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Memória

Lembrando de Paulo Freire como um


defensor da liberdade
 

Por Henry Giroux 26/09/2021 12:28

Créditos da foto: Paulo Freire e Henry Giroux em Boston, 1983.

19 de setembro foi o aniversário de Paulo Freire. Freire e eu trabalhamos juntos por


quinze anos, os quais eu considero como os mais enriquecedores da minha vida.
Nós editamos juntos uma série de livros e, junto com Donaldo Macedo, traduzimos
e publicamos muitos dos livros de Freire no mundo falante de inglês. Ele escreveu o
prefácio do meu segundo livro, “Teoria e Resistência na Educação”, e nós
colaboramos juntos até a sua morte. Tiveram e terão ainda muitas celebrações.
Muitas o tratarão como um ícone, ao invés do revolucionário que ele de fato era. Ao
fazer isso, falarão de Freire com um tipo de reverência despolitizada que nós
frequentemente associamos com o louvor vazio reservado às celebridades mortas.
Escolas da Liga Ivy farão declarações celebrando seu trabalho que oferece a eles
mudanças radicais, que são, é claro, o oposto do que eles acreditam. Essa distração
é compreensível em um período no qual a ignorância é produzida, e temos a
adoração da cultura das celebridades, e uma época na qual a memória histórica se
torna perigosa e a discordância se torna uma maldição. Freire foi um
revolucionário cuja paixão por justiça e resistência se encontrava com seu ódio pelo
capitalismo neoliberal e pelos autoritários de todas as vertentes políticas.
Simplesmente, ele não era meramente um intelectual público, como também era
um defensor da liberdade. Os atuais ataques a ele no Brasil pelo neo-fascista
Bolsonaro deixam claro o quão perigoso seu trabalho é até mesmo hoje.

Uma das contribuições mais importantes de Freire foi sua politização da cultura.
Ele via a cultura como um campo de batalha que tanto re�letia quanto
implementava poder. Ele rejeitava a noção vulgar marxista de que a cultura era
simplesmente o re�lexo das forças econômicas. Não somente ele conectava a
cultura às relações sociais que vinham da produção e legitimação da luta de classes,
da destruição ecológica, e das várias formas de privilégio, como ele também
entendia que a cultura estava sempre relacionada ao poder e era uma enorme força
de in�luência. Isso era especialmente verdade na era das redes sociais com o seu
poder de de�nir modos diversos de inclusão, consenso legitimado, produzir formas
especí�cas de agenciamento, e reproduzir relações desiguais de poder dentro e fora
dos Estados-nação. Ele enfatizou fortemente o papel da linguagem e dos valores
nas lutas por identidade e recursos e como eles trabalharam por meio de diferentes
organizações e esferas públicas como escolas, mídia, aparatos corporativos, e
outras esferas sociais. Seu trabalho com a alfabetização focou em como as práticas
culturais neoliberais estabelecem certas formas de órgãos comercializados,
de�nem e driblam o espaço público, despolitizam as pessoas por meio da linguagem
de comandos, enquanto privatizam e transformam tudo em commodities. A cultura
e a alfabetização para Freire ofereceram às pessoas o espaço para desenvolver
novos modos de agenciamento de pessoas, de resistência em massa e apegos
emocionais que abraçaram formas empoderadas de solidariedade. Para Freire, os
terrenos da cultura, alfabetização, e educação eram os campos nos quais os
indivíduos conquistam consciência de sua posição, e a disposição para lutar por
dignidade, justiça social e liberdade. Para Freire, a cultura era um campo de
batalha, um local de luta, e ele reconheceu como Gramsci que cada relação de
dominação era “pedagógica e ocorre em meio às diferentes foças que as compõe”.

