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pedagogia

da variação
linguística
língua, diversidade
e ensino

Ana Maria Stahl Zilles


Carlos Alberto Faraco
[organização]
Direção: Andréia Custódio
Capa e projeto gráfico: Telma Custódio
Revisão: Karina Mota

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
P388

Pedagogia da variação linguística : língua, diversidade e ensino


/ organização Ana Maria Stahl Zilles , Carlos Alberto Faraco ; Carlos
Alberto Faraco ... [et.al.] . - 1. ed.. - São Paulo : Parábola Editorial, 2015.
320 p. (Educação linguística ; 11)

Inclui bibliografia e índice


ISBN 978-85-7934-100-7

1. Linguística 2. Linguagem e línguas. I. Zilles, Ana Maria Stahll. II.


Faraco, Carlos Alberto. III. Título. IV. Série.

15-19920 CDD: 410


CDU: 81'1

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ISBN: 978-85-7934-100-7
© do texto: Ana Maria Stahl Zilles & Carlos Alberto Faraco, 2015.
© da edição: Parábola Editorial, São Paulo, abril de 2015.
Sumário

Introdução..................................................................................................................7
Carlos Alberto Faraco e Ana Maria Stahl Zilles

primeira parte
Variação e práticas escolares
1. Norma culta brasileira: construção e ensino...................................................19
Carlos Alberto Faraco
2. A pedagogia da variação linguística é possível?............................................31
Lucia F. Mendonça Cyranka
3. Aulas de português, construção do conhecimento e interação social.........53
Débora Karam Galarza

segunda parte
Variação em foco
e suas implicações pedagógicas
4. Concordância de 1ª pessoa do plural na escrita escolar................................79
Silvana Regina Nascimento Agostinho e Izete Lehmkuhl Coelho
5. Concordância nominal na fala infantil: implicações para a escola............123
Luciene Juliano Simões e Simone Mendonça Soares
6. Onde: prescrição, proscrição, descrição e ensino.........................................145
Ana Maria Stahl Zilles e Dorotea Frank Kersch

terceira parte
Variação linguística no domínio público
7. Variação, avaliação e mídia: o caso do enem...............................................191
Marcos Bagno
8. Variação linguística em livros de português para o EM.............................225
César Augusto González

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Pedagogia da variação linguística

quarta parte
Olhares acadêmicos
sobre variação linguística e preconceito
9. Variação linguística no curso de Letras: práticas de ensino................................249
Afranio Gonçalves Barbosa
10. Línguas ilegítimas em uma visão ampliada de educação linguística................287
Marilda C. Cavalcanti

Referências bibliográficas..............................................................................................303

Os Autores.........................................................................................................................315

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Introdução
Carlos Alberto Faraco
Ana Maria Stahl Zilles

A variação linguística é uma realidade que, embora razoavel-


mente bem estudada pela sociolinguística, pela dialetologia e pela lin-
guística histórica, provoca, em geral, reações sociais muito negativas.
O senso comum tem escassa percepção da língua como um fe-
nômeno heterogêneo que alberga grande variação e está em contínua
mudança. Por isso, costuma folclorizar a variação regional; demoniza a
variação social e tende a interpretar as mudanças como sinais de dete-
rioração da língua. O senso comum não se dá bem com a variação e a
mudança linguística e chega, muitas vezes, a explosões de ira e a gestos
de grande violência simbólica diante de fatos de variação e mudança.
Em 2011, pudemos novamente vivenciar mais uma dessas explo-
sões de ira contra a variação social, desta vez provocada pelo livro di-
dático Por uma vida melhor, destinado à Educação de Jovens e Adultos
e incluído no Programa Nacional do Livro Didático.
O livro em si, como mostraram vários analistas, é bastante con-
servador em matéria de língua. Contudo, ao tratar da concordância,
fez alguns poucos comentários sobre fatos característicos de variantes
que sofrem estigma social. Foi o suficiente para arrastar-se na mídia,
por mais de um mês, uma polêmica algo insana sobre a língua, seu
ensino e a responsabilidade do Ministério da Educação (MEC) em re-
lação aos livros didáticos.
Houve quem argumentasse que a mídia apenas cumpria um script
elaborado para desgastar a imagem do então ministro da Educação,
Fernando Haddad, cujo nome já circulava como o provável candidato
do PT à prefeitura de São Paulo. Nesse sentido, o “escândalo” do livro

