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Figueiredo Dias Nuno Brandao Sujeitos PR
Figueiredo Dias Nuno Brandao Sujeitos PR
NUNO BRANDÃO
Coimbra
2015
Este estudo toma por base o 1.º Capítulo (O Tribunal) da Parte II (Os Sujeitos
Processuais) da obra Direito Processual Penal publicada pelo primeiro subscritor em
1974, procedendo-se à sua revisão e atualização.
Nuno Brandão
5
ÍNDICE
Abreviaturas ................................................................................................................................ 6
Bibliografia ................................................................................................................................ 67
6
ABREVIATURAS
Pertencem ao CPP os preceitos legais indicados em texto sem menção expressa do diploma a que se referem.
7
1. De acordo com o n.º 1 do art. 202.º da Constituição, “os tribunais são os órgãos
de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo”. No que
toca ao processo penal quer-se por este modo significar serem os tribunais os únicos
órgãos competentes para, como representantes da comunidade jurídica e do poder
oficial do Estado em que aquela se constitui, decidirem os casos jurídico-penais que
processualmente sejam levados à sua apreciação, aplicando o direito penal substantivo
(arts. 27.º-2 e 202.º-2 da CRP). O domínio penal é mesmo o reduto por excelência do
“monopólio da primeira palavra” como manifestação da reserva absoluta de jurisdição1.
O resultado do exercício desta função judicial é-nos dado por aquilo a que
chamamos o direito judicial e que pode também designar-se (como é vulgar) por
jurisprudência. Não se afirma com isto, é claro, que quaisquer atos praticados pelos
juízes no decurso de um processo constituam «jurisprudência»; eles referem-se e
dirigem-se todos, porém, à consecução do fim do processo que, por sua vez, se
corporiza em uma decisão jurisprudencial.
2. Por mais avesso que se seja à procura e descoberta, nos conceitos como nas
instituições, de uma «essência eidética» que traduziria a sua característica mais
específica e conatural, ou de uma sua «natureza» a-histórica e imutável no espaço, não
será fácil negar que logo a própria realidade e as exigências da vida postulam que se
1
Assim, logo o fundamental Acórdão do Tribunal Constitucional Federal alemão de 06-06-1967, BVerfGE 22
49.
2
Figueiredo DIAS, Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal, Jornadas de Direito
Processual Penal: o Novo Código de Processo Penal 1988 15 ss., Anabela Miranda RODRIGUES, A jurisprudência
constitucional portuguesa e a reserva do juiz nas fases anteriores ao julgamento ou a matriz basicamente acusatória do
processo penal, XXV Anos de Jurisprudência Constitucional Portuguesa 2009 47 ss., e Maria de Fátima MATA-
MOUROS, Juiz das Liberdades 2011 38 ss.
8
Sendo por conseguinte os tribunais no seu conjunto – e cada um dos juízes per se –
órgãos de soberania e pertencendo só a eles a função judicial, tem por força de
concluir-se que a independência material (objetiva) dos tribunais – reforçada pela
independência pessoal (subjetiva) dos juízes que os formam – é condição irrenunciável
de toda a verdadeira jurisprudência (arts. 203.º da Constituição e 4.º da LOSJ).
3
Castanheira NEVES, O instituto dos «assentos» e a função jurídica dos Supremos Tribunais, RLJ 105 1972-
1973 181. V. também Gomes CANOTILHO / Vital MOREIRA4 II 203.º
4
“A luta, já velha de séculos, da afirmação da independência judicial perante a chamada «justiça de gabinete»
pode hoje considerar-se praticamente terminada e decididamente ganha no nosso Estado democrático” (Jorge de
Figueiredo DIAS, A «pretensão» a um juiz independente como expressão do relacionamento democrático entre o
cidadão e a justiça, Sub Judice 14 1999 27.
5
Cf. p. ex. HENKEL2 § 26 I 2 e G. FOSCHINI I 315 ss.
