Sutherland, 'The Cirv of London in Eighteenth-Century Potitics", in R.
• Cruz de madeira móvel, espécie de antiga roleta, posta nas estradas ou ruas e dest i-
Pares e A.J. P. Taylor (orgs.), Essays presented to Sir Lewis Namier, Londres, 1956,
pp.46·74. nado a permitir a passagem de pessoas, mas não de gado ou vei'culos. (N. do T.I
2 Daniel De íoe , Tile Review , 25 de junho de 1709. " Ibid .. pp. 142·6.

- - •• 0 _
124 Ideologia e Protesto Popular Transição para a Sociedade Industrial 125

"rnelhorias" dos grandes proprietários de terras e dos agricultores próspe- co, ou mesmo metade, dos ganhos dos pobres, e as más colheitas foram
ros (cuja ideologia, evidentemente, era diferente da sua). mais freqüentes depqis da década de 1750. Mais ou menos nessa época,
As disputas sobre salários foram modeladas pela mesma preocupação estavam sendo adotados novos métodos de distribuição que tornavam mais
com a "justiça" e o restabelecimento de um direito perdido, e não por uma lucrativo para os negociantes vender aos consumidores ricos do que aos
ambição de conquistar para o assalariado uma fatia maior do bolo. Tipi- pobres. Além disso, havia uma longa tradição de reação popular à falta,
camente, as greves foram dirigidas contra os empregadores que reduziam fosse artificial ou real, e bastava uma crise no abastecimento - como ocor-
i,,
salários para poupar custos. Podiam surgir igualmente (como nos motins ria a cada década, a partir da década de 1740 - para que ela se manifes-
generalizados contra os irlandeses no leste de Londres em 1736) como uma tasse. De acordo com essa tradição, havia muitas maneiras pelas quais os
reação ao uso de mão-de-obra barata; ou ainda, para eliminar máquinas que consumidores irritados reagiam. Uma delas era simplesmente tomar o trigo
ameaçavam roubar o trabalho dos homens - uma das manifestações relati- sem qualquer outra consideração, à sua chegada no mercado, e havia ine-
vamente mais antigas disso foi a destruição da nova serraria mecânica de vitavelmente uma certa margem de saque incontrolado em todas as pertur-
Charles Dingley em Limehouse em 1768.5 Esses ataques à propriedade do bações desse tipo. Outra maneira era destrur-lo (presumidamente como
empregador durante uma disputa eram freqüentes, pois, na época, era co- urna forma simbólica de vingança), e isso ocorreu com bastante freqüência
mum que as greves adquirissem aspecto violento em lugar da forma de mar- em motins de mercados, particularmente nas primeiras décadas do século.
chas ou petições pacificas. A violência limitava-se, geralmente, à destruição Um terceiro método era deter os carroções, comboios ou navios que leva-
da casa ou das máquinas do empregador; sua pessoa ficava geralmente incó- vam cereal para outros portos, para o exterior ou para regiões do pars onde
lume (poderia, no máximo, ser levado num carrinho de mão ou lançado o produto era mais escasso, (Isso parece ter sido mais comum na França,
num poço ou cova, se corresse o risco de se mostrar!). Os "furadores de onde era chamado de uma entrave, mas ocorreu também na Cornualha, on-
greve" ou os grupos de trabalhadores rivais não eram tão felizes, e foi a( de os mineiros marchavam até os portos para impedir a sarda do trigo, e
que ocorreram os derramamentos de sangue que marcaram as qreves dos continuaram a fazê-to até a década de 1830, pelo menos.) A quarta forma,
descarregadores de carvão e dos tecelões de seda em 1768. Aquele ano foi, a mais sofisticada, e que exigia um grau maior de organização, era a fixação
na realidade, notável pela proliferação de greves na capital, muitas simul- de um "preço justo" pelos próprios amotinados: na França, onde era igual-
tâneas, e algumas coincidindo com o auge da agitação política em relação mente comum, essa forma recebeu o nome de Ia taxation populeire . Esse
a Wilkes (de que falaremos adiante), a ponto de ter o seu biógrafo citadp método,embora não tenha sido nunca universal, teve um papel impor-
esses movimentos como um dos primeiros exemplos de greves "pol i'ticas " tante nos maiores motins de fins do século, de 1766, 1795 e 1800-1.7
- erroneamente, em minha opinião, e como procurei mostrar em outro Já se disse que os motins de alimentos - se atingiam um alcance sig- L
trabalhe." nificativo - eram com freqüência encampados (se não instigados inicial-
Muito mais freqüentes do que disputas trabalhistas nessa época fo- mente) por grupos mais influentes, de fora, e er-am portanto passrveis da ,I"
ram os motins provocados pela falta de alimentos que, em tempos de escas- intrusão de idéias pol rtic as. (Vimos um exemplo dessa sugestão num capt- I
sez real, ou prevista, de abastecimento - particularmente de pão - envol- tulo anterior, quando examinamos rapidamente a "guerra da farinha" fran-
viam todas as classes dos pequenos consumidores, inclusive os assalariados, cesa de 1775.) Há CilSOS, de certo, em que essa acusação de colusão polrtica
naturalmente. Entre 1730 e 1795, contei 275 motins por falta de alimen- parece ter mais procedência do que em outros. Um desses casos é o dos
tos em um total de 375 motins de todos os tipos notieiados pelos jornais. motins do trigo de 1766, que foram estudados por um historiador cana-
À parte o grande número de pequenos consumidores num ano, não é de dense, Walter Shelton. Shelton argumentou que, nesses motins, a simpatia
surpreender que essas explosões tenham sido tão freqüentes e que essa fre- dos magistrados para com os amotinados e sua antipatia pelos comercian-
qüência tenha aumentado com o avançar do século. O pão era o alimento tes ajudou a prolongar os tumultos, quando uma inter-venção mais imediata
básico que, mesmo em épocas normais, talvez tenha representado um ter-

7 Ver John Stevenson, "Food r iots. 1792-1818", in J. Stevenson e P. Ouinaul t


Iorqs.}, Popular protest and public arder, Londres, 1974, i1P. 33- 74; WClller J. Shel t on.
5 Ver meu Wilkes and libertv , Ox lord, 1962. pp. 93-4. "The Role 01 Local Authorities in lhe Hunger R iots of 1766", Albion VIII, prima-
6 Raymond Posrçate. Thar devi! witkes, Londres, 1956, p. 181; Wilkes and tibertv , vera de 1973, pp. 50-66; e Roger Wells, "The Revolt of lhe South-West, 1800-1801",
pp, 103-4. Social historv , nO 6, outubro de 1977, pp. 713-44.
126 Ideologia e Protesto Popular Transição para a Sociedade Industrial 127

e decidida de sua parte os teria sustado rapidamente. Mas ele acrescenta Sete Anos. Mas esses motins foram obscurecidos, em alcance e violéncia,
que isso não foi t rpico do século e que a "reação equivoca da pequena no- pelo entusiasmo despertado pela carreira de John Wilkes, nas décadas de
breza revelava um ressentimento próprio e foi peculiar à ocasião".8 Basica- 1760 e 1770, e pelos motins de Gordon de 1780, quando multidões "anti-
mente, porém, a ideologia dos motins de alimentos era simplesmente a papista " percorreram as ruas da capital durante uma semana e provocaram
preocupação dos pequenos consumidores com o "justo preço", embora, danos a propriedades avaliados mais tarde, para indenizações, em mais de 1
I
como insistiu com acerto E_P. Thompson, não fosse apenas a "justiça" 100.000 libras (uma soma bastante elevada naqueles dias l.!"
do preço que estivesse em questão, mas a "justiça" do método de distribui- Além de sua variedade, os motins de Londres tenderam naturalmente
cão e operação dos mercados também, pois (citando-o novamente] as rei- a sofrer uma influência polrtica mais imediata, devido não só à proximida-
vindicações populares "operam dentro de um consenso popular sobre quais de do Parlamento, mas talvez mais ainda à do governo da Citv que, como
as práticas legítimas, e quais as ilegítimas, na venda, moagem, cozimento já vimos, desempenhava um papel ativo nos assuntos pol rticos. Das duas : 1I

etc.", A esse consenso ele chama de "economia moral do pobre."." cortes que integravam a administração da Citv, foi a Corte do Conselho
Os motins urbanos (particularmente em Londres) eram diferentes. Comum, a mais popular e democrática das duas, que teve o papel principal
Entre outras coisas, as questões que os motivaram variavam muito. Podiam na educação pohtica das "camadas inferiores", não só da própria City,
ter relação com os alimentos, tomando a forma de motins tradicionais mas, à medida que sua influencia polrtica se estendia à cidade em geral, de
nesse sentido, ou (como aconteceu no ano principal das agitações dos grandes partes de Surrey e Middlesex. Nas primeiras décadas, a polúica
wilkistas, 1768l podiam ser provocados (na forma de slogans, por exemplo) da Citv tendeu a apoiar o campo, e não a Corte, e foi portanto mais tory
no contexto de um movimento poh'tico mais amplo. Os motins de alimen- do que whig. Na década de 1750, com a chegada de William Pitt, passou
tos eram uma ocorrência relativamente freqüente nas cidades da província, a um torysmo mais radical que, com William Beckford (o homem de con-
sobretudo naquelas onde havia um mercado tradicional, como Taunton, fiança de Pitt na City) e mais tarde com Wilkes, passou novamente a uma
Aylesbury, Winchester e outras. Londres era a grande exceção: ali não pai úica cr úica dos dois partidos que talvez pudesse ser rotulada de "radi-
ocorreram desses motins entre 1714 e meados da década de 1790. A razão cal".!l E esse rótulo também poderia, com a mesma justeza, ser atribu ído
era dupla: primeiro, porque Londres (como Paris) era bem abastecida e re{ às atividades das multidões que seguiam a palavra-de-ordem "Wilkes e
lativamente bem policiada, já que um motim provocado pela falta de pão 8 Liberdade" em 1763 e continuaram a aclamá-to e a amotinar-se pela sua
pouca distância de Whitehall ou Westminster seria politicamente muito causa quando retornou do ex (lio em 1768, continuando a faz é-lo até que
mais perigoso do que em qualquer outro lugar. A segunda razão era que a ele foi finalmente admitido ao Parlamento, depois de suas numerosas expul-
localização de Londres (com sua faixa protetora do Middlesex quase urba- sões e desqualificações, em 1774. E mesmo os motins de Gordon, apesar
no em seu flanco noroeste, o mais exposto) dava-lhe uma certa imunidade de todas as formas pouco liberais que assumiram, obedeceram basicamente
da "contaminação" rural, que faltava a Paris, por exemplo. Mas se Londres ao modelo radical, valendo-se de uma longa tradição de protestantismo
não teve os motins do pão, seu papel como centro do governo e eixo da radical, e foram inspirados (se não promovidos) pelos elementos mais radi-
economia nacional, tornava-a suscetível a uma gama muito mais ampla de cais na cidade, homens como Frederick Buli, conselheiro comum e amigo
agitações populares do que as cidades de provincias. ou de mercado. Ali íntimo e aliado de Lord George Gordon na causa antipapista.'?
ocorreram, por exemplo, os motins contra o banqueiro escocés John Law, Qual era, então, a ideologia das massas da grande cidade que a distin-
na época do escândalo financeiro e pohtico da falência da Companhia guia dos protestadores [populares nas aldeias e nas cidades de mercado?
South Sea (1720); os motins contra Sir Robert Walpole sobre o imposto Basicamente ela partilhava, é claro, da ideologia "inerente" das outras
de consumo em 1733 e sobre o gim, em 1736; a agitação provocada pela massas. Preocupava-se iqualrnentecorn a "justiça" e os direitos dos "ingle-
intenção de facilitar a naturalização dos judeus estrangeiros na década de ses livres"; e as multidões que gritilvam por Wilkes, como mostra de hcsti-
1750; e os motins em apoio de William Pitt, o Velho, durante a Guerra dos