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Pedagogia da variação linguística

se somava ao “escândalo” do kit homoafetivo como pretextos para alimentar


as fogueiras e frituras típicas do jogo político pré-eleitoral.
Mesmo que tivesse sido esta a motivação inicial, o fato é que o episódio
ultrapassou em muito o móvel do desgaste da imagem do ministro. Fez
emergir abundantemente as conhecidas reações sociais negativas frente à
variação social. Os discursos condenatórios chegaram ao ponto de afirmar
que a variação linguística não deve ser matéria de ensino na escola básica
e que o saber sociolinguístico deve ficar restrito ao ambiente universitário.
Está totalmente fora dos nossos objetivos retomar aqui a discussão do
livro Por uma vida melhor. Consideramos que se trata já de um evento su-
perado, devida e exaustivamente analisado pelos vários textos publicados
em sua defesa por educadores e pesquisadores, e posteriormente reunidos
num dossiê pela Ação Educativa, entidade responsável pela edição do livro.
Se não nos interessa mais discutir o episódio em si (embora Afrânio G.
Barbosa, em seu capítulo, volte à polêmica e, já distante dos eventos, faça
uma interessante discussão do livro e das reações a ele), interessa-nos mui-
to discutir criticamente as atitudes e valores correntes em nossa sociedade
que recobrem a variação linguística, em particular a variação social. E isso
como base para discussões propositivas de alternativas pedagógicas que
possam ir além das declarações de generalidades.
A língua continua sendo forte elemento de discriminação social, seja no
próprio contexto escolar, seja em outros contextos sociais, como no acesso ao
emprego e aos serviços públicos em geral (serviços de saúde, por exemplo).
Por isso, parece ser um grande equívoco a afirmação de que a variação
linguística não deve ser matéria de ensino na escola básica. Assim, a ques-
tão crucial para nós é saber como tratá-la pedagogicamente, ou seja, como
desenvolver uma pedagogia da variação linguística no sistema escolar de
uma sociedade que ainda não reconheceu sua complexa cara linguística
e, como resultado da profunda divisão socioeconômica que caracterizou
historicamente sua formação (uma sociedade que foi, por trezentos anos,
escravocrata), ainda discrimina fortemente pela língua os grupos socioeco-
nômicos que recebem as menores parcelas da renda nacional.
A maioria dos alunos que chegam à escola pública é oriunda precisa-
mente desses grupos socioeconômicos. E há, entre nossas crenças pedagó-
gicas, um pressuposto de que cabe à escola pública contribuir, pela oferta
de educação de qualidade, para favorecer, mesmo que indiretamente, uma
melhor redistribuição da renda nacional.

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Introdução

Obviamente, não se pode compreender a educação apenas como vetor


de criação de valor econômico. É preciso vê-la principalmente como uma
experiência sociocognitiva que dá acesso amplo ao universo das práticas
socioculturais em toda a sua diversidade, universo este em que as lingua-
gens (e a linguagem verbal em especial) têm papel constitutivo.
Boa parte de uma educação de qualidade tem a ver precisamente com
o ensino de língua — um ensino que garanta o domínio das práticas so-
cioculturais de leitura, escrita e fala nos espaços públicos. E esse domínio
inclui o das variedades linguísticas historicamente identificadas como as
mais próprias a essas práticas, ou seja, o conjunto de variedades escritas e
faladas constitutivas da chamada norma culta (o que pressupõe, inclusive,
uma ampla discussão sobre o próprio conceito de norma culta e suas efeti-
vas características no Brasil contemporâneo).
Parece claro hoje que o domínio dessas variedades caminha junto com o
domínio das respectivas práticas socioculturais. Não se trata de desenvolver
uma pedagogia que se concentre nas formas léxico-gramaticais típicas dessas
variedades, mas de uma pedagogia que integre o domínio das variedades ao
domínio das práticas socioculturais de leitura, escrita e fala no espaço públi-
co. Sabemos fazer isso concretamente? Já conseguimos ir além das asserções
de generalidades? Se não, que problemas têm de ser enfrentados e que cami-
nhos concretos seriam viáveis para a construção de uma pedagogia da varia-
ção linguística consequente com as crenças que acabamos de expor?
Parece claro também, por outro lado, que não se trata apenas de desen-
volver uma pedagogia que garanta o domínio das práticas socioculturais
e das respectivas variedades linguísticas. Considerando o grau de rejeição
social das variedades ditas populares, parece que o que nos desafia é a
construção de toda uma cultura escolar aberta à crítica da discriminação
pela língua e preparada para combatê-la, o que pressupõe uma adequada
compreensão da heterogeneidade linguística do país, sua história social e
suas características atuais. Essa compreensão deve alcançar, em primeiro
lugar, os próprios educadores e, em seguida, os educandos.
Como fazer isso? Como garantir a disseminação dessa cultura na es-
cola e pela escola, considerando que a sociedade em que essa escola existe
não reconhece sua cara linguística e não só discrimina impunemente pela
língua, como dá sustento explícito a esse tipo de discriminação? Em suma,
como construir uma pedagogia da variação linguística?
Quando falamos em pedagogia da variação linguística, não estamos pro-
pondo uma pedagogia da língua materna composta de módulos autônomos,