Freire, em primeiro lugar, acreditava que a educação estava conectada com a


mudança social e que as questões de identidade e consciência eram essenciais para
tornar a pedagogia algo central na política. Para Freire, a educação e o aprendizado
faziam parte de uma luta ainda maior contra o capitalismo, neoliberalismo,
autoritarismo, fascismo e contra a despolitização e instrumentalização da
educação. Ação direta, educação política e política cultural de�niam, para ele, novas
estratégias de resistência e novas compreensões da relação entre poder e cultura e
como moldaram questões de identidade, valores, e a compreensão do indivíduo em
relação ao futuro. A pedagogia e a alfabetização eram políticas porque estavam
conectadas à luta pelo agenciamento, às relações contínuas de poder, e às pré-
condições para a conexão entre conhecimento e valores e o desenvolvimento de
cidadãos ativos, críticos e engajados. A grande contribuição de Freire foi reconhecer
que a dominação não era somente econômica e estrutural, como também
pedagógica, ideológica, cultural e intelectual e que as questões de persuasão e
crença eram armas cruciais para a criação de agentes engajados e sujeitos críticos.
Ele também refutou a rota de fuga fácil dos cínicos que equiparavam a dominação e
o poder. A resistência sempre era uma possibilidade e qualquer política que a
negava cometia um erro, em cumplicidade com os crimes mais hediondos, embora
não reconhecidos. Freire era um intelectual público transformador e um defensor
da liberdade que acreditava que educadores tinham a enorme responsabilidade de
abordar importantes problemas sociais e políticos, de falar a verdade, e assumir
riscos, independentemente das consequências inconvenientes. A coragem cívica era
essencial para a política, e ele personi�cava o melhor dessa convicção.

Ao tornar a educação uma peça central da política, Freire conectava ideias ao poder,
e consciência crítica à alfabetização para intervir no mundo e na luta pela justiça
econômica, social e racial. Ele nunca separou o enorme sofrimento e limitações
impostos pela desigualdade da esfera da política e, ao fazer isso, conectava as
condições, embora especí�cas, para a resistência à abordagem das limitações que
eram fardos nas vidas das pessoas. Freire acreditava que todo mundo tinha a
capacidade de ser intelectual, de pensar criticamente, de tornar o familiar em algo
estranho, e de lutar individualmente e coletivamente contra as máquinas de
“desimaginação” e as zonas de abandono político, ético e social que transformaram
as democracias em versões atualizadas do Estado fascista.

Seu trabalho não era sobre métodos, mas sim sobre forjar uma mudança social e
individual de modo que desse voz aos sem voz e poder aos considerados
descartáveis. Freire era um defensor da liberdade, que acreditava profundamente
em um futuro no qual uma democracia radical era possível. Ele era um utopista
destemido para quem a esperança não era apenas uma ideia, mas um modo de
pensar o contrário para agir de outro modo. O trabalho político e educacional de
Freire era enraizado em um ideal ético e um senso de responsabilidade que, hoje,
estão sob ataque, o que testemunha sua importância e necessidade de defesa;
também há a necessidade de evitar que os trabalhos sejam apropriados pelas elites
vigentes; além disso, há a necessidade de expandi-los para novas circunstâncias
sociais, culturais e econômicas que precisam desesperadamente de ajuda na luta
contra as políticas fascistas que estão emergindo ao redor do globo. Freire
acreditava que nenhuma sociedade é su�ciente e que a luta contra a injustiça é a
pré-condição para a radicalização dos valores, para a luta contra a opressão
institucional, e para a adoção de uma política global de valores democráticos
partilhados. A alfabetização civil para ele era uma arma para despertar a
consciência, empoderar a ação civil, e cessar a sedução das políticas fascistas.
Freire era perigoso, e com razão, em uma época na qual a história está sendo
“puri�cada”, aqueles considerados descartáveis estão, ao mesmo tempo, expandindo
e perdendo suas vidas, e a necessidade de uma consciência anti-capitalista e de um
movimento social de massa estão mais urgentes do que nunca. O espírito e a
política de Freire não devem ser celebrados, mas sim emulados.

https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Pelo-Mundo/De-Cabul-ao-Rio-Grande-
os-EUA-criam-as-crises-de-refugiados-/6/51602

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