9
6
Rui MEDEIROS / Maria João FERNANDES, Constituição Portuguesa Anotada III 203.º/IV.
7
Cf. Francisco Sá CARNEIRO, A Proposta de Lei sobre Organização Judiciária 1973 11.
10
estabelecem entre os tribunais de diferentes graus, está vedada aos tribunais superiores a
faculdade de ditarem aos tribunais inferiores ordens ou instruções em matéria de
interpretação ou aplicação do direito8.
8
Não se mostra, por isso, aceitável à luz do postulado constitucional da independência judicial a imposição
dirigida pelo STJ aos demais tribunais no Ac. 2/2013 (DR-I de 08-01-2013).
9
Nuno BRANDÃO, Contrastes jurisprudenciais: problemas e respostas processuais penais, Liber Discipulorum
para Jorge de Figueiredo Dias 2003 1289 ss.
10
Rui MEDEIROS / Maria João FERNANDES, Constituição Portuguesa Anotada III 203.º/II.
11
Gomes CANOTILHO / Vital MOREIRA4 II 203.º/IV.
11
12
Figueiredo DIAS, Sub Judice 14 29.
12
I. A garantia da imparcialidade
A exigência de imparcialidade implica, desde logo, que o juiz não seja parte no
conflito ou tenha nele um interesse pessoal em virtude de uma ligação a alguma das
“partes” nele envolvidas (nemo iudex in causa sua)14, mas vai muito mais longe,
postulando uma intervenção judicial equidistante, desprendida e descomprometida em
relação ao objeto da causa e a todos os demais sujeitos processuais. O princípio da
imparcialidade do juiz repudia o exercício de funções judiciais no processo por quem
tenha ou se possa objetivamente recear que tenha uma ideia pré-concebida sobre a
responsabilidade penal do arguido; bem como por quem não esteja em condições ou se
possa objetivamente temer que não esteja em condições de as desempenhar de forma
totalmente desinteressada, neutral e isenta.
São várias, na verdade, as razões que, perante um caso concreto, podem levar a pôr
em dúvida a capacidade de um juiz para se revelar imparcial no exercício da sua função;
e o que aqui interessa, convém acentuar, não é tanto o facto de, a final, o juiz ter
conseguido ou não manter a imparcialidade, mas sim defendê-lo da suspeita de a não ter
conservado, não dar azo a qualquer dúvida, por esta via reforçando a confiança da
13
Desenvolvidamente e com amplas referências doutrinais e jurisprudenciais nacionais e estrangeiras, José
Mouraz LOPES, A Tutela da Imparcialidade Endoprocessual no Processo Penal Português 2005 66 ss.
14
CHIAVARIO3 IV/19.1, e Mouraz LOPES, A Tutela da Imparcialidade Endoprocessual 88 ss.
13
comunidade nas decisões dos seus magistrados15. Por isso se usa sublinhar, invocando
uma velha máxima inglesa, “not only must Justice be done; it must also be seen to be
done”16.
15
Neste sentido, entre nós, Cavaleiro de FERREIRA I 234, 237; e na doutrina alemã, por todos, ROXIN /
SCHÜNEMANN28 § 8/1. Cf. também V. MANZINI II 199 s.: “o judex suspectus deve, em vista de um qualquer motivo
sério, ser dispensado como juiz num processo em que, tendo em conta a força média de resistência às causas internas
que possam influir danosamente sobre o julgamento, seja razoavelmente de presumir que possa estar sujeito a paixões
ou preocupações contrárias à reta administração da justiça”.
16
Lord Hewart, in: R v. Sussex Justices (ex parte McCarthy) 1924.
17
Figueiredo DIAS / Maria João ANTUNES, La notion européenne de tribunal indépendant et impartial. Une
approche à partir du droit portugais de procédure pénale” RSC 4/1990 737 ss., Mouraz LOPES, A Tutela da
Imparcialidade Endoprocessual 78 s., Gomes CANOTILHO / Vital MOREIRA4 I 522, e Marques da SILVA / Henrique
SALINAS, Constituição Portuguesa Anotada I2 731 s.