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Pedagogia da variação linguística

mas tão somente estimulando uma reflexão focada nas grandes questões
que envolvem a variação linguística no ensino de português sem perder de
vista o que dissemos anteriormente, ou seja, uma perspectiva integradora
das várias dimensões desse ensino.
Dada a complexidade do tema, entendemos que é preciso ampliar o
conjunto dos que debatem essas questões. Há uma complexa trama de re-
presentações, atitudes e valores que recobrem tanto a diversidade cultural
do país quanto sua diversidade linguística. Aparentemente, temos avança-
do mais no trato positivo da diversidade cultural do que no da diversidade
linguística. Pelo menos, dispomos já de políticas de valorização da diver-
sidade cultural, mas que, paradoxalmente, não incluem a diversidade lin-
guística. É preciso buscar entender as razões para isso.
Foi a partir desse conjunto de questões que nos propusemos organizar
este livro, reunindo reflexões de vários pesquisadores que têm se dedica-
do a entender melhor a problemática da variação linguística no ensino de
português e, ao mesmo tempo, a construir alternativas concretas para sua
inclusão nas nossas práticas de ensino.
Os capítulos estão reunidos em quatro blocos temáticos: o primeiro,
concentra-se na explicitação de coordenadas conceituais básicas e nas con-
dições de possibilidade de uma pedagogia da variação linguística. O se-
gundo bloco explora modos de estudar e compreender as relações entre
determinados fenômenos de variação, muito visíveis em nossa sociedade,
de um lado, e o papel da escola na aprendizagem (ou não) da norma culta,
de outro. O terceiro bloco põe em perspectiva discursos sobre a variação em
circulação na sociedade, seja na mídia, seja nas avaliações nacionais como
o ENEM, seja nos livros didáticos. Por fim, o quarto bloco focaliza pesqui-
sas sobre a variação linguística na formação de professores de língua e a
docência voluntária em contexto cultural e sociolinguisticamente complexo.
O primeiro bloco temático, denominado Variação e práticas escolares, reú­
ne três artigos que refletem sobre a pedagogia da variação, sobre práticas
de ensino que respeitem a diversidade sociolinguística e cultural, sobre as
possibilidades que se descortinam quando se pretende levar em conta a di-
versidade linguística na escola.
O capítulo que abre esse bloco intitula-se “Norma culta brasileira: cons-
trução e ensino” e tem como autor Carlos Alberto Faraco. Nele se faz uma
reflexão crítica sobre aspectos da realidade e da história sociolinguística do
português do Brasil, com especial destaque para o problema da chamada

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Introdução

norma culta e sua relação com nossas práticas de ensino. O autor defende
a importância de refletir sobre nossa cara sociolinguística e sua história,
em particular sobre nossa realidade e história normativa. Revisita critica-
mente os inícios dos debates normativos no Brasil do século XIX e algumas
das polêmicas e seus desdobramentos no século XX. Conclui com algumas
propostas que pretendem sustentar uma reorientação de nossas práticas de
ensino numa direção positiva, cujo resultado seja a efetiva democratização
do acesso à expressão culta e a seu domínio.
O segundo capítulo, de Lucia F. Mendonça Cyranka, intitula-se “A pe-
dagogia da variação linguística é possível?”. A autora sintetiza um conjunto
de pesquisas de sala de aula, fundamentadas na sociolinguística educacio-
nal e realizadas numa escola municipal e em duas escolas particulares de
Juiz de Fora (MG). Destacam-se as reflexões sobre a questão do certo e do
errado e sobre a dimensão de variação formal-informal, com interessantes
registros de conversas entre alunos e professor(a) em sala de aula. A pes-
quisa envolveu os próprios docentes e foi sempre acompanhada de anota-
ções de caráter etnográfico. O objetivo com os alunos da escola municipal
era instaurar na sala de aula a reflexão sobre as diferenças sociodialetais
do português brasileiro para construir laços de confiança entre a cultura da
escola e aquelas estigmatizadas das quais os alunos eram representantes,
laços indispensáveis para desenvolver a consciência sociolinguística dos
alunos e garantir-lhes as bases para o domínio das variedades cultas. Com
os alunos das escolas particulares de classe média, que não vivem o mes-
mo conflito linguístico-cultural dos outros, interessou à pesquisa desenvol-
ver competências de leitura e de construção de textos orais e escritos, com
reflexão linguística centrada no processo de variação e mudança.
O terceiro capítulo desse bloco denomina-se “Aulas de português, cons-
trução do conhecimento e interação social” e tem como autora Débora Ka-
ram Galarza. O texto se inicia com a contextualização político-pedagógica
da Escola Cidadã e os referenciais teóricos que a orientam, no âmbito da
rede municipal de ensino de Porto Alegre. A escola focalizada no relato é
descrita como uma escola urbana localizada em uma região em que a pe-
riferia e bairros residenciais tradicionais da cidade se misturam, ao passo
que os alunos são de classes populares. Na reflexão sobre sua prática pe-
dagógica, a autora apresenta exemplos de textos escritos pelos alunos (a
primeira versão, antes da reescrita) em que transparecem não só as caracte-
rísticas das variedades populares, mas também as evidências de progressiva

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Pedagogia da variação linguística

apropriação das práticas ligadas aos gêneros escritos. A autora se vale de


princípios que ecoam o que é dito nos demais textos deste bloco, como por
exemplo, a imperiosa necessidade de dar voz aos alunos e de respeitá-la,
valorizá-la, expandi-la. Essas vozes, obviamente, serão diversificadas não só
segundo o lugar social de onde falam, mas também segundo seus letramen-
tos e práticas de leitura e escrita. Nesse sentido, a sala de aula passa a ser
um espaço mais aberto e democrático de interlocução e aprendizagem.
O segundo bloco temático, denominado Variação em foco e suas impli-
cações pedagógicas, reúne três capítulos que analisam certos fenômenos de
variação no português do Brasil que são muito salientes porque são alvo
de muita atenção, para o bem e para o mal, na sociedade brasileira: a con-
cordância verbal, a concordância nominal e o uso da palavra onde na ar-
ticulação de orações. As perspectivas adotadas pelas autoras são distintas
e, com isso, desvelam a complexidade envolvida na pedagogia da variação
linguística: no primeiro capítulo, aflora a questão da (falta de) relação entre
oralidade e escrita na escola, no âmbito do ensino fundamental; no segun-
do, o papel da escolarização na aprendizagem da norma culta por crianças
de contextos sociais opostos; e no terceiro, a imperiosa necessidade de re-
fletir criticamente sobre ações de prescrição e proscrição que desrespeitam
a história da língua e o saber linguístico de seus falantes.
O primeiro capítulo, de Silvana Regina Nascimento Agostinho e Izete
Lehmkuhl Coelho, intitula-se “Concordância de 1a pessoa do plural na es-
crita escolar”. As autoras investigam o uso dos pronomes nós e a gente e da
concordância verbal com esses pronomes em textos escritos de alunos dos
anos finais do ensino fundamental em duas escolas municipais da cidade
de Itajaí (SC). Paralelamente, investigam o que os professores e a equipe
diretiva da escola pensam sobre ensino de língua, variação linguística e
as variantes estudadas. Os dois conjuntos de dados são então relacionados,
evidenciando não só o distanciamento entre o dizer e o fazer, mas, prin-
cipalmente, a ausência de um tratamento pedagógico para os fatos de va-
riação em sala de aula. Frente a esses resultados, as autoras encaminham
algumas propostas ligadas tanto à formação dos professores quanto aos
conteúdos e procedimentos de ensino.
O segundo capítulo, de Luciene Juliano Simões e Simone Mendonça
Soares, denomina-se “Concordância nominal na fala infantil: implicações
para a escola”. Examinando dados de concordância nominal de número
na fala de crianças pré-escolares de dois níveis socioeconômicos opostos,

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Introdução

as autoras revelam, com resultados robustos, o papel da família, no grupo


social mais alto, e o da escolarização no grupo social mais baixo, para a
aquisição das regras de concordância nominal da norma culta. O referen-
cial teórico do letramento, combinado inovadoramente com o referencial
teórico variacionista, enriqueceu os procedimentos de obtenção dos dados
e as análises empreendidas. Os resultados impressionam e ressignificam a
importância da participação efetiva de todos os alunos em múltiplas prá-
ticas de letramento, sendo indispensável que a escola reconheça seu papel
essencial nesse quesito em relação aos alunos de classes sociais mais baixas
e acesso mais restrito à leitura e à escrita. Nesse sentido, fica evidente que
a pedagogia da variação e o ensino da norma culta passam muito mais
pelas práticas de letramento do que pelas aulas de gramática descontextua­
lizada e de regras expositivas desvinculadas da realidade e distantes da
compreensão da criança. Participando de múltiplos eventos de letramento,
a criança socialmente desprivilegiada aprende e domina a norma culta; o
contrário, já sabemos, não é necessariamente verdadeiro.
Finalizando esse bloco, temos o terceiro capítulo, intitulado “Onde:
prescrição, proscrição, descrição e ensino”, de Ana Maria Stahl Zilles e Do-
rotea Frank Kersch. Trata-se de um ensaio fundamentalmente teórico que
culmina num conjunto de proposições de pedagogia da variação para o
caso estudado, dos usos da palavra onde. Tais proposições podem servir
de exemplo para aqueles que desejam refletir com seus alunos sobre varia-
ção linguística e incorporar em sua prática pedagógica atitudes de respeito
à diversidade cultural e linguística. O eixo central de articulação do texto
está na distinção entre prescrição, proscrição e descrição, construída com
base em numerosos exemplos inequívocos.
O terceiro bloco temático, denominado Variação linguística no domínio pú-
blico, trata das relações entre diversidade linguística, mídia e livros didáticos.
O primeiro capítulo deste bloco, de Marcos Bagno, denomina-se “Va-
riação, avaliação e mídia: o caso do ENEM”. O autor começa por fazer
referência a um estudo seu anterior em que analisou o tratamento da va-
riação linguística nos livros didáticos de língua portuguesa destinados às
últimas séries do ensino fundamental e pôde constatar que essas obras,
apesar de seus aspectos positivos, apresentam diversos problemas no tra-
tamento da variação linguística, devidos, sobretudo, à adesão de seus au-
tores a uma abordagem essencialmente transmissiva dos conhecimentos
linguísticos. Notou particularmente a profusão terminológica (nada menos

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Pedagogia da variação linguística

que 21 expressões) para designar um mesmo fenômeno, o que sinaliza cla-


ramente a grande confusão terminológica e conceitual a orientar o mate-
rial didático. Na sequência, passa a analisar, com ampla exemplificação, o
tratamento da variação linguística nas provas do ENEM e constata o mes-
míssimo problema. Uma das questões do Exame de 2012 se reportava ina-
dequadamente a uma entrevista com o autor, que a comentou criticamente
no Facebook. Esses comentários suscitaram um debate com um jornalis-
ta, debate que lhe serve de exemplo, na última seção de seu capítulo, do
modo como as grandes corporações da mídia brasileira vêm tratando o
Enem desde que foi criado.
O segundo capítulo deste bloco se intitula “Variação linguística em li-
vros de português para o ensino médio”. O autor, César Augusto González,
desenvolveu extensiva análise de todos os livros didáticos de língua portu-
guesa para as três séries do ensino médio distribuídos pelo PNLD de 2009.
Examinando dados da distribuição dos livros, identifica os dois mais e os
dois menos adotados e relaciona esse fato com as características do trata-
mento dado à variação linguística, o foco no certo e no errado na língua
e o papel da gramática tradicional na descrição e explicação dos fatos. O
estudo é particularmente relevante por mostrar o caráter estereotipado do
tratamento da variação nas obras mais adotadas, enquanto, nas menos ado-
tadas, há maior aprofundamento do tema.
O quarto e último bloco temático, intitulado Olhares acadêmicos so-
bre variação linguística e preconceito, se organiza em torno da pesquisa e da
formação de professores, considerando o preconceito linguístico, o desen-
volvimento na graduação de Letras da efetiva capacidade de fazer pesquisa
sociolinguística e aplicá-la na educação e a multiplicidade de contextos so-
ciolinguísticos e culturais em que atuam os professores de línguas.
Temos, inicialmente, o capítulo “Variação linguística no curso de Le-
tras: práticas de ensino”, de Afranio Gonçalves Barbosa. O autor faz uma
extensa problematização do modo como os linguistas têm agido nas rela-
ções do saber acadêmico com a sociedade em geral, com os professores de
português em exercício e com os alunos de Letras, os futuros professores.
Discute os desafios que essa problematização traz para os debates do que
temos chamado de pedagogia da variação linguística. Traz também para a
reflexão os conflitos que perpassam concepções e práticas de ensino, apon-
tando criticamente falácias e contradições de cada um dos lados em con-
flito. O capítulo se conclui com um relato de uma experiência real de sala