10 Para maiores detalhes, G. Rudé, The crowd in bistorv , Nova York, 1964, pp.47·65.
11 Ver L.S. Sutherland, The citv of London and tbe opposition to go vernment, 1768·
1774, Londres, 1959, pp. 1D-11.
8 Shelton, loc. cito
!2 Ver meu Paris and London in the eiqhtee nth-co nturv , Londres e Nova York, 1971,
9 E.P. Thompson, "The Moral Economy of lhe English Crowd in lhe Eighteenlh-
Century", Past and presunto nO 50, fevereiro de 1971, pp. 76-136. pp. 268-92.
128 Ideologia e Protesto Popular Transição para a Sociedade Industrial 129

lidade elementar de classe contra os ricos, celebraram o retorno de seu evidenciou-se ainda mais nos motins de Gordon (que ocorreram pouco de-
herói ao Parlamento quebrando as vidraças dos lordes e ladies ricos e ele- pois), nos quais o seu comportamento ambivalente teria refletido "uma
mistura de malta manipulada e multidão revolucionárias". E conclui que
gantes em seu retorno das eleições de Brentford. Esse igualitarismo fácil
ela estava "de fato a meio caminho do aparecimento da consciência poh- li
expressou-se de maneira ainda mais viva nos motins de Gordon que, com
evidente deliberação, voltaram-se contra as propriedades dos católicos prós- tica popular't.l"
peros, ao passo que os irlandeses pobres, embora vivendo em muitos casos Não questiono, no todo, essa conclusão: afinal de contas, o "meio
ao alcance fácil dos manifestantes, foram deixados em paz. Nos Proceed- caminho" ainda admitia uma considerável penetração das idéias pol (ticas,
ings (Anais) do tribunal do Old Bailey relativos aos acusados levados a jul- Mas devemos acrescentar que o resultado dos motins Gordon foi, para não
gamento, encontramos o caso de um homem que admitiu a possibilidade de dizermos mais, desestimulantes, tanto para as massas como para 'seus rnen-
ter causado dano a casa de um protestante rico, mas (como disse ao tribu- tores na City. Como eles mesmos reconheceram, a reação polrtica que se
nal), "Protestante ou não, nenhum cavalheiro precisa ter mais de mil libras seguiu ensinou aos radicais uma lição, como disse Joseph Brasbridge, um
por ano: isso chega para a manutenção de qualquer cavatheiro.r '? notável da Citv, pouco depois de passada a agitação: "A partir daquele
Mas como já dissemos, a ideologia da multidão de Londres era dife- momento, fechei meus ouvidos à voz do clamor popular";IS e sabemos
rente, e o elemento "derivado" nos motins urbanos é evidente. Mas as pro- pelas evidências que havia muitos que partilhavam a sua opinião, De fato,
porções em que esse elemento foi absorvido em qualquer momento parti- não houve mais multidões da Citv ou de Londres que agissem "por licença"
cular estão, de certo, sujeitas a discussão. Em primeiro lugar, o elemento da Corte do Conselho Comum até que o radicalismo da City revivesse, com
"derivado" expressou-se em slogans que refletiram a constituição pol itica apoio popular, em meio às Guerras Napoleônicas.
da Citv, ou de seu partido "popular", com suas modificações de uma gera- Resta-nos examinar o padrão comum do protesto popular na época,
ção a outra. Exemplos disso são palavr as-de-ordern e slogans como "a Igre- antes que a revolução industrial tivesse tempo de modelar a sociedade da
ja Tradicional e Sacheverell" das multidões tories de 1710, ou "Contra o Inglaterra à sua imagem, Em primeiro lugar, o protesto foi marcado tipi-
Imposto de Consumo", do motim contra Walpole em 1733, e "Wilkes e camente pelos métodos de ação direta e de violência à propriedade: as gre- 1:1
Liberdade", o slogan radical predominante de 1763-74; ou ainda o slogan ves se transformavam em motins, nos quais os grevistas quebravam máqui-
"Abaixo o papisrno", da Associação Protestante, - que contou com forte nas, seja para salvar empregos, seja para forçar seus empregadores a ceder
apoio da Citv - em junho de 1780. Assim, embora os slogans e a tendência através da "negociação coletiva pelo motim";16 os amotinados invadiam
política que refletiam se modificassem de uma grande crise para outra, ha- celeiros e padarias; os amotinados urbanos "derrubavam" a casa de seu ini-
via um elemento constante: o mentor da multidão era sempre o governo da migo, ou o queimavam em ef(gie, Mas, como dissemos antes, o protesto
Citv (e, mais tipicamente, a Corte do Conselho Comum), tal como em Pa- estava singularmente isento de ataques à vida ou à pessoa, exceto nas dispu-
ris, antes da Revolução Francesa, o povo freqüentemente encontrava est í· tas entre grupos de trabalhadores. Nos outros choques, quando o sangue
mulo à ação, quando se tratava de questões polrticas, no Parlément aristo- era derramado, quase sempre o era pelas autoridades:o exemplo mais notó-
crático. Mas, até que ponto foi a "instrução"? Qual a profundidade das li- rio foi o dos motins de Gordon, em conseqüência dos quais 285 amotina-
ções polrticas assimiladas pelas massas que, com as variações da moda, se dos foram fuzilados nas ruas ou morreram depois em hospitais e 25 foram
amotinavam pela causa popular do dia? Ou eram simples "maltas" que (ea· enforcados, ao passo que os magistrados ou os soldados nada sofreram.
giam à manipulação dos interesses da Citv? Essa pergunta é provocada pela Em segundo lugar, apesar de toda a destruição de propriedades evi-
acusação de Edward Thompson de que eu "protestei demais" ao defender denciou-se grande discriminação na seleção dos alvos. Tanto nos motins
as multidões londrinas ou wilkistas contra a imputação de serem uma mal- Gordon como nos de Priestley (estes últimos em Birmingham em 1791), os
ta de vagabundos e "elementos criminosos". Ela acredita que a multidão manifestantes escolheram as propriedades a serem "derrubadas" com uma
wilkista, embora certamente simpática a Wilkes e sem precisar ser paga
para isso, sabia que sua violência não encontraria resistência, já que agia
"por licença" dos meqistrados da Citv , E que a inconstãncia dessas massas
14 E. P. Thompson, The making of rhe english working c/ass, Londres, 1963, pp. 70-1.
15 Apud. L.S. Sutherland, "The City of London in Eighteenth-century Poli tics ",
p.73.
! 16 E.J. Hobsbawm, "The Machine Breakers", Past and present, n9 1, fevereiro de
1952, pp. 57·70.
13 ioia., p. 289.

II

L~_
130 Ideologia e Protesto Popular Transição para a Sociedade Industrial 131

ques consecutivos. Nos motins civis, o caso foi diferente. Nos grandes mo-
precisão fantástica (não obstante. nenhuma das "listas" que estariam em
vimentos havia em geral um hder "de fora" (um Pitt, um Wilkes ou um
poder dos lIderes apareceram no processo policial ou judiciário). Nos mo-
Lord George Gordon), que se sentia satisfeito com a posição de lideran-
tins de Gordon, as casas não-católicas que foram destruldas ou pertenciam
ça (Wil kes, embora raramente discursasse aos seus seguidores, foi sem
a pessoas que se acreditavam ser protetoras dos católicos ou foram vitimas
dúvida um desses I(deres), enquanto outros (Gordon é um exemplo prová-
de forças naturais - como no caso das 25 casas em Holborn, junto às des-
vel) recebiam essa liderança à revelia e negavam qualquer responsabilidade
tilarias de Thomas Langdale, que foram envolvidas pelas chamas impulsio-
pelo que era feito em seu nome. Além dos lfderes "de fora" podia haver
nadas pelos fortes ventos e provenientes das bebidas incendiadas, armaze-
também hderes a curto prazo, ou "capitães" nas próprias fileiras dos mani-
nadas em suas adegas. Muitos outros exemplos poderiam ser mencionados
festantes, ou que deles estavam próximos, homens que desfrutavam apenas
em apoio desse ponto.
de uma autoridade momentânea (ao contrário de Doyle e Valline) e não
Em terceiro lugar, o protesto foi, em geral, espontâneo embora com
tinham nenhum papel a desempenhar antes ou depois daquele fato espe-
freqüência, como nos motins de alimentos, seguisse um curso determinado
cifico . Foram homens como Matthew Christian, descrito como "um cava-
pelo costume. Até mesmo nos choques em grande escala, como OS motins
lheiro de caráter e fortuna", que teria distribuído cerveja aos manifestantes
de Gordon ou wilkistas, havia um mínimo de organização: as agitações
em comemoração da vitória eleitoral de Wilkes em Middlesex, em março
começavam, em geral, com um incidente pequeno (digamos uma discussão
de 1768. Nos motins de Gordon, uns dez anos depois, houve homens como
numa padaria ou, como em junho de 1780, a rejeição de uma petição pelo
William Pateman, carpinteiro de carros, jornaleiro, e Thomas Taplin, fabri-
Parlamento), desenvolvendo-se até chegar a uma conflagração generalizada
cante de carruaqens. que lideraram grupos de amotinados ou recolheram
e a ataques contra a proPriedade. Mas havia, é claro, diferenças considerá-
dinheiro "para os pobres". Poderfarnos mencionar também, de uma época
veis no grau de espontaneidade, entre os motins urbanos e os rurais.
anterior, o "Capitão Tom, o Barbeiro", que, "vestido com uma roupa lis-
Quarto, a liderança: aspecto intimamente associado ao anterior. Po-
trada" liderou manifestantes antiirlandeses nos Goodman's Fields, em
deríamos dizer que, em geral, naquela época a liderança "de dentro" da
julho de 1736. (Não conhecemos seu nome, pois manteve seu anonimato
multidão era ainda relativamente rara, exceto em explosões rápidas, em
fugindo à detençãoy7
que certas pessoas tinham uma presença mais dominadora do que outras,
E, quinto, quem eram os protestadores? Nas aldeias, eram pequenos
ou se comportavam de maneira mais destacada. Ou pelo menos os magis- ,I
trados ou a policia assim pensavam. Mas isso dependia, de certo, do tipo
proprietários, aldeões, mineiros e tecelões, freqüentemente
nos motins de alimentos ou contra os cercamentos
mencionados
dos campos e nas dispu-
I:
de incidente. Voltando às nossas quatro categorias, os mais espontâneos
tas .trabalh istas. (Uderes como o "R ei João", é claro - embora não fossem,
teriam sido provavelmente os motins de alimentos, nos quais os I(deres
em nenhum sentido, "de fora", pois participaram dos acontecimentos -
mais tarde submetidos a julgamento eram menos I(deres no sentido cornu-
eram de uma classe social mais elevada.) Nas cidades, havia maior mistura:
mente aceito da palavra, mas antes pessoas cujo entusiasmo ou ousadia
assalariados, trabalhadores, criados e aprendizes, mas também homens de
momentâneos as marcaram para a prisão pela pol rcia ou pela mili'cla. Os
otrcios, artesãos e, ocasionalmente cavalheiros (ver o caso de Matthew
motins provocados pelo cercamento dos campos ou das reservas de caça
Christian). A composição da multidão urbana variava, sem dúvida, de epi-
poderiam ser de pequena escala, quase de escala individual, ou poderiam
sódio a episódio, como, por exemplo, entre os artesãos e os donos de lojas
ser movimentos bem organizados, como as operações realizadas no Parque '1
que gritavam por pitt, e a maior variedade de pessoas de ruvel "médio" e
de Windsor na década de 1720 pelo "Rei João" e seus companheiros. As
"inferior" (trabalhadores e arrendatários livres, bem como artesãos e lojis-
disputas trabalhistas também podiam tomar uma forma bastante organiza-
tas) que se amotinaram e gritavam "Wilkes e Liberdade". Mas, em nenhum
da, com comissões eleitas e Iíderes aceitos para conduzir as operações.
momento, fosse numa agitação urbana ou rural, podemos falar de uma
Foi o que ocorreu com os chapeleiros, os alfaiates, os marinheiros e os
classe operária - a revolução industrial estava ainda numa fase muito inicial.
tecelões da seda, que, toClos, tiveram comissões para dirigir suas atividades
na época das greves di' Londres de 1768. Nesse ano, os tecelões da seda
foram os mais organizados de todos: tinham coletores para cobrar as con-
tribuições ou recrutar para as suas fileiras aqueles que deviam ser pressio-
nados a isso. E o mais sign ificativo é que dois de seus comissionários, John 17 Sobre o que foi dito anteriormente, ver meu Wilkes and tibertv , p. 44; e Paris
Dalline e John Doyle, foram presos e enforcados não por participarem de and London ... , pp. 79-80, 210. Sobre o "Rei João", ver E.P. Thompson, The black
um fato isolado, mas por terem um papel de destaque numa série de cho- ect, pp. 142-6.