18
Cf. os Acs. do TC 219/89, 114/95, 935/96, 528/97, 29/99, 357/99, 129/2007, 147/2011 e 444/2012; e a
numerosa jurisprudência do STJ recenseada por Henriques GASPAR, CPP Comentado 133 ss. e 148 ss.
19
Figueiredo DIAS, La protection des droits de l'homme dans la procedure penale portugaise, BMJ 291 1979
167 ss.
20
Marques da SILVA, Do Processo Penal Preliminar 1987 416, Mouraz LOPES, A Tutela da Imparcialidade
Endoprocessual 124 SS., e Gomes CANOTILHO / Vital MOREIRA4 I 522.
21
Jorge de Figueiredo DIAS, Os princípios estruturantes do processo e a revisão de 1998 do Código de Processo
Penal, RPCC 2/1998 207 ss.
14
II. Impedimentos
22
Como observa Maria João ANTUNES, Direito processual penal – «direito constitucional aplicado», Que
Futuro Para o Direito Processual Penal? 2009 749, a jurisprudência posterior do TC, nomeadamente a mais recente,
tem-se afastado desta posição maximalista.
15
1.1 Por força do disposto nas alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 39.º, está impedido de
intervir no processo, seja em que fase for, o juiz que com o arguido, o ofendido ou
pessoa com a faculdade de se constituir assistente26 ou parte civil tenha algum dos
seguintes laços ou relações: seja ou tenha sido seu cônjuge; tenha ou haja tido uma
23
L. OSÓRIO II 233, e agora Pinto de ALBUQUERQUE4 39.º/1, Sousa MENDES, Lições de DPP 113, e Ac. do STJ
de 07-07-2010 (in: Henriques GASPAR, CPP Comentado 152)
24
Cf. o Ac. do TC 135/88, julgando inconstitucional uma proibição legal (do CPP de 1929) de declaração de
impedimento do juiz em ações penais por virtude de ofensas que lhe tenham sido feitas na sua presença e no exercício
das suas funções.
25
Assim, na vigência do CPP de 1929, Figueiredo DIAS, DPP 317 s., e na atualidade, Henriques GASPAR, CPP
Comentado 39.º/5.
26
A menos que uma das pessoas enunciadas em texto se haja constituído assistente nos termos do art. 68.º-1, e),
a mera faculdade de aquisição do estatuto de assistente ao abrigo dessa disposição não vale para efeitos do previsto
nas alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 39.º
16
relação análoga à dos cônjuges; seja seu representante legal; seja, ele, ou o seu cônjuge
ou equiparado, ascendente, descendente, parente até ao 3.º grau, tutor ou curador,
adotante ou adotado. Embora o Código o não determine explicitamente, é óbvio que, à
semelhança do que se prevê no art. 115.º-1, a), do CPC, existe impedimento também em
relação ao juiz que seja, ele próprio, ofendido ou pessoa com a faculdade de se
constituir assistente ou parte civil.
1.2 A mobilidade dos juristas entre os vários ofícios do foro pode levar a que
alguém que, num primeiro momento, haja intervindo no processo como representante
do Ministério Público, defensor, advogado do assistente, do ofendido ou de uma parte
civil, órgão de polícia criminal29 ou perito, venha mais tarde, já na qualidade de juiz
27
Nesta direção, Henriques GASPAR, CPP Comentado 39.º/5. Contra, remetendo a questão exclusivamente para
o âmbito do art. 43.º, Marques da SILVA I7 213, e Pinto de ALBUQUERQUE4 39.º/7.