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Introdução

de aula com calouros de Letras da UFRJ numa disciplina sobre variação


linguística. Essa experiência se pautou não pela apresentação de conteúdos
por estratégias expositivas ou por condução reflexiva pergunta-resposta,
mas por meio de estratégias interativas com dados. Motivou a experiên-
cia o pressuposto de que os conceitos variacionistas e os dados variáveis
não podem ser somente apresentados aos graduandos em suas leituras e
tomados nas discussões em sala como autoexplicativos. Os graduandos
precisam acompanhar como seus professores operacionalizam a relação
do conteúdo com a realidade para seguirem aprendendo a aprender como
fazer isso sozinhos, considerando que saber bem articular teoria e prática
desde o conteúdo específico de área é um diferencial na qualificação de
docentes com espírito e atitude de pesquisador e de pesquisadores com ha-
bilidade e preocupação docente.
O segundo capítulo deste bloco, “Línguas ilegítimas em uma visão am-
pliada de educação linguística” é de Marilda C. Cavalcanti. A autora reflete
sobre suas aprendizagens ao longo de sua trajetória de pesquisadora e for-
madora de professores. Defende a posição segundo a qual a pedagogia da
variação deve inserir-se mais amplamente numa pedagogia culturalmente
sensível, crítica, de valorização da intercompreensão e contra o preconcei-
to, o silenciamento e invisibilidade das muitas línguas que caracterizam a
sociedade brasileira. Eventos de um curso de formação de professores indí-
genas são relatados e comparados com eventos de outros contextos socio-
linguisticamente complexos. A indissociabilidade entre língua e cultura é
ressaltada. E a necessidade de dar voz aos aprendizes e de abrir mão das
perspectivas etnocêntricas nas escolas é apresentada como passo essencial
para a concretização de uma educação mais apropriada à pluralidade de
contextos em nosso país.
Ao agregar múltiplos olhares, este livro tem como objetivo provocar
pesquisadores de várias áreas (não apenas da linguística e da educação)
para que se instaure na sociedade um debate amplo e bem fundamentado
seja sobre a história e a realidade sociolinguística do Brasil, seja sobre a
construção de uma pedagogia da variação linguística capaz de conquistar
os educadores para uma pedagogia sociolinguisticamente sensível que ofe-
reça aos educandos a possibilidade de compreender a heterogeneidade lin-
guística da sociedade em que vivem, situar nela as variedades ditas cultas,
abrir-se para seu domínio e, acima de tudo, superar criticamente qualquer
atitude preconceituosa.

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A
variação linguística é uma realidade que, embora razoavelmente
bem estudada pela sociolinguística, pela dialetologia e pela
linguística histórica, provoca, em geral, reações sociais muito
negativas.

O senso comum tem escassa percepção da língua como um fenômeno


heterogêneo que alberga grande variação e está em contínua mudança.
Por isso, costuma folclorizar a variação regional; demoniza a variação
social e tende a interpretar as mudanças como sinais de deterioração
da língua. O senso comum não se dá bem com a variação e a mudança
linguística e chega, muitas vezes, a explosões de ira e a gestos de grande
violência simbólica diante de fatos de variação e mudança.

A língua continua sendo forte elemento de discriminação social, seja


no próprio contexto escolar, seja em outros contextos sociais, como no
acesso ao emprego e aos serviços públicos em geral.

Boa parte de uma educação de qualidade tem a ver precisamente com


o ensino de língua — um ensino que garanta o domínio das práticas
socioculturais de leitura, escrita e fala nos espaços públicos; o que
pressupõe, inclusive, uma ampla discussão sobre o conceito de norma

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