Você está na página 1de 3

O Esclarecimento da Dialética: Roberto Schwarz e

a Escola de Frankfurt

A partir de Roberto Schwarz, Bruna Della Torre discute a


importância de um influxo teórico da periferia para o
centro, não apenas em nome da diversidade ou inclusão,
mas da possibilidade mesma de se construir uma teoria
crítica do presente que possa compreender a natureza
sistêmica do capitalismo.

Publicado em 18/12/2023 // 1 comentário

(https://boitempoeditorial.files.wordpress.com/2023/12/image-5.png)

Foto: Bel Pedrosa / Divulgação


Por Bruna Della Torre (https://blogdaboitempo.com.br
/category/colaboracoes-especiais/bruna-della-torre/)

“A figura caricata do ocidentalizante, francófilo ou germanófilo, de nome frequentemente alegórico e ridículo, os


ideólogos do progresso, do liberalismo, da razão, eram tudo forma de trazer à cena a modernização que
acompanha o Capital. Estes homens esclarecidos mostram-se alternadamente lunáticos, ladrões, oportunistas,
crudelíssimos, vaidosos, parasitas etc.”
Roberto Schwarz, “As ideias fora do lugar”.

* Comunicação apresentada na conferência “Die Frankfurter Schule und die Romania” [A Escola de
Frankfurt nos países de línguas românicas], organizada pelo Departamento de Estudos Românicos e
pelo Centro de Estudos Apocalípticos e Pós-Apocalípticos da Universidade de Heidelberg em
cooperação com o Instituto de Pesquisa Social (IfS) em Frankfurt.

Nos 100 anos desde a criação do Instituto de Pesquisa Social, muito se discutiu sobre seu legado. As
ideias revolucionárias de Max Horkheimer, Theodor W. Adorno, Herbert Marcuse, Walter Benjamin e
seus colegas viajaram para muitos continentes e aclimataram-se a vários contextos, produzindo uma
teoria crítica que foi, em muitos aspectos, muito além de Frankfurt – esta cidade espectral, carregada
de utopia, como a Amorbach de Adorno ou a Balbec de Proust, cujo espectro crítico ainda assombra a
teoria social. No entanto, nem tudo escrito fora do circuito oficial do Instituto foi reconhecido como
parte de seu legado. Até mesmo algumas produções internas à própria instituição, como teorias
feministas, estão para ser incluídas em sua história.

De fato, diferenças nacionais, geopolíticas e linguísticas contribuíram para a lacuna entre as teorias
críticas de Frankfurt e as da América Latina. A tarefa atribuída a nós hoje, isto é, debater a recepção da
teoria crítica nos países de línguas românicas, implica uma discussão sobre as possibilidades de
traduzir não apenas textos, mas também um quadro teórico e político inteiro para outras formações
sociais. Isso é uma tarefa particularmente complicada, tanto em termos de idiomas – entender o
alemão, especialmente o escrito por Theodor W. Adorno, exige esforços comparáveis a escalar grandes
montanhas para nós versados nas línguas românicas – quanto em termos do confronto das teorias da
Escola de Frankfurt com outros contextos e realidades, o que exige a flexibilidade de uma
contorcionista e treinamento profissional em dialética. No entanto, a recepção da Escola de Frankfurt
em outras paisagens, especialmente na periferia do capitalismo, não deixa de retaliar. Confrontada
com formações sociais latino-americanas, a teoria crítica é submetida a um teste de universalidade ao
qual deveria ser – no passado e, hoje, ainda mais – obrigada a responder.

Portanto, nesta apresentação, pretendo inverter o caminho sugerido pelo seminário – que recomenda
discutir a recepção da chamada Escola de Frankfurt nos países de línguas românicas – e defender,
com base em algumas reflexões de Roberto Schwarz, a importância de um influxo teórico da periferia
para o centro, não apenas em nome da diversidade ou inclusão, mas em nome da possibilidade
mesma de se construir uma teoria crítica do presente que possa compreender a natureza sistêmica do
capitalismo.

Neste sentido, vale a pena começar com uma observação materialista no sentido mais imediato do
termo. A história do Instituto de Pesquisa Social esteve conectada à América Latina desde seu início,
não apenas por que seu mecenas, Félix Weil, nasceu na Argentina, mas também por que o dinheiro
que financiou sua fundação e garantiu sua continuidade por décadas foi principalmente ganho e/ou
extraído desse país pela empresa comercializadora de grãos do pai de Félix, Hermann Weil. Desde o
início, o IfS carregou a marca dessa dinâmica centro-periferia, que ainda não é completamente
reconhecida na Europa. Entretanto, quando alguém da periferia do capitalismo pretende ser um
especialista na Escola de Frankfurt ou pelo menos usá-la como referência principal, isso é sempre
visto como estranho, um pouco exótico ou curioso, e é sempre preciso explicar de alguma forma a
escolha de se debruçar sobre esses autores e justificar como as categorias da teoria crítica servem para
explicar uma realidade tão diversa. Isso ocorre em parte porque Adorno e Horkheimer, por exemplo,
não incluíram o colonialismo em suas reflexões sobre o capitalismo1 – o que certamente teve um
custo enorme para uma teoria crítica da sociedade, como eu gostaria de comentar aqui. Mas também
é um sintoma de como a parte de baixo do mundo ainda é percebida como uma formação social não
ocidental, pré-capitalista, alienígena à modernidade e dela excluída; não que isso seja uma vantagem
ou desvantagem – antes de qualquer coisa, é um equívoco sociológico.

Quero sugerir, nessa linha, que as obras da teoria crítica na América Latina podem revelar como, por
exemplo, a Dialética do Esclarecimento de Adorno e Horkheimer e parte do pensamento crítico do
Norte Global ainda padecem de um excedente de Esclarecimento e de alguma insuficiência de
dialética. Isso ocorre, principalmente, se o Esclarecimento é abordado como um conjunto de ideias
cuja origem é o pensamento europeu, como apenas uma história da Razão europeia e de suas formas
correspondentes de racionalidade. Nesse caso, a lacuna que separa essas duas partes do mundo é
mantida. A periferia do capitalismo permanece um lugar exótico, com uma ontologia diferente (é
evidente que há outras ontologias, especialmente se considerarmos os vários pensamentos e vivências
indígenas, mas isso não é tudo). Alguns, como parte do pensamento decolonial, especialmente o
presente no chamado Norte Global, encontram nesta alteridade uma solução para todos os problemas
da chamada civilização ocidental. O arranjo pode agradar tanto a parte superior (que encontra um
“fora” a partir do qual pode pensar criticamente ou se afirmar como uma civilização) quanto a parte
inferior (que finalmente parece ter algo autêntico a oferecer ao centro, um artigo de curiosidade para
aqueles que procuram aventuras antropológicas). Continuamos, como escreveu Oswald de Andrade,
com humor e ironia, fornecendo uma “mentalidade pré-lógica para Sr. Lévy-Bruhl estudar”
(Andrade, 2008, p.175). É compreensível, sem dúvida, que as vertentes críticas contemporâneas
procurem um “exterior” ao capitalismo no qual possam se inspirar para negar o sistema
predominante; porém, ao excluir uma parcela grande da periferia do capitalismo como parte desse
processo, algo importante se perde. Outros, como as várias gerações da Escola de Frankfurt (exceto
talvez Marcuse), ignoram a periferia e abandonam uma abordagem sistêmica do capitalismo – o que
leva autores como Jürgen Habermas, até hoje, a negar as similaridades entre fascismo e colonialismo,
apontadas por teóricos críticos periféricos, como Aimé Cesáire em Discurso sobre o colonialismo.

No entanto, quando você é marxista na periferia do capitalismo, não há muita alternativa além de ir à
luta, tentar superar esse dualismo e encontrar o nexo que conecta essas duas realidades
aparentemente estranhas. Então, é preciso abordar a dualidade entre centro e periferia
simultaneamente como um fato real e uma aparência, uma aparência socialmente necessária que
obnubila a compreensão de que, mais do que apenas um conjunto de ideias, o Esclarecimento é
principalmente um processo social real, um processo desigual e combinado, para usar um jargão
démodé, mas nem por isso incorreto. A contribuição de Roberto Schwarz para a crítica dialética das
formas sociais e literárias está ligada a esse último movimento. O trabalho de Schwarz, em diálogo
próximo com a Escola de Frankfurt, demonstra como a Dialética do Esclarecimento – o livro e o
processo social a que se refere – tem outra camada, pouco explorada por Adorno e Horkheimer, a do
processo de colonização, que também pode revelar a falsidade do liberalismo e do capitalismo que
Adorno e Horkheimer estavam igualmente interessados em discutir.

Como se sabe, na década de 1960, uma geração de críticos brasileiros e latino-americanos procurou
entender a formação social colonial do Brasil como uma manifestação do próprio capitalismo, o que
exigia afastar-se dos marxismos dogmáticos vinculados aos Partidos Comunistas e à União Soviética
(que, em geral, associavam o colonialismo e a economia latifundiária a formações pré-capitalistas),

Você também pode gostar