________ .. ,1
132 Ideologia e Protesto Popular

E, finalmente, concluindo o padrão do protesto "pré-industrial", a


ideologia correspondia de maneira geral ao que dissemos antes: predomi-
nantemente "inerente", tradicional e apohtica no caso dos motins de ali-
mentos, greves e protesto rural de todos os tipos; e apenas tocada pela ideo- 2
logia "derivada" da burguesia - pohtica e avançada - no caso dos motins
londrinos, particularmente depois do aparecimento do radicalismo da Citv, A TRANSIÇÃO PARA A SOCIEDADE INDUSTRIAL, 1800-1850
em meados da década de 1750. O elemento avançado, porém, era ainda
superficial, mesmo nesses motins, e o protesto popular, tomando-se a tota-
lidade do quadro, ainda se voltava para o passado. Ou, como disse E.P.
Thompson, a "cultura plebéia" (que reconhecemos não ser exatamente
sinônimo da nossa "ideologia"), "é rebelde, mas rebelde na defesa do
costume" .18

Como dissemos no capítulo anterior, a transição para a sociedade indus-


trial na Grã-Bretanha foi iniciada por dois acontecimentos ocorridos nas úl-
timas décadas do século XVIII: a Revolução Francesa e a Revolução Indus-
trial. A Revolução Francesa, embora não tivesse nenhuma influência na ,
I
forma da mudança social (como teve, e de maneira tão dramática, na Fran-
ça), exerceu importante influência sobre a ideologia do protesto popular
ao injetar nela as noções radicais gêmeas dos Direitos do Homem e da So-
berania do Povo,
Inevitavelmente, porém, das duas revoluções a que teve maior in-
fluência na Inglaterra foi a Revolução Industrial, pois não s6 deu nova di-
reção ao protesto popular, como também transformou o processo de pro-
dução e, com isso, criou duas novas classes sociais. Na década de 1820 as
fábricas dedicadas à fiação e tecelagem do algodão - e mais tarde da lã e
em outros ramos da manufatura - substituíam o velho sistema doméstico,
baseado na aldeia e, nesse processo, criavam duas novas classes: a dos em-
pregadores industriais, que eram donos das máquinas, e a dos trabalhadores
industria is, que as manejavam. Assim, por meio da Revolução Industrial, a
sociedade tendeu à polarização, como Marx e Engels previram no Manifes-
to, entre a classe do empregador e a do trabalhador industrial. Mas, mesmo
na I nglaterra, que se industrializou mais rapidamente do que qualquer ou-
tro país, esse processo não se completou nunca, dando margem à existên-
cia de várias outras classes: uma classe "desafiante" que ainda sobrevivia
_.
---"
entre as antigas classes dominantes,
ros, comerciantes
e as classes "tradicionais"
e artesãos, de que Gramsci falou um século depois. A
dos fazendei-

classe "desafiante" que sobreviveu foi a dos proprietários rurais (de que
tanto falamos em nosso capítulo anterior), que continuou a florescer e a
desempenhar um papel importante, embora não o principal, no Parlamento
e no Estado. Gradualmente, porém, até mesmo a sua importância política
18 E.P. Thompson, "Eighteenth-Century English Society: Cl ass Struggle without
chegou ao fim e, na época da Primeira Guerra Mundial, os lor des já haviam
Class?", Social bistorv , III (2), maio de 1978, particularmente p. 154. perdido sua situação independente no governo e se fundiam, sob todos os

]]3
134 Ideologia e Protesto Popular Transição para a Sociedade Industrial 135

aspectos exceto no nome (e na propriedade das mansões famosas), com a 1? Fase (primeiros anos da guerra, 1793-1800): marcada pelos movi-
burguesia mais poderosa. mentos jacobinos "conspiratórios" em Londres, Edimburgo, Manchester
Muito antes, porém, que esse processo de absorção estivesse conclur- (com contra-reações do movimento "Igreja e rei" em Birmingham e Man-
do, a burguesia industrial, embora deixando muitos dos postos de comando chester) e por motins de alimentos em Londres, no sudeste da Inglaterra
aos membros da classe dos proprietários de terras, tornara-se a força domi- e em partes do País de Gales.
nante no Estado. No período do capitalismo competitivo, que este capí- 2? Fase (período final da guerra, 1811-1815): marcada pelo ludismo
tulo focaliza, os novos governantes adotaram como seus heróis Smith, nos condados produtores de malharias de Midlands e em West Riding, no
Malthus e Bentham e, tendo-os como seus esteios ideológicos, combinados condado de York.
com um ou outro ramo do cristianismo evangélico, visavam a: 3? Fase (logo depois da guerra, 1815-1822): marcada pelo protesto
(1) introduzir o livre comércio e fazer da Grã-Bretanha a "oficina do geral nas grandes cidades (Londres, Manchester); centros de indústria de-
mundo", com os maiores lucros possíveis para eles próprios; cadente (East Anglia); centros industriais em atividade e consolidados (dis-
(2) conter o dom ínio pol (tico que a aristocracia ainda possu ía, atra- tritos do ferro de Gales do Sul, condados de malharias dos Midlands e West
vés da reforma parlamentar e do governo local; e Riding); motins de alimentos em cidades de mercado variadas (Falmouth,
(3) obter o controle total da contratação e da demissão da mão-de- Nottingham, Bolton, Carlisle).
obra, limitando as "coalizões" de trabalhadores e outros obstáculos à liber- 4ij1 Fase (1829-1832): a mais agitada, marcada por uma nova e deci-
dade de comércio. siva transferência para os novos distritos industriais de Midlands, Gales do
Sul, Norte da Inglaterra e Clydeside; uma transferência temporária de Lon-
As dificuldades para a realização desses planos eram duplas: primei- dres para 8irmingham e várias das velhas cidades privilegiadas (Nottingham,
ro, a classe dos proprietários de terras, que se apegava tenazmente às !--:;s de York, Derby, Bristol); e um incremento final e dramático do Sul rural (dei-
exportação e importação de cereais, às sinecuras e aos rotten boroughs xando East Anglia e Devon como os únicos bastiões do protesto rural pa-
(burgos que, apesar de seu reduzido número de eleitores, ainda mandavam cífico até o aparecimento dos sindicatos agrários depois de 1870).
deputados ao Parlamento). Depois de 1850, porém, essa batalha foi ganha 5ij1 Fase (décadas de 1830 e 1840): marcada pelas três fases principais
e os proprietários rurais tornaram-se aliados, primeiro com relutância e do Cartismo, que se difundiu principalmente pela Grã-Bretanha industrial,
depois com todo empenho, da burguesia, tanto na economia como no go- enquadrando-se em três divisões geográficas principais: as grandes cidades
verno. O segundo obstáculo foi mais persistente e não pôde ser superado em expansão (Londres, 8irmingham, Manchester, G lasgow); as novas re-
com a mesma facilidade. Neste capítulo - e no próximo - vamos ocupar- giões industriais da Inglaterra, da Escócia e do País de Gales; os velhos cen-
nos em grande parte com o novo conflito central que dividia a sociedade tros agonizantes da tecelagem manual e da indústria rural no West Country
entre empregadores e empregados, um conflito que, como já vimos, tivera inglês e no West Riding do condado de York. Enquanto isso, o protesto
um papel apenas secundário no século anterior. agrário mais aberto limitava-se à "faixa celta" de Gales ocidental e dos alti-
Antes, porém, de exam inarmos como se desenvolveu esse confl ito, planos escoceses. Depois do cartismo, porém, os velhos centros da tecela-
devemos analisar rapidamente as principais modificações no protesto popu- gem manual e da indústria rural (tendo sofrido sua derrota final) desapare-
lar e da classe operária provocadas pelo impacto da "dupla" revolução, Pri- cem de cena, e os tecelões manuais ingleses e os camponeses-lavradores de
meiro, os principais protagonistas eram outros: os protestadores típicos já Gales seguem os camponeses-trabalhadores ingleses, num desaparecimen-
não eram os arrendatários livres das aldeias, os artesãos urbanos ou os pe- to quase total. Ao mesmo tempo, na "faixa celta" apenas os altiplanos es-
quenos consumidores, mas entae:>'- particularmente na década de 1830 - coceses mantiveram sua resistência na fase final da Guerra dos Pequenos
os trabalhadores industriais ou proletários, das novas cidades fabris; nem Lavr adores.!
eram eles apenas motivados pelas questões tão freqüentes no passado, co- Londres é, nesse período, um caso especial, e serve como lembrete
mo o preço do pão, mas antes pelos salários que iam para o bolso dos tra- de que a industrialização e a urbanização não vão necessariamente lado a
balhadores. Além disso, à medida que a indústria se desenvolvia, a locali- lado. No século XVIII, como já vimos, Londres foi a mãe do radicalismo
zação do protesto transferiu-se do Sul para o Norte, da aldeia para a cidade
e das velhas cidades com privilégios reais para as modernas cidades indus-
triais. As principais fases do movimento, até meados do século, foram
Para uma apresentação mais detalhada dessa modificação no padrão geográfico do
aproximadamente as seguintes: protesto, ver meu Protest and punishment, Oxford, 1978, pp. 31-8.
136 Ideologia e Protesto Popular Transição para a Sociedade Industrial 137