28
Assim, o Ac. do STJ 31-12-2012 (944/07.9TAOAZ-A.S1). Considerando, porém, existir não um
impedimento, mas uma mera suspeição (art. 43.º) no caso em que a uma juíza é confiado um processo em que um seu
filho atua como advogado dos assistentes, Ac. do STJ de 13-02-2013 (1475/11.8TAMTS.P1-A.S1). No mesmo
sentido, o Ac. do STJ de 08-01-2015 (6099/13.2TDPRT.P1-A.S1).
29
Diferentemente do que entendeu o STJ parecem-nos configurar situações de impedimento do juiz, e não de
mera suspeição, o caso em que o juiz haja tido uma prévia participação no processo como Diretor Nacional Adjunto
da Polícia Judiciária consubstanciada, além do mais, na transmissão de uma instrução aos respetivos investigadores
no sentido de elaborarem um mapa detalhado das investigações até aí realizadas (Ac. de 03-10-2012, in: Henriques
GASPAR, CPP Comentado 150), bem como ainda o caso em que o juiz integrou um órgão de polícia criminal, tendo aí
tomado conhecimento de vários aspetos da investigação e determinado a realização de medidas cujos resultados são
postos em crise no âmbito do recurso que lhe cumpre apreciar (Ac. de 02-04-2008, in: Henriques GASPAR, CPP
Comentado 159). É patente a afinidade destas situações com a do leading case do TEDH Piersack c. Bélgica (01-10-
1982).
17
penal, a receber esse mesmo processo em mãos. A evidente conotação desse juiz com
algum desses participantes ou sujeitos processuais diretamente envolvidos no processo,
a possibilidade de ser conhecedor de informação sigilosa respeitante a algum deles (v.
g., coberta pelo segredo profissional que obriga o advogado – art. 87.º do EOA) ou a
circunstância de já ter manifestado uma posição sobre a responsabilidade penal do
arguido, mediante, por exemplo, a dedução de uma acusação pública por si subscrita,
são razões mais do que suficientes para que um tal juiz esteja impedido de exercer
qualquer função nesse mesmo processo, tal como se prevê na alínea c) do n.º 1 do art.
39.º
Na sua versão originária, o art. 40.º limitava-se a prescrever que “nenhum juiz pode
intervir em recurso ou pedido de revisão relativos a uma decisão que tiver proferido ou
em que tiver participado, ou no julgamento de um processo a cujo debate instrutório
tiver presidido”. À semelhança do que ainda hoje sucede num sistema processual como
o alemão30, fora do seu alcance ficavam as hipóteses em que um juiz recebesse um
processo para julgamento depois de nele ter intervindo nas fases do inquérito ou mesmo
da instrução e nelas se tivesse limitado à prática de atos jurisdicionais isolados (v. g., a
autorização de uma busca domiciliária ou de uma escuta telefónica; a aplicação da
prisão preventiva; a constituição de um ofendido como assistente; etc.). Na base deste
regime legal estava a ideia de que tal tipo de prévia participação no processo está longe
30
ROXIN / SCHÜNEMANN28 § 8/5.
18
31
Figueiredo DIAS, DPP 1988 101 S., e Figueiredo DIAS / Maria João ANTUNES, RSC 4/1990 739 s. Contra, no
caso de aplicação de uma medida de coação, Marques da SILVA, Do Processo Penal Preliminar 416.
32
Cf. o Ac. do TC 219/89, formulando juízo que não foi posto em causa pelo Ac. do TEDH de 22-04-1994 no
caso Saraiva de Carvalho c. Portugal; e o Ac. do TC 124/90.
33
Caso Hauschildt c. Dinamarca (24-05-1989) 49; pouco mais tarde retomado no referido caso Saraiva de
Carvalho c. Portugal. Cf. Mouraz LOPES, A Tutela da Imparcialidade Endoprocessual 80 ss., Pieter van DIJK, Theory
and Practice of the European Convention on Human Rights4 2006 617 s., e RENUCCI4 301. s.
19
O certo é que esta errónea jurisprudência constitucