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Fernanda Filgueiras
Mestra pelo Programa de Pós-Graduação Integração da América Latina da Universidade
de São Paulo - PROLAM/USP. Professora titular de História na Educação Básica na Rede
Municipal de Ensino de São Paulo/SP e na escola Canadense Maple Bear Klabin. E-mail:
fernanda.santos@maplebearklabin.com.br.
A América Latina vem escrevendo e reescrevendo sua história a partir das heranças
coloniais, e, sobretudo, a partir de movimentos históricos de resistência de seu povo.
Movimentos de resistência que:
A grande generosidade está em lutar para que, cada vez mais, estas mãos, sejam
de homens ou de povos, se estendam menos, em gestos de súplica. Súplica de
humildes a poderosos. E se vão fazendo, cada vez mais, mãos humanas, que
trabalhem e transformem o mundo [...] Lutando pela restauração de sua
humanidade estarão, sejam homens ou povos, tentando a restauração da
generosidade verdadeira (FREIRE, 1987, p. 17).
Se todo o conhecimento que vem sendo acumulado ao longo dos anos não é usado em
favor dos menos abastados, por que a escola deve ser um lugar onde se enfileiram
pessoas e depositam conteúdo de forma “bancária”? A educação precisa ser libertadora.
Martí vai ainda mais longe. Por um lado, ele defende que o mundo precisa de pessoas
inteligentes e que tenham a possibilidade de entender os conteúdos e assimilá-los.
Entretanto, por outro lado, com sua “Pedagogia da Ternura”, Martí defende que a
humanidade precisa de pessoas generosas, humanas e solidárias. Precisa, sobretudo, de
ternura.
Freire e Martí enxergam na educação a possibilidade de os excluídos terem voz, do
oprimido se libertar. É como se emprestassem suas vozes aos que não têm. Aos negros,
aos pobres, às pessoas que vivem à margem.
Martí entende que a libertação do povo cubano só pode ocorrer por meio de sua união.
Com ideias pautadas na libertação de Cuba e na união da sociedade, Martí considera que
a educação precisa ser uma educação para a vida. Em outras palavras, a educação
precisa capacitar o ser humano para que possa engajar-se no sentido de ser livre, de lutar
por sua liberdade.
Objetivos
Resultados
A política educativa de José Martí esteve restrita ao seu ideário, não chegando a se
concretizar, devido à sua constante condição de exílio. Contudo, é justamente a condição
de viver exilado em diferentes países que lhe ajuda a forjar seu pensamento anticolonial.
Segundo Filgueiras (2018):
Martí foi profundamente marcado pela experiência do exílio e por seu precoce
envolvimento com os ideais independentistas. Sua longa experiência de exilado
contribui para consolidar seu posicionamento anticolonial e de seu pensamento de
cunho patriótico. Tal circunstância de exílio marcará efetivamente toda sua vida e
será decisiva para a formação de uma pátria maior: Nuestra América
(FILGUEIRAS, 2018, p. 60, grifo do autor).
Logo, a educação popular para Martí trata de uma pedagogia crítica e emancipatória. Ele
estava certo de que uma sociedade educada é uma sociedade livre.
Dessa maneira, Paulo Freire, o terceiro autor mais citado no mundo1, dialoga com a
concepção de educação popular de Martí, na medida em que defende uma pedagogia
contra-hegemônica de superação das opressões, conhecida como pedagogia do
oprimido. Uma pedagogia que une o pensar crítico, a esperança, o amor ao mundo e às
pessoas.
Assim como para Martí, a práxis educativa de Paulo Freire é libertadora e
descolonizadora, voltada para a inserção dos sujeitos no mundo. Ou seja, uma educação
“para ler o mundo”, como ele defendia. Paulo Freire teve a oportunidade de incorporar a
educação popular na política quando foi secretário de educação no município de São
Paulo de 1989 a 1991. Segundo Streck (2006), sua ação administrativa foi marcada por
quatro objetivos:
[...] o mundo deve ser o objeto a ser entendido e conhecido, porém a partir das
experiências, necessidades, circunstâncias dos educandos e das educandas; [...]
a realidade é uma criação histórica e cultural e que, por isso mesma, pode ser
transformada pela ação humana de acordo com as representações ideológicas
desta realidade; [...] os educandos e as educandas devem entender como os mitos
dos discursos dominantes se apresentam e como estes são, precisamente, os
mitos que os oprimem e que os colocam às margens (Streck, 2013, p. 38, 39).
Dessa forma, a educação popular freiriana pode ser entendida como ato político, na qual
não há neutralidade ideológica e política do ato educativo. Uma educação que não
dissocia a linguagem da sua realidade. Freire vê o ato de educar como um ato
transformador e libertador. A educação popular, do ponto de vista freireano é uma
educação que não torna o oprimido capaz de oprimir, mas, sim, o contrário, faz com que o
1
Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2016/06/04/Paulo-Freire-%C3%A9-o-terceiro-
pensador-mais-citado-em-trabalhos-pelo-mundo. Acesso em 26 dez. 2020.
oprimido tenha a ânsia de transformar-se, libertar-se, mudar sua condição e a condição
de seu povo. Para Freire,
[...] há algo, porém, a considerar nesta descoberta, que está diretamente ligado à
pedagogia libertadora. É que, quase sempre, num primeiro momento deste
descobrimento, os oprimidos, em lugar de buscar a libertação, na luta e por ela,
tendem a ser opressores também, ou subopressores (FREIRE, 1987, p. 17).
Educar é mais do que ensinar o outro a agir como o que ensina, educar é dar condições
para que o oprimido se desamarre, quebre as correntes. De acordo com Paludo (2010):
Ambos os autores se preocupam com a liberdade dos oprimidos. Tanto Martí quanto
Freire enfatizavam, em suas obras, o caráter emancipatório da educação. A palavra
educação é, portanto, quase um sinônimo de libertação, pois sem ela não é possível a
construção de uma sociedade livre e que saiba e conheça bem seus valores. Sentimento,
felicidade e liberdade são essenciais em uma sociedade. Há a necessidade da empatia,
do amor e da ternura entre os indivíduos. Martí afirma que “El pueblo más feliz es el que
tenga mejor educados a sus hijos, en la instrucción del pensamiento, y en la dirección de
los sentimientos. Un pueblo instruido ama el trabajo y sabe sacar provecho de él” (MARTÍ,
2000, p. 107). Freire se mostra em concordância com o pensamento de Martí. Os autores
dialogam de diversas formas. Se mostram engajados no que diz respeito à liberdade por
meio da instrução, da educação, da formação. A nação que não trata a educação de seu
povo como prioridade certamente será dominada por outra mais instruída. Freire aponta
para a importância de educar a sociedade, aponta para a necessidade de que seja dada à
educação a sua devida importância quando diz que “Se a educação sozinha não
transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda” (FREIRE, 2000, p. 31).
Martí dedicou sua vida inteira a lutar pela independência de Cuba e pela educação dos
adultos e das crianças. Freire lutou e deu voz aos oprimidos.
A educação popular, portanto, nas duas perspectivas, tem caráter fundamentalmente
emancipatório. Tem caráter libertador e transformador. Tem, acima de tudo, o intuito de
atingir a todos, conscientizar, abrir os olhos para algo maior. Tem caráter político, tem
intencionalidade, tem troca e tem, mais do que todas as outras coisas, amor. Educar é um
ato de amor.
Conclusões
O diálogo entre Freire e Martí acontece por meio de ideias, pensamentos, ideais e, acima
de tudo, consciência. Consciência de que liberdade é o bem mais caro de uma nação.
Consciência de que ser livre requer esforço coletivo. Uma nação livre não se faz com
pessoas alienadas de sua própria realidade. A educação é o meio principal de
transformação, de libertação, de quebra de amarras. Freire e Martí sonharam um povo
livre. Uma América Latina livre. Sem as influências dominantes dos grandes centros e
com uma identidade própria, forte e criada pela luta de um povo que se levanta contra a
opressão sofrida.
A obra de Freire é viva ainda nos dias atuais. Sua luta está longe de terminar. Os
sistemas de ensino ainda pensam o aluno como ser passivo, “receptáculo imóvel” no qual
se deposita informações. Sim, ainda no século XXI, a luta é viva. A luta de Freire e de
Martí está longe de acabar. É mais viva do que nunca e a opressão ainda é dura e
continua a dilacerar o povo menos favorecido.
Ainda que não sejam contemporâneos, trazem um diálogo de quem enxerga a
importância da humanização, da empatia, da valorização de todo um povo. Não se pode
deixar de lutar, não se pode abaixar a cabeça para a opressão e acreditar que nascemos
para sermos menores. Freire e Martí nos mostram isso. Nos mostram que a revolução se
faz com educação. Assim, a educação popular é uma categoria essencial para
compreensão do pensamento político-pedagógico de ambos. A educação popular deve
ser, portanto, uma educação pública e de qualidade para todos os cidadãos,
independente da sua classe social. Uma mesma educação para todos, voltada para uma
formação cidadã e libertadora.
Não há luta maior do que a luta pela liberdade. Lutar para ser livre é a luta mais justa que
um povo pode travar. Mostrar que não há normalidade na opressão. Não há beleza no
subjugamento. Não há aceitação na exclusão. Um povo livre é aquele que detém o
conhecimento. Uma nação livre é aquela que tem seu povo crítico e pensante. Como
aponta Martí, “Ser culto é o único modo de ser livre” (MARTÍ APUD, NASSIF; SANTOS,
2010, p. 64). É necessário perceber de onde vem o perigo. É necessário identificar o
opressor. Como pode um povo que “hospeda” seu opressor em si conseguir se libertar?
Freire aponta em sua obra “Pedagogia do Oprimido” que:
O grande problema está em como os oprimidos, que “hospedam” o opressor em
si, participar da elaboração, como seres duplos, inautênticos, da pedagogia de sua
libertação. Somente na medida em que se descubram “hospedeiros” do opressor
poderão contribuir para o partejamento de sua pedagogia libertadora. Enquanto
vivam a dualidade na qual ser é parecer e parecer é parecer com opressor, é
impossível fazê-lo. A pedagogia do oprimido que não pode ser elaborada pelos
opressores, é um dos instrumentos para esta descoberta crítica – a dos oprimidos
por si mesmos e a dos opressores pelos oprimidos, como manifestação da
desumanização (FREIRE, 1987, p. 17).
Dessa forma, a luta de Martí e Freire ainda persiste, ainda vive. A continuidade da
construção de um imaginário pedagógico latino-americano de resistência com base em
um fazer próprio e de possibilidades autênticas para as necessidades reais de nossa
América. É necessário que o povo seja levantado pelo desejo de liberdade e lute até as
últimas consequências pela quebra das amarras da opressão e da desumanização
promovidas pelo neoliberalismo.
Bibliografia
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17 ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
NASSIF, Ricardo; SANTOS, Eduardo (org.). José Martí. Recife: Fundação Joaquim
Nabuco / Editora Massangana, 2010.
PALUDO, Conceição. Educação popular. Streck, Danilo R.; REDIN, Euclides; ZITKOSKI,
Jaime José (Orgs.). In: Dicionário Paulo Freire. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2010.