popular e o palco dos mais violentos e prolongados conflitos da época. Mas Miners' Association, de 1841, altamente organizada e com um financiamen-
com a passagem do século, o radicalismo transferiu-se, primeiro, da City de
Londres para a sua periferia, para Westminster e Middlesex, antes de acom-
panhar a indústria até Midlands e o Norte. Nesse período de transição,
fi to sól ido, e com os sindicatos de "novo modelo" a partir de 1851. Com a
organização, vieram não só o melhor planejamento das lutas trabalhistas
(fazendo da guerrilha do tipo antigo uma coisa do passado), como também
Londres teve apenas dois momentos rápidos de renascimento radical, o pri- um novo tipo de IIder - por vezes um militante como os Iíderes a curto
meiro em relação à questão um tanto "antiquada" de Queen Caroline, de I prazo do passado, outras vezes um "reform ista" que, mais tarde, poderia
1820 (reminiscente dos dias de Wilkes), 2 e a segunda em 1848 quando tornar-se um "cavalheiro" respeitável de cartola como os I(deres das déca-
Londres "abrigou" a Carta do Povo em sua fase final. (Houve um novo re- das de 1850 e 1860. Os primeiros exemplos do tipo militante foram o pró-
nascimento da mil itância em Londres nas décadas de 1850 e 1860 e, nova- prio John Dogherty e George Loveless, Iíder dos trabalhadores agrrcolasde
mente, e com maior vigor, na década de 1880, mas tais questões estão fora Dorchester que, exilado para a Austrália em 1834 como militante, voltou
do âmbito do presente capítulo.) três anos depois. Mas todos esses Iíderes, fossem militantes ou não, eram
Com o desenvolvimento da indústria e do comércio, a natureza do produto desse período de transição. Eram líderes sa ídos das fileiras dos
protesto popular também se modificou e perdeu gradualmente o padrão próprios trabalhadores e não mais "de fora" ou (se "de dentro") ocasio-
"pré-industrial" que descrevemos antes. O protesto de ação direta come- nais, anônimos e breves como os que estudamos em nosso último capítulo,
çou a desaparecer e deu lugar (como iremos ver) a formas mais organiza- e sim dirigentes estáveis, contínuos e abertamente proclamados.
das, e, com freqüência, mais decorosas. Primeiro, os motins provocados A ideologia também se modificou, mas não houve, de certo, uma
pela falta de alimentos desapareceram da Inglaterra depois das guerras na- Iinha reta de progresso in interrupto, mesmo entre a recém-formada classe
poleônicas, após um surto final em East Anglia e algumas manifestações operária industrial. O principal curso de evolução, porém, pode ser perce-
em cidades de mercado dispersas em 1815 e 1816. Depois disso, sobrevive- 11 bido claramente, como já fizemos no caso da França, ou seja, do in ício da
ram apenas na "faixa celta", na Cornualha e nos altiplanos da Escócia. S~- "politização" (ainda em grande parte "derivada"), na década de 1790, até
gundo, os movimentos de quebra de máquinas praticamente terminaram o per íodo da consciência da classe proletária, in iciado na década de 1830
depois do ludismo industrial nos condados de Midlands entre 1811 e 1822, (denotando o acesso dos trabalhadores a um estágio de consciência de seu
e, no campo, depois da quebra generalizada de máquinas debulhadoras em lugar numa sociedade dividida em classes). Vimos, no capftulo anterior, o
1830-1832. E, terceiro, a "derrubada" tradicional de casas, repetida em in ício de uma educação pol ítica entre as classes "inferiores" - que in-
1831, na cidade de Bristol, quase que nas proporções do movimento "Contra clu íam lojistas "menores", pequenos mestres artesãos e trabalhadores - da
o Papismo", fez o seu aparecimento final em maior escala nas cidades pro- sociedade urbana. Mas não havia ainda ind ício da educação pol ítica dos
dutoras de cerâmica do condado de Stafford, em agosto de 1842. Dos protes- trabalhadores como grupo social à parte. Isso começou com a Revolução
tos desse tipo, só o incênd:fo sobreviveu e continuou sendo uma caracter is- Francesa embora, paradoxalmente, nenhum dos grandes idéologues da
tica do protesto agrário até a década de 1860. (N a verdade, nada menos de Revolução, nem o seu maior porta-voz na Inglaterra, Thomas Paine, ti-
227 incendiários condenados - entre os quais certamente os protestantes veram qualquer intenção de doutrinar os trabalhadores como trabalha-
eram minoria - chegaram a Austrália ocidental só em 1862-1866.)3 dores. E vimos como Paine, na América, incompatibilizou-se com seus
Enquanto isso, a espontaneidade dava lugar à organização, principal- melhores aliados entre os artesãos politicamente sofisticados de Filadél-
mente com a chegada dos primeiros sindicatos, que fizeram um recrutamento fia, por não ter mostrado inclinação de promover o interesse deles fora
nacional num campo mais amplo, como por exemplo a National Associa- do âmbito patriótico como um todo. O mesmo ocorreu na Inglaterra, onde
tion for the Protection of the Working Classes, de John Dogherty, criada os Direitos do Homem, de Paine, embora lido com entusiasmo geral por to-
em 1830 e que dizia ter 100.000 membros em 1831, e, depois do breve in- dos os trabalhadores industriais mais alfabetizados, não tinha nenhuma
terlúdio do estranho híbrido de Owen, o Grand National Consolidated mensagem específica para a classe operária. Mas - e essa foi a novidade
Trade Union, que desmoronou quase tão logo foi criado (em 1834), com a essencial no que concerne aos trabalhadores - na Inglaterra a principal
promotora dos livros e idéias de Paine foi a London Corresponding Soci-
etv, formada em 1792 (com "membros ilimitados", como registra E.P.
Thornpson), que tinha a particularidade, excepcional em sua época, de ser
2 Sobre "The Oueen Car oline Affair", ver J. Stevenson, in John Stevenson íorç.}.
London in tbe Age of Reform, Oxford, 1977, pp. 11748.
uma sociedade pol ítica que recrutava a maior parte de seus membros entre
3 Rudé, Protest and punishmertt, p. 320. os "operários" e os trabalhadores artesãos. Foi esse órgão, composto como

__ L__
[ •
138 Ideologia e Protesto Popular Transição para a Sociedade Industrial 139

era, que dirigiu os ensinamentos de Paine sobre a soberania popular, os di- esperança de que "os Cavalheiros marchem lado a lado com as Classes Tra-
reitos humanos e as deficiências da monarquia e da Igreja Anglicana sobre- balhadoras para reduzir as despesas do governo". Na mesma noite, o Sr.
tudo para os leitores de classe operária das novas cidades industriais. E Gambier, filho do vigário de Langley, uma paróquia vizinha, ouviu de
essas idéias continuaram a ser lidas e a circularem entre tecelões, mineiros Adams e de seus companheiros, como explicação da condição de pobreza
e artesãos urbanos, abertamente enquanto a lei permitiu e, secretamente, dos trabalhadores, que "havia muitas sinecuras". Outros, entre os porta-
quando a London Corresponding Societv e suas ramificações em outros cen- vozes dos trabalhadores, também haviam sido influenciados por Cobbett:
tros foram vítimas das medidas persecut6rias de Pitt, em tempo de guerra. por exemplo, Philip Green, limpador de chaminés de Banbury e ex-rnari-
Mas o jacobinismo inglês, estimulado por Paine e pela London Cor- nheiro, foi considerado como grande admirador de Cobbett, "cujas obras
responding Society, foi sucedido, depois das guerras, por uma nova fase do tem o hábito de citar nos bares que freqüenta". 5

movimento de reforma radical inglês. Cobbett, ex-flagelo dos panfletistas Mas a noção da "Velha Corrupção", como a idéia concomitante do
radicais, voltou à Inglaterra, procedente da América (trazendo os ossos de "Jugo Normando", embora houvesse prestado bom serviço ao radicalismo
Paine como sinal de arrependimento), proclamou-se radical e deu ao radi- popular, pelo menos até o princípio do cartismo, era essencialmente retró-
cal whig de estilo antigo uma face popular. Seu grande grito de guerra era a grada, voltando os olhos para os Bons Tempos que Cobbett, com seu me-
abolição da "Velha Corrupção", inclusive os rotten boroughs (burgos pe- do e sua aversão à Grande Cidade, teria desejado muito restabelecer. Para
quenos que ainda elegiam deputados) e as sinecuras. Essa pol ítica foi rapida- os primeiros Iam pejos de uma filosofia voltada para o futuro, que ofereceria
mente aceita e assimilada pelos artesãos radicais, bem como pelos radicais aos trabalhadores as perspectivas de um novo meio de vida, e não a restau-
de outros grupos, e, através deles, encontrou o caminho para os movimen- ração de um passado supostamente melhor, devemos procurar Robert
tos de protesto dos trabalhadores, mesmo para aqueles que os historiadores Owen. O socialismo de Owen, como o socialismo "utópico" de Cabet e
tradicionais consideraram, geralmente, como limitados às questões pura- Louis Blanc na França, tinha muitas fraquezas. Entre outras coisas, voltava
mente industriais. O ludismo é um desses casos. E.P. Thompson foi prova- as costas à ação pol ítica e fundamentava suas esperanças apenas na organi-
velmente o primeiro a colocá-lo dentro de um movimento radical mais zação industrial e nos esquemas cooperativos. Mas tinha virtudes que falta-
amplo em favor da reforma parlamentar. E, de um comentarista da obra de vam tanto ao jacobinismo de Paine como ao radicalismo de Cobbett: con-
Thompson, cito este trecho, evidentemente de inspiração cobetiana, ex- citava os trabalhadores a um entendimento com a sociedade industrial e
Ihes ensinava que só pelos seus próprios esforços a nova comunidade co-
tra ído de uma carta anônima que defendia as operações dos ludistas de
operativa seria realizada. Essas opiniões encontram eco no folheto que
Nottingham em*,816:
George Loveless, ex-seguidor de Owen e mais tarde cartista, escreveu ao
... o saque não é o nosso objetivo, visamos no momento as coisas essenciais à vida
retornar à Inglaterra de seu exílio australiano: "Não acredito que seja feita
(. .. ) Talvez, 'se coroados de sucesso como nossos serviços merecem, possamos libertar
os reinos de nossa imensa carga de tributação, de uma O ívida Nacional sem preceden- jamais qualquer coisa para aliviar o sofrimento da classe operária, a menos
tes, de um governo corrupto despótico, de uma seqüência múltipla de sinecuras ime- que ela mesma o faça: com essas opin iões deixei a Inglaterra, e com elas
recidas e de pensões também não merecidas ... 4 voltei. "6
Havia ainda um longo caminho a percorrer para se chegar a uma
Mais de dez anos depois, durante o movimento dos trabalhadores de 1830,
consciência da classe operária, que não poderia sobreviver por muito tempo
encontramos John Adams, sapateiro jornaleiro radical de Maidstone, lide-
sem encontrar um lugar para a ação política e a luta econômica. O carris-
rando uma "MA LTA" de 300 aldeões que ia parlamentar com o Rev. Sir
mo, embora cheio de contradições, fundindo velhas e novas idéias e formas
John Filmer de East Sutton Park e abrindo a discussão com a expressão da
(como iremos ver) foi uma etapa essencial nesse processo. Pela primeira vez
os próprios trabalhadores (e não apenas pequenos quadros dirigentes de
artesãos e negociantes como em 1792) tomaram a iniciativa de lançar um
4 "The Secretary of the 81ack Committee of the Independent Luddites of Nott- movimento nacional para estabelecer um novo tipo de Parlamento, a ser
inghamshire Oivision" a R. Newcombe and Son, 11 de novembro de 1816, P.R.O., :(
H.O. 42/1 55;apud F. K. Donnelly, "I deology and Earlv English Working-class History:
Edward Thompson and his Critics", Social Historv, nO 2, maio de 1976, p. 226. Mas
pelo estilo é claro que se trata, mais provavelmente, do trabalho de um simpatizante
educado, com opiniões cobbettistas radicais, e não de um trabalhador ludista. Mas
5 Hobsbawn e Rudé, Caprain swing, pp. 102-3,143.
quer seja "autêntico" ou não, parece uma manifestação da ideologia "derivada" radi-
6 G. Loveless, The Victims of Whiggery, Londres, 1837.
cal de classe média, n'pica do radicalismo pré-industrial, pré-proletário e popular.

III

----_ ... _-- ---_._---------------------------- -----

L
140 Ideologia e Protesto Popular Transição para a Sociedade industrial 141
eleito pelos trabalhadores e composto por representantes dos próprios tra- verno local e no Parlamento. Em South Shields e Northampton, contudo,
balhadores. Isso teria sido, em si, bastante novo, mas o cartismo aspirava a os trabalhadores limitavam sua militância apenas à luta econômica e a falar
muito mais: visava a, através do voto, proteger as comunidades de trabalha- grosso com os empregadores, negligenciando o aspecto pol ítico - ou seja,
dores contra a destruição pelos "remodeladores" capitalistas e conquistar sofriam de "economicismo" que Lenin deplorou em O que fazer?
para eles todos os sólidos beneHcios sociais que um de seus líderes, o Rev. Mas, continua Foster, as condições que determinaram a consciência
J.R. Stephens, reuniu sob a classificação de uma questão "substancial". Só de classe em Oldham mudaram antes de 1848 e, a partir de então, Oldham,
através dessa fusão da ação econômica e pol ítica os trabalhadores ingleses, também, como South Shields e Northampton, mergulhou numa "falsa"
como os franceses, poderiam ter esperanças de chegar à consciência de se- consciência. Falaremos ainda desse fenômeno e das razões que o provoca-
rem uma classe, mas isso desde que a campanha cartista pela Carta fosse ram, no capítulo sequinte."
acompanhada de uma ação paralela nas oficinas e minas. Sob esse aspecto Como o exemplo de Oldham, mencionado por Foster, mostra, o ca-
o cartismo foi, como sabemos, um fracasso total, e sucumbiu à derrota minho para uma mudança profunda na ideologia da classe operária foi ín- I
(embora não apenas por essa razão). Mas a derrota não foi vã, pois as gran- greme e espinhoso, e a famosa lei de Lenin, do "desenvolvimento desigual i
des batalhas travadas no Norte no verão de 1842 - particularmente nas ci- do capitalismo", poderia muito bem ser aplicada à evolução da consciência I
dades industriais de Lancashire - batalhas com empregadores, exército e a proletária na Grã-Bretanha do século XI X. Durante todo esse per íOdo,
"nova" pol ícia - foram de imenso valor para a criação do movimento da I
quando modificações profundas ocorriam - digamos a partir de princípios
classe operária do futuro. da década de 1820 - alguns grupos de trabalhadores e algumas partes da
Um pouco às margens do cartismo, conforme John Foster, um jovem Inglaterra abriam caminho, enquanto outras ficavam para trás. E com fre-
pesquisador, argumentou recentemente," houve um grupo de trabalhado- qüência o velho e o novo se equilibravam com dificuldade no mesmo mo-
res industriais de uma cidade do Lancashire que progrediu até alcançar a vimento pol Itico, o que não surpreende, se levarmos em conta a sobrevi-
consciência da classe operária, para a qual todos os movimentos de traba- vência daquelas classes "tradicionais" mais antigas de que falamos antes.
lhadores e toda a doutrinação radical eram uma forma de preparação. Mas O cartismo é um bom exemplo desse movimento e apresenta uma exce-
a consciência da classe operária, argumenta John Foster, não se podia ba- lente ilustração do processo desigual de transição para uma sociedade in-
sear simple~ente no advento de uma nova ideologia - o socialismo, por dustrial. Isso se personifica na liderança cartista, no seio da qual havia gran-
exemplo - mas sim numa mistura de idéias radicais e de ação militante de des diferenças: jacobinos como Julian Jarney e tories radicais como Fergus
classe na fábrica ou oficina (que o cartisrno em geral não conseguiu reali- O'Connor, que se voltavam para o passado, e defensores do sindicalismo,
zar). Em busca do aparecimento desse fenômeno, Foster estudou três cida- como Peter McDouall, ou socialistas ao estilo novo, como Ernest Jones,
des industriais inglesas das décadas de 1830 e 1840, todas três com muita que se correspondia com Marx. Esses contrastes refletem-se igualmente nas
coisa em comum: Oldham, uma cidade do Lancashire onde era muito de- atividades às quais o cartismo se entregou, e que variaram de uma região
senvolvida a indústria do algodão; South Shields, centro de estaleiros em para outra. De um lado, havia as petições cartistas, copiadas de um passado
Durham; e Northampton, centro do comércio de sapatos e botas do Mid- radical mas voltadas para o futuro; a National Charter Association, precur-
lands. Das três, porém, só Oldham corresponde à expectativa, enquanto sora de um partido "do trabalho"; e o movimento organizado de luta eco-
Northarnpton e South Shields são descritas (no estilo de Georg Lukács) nômica dos trabalhadores no distrito de Manchester. Do outro, havia o
como tendo permanecido numa "falsa consciência". E por que essa sepa-
ração de trigo e joio? Porque, como Foster mostra, os trabalhadores de
Oldham haviam desenvolvido, desde princípios da década de 1830, uma
prolongada e continuada luta nas fábricas e oficinas lado a lado, e cornbi- 8 Devemos dizer. porém, que Foster, embora baseando seu argumento no modelo
nadamente, com uma militância política na promoção, através dos meios de Lukács, não atribui ao estado de "falsa consciência" a mesma qualidade final que
políticos à sua disposição, de candidatos radicais para representá-Ias no qo- seu mentor parece atribuir. Para Lukács, não há na prática muita esperança de salva-
ção para os que não conseguem dar o passo à frente quando a oportunidade se apre-
senta. Para Foster, a consciência "falsa" e "ver dcdeir a", como outras condições do
homem. desenvolve-se - e decai - historicamente, isto é, depende tanto das circuns-
tâncias predominantes quanto da conversão absoluta ou simplesmente parcial às idéias
adequadas. Portanto, a "falsa" consciência tem, pelo esforço humano e sob condi-
7 J. Foster, Class struggle and the industrial revolution. Early industrial cspitetism
ções adequadas, a possibil idade de ser transformada (ou re-tr ansforrnada) em cons-
in tbree english towns, Londres, 1974.
ciência "verdadeira", ou "de classe". (Foster, CliJSS Struçqte, esp. pp. 4-6).
142 Ideologia e Protesto Popular Transição para a Sociedade Industrial 143

Plano Agrário com o qual O'Connor, para quem o industrialismo e o cres- 1847. Os motins contra os torniquetes que, na Inglaterra, mal sobrevive-
cimento urbano eram anátemas, pretendia resolver os males da sociedade rarn às Guerras Napoleônicas, continuaram em Gales do Norte e do Oeste
reconduzindo à terra aqueles que o capitalismo tornara supérfluos. E havia até a década de 1840. Durante dois anos, entre 1839 e 1842, Rebecca e
também as atividades de quebradores de máquinas dos amotinados do suas "Filhas", com o rosto pintado de negro e pesadas saias, derrubaram
"Pluq-Plot", que escaparam a qualquer controle nas cidades cerarnistas do torniquetes e barreiras de portagem nas estradas de Carmarthen, Pembroke
condado de Stafford. e Glarnorqan."! Nos attiplanos, os seareiros, recordando-se ainda das terras
Se o protesto industrial misturou assim o velho e o novo, o protesto que Ihes haviam sido tomadas mais de meio século antes, mantiveram a lu-
rural resistiu muito mais à mudança. Durante todo o período, formas anti- ta contra os grandes proprietários, comissários, magistrados, pol ícia e mi-
gas, impregnadas de uma ideologia também antiga, continuaram - como os nistros "estranhos" da Igreja, através da ação direta (embora com um míni-
motins rurais em East Anglia em relação a salários, máquinas e o preço do mo de violência) até a década de 1880: no condado de Inverness, sobretu-
pão, em 1816; a quebra de máquinas dos motins de Swing, nos condados do onde houve mais de 200 prisões por motins e ataques à pol ícia entre
do sul, em 1830; e o estranho episódio milenarista dos trabalhadores de 1885 e 1888, isto é, depois mesmo do último episódio da Croiter's War
Kent, que lutaram até a morte em defesa de seu auto-intitulado Messias, o (Guerra dos Sear eiros}, a chamada "Batalha das Barrancas", travada na ilha
bastardo Sir William Courtenay em 1838. O movimento dos trabalhadores de Skye em 1882.12
de Dorset - os "homens de Tolpuddle" -, que criaram uma seção do sin-
dicato nacional de Owen em 1834, foi algo muito diferente, uma manifes-
tação da agitação owenista proveniente de Birmingham, não constituindo,
realmente, um movimento de trabalhadores autêntico. Esses movimentos
(com exceção do último) eram também condicionados por uma ideologia
"inerente" ou tradicional. Os manifestantes de 1816 preocupavam-se com
um "preço justo" e um" salário justo". Os amotinados de Swing, de 1830, .•..
queimaram 'tileiros e quebraram máquinas para restabelecer o "salário jus-
to" que fazendeiros e grandes proletários rurais cobiçosos procuravam,

I
pelo uso de máquinas, reduzir ainda mais do que já haviam reduzido com a
aplicação errônea da Lei dos Pobres. Esses amotinados recorreram à autori-
dade tradicional, aos magistrados e ao rei, e ao próprio Deus, para restabe-
lecer seus direitos perdidos, que conforme acreditavam, Ihes haviam sido
roubados. Em setembro de 1831, um destruidor de máquinas preso em Di-
Iham, em Norfol k, disse ao tribunal que o condenou a dois anos de prisão,
em termos reminiscentes da Revolução Puritana, que "ao destruir as má-
quinas, estou prestando um serviço a Deus" (e houve magistrados que dis-
seram a mesma coisa, em outras palavras). 9 Do mesmo modo, nos motins
da cerâmica de 1842, um homem que atirava um piano à fogueira, numa
agitação em Longton, próximo de Stoke-on-Trent, disse a um observador
que "o Senhor estava a seu lado, e as chamas não lhe fariam mal'"!? Na
verdade, nas aldeias, a verdadeira mudança só veio na década de 1860.
Na "faixa celta" pode ter demorado ainda mais. Os motins provo-
cados pela falta de alimentos prolongaram-se na Cornualha até a década
de 1830, pelo menos, e continuaram nos altiplanos até a grande "fome" de 1I Oavid Williams, Tbe Rebecca Riots; a study in agrarian discontent, Cardiff, 1953.
12 "Return of Offences committed in Crofting Parishes in the Highlands and Islands
of Scotland, Arising out of Disputes in .regard to the Right to Land, or the Rent of
l.and, during and since 1874", PP 1888, Ixxxii, 2·9. Ver também Eric Richards,
"Patter ns of Highland Discontent 1790·1860, in J. Stevenson e R. Ouinaul t (orqs.l,
9 East anglian, 25 de outubro de 1831.
10 Annual Register, vol. 84 (1842) p. 134. 1 Popular protest and publíc arder, Londres, 1974.

I
J

- . - - .. -
Transição para a Sociedade Industrial 145

ções da classe operária na Inglaterra, mas admitiu, 'numa Introdução escrita


mais tarde (em 1892) que a prosperidade havia alcançado os trabalhadores
fabris, em particular, evitando assim a revolução por ele prevista uma gera-
ção antes.? E Emile Halévv, o grande expoente da teoria da religião como
3 fator estabilizador na Grã-Bretanha do século XIX, concordou com que,
nessa ocasião, foi antes a prosperidade do que a religião que teve o papel
PÓS-ESCRITO: A GRÃ-BRETANHA INDUSTRIAL principal: escrevendo sobre a Inglaterra em 1852, observou que "já não
temos necessidade de procurar, como fizemos em nosso primeiro volume
[dedicado à Inglaterra em 18151, fora da esfera econômica, a explicação
para a estabilidade e o equilíbrio dessa socíedade't.ê
Mas fatores naturais como uma súbita prosperidade econômica s6
poderiam dar partida ao processo de descontração: outra crise econômica
(que ninguém podia ter certeza de evitar) poderia levar os trabalhadores a
Nos capítulos anteriores, falamos da ideologia popular em termos do de- novos atos de militância, e isso, como dissemos, raramente ocorreu nos trin-
senvolvimento de uma fase inferior para outra, superior, de consciência. ta ou quarenta anos seguintes. Algo mais positivo tinha de ser imaginado
Vimos, em cada capítulo, o povo comum - trabalhadores ou camponeses pelos capitalistas e pelo governo que partilhava de sua riqueza para asse-
- enriquecer
tirnocaprtulo,
sua ideologia pela doutrinação,
a apresentação
experiência ou luta. Neste úl-
terá de ser diferente, pois vamos nos ocupar
antes com um fracasso do que de um sucesso, e examinar por que o movi-
( gurar que o comportamento
transitório.
submisso não fosse um fenômeno puramente
A emigração para o Canadá e a Austrália parecia uma solução
possível, e teve a vantagem de estar de acordo com os princípios rnaltusia-
mento dos trabalhadores

anos de hibernação")
na Inglaterra, depois do fim do cartismo, atraves-
sou um longo período de inatividade (que Engels chamou de "quarenta
para, após um breve renascimento na década de
, nos ainda populares, embora seja duvidoso que a tentativa de mandar os
militantes para fora do país tenha sido realmente os resultados desejados.
(A revista Punch, com sua caricatura de um trabalhador
cido sendo convencido a emigrar, parece ter acreditado
cartista empobre-
que sim..) Outro
1880, ingressar num caminho ziguezagueante de vitórias e derrotas que
constituiria seu padrão nos últimos cem anos. meio foi a orquestração da propaganda para ensinar aos homens - aos so-
Primeiro, devemos examinar a derrota de meados do século. Como cialistas, em particular - o erro de suas atitudes. O final da década de 1840
foi poss ível que as grandes esperanças despertadas pelo cartismo e pela presenciou o aparecimento de uma floração de "rnutualistas" e de propa-
consciência de classe dos trabalhadores de Oldham (descrita por Foster l gandistas da paz social. Os socialistas cristãos - F .D. Maurice, Charles
nas décadas de 1830 e 1840 desmoronassem de tal maneira na década de Kingsley e Thomas Hughes - desempenharam seu papel, pregando a coo-
18507 A explicação mais comum e básica é a de que o capitalismo britâ- peração através da fraternidade cristã. E até mesmo aquele agitador de
nico, após um estado de crise permanente e de desorganização nos "anos outrora, Thomas Carlyle, escreveu seus Letter-Dey Pamphletes fazendo um
de fome da década de 40" e nos anos anteriores, começou a estabilizar-se. apelo aos patrões para que dessem aos seus empregados um "tratamento
e o pa (s se -tor nou, depois da Revogação das Leis dos Cereais, graças ao justo" para conseguirem em troca a sua cooperação."
livre comércio e à supremacia comercial, a "Oficina do Mundo", como bem Também em conseqüência dessa situação - seja por acaso ou pro-
se sabe. Pôde, com isso, realizar esperanças, não só distribuindo maior ri- positalmente - temos o que foi chamado de "aristocracia operária". Em-
queza entre as classes abastadas, como entre setores mais amplos da popu- bora diferindo nas explicações de suas origens, os historiadores concorda-
lação como um todo. Já se disse que isso desempenhou um papel importan-
te na redução da militância popular, e Marx, ao observar os investimentos
estrangeiros que ocorriam à Grã-Bretanha na década de 1850, descreveu o
processo muito bem, como "a rocha sobre a qual a contra-revolução cons- 2 F. Engels, The eondition of tne english working class in 1844. "Introdução" n
truiu a sua igreja".l Engels não previu essa situação 8,0 escrever suas Condi- 1a ed. inglesa, Londres, 1892.
J E. Halévy, A bistorv of tbe english peopte, IV, 337; apud Trygve R. Tholfsen,
"The I ntellectual Origins of Mind-Vitorian Stabil itv", Polit. Sei. Ouert., LX X XVI,
marco de 1971, p. 58 (n, 2),
4 R.B. Srnith, loc. eit.
1 Apud R.B. Smith, Labour historv, Canberra, novembro de 1971, p. 82.

144
i46 Ideologia e Protesto Popular Transição para a Sociedade industrial 147
,
ram quanto a que a "aristocracia" fosse uma camada superior privilegiada várias formas: a introdução dos diferenciais de salário para dividir os traba-
de trabalhadores industriais, cujo efeito, ou propósito, era desarmar ideolo- lhadores; o isolamento deliberado dos trabalhadores em geral em relação à
gicamente os trabalhadores e com isso ajudar os empregadores a manter a
estabilidade e a paz social. Tal camada distinguia-se, em certos casos, pelos
salários mais altos, concedidos sem maiores dificuldades num período de
\ sua vanguarda, até então respeitada, fazendo-Ihes meias concessões; a ado-
ção pelos pol íticos burgueses da jornada de dez horas para tornar mais acei-
tável a concessão inevitável; e a "adoção" de propostas pol íticas dos traba-
aumento constante dos lucros e, em todo caso, pela sua pol ítica de coope- lhadores militantes pelos tories e pelos cobbettistas para melhor diluí-Ias,
ração de classe, através do voto ou na oficina. Certos historiadores (inclusi-
ve Hobsbawm e Foster) consideraram-na como um resultado das décadas r como em Oldham em 1852, quando lançaram um manifesto conjunto ofe-
recendo seu apoio a uma jornada de trabalho de 10 horas e em oposição
de 1840 e 1850, ao passo que outros seguiram Lenin mais de perto, relacio- à lei dos pobres, juntamente com uma declaração da necessidade de "pre-
nando-a antes com o imperialismo, que é de uma fase correspondente a servar um equilíbrio justo entre o capital e o trabalho, e especialmente de
uma geração mais tarde." Se aceitarmos a primeira explicação (e para os proteger as classes trabalhadoras contra as maquinações cruéis de uma falsa
objetivos deste capítulo a diferença não tem maior importância), pareceria economia pol ítica", 8
que ninguém faz mais jus a esta denominação (embora neste caso a esteja- Mas era necessário alguma coisa mais para dar a essa associação entre
mos aplicando a um grupo de líderes e não aos trabalhadores que eles aju- patrão e traba Ihador uma maior durabilidade: sustar as velhas tendências de
daram .él;;formar) do que a famosa "Junta" de Allan, Applegarth, Odger e dissensão no sentido de uma consciência de classe operária e implantar em
um punhado de outros que, durante vários anos, dominaram os sindicatos seu lugar o que Trygve Tholfsen chama de "uma cultura coesa - uma es-
ditos do Modelo Novo, nas décadas de 1850 e 1860. À parte suas realiza- trutura de valores bem estruturada: instituições, papéis e rituais"." Tholfsen
ções e inovações positivas (que tiveram alguma importância para a história mostra como isso tornou, em grande parte, possível substituir num perío-
geral do sindicalismo), os Webbs descrevem como "eles aceitaram, com do de vinte anos, "uma cultura impregnada de tensão social" por outra de
perfeita boa fé, o individualismo econômico de seus adversários de classe "valores comuns, internalizados e institucionalizados". E descreve seus
média e só reivindicaram a liberdade de associação que os membros mais principais ingredientes como sendo:
esclarecidos daquela classe estavam dispostos a Ihes conceder"." E Robert (a) a ética da melhoria e do progresso individual através do trabalho in-
Applegarth, convocado a apresentar-se à Real Comissão dos Sindicatos em tenso, da disciplina do trabalho e da poupança - com a participação
1867, assim delineou diante da comissão as condições para ingresso em conjunta de trabalhadores e patrões, expressando "metas comuns":
seus sindicatos (a Sociedade Combinada de Carpinteiros e Marceneiros): (b) a "elevação moral" das classes trabalhadoras como um objetivo per-
O candidato' deve ter boa saúde, deve ter trabalhado cinco anos no ofício, deve ser manente: e
um bom trabalhador, de hábitos morigerados, de bom caráter e boa moral, e não ter (c) o cultivo das virtudes pessoais e da salvação pessoal, inclusive absti-
mais de 45 anos. 7
nência total.
Embora sem negar a importância de uma prosperidade nacional crescente Os meios pelos quais essas idéias foram estimuladas e tiveram circula-
como um importante meio de apaziguar a militância da classe operária, ção variaram muito: clubes de trabalhadores, jornais, escolas dominicais,
John Foster insiste em que a maioria dos outros meios aplicados nesse pro- institutos profissionais, sociedades de auxílio mútuo, salas de leitura, bi-
cesso foram deliberadamente concebidos pela classe capitalista (seja em bliotecas, caixas de poupança, igrejas e capelas tiveram, todas, um papel a
separado ou coletivamente) para reestabilizar a sociedade e a indústria. Ele desempenhar. As idéias desse tipo se difundem com grande rapidez. Tholf-
dá a esse processo o nome de "iiberalização" e descreve como começou a sen cita vários exemplos, inclusive o de um clube de trabalhadores em New-
ser posto em prática em Oldham pouco antes da década de 1840. Tomou castle que, em 1865, incluía entre seus objetivos "o intercâmbio social, a
ajuda mútua, o aperfeiçoamento mental e moral, a recreação e a diversão
racional de seus mernbrosv.!" Mas, argumenta ele, a sujeição a uma ideolo-
5 H.F. Moorhouse, "The Marxist Theory of lhe Labour Aristocracy", Social Historv,
11,janeiro de 1978, pp. 61-82.
6 S. e B. Webb, The history of trade unionism, Londres, 1896, p. 221.
7 First Report, Royal Commission on Trade Unions, PP 1867, XLV (81, pp. 12-13; 8 Foster, C/ass strugg/e ... pp. 203, ss.
apud L. Evans e P. Pledger (orqs.), Contemporary sources and opinions in modern 9 Tholfsen, p. 61.
british history, 2 vols., Melbourne, 1967,11, pp. 4042. 10 tbid., pp. 63-4.
148 Ideologia e Protesto Popular Transição para a Sociedade Industrial 14')

gia capitalista não foi tão completa quanto poderia parecer. Entre outras garths da geração anterior, foi durante toda a sua vida um decidido defen-
coisas, não houve uma adoção servil, pelos trabalhadores, de todos os aspec- sor da "automelhoria e liberdade", da "ordem e proqr esso ";'?
tos dos valores de classe média, tais como os promovidos pela propaganda Poder-se-ia, de fato, argumentar que a propagação dos valores de
do teissez-teire na linha de Samuel Smiles. E cita o jornal 8eehive em classe méd ia depois de meados da década de 1840, embora servisse para
1860, que fez acompanhar sua exortação à busca da emancipação do tra- sustar o crescimento da consciência da classe operária nos distritos indus-
balhador através do aperfeiçoamento pessoal de uma violenta denúncia dos triais, não constituiu um mal sem remédio. Além disso, a "estabilidade cul-
males da concorrência. Além disso, os germes da sujeição dos trabalhadores tural" vitoria na que esses valores ajudaram a criar foi, por sua vez, solapada
aos valores de classe média já existiam e estavam sendo pregados pelos pró- pela sucessão de crises, na agricultura e na indústria, que se seguiu ao pri-
prios radicais no curso do movimento cartista. Tholfsen cita, em particular, meiro grande desafio lançado à supremacia industrial e comercial da Grã-
o exemplo da seção owenista de Huddersfield em 1844, que anunciava Bretanha pela Alemanha e pelos Estados Unidos de meados da década de
"aulas de aperfeiçoamento mútuo (... ) para desenvolver os sentimentos 1870 até fins da década de 1880. As crises levaram ao desemprego maciço
morais+sociais e de compreensão", e uma circular cartista de 1841, que di- e a um descontentamento profundo, provocando por sua vez a primeira
zia o seguinte: tentativa séria de organização dos trabalhadores não-especializados (traba-
lhadores do gás e das docas) 13 e à primeira penetração séria das idéias socia-
E, embora admitamos que a legislação de classe nos tenha infligido inumeráveis pre-
JUIZOS, e embotado o intelecto e alquebrado o coração de gerações inteiras de filhos listas-marxistas nos sindicatos. Foi nessa época (em princípio da década de
do trabalho, não podemos fechar os olhos à verdade de que NEN H UM ESTA DO DE 1890) que William Morris, membro da recém-fundada Sociedade Socialista,
LIBERDADE PODE MELHORAR O HOMEM QUE ~ ESCRAVO DE SEUS PRO- disse que a verdadeira tarefa de um partido socialista era estimular e am-
PRIOS V(CIOS.II
pliar uma consciência socialista real entre os trabalhadores, "de modo que
possam finalmente (... ) compreender que se encontram frente a uma socie-
Portanto, havia elementos, no per Iodo anterior de militância da clas-
dade falsa, sendo eles próprios os únicos elementos possíveis da sociedade
se trabalhadora, nas escolas cartistas e outras, que, colocando o auto-aper-
ver dadeir a't.!" E quando, no Dia do Trabalho de 1890, os sindicatos britâ-
feiçoamento e a salvação pessoal no alto de sua ordem de prioridades, pre-
nicos, colocando de lado as objeções dos conservadores renitentes do "ve-
pararam o caminho para a posterior sujeição à cultura burguesa hegemônica
lho" sindicalismo, participaram das primeiras comemorações do 1 Çlde maio
e tornaram ainda mais fácil e menos dolorosa a sua aceitação pelos operá-
internacional realizadas em Londres em defesa da jornada de oito horas de
rios. Também não se deve supor que a preocupação com o "aperfeiçoa-
trabalho, Engels considerou o acontecimento como da maior importância,
mento" deva, a longo prazo, constituir uma desvantagem tão grande para
pois (escreveu ele) "a 4 de maio de 1890 o proletariado inglês, recém-des-
o futuro do movimento dos trabalhadoras. Essas qualidades estavam bem
pertado de sua hibernação de 40 anos, voltou a participar do movimento
de acordo com a preocupação pela organização cuidadosa e a administra-
de sua classe (... ) Os netos dos velhos cartistas estão entrando na linha de
ção dos recursos, qualidades que evidentemente faltaram em empresas efê-
combate".' S
meras como o Sindicato Nacional Consolidado inspirado por Owen vinte
Mas foram breves as esperanças que esse fato despertou entre os so-
anos antes. Os líderes do dito Modelo Novo ensinavam uma lição diferente
cialistas. A crise que deu origem ao "novo" sindicalismo, ao renascimento
e, apesar de toda a sua respeitabilidade e da imitação que faziam das ma-
do socialismo e à agitação em favor da jornada de oito horas também viu o
neiras e valores da classe média, deram uma contribuição positiva para o fu-
aparecimento do novo imperialismo, ou da disputa pelo Império, na qual a
turo construindo organizações nacionais sólidas, para os artesãos e minei-
ros pelo menos, e deixaram uma herança útil que seus sucessores puderam
aproveitar bem. Esse período de alta respeitabilidade, devemos lembrar
também, foi o da criação do Conselho Sindical Londrino e do Congresso 12 J.P.D. Dunbabin, Rural discon terit in nineteen th-centurv britain, Londres, 1974,
Sindical; e, em 1872, Joseph Arch lançou a primeira grande organização p.262.
nacional de trabalhadores agrícolas. Também ele, como os Allans e Apple- 13 Sobre o sign ificado que teve a greve portuária de 1889 no sentido de dar disci-
( ,
plina, organização e objetivo aos "pobres disponlveis" de Londres,depois da orgia des-
controlada dos motins de 1886, ver Gareth Stedrnan Jones, Outcast i.ondon, Oxford,
1971, pp. 315-21.
14 Apud A. L. Morton Political writings o t William Morris, pp. 232-3.
larg.I,
IS F. Engels, no Arbeitzeitung de Viena, 13 de maio de 1890; apud K. Marx e F.
Ii Ibid., p. 68. Engels, Selected correspondence 1846-1895, org. por D. Torr, Londres, 1934, p. 469.
150 Ideologia e Protesto Popular

Grã-Bretanha tomou parte juntamente com seus rivais alemães, franceses,


russos (e mais tarde também norte-americanos). E o imperialismo - como
Cecil Rhodes e Joseph Chamberlain esperavam -- deu a muitos trabalhado-
res britânicos a mesma sensação de segurança e superioridade sobre seus ~
companheiros de além-mar que a certeza de que a Grã-Bretanha era comer-
cialmente superior ao resto do mundo havia dado na época da Grande Ex- BIBLIOGRAFIA
posição, duas gerações antes. ~ claro que a compreensão de que os frutos
do Impafio eram distribu ídos de maneira desigual entre as classes se mani-
festou em momentos de crise econômica - como em 1911-14,1920-22 e
1926. Mas, apesar da promessa de 1890, a continuada ausência de uma
"teoria" socialista dentro do movimento trabalhista (como Engels observa-
ra) limitou severamente a percepção de classe. E quando, na época da crise
petrol ífera persa de 1950, Ernest Bevin, o Secretário do Exterior trabalhis- Os títulos estão distribuídos de acordo com a Parte do livro em que são
ta, disse com orgulho que o Império é que assegurava aos trabalhadores bri- citados com mais freqüência, ou (se não são citados) para a qua I são consi-
tânicos uma posição econômica privilegiada, poucos questionaram essa derados como mais relevantes.
afirmação.
Embora o império tenha continuado a desintegrar-se, foi necessário Parte I Ideologia e Consciência de Classe
muito tempo para que convicções seculares se modificassem. Embora a mal-
dição do colonialismo e as lembranças de glórias passadas continuem a as- 1971 Althusser, L., Lenin and philosophy and o ther essevs , Londres.

sombrar um núcleo significativo de conservadores no movimerlto, seria um 1972 Politicsand tiistorv , Londres.

erro pretender (como poderiam fazer os defensores da noção de uma 1973 Anderson, Perrv. Considerations on western marxism, Londres.
muralha da Babilônia dividindo a consciência "falsa" da "verdadeira") que 1972 Coletti, L., From Rousseau to Lenin, Londres.
tudo está portanto perdido. Os trabalhadores têm muitas lembranças de 1967 Geertz, C., "Ideology as a cultural system", in D.E. Apter íorq.}, Ideology
and discon tent , Nova York.
vitórias e de derrotas, e há limites para a capacidade até mesmo da mais
1954 Hill, c., "The norman voke", in J. Saville (orq.}, Democracyand the labour
atraente propaganda externa de modificar crenças e atitudes profundamen- movement , Londres.
te arraigadas. Há muito de verdade na conclusão de Richard Hoggart, no 1959 Hobsbawm, E.J., Primitive rebels, Manchester. [Ed. brasileira: Rebeldes
quadro que traça dos efeitos, sobre a classe operária de Leeds, da imprensa Rio, Zahar. 2? ed., 1978.]
primitivos,
"açucarada" e de outros ataques insidiosos da sociedade de consumo da 1927 Lenin, V.I., What is to be done?, Londres.
década de 1950: "a classe operária tem uma forte capacidade natural de 1966 Lewis, O., "The culture of poverty", Scientific American, CCXI, pp. 19·25.
sobreviver à mudança adaptando ou assimilando o que quer, no que é no- 1967 Lichtheim, G., The concept of ideology and other esseys, Nova York.
vo, e ignorando o resto."16 1971 Lu kács, G., History and cless consciousness , Londres.
Isso é tranqüilizador, na medida em que é válido. Mas o leitor obser- 1936 Mannhei m, K., Ideology and utopia, Londres. [Ed. brasileira: Ideologia e
vador poderá notar que é outra dessas atitudes "inerentes" que, em si mes- utopia, Rio, Zahar, 3~ed., 1976.1
mas, foram insuficientes para vencer batalhas decisivas. Por isso, como já 1951 Marx, K., A contribution to the critique of political economv , Moscou.
vimos, a ideologia do povo comum - seja ele formado de camponeses, de 1974 Marx, K., e Engels, F., The german ideotoçv , Londres.
operários, ou do menu peuple - teve de ser fortalecida por uma injeção 1975 Ttie botv farnily, or critique of critical criticism. Moscou.
Manifesto do partido comunista, várias edições.
de idéias "derivadas", ou daquelas idéias generalizadas baseadas na lem-
1944 Selected correspondence 1846-1895, organizado por D. Torr, Londres.
brança de lutas passadas a que Marx e Engels, escrevendo em ocasiões dife-
1933 Mornet, O., Les origines intelectuel/es de Ia révolution française, Paris.
rentes, deram simplesmente o nome de "teoria".
1977 On ideology, Working Papers in Cultural Studies 10, Universidade de Bir-
mingham. [Ed. brasileira: Da ideologia. Rio, Zahar, 1980.]
1970 Plamenatz, J., Ideology, Londres.
1973 Politica! writings of Wil/iam Morris, organizado por A.L. Morton, Londres.
16 R. Hoggart, The uses of titerecv, Londres, 1957, p. 52. (O grifo é meu.I 1964 Raab, F., The english face of Machiavelli, Londres.

151
________~__ I
152 Bibliografia
Bibliografia 153
~
1961 Rogers, P.G., Battle in Bossenden, Londres.
1!1'l!J 'Link, E .M., Tbe emancipation ot tbe austrian peasant 1740·1798, Londres.
1972 Sanderson, M., "Líteracy and social mobility on the industrial revolution in
England", Past and Present , n9 56, agosto, pp. 75·104.
1,./<1 I Longworth, P., "The Pugachev revolt. The last great cossack uprising", in

1971 Seleetions
_ O. Hoare e G. Nowell
from tbe prison
Smith,
notebooks
Londres.
of Antonio Gremsci, organizado por \ I! lIilj
H. Landsberger
Moore, Barrington,
(orq.l , Rural protest , pp. 194·258.
Social origins of dictetorsnip and democrecv , Boston.
1969 ~ Stone, L., "Literacv and education in England, 1640·1900", Pest and 1!J11 Mousnier, A., Peasant uprisings in seventeenth-centurv France, Russia and
Presen t, n9 42, fevereiro, pp, 69·139. China, Londres.

1978 Thompson, E.P., "Eiqh teenth-centurv english society: elass struggle without 1!J/3·74 N icolas, J., "S ur les émotions popu laires au X VIII e siàcle: le cas de Ia Savoie",
class?", Social Historv , III (21, maio, pp. 137·65. Annales historiques de Ia Révolution française, n9 214, pp. 593-607; nO 215,
1971 "The moral economy of the English crowd of the eighteenth-century", pp.ll1·53.
Pest and Present, n9 50, maio, pp. 76·136. IHa5 Petit Dutaillis, C., Les soulévements de travailleurs d' Ançleterre en 138/,
1930 Weber, Max, The protestent etbic and ttie spirit o i capitalism, Londres. Paris.
1!)72 Porchnev, S., Les soutévements populaires en France au XVI/e siécle, Paris.
1!)50 Portal, A., L 'Oure! eu XVI/le siécte, Paris.
Parte 11 Camponeses
1,/dJ Raeff, M., "Pougachev's rebel/ion", in A. Foster e J.P. Greene (or qs.l , Pre-
1975 Bak, J. (orq.}, The german peasant war of /525, número especial de Joumal conditions , (supra I.
of Peasant Studies , I li (1 I, outubro. IflG4 Rudé, G., Tbe crowd in history , Nova York.
1978 Blum, J., The end of tbe old order in rural Europe, Princeton, lDG7 Salmon, J.N.M., "Venal office and popular sedition in seventeenth-century
[s/d] Cambridge medieval tiistorv , vol. VII. F rance", Pes t and Present , n9 37, pp. 21·43.
1975 Cohn, Henry, "The peasants o~ Swabia, 1525", Joumal of Peasant Studies , 1971 Shanin, T. (org. I, Peasants and peesent so cietv, Penguin.
111 (1 I, outubro, pp. 10·28. 1928 Tannenbaum, F., The mexican agrarian revolution, Nova York.
1968 Cumberland, C., Mexico: The srruggle for modernitv , Nova York. 1!.l99 Trevelyan, G.M., England in the age of Wycliffe, Londres.
1967 Engels, F., The peessnt war in Germenv , Londres. !f.J59 Wangermann, E., From Joseph II to the Jecobin Triets, Dxford.
1970 Foster, R., e Greene, J.P. (orqs.I, Pre-conditions of revotution in early 1966 WOlf, E., Peasants, Nova York.
modem Europe , Saltimore. 1969 Peasant wars of the twentieth centurv , Nova York.
1969 Herbert, S., The fali of feudalism in France, Nova York Ireimpressãol. 1968 Womack, J., Zapata and the mexican revolution, Londres.
ls/d l Hilton, R.H., "Peasants, peasant society, peasant movements and feudalisrn
in medieval Europe". in Henry A. Landsberger Iorq.), Rural protest, pp. 67· Parte 1II Revoluções
94 (in fra I.
1976 Hobsbawm, E .J., "Peasant rnovernents in Colombia", Intemational Joumal 1973 Agulhon, M., /848 ou I'apprentissage de Ia république, 1848·/852, Paris.
of Economic snd Social Hist ory , n98, pp. 166 ·86. lD70 La république au village, Paris.
ls/d J Huizer, G. e Stuvenhagen, K., "Peasant movements and land reform in latin 1963 Amann, P., "The cl1anging outline of 1848", American historical roview,
America", in H.A. Landsberger (orq.}, Rural pro test , pp. 378·409. LXVII I, julho, pp. 938·53.
1973· 76 Joumal of Peasant Studies (JPS) , vol. 1·3: vários trabalhos curtos sobre lDG7 Saylin, B., TIJe ideological origins of the american revolution , Harvard.
Brasil. Colômbia, Equador, Boh'via, México, Peru etc., sob a rubrica geral Sezucha, R" The l.v ons uprisings ot 1834, Cambridge, Massachusetts.
1'l74
"Falam os camponeses".
lD50 Chevalier, L., La tormetion de Ia populetion parisienne au XIXe siécle , Paris.
1978 Joutard, Philippe, "La Cévenne camisarde", Histoire, Paris, n9 1, maio,
1%4 Cobban, A., The social interpretetion of tbe french revolution, Londres.
pp.54-63.
h/d] Countryman, E., "Out of the bounds of the law, northern land rioters in the
1944 Labrousse, C.·E., "I ntrodução" a La crise de l'éconornie française à Ia fin
eighteenth centurv", in A. Young (orq.). The american revolution, (infral.
de l'encien régime et au début de Ia révolution , Paris.
1,;/<11 Ernst, J., "Ideology and an economic interpretatian of the revotution ". in
[s/d J Landsberger, S. e H., "The english peasant revolt of 1381 '', in H. l.andsber-
A. Young (org.l, Tbe american revolution, iintre),
ger Ior ç.l, Rural protest, (infral, pp. 95·141.
1 ')(;1 Faure, E., La disgrâce de Turgot, Paris.
1974 Landsberger, Henry A. (or q.}. Rural pro test: peasant movements and socíal
change, Londres.
1,,/<11 Foner, E., "Tom Paines republic: radical ideology and social chanqe", in
A. Young (org.l, The american revolution, (intral.
1954 Lefebvre, G., Études sur Ia révolution Irençeise , Paris,
I!I/O Garden, M., Lyon et les ly onnels ao XVllle siécte, Paris.
1979 Lewin, Linda, 'The oligarchical limitations of social banditry in Brazil ",
Past and Presen t , n9 82, fevereiro, pp. 116·46. 1!lrt Gauthier, F., La vaie paysanne dans Ia révolution française: l'exompl« de
Ia Picardie, Paris .

. -
154 Bibliografia Bibliografia 155
~
1973 Hill, C. [or q.}, Winstanlev, the law of freedom and other esseys, Londres. Young, Allred (orq.). The american revolution. Explorations in the bistorv
1972 The world turned upside down , Londres/Nova York. .
J I!I/G
of american radicalism, DeKalb.
[s/d] Hoerder, D., "Boston leaders and Soston crowds, 1765-1776", in A. Young 1'1(;0 Young, Arthur, Travels in France during the vears 1787-1788-1789, orga-
(orq.). The ameriean revotution , (infra). I' nizado por J. Kaplow, Nova York.
'"
1968-73 Jaurés, J., Histoire soeialiste de Ia révolution française, A. Soboul (orq.l ,
7 vais., Paris. l'arte IV Transição para a Sociedade Industrial
1947 Lelebvre, G., Ttie coming of the freneh revolution, Princeton.
1968 Lemisch, J., "Jack Tar in the street. Merchant seamen in the politics of 1'11(; Donnelly, F .K., "Ideology and early warking-class history: Edward Thomp-
revolutionary America", William and Mary querterly , 25, pp. 371-407. son and his cr it ics", Social Historv , nC?2, maio.
1962 Mcpherson, C.S., The political ttieorv of possessive individualism, Oxford. I 'I 14 Dunbabin, J.P.D., Rural discontent in nineteenth-centurv britain, Londres.

1972 Maier, P., From resistence to revolution, Nova York. 11I!l7 E ngels, F., The condition of tbe english working class in 1844, Londres.

1964 Mandrou, R., De Ia culture populeire aux 17f! et 1se siécles , Paris. 1')/4 Foster, J., Class struggle and the industrial revolu tion , Londres.
1978 Manning, B, The english people and the english revolution, Penguin. 1!1i;!) Hobsbawm, E .J., Labouring men, Londres.
I!)!,/ "The machine-breakers", Pest and Present, nC?1, fevereiro, pp. 57-70.
1933 Marx, K., The civil war in Franee, Londres.
[s/d ] Cless struggles in France, 1848-50, Londres. I <J[)!I Hobsbawm, E.J. e Rudé, G, Captain swing, Londres.

1910 Mathiez, A., Le club des cordeliers penderit Ia crise de Varennes et le mas- I 'i!J 7 Hoggart, R., The uses of titerecv , Londres.
sacre du Champs de Mars, Paris. 111:\7 Loveless, G., The victims of Whiggerv, Londres.
1913 Les grandes journées de Ia Constituante, Paris. McBrair, A.M., Fabian socialism and english politics, lB84-1918, Cambridge.
1%/
1975 Merriman, J. (orq.}, 1830 in Franee, Nova York. Moorhouse, H.F., "The marxist theory 01 the labour aristocracy", Social
I!) III
[s/d] Moss, B., "Parisian workers and the origins 01 republican socialism, 1830- Historv , 11, janeiro, pp. 61-82.
33", in Merriman (supra).
Postgate, R., That Devil Wilkes, Londres.
I!)!,(;
[s/d] Nash, G., "Social change and the growth of pre-revolutionary urban radi- Rudé, G., Parisand London in tbe eiqtiteenth-cent urv, Londres/Nova Yark.
I! 1/1
calisrn". in A. Young (orq.l. The emericen revolution, (infra).
I !I III Pro test and punishment, Oxford.
1974 Newman, E., "The blouse and the frockco at ", Journal of Modem History , I 'I(j / Wilkes and libertv , Oxlord.
xlvi, março, pp. 27 e ss. Shelton, W., "The role 01 the local authorities in the hunger riots of 1766",
I !I J:l
1964 Pinkney, D., "The crowd in the french revolution 01 1830", American A/bion, v (1), primavera, pp. 50-66.
Historv Review, Ixx, pp. 1-17. Stedman Jones, G., Outcast London, Oxford.
I 'I/I
1956 Pouthas, C. H., La population française pendant Ia premiére moitié du XIXe Stevenson, J., "Food riots of 1792-1818", in J. Stenvenson e P. Quinault
I!) /4
siécte , Paris. (orqs.l , Popular protest and pubtic order, Londres, pp. 33-74.
1959 Reeolleetions of Aléxis de Toequeville, organizado por J.P. Mayer, Nova I!III (or q.}, London in the age of reform, Londres.
York. Sutherland, L.S., "The city 01 London in eighteenth-century politics".
I(l!)(i
1959 Robbins, c., The eiçbteentti-centurv commonwealthman, Cambridge, in R. Pares e A.J.P. Taylor (orqs.I, Essavs presented to Sir Lewis Namier,
Massachusetts. Londres, pp. 49-74.
1910 Rouff, M., "Une greve de gagne-deniers en 1786 à Paris", Revue Histori- 1 ~J ! 1~ ) The citv of London and the opposition to govemment 1768-1774, Londres.
que, clxv, pp. 332-46. 1'1/1 Thollsen, "The intellectual
T.T., origins of mid-victorian stabilitv", Politicel
1959 Rudé, G., The crowd in the freneh revolution, Oxlord. Sciences Ouerterlv , LXXXVI, março, pp. 57-91.
1974 "Revolution and popular ideology", in M. Allain e G.R. Conrad (orqs.), I' 1/'1 Thompson, E.P., Whigs and hunters: the origins of tbe black ect , Londres.
France and North America: tbe revotutionerv experience, Lalayette (Loui- 1'11;/ The making of the english working cless , Londres.
sianal. "The moral economy 01 the english crowd in the eighteenth-century", Past
I' l/I
1972 Schulkind, E. (orq.l. The Paris eommune of 1871. The view from the tett, und Present , nC?50, levereiro, pp. 76-136.
Londres. 111')(; Webb, S. e B., Tbe historv of trade unionism, Londres.
1964 Soboul, A., Tbe parisian sans-culottes and the french revolution 1793-1794, I 'I I/ Wells, R., "The revolt 01 the sou th-west, 1800-1801 ", Social Historv , nC?6,
Oxlord. outubro, pp. 713-744.
1959 Thonnesson, K.D., La défaite des sens-cutattes, Oslo. IlJ!d Williillll', U., Thc RebncciJ riots: iJ studv in agrariim discontent, Cnr rtif í.

1977 Vovelle, M., "Le tournant des mentalités en France, 1750-1789: Ia sensibi- I'I!.II WllliillllS, R., Cult ur» .uid socictv 1780·1950, Londres.
lité pré-revolutionnaire", Social Historv , maio, pp. 605-29.
1969 Williams, R., The french revolution of 1870-1871, Londres.

Você também pode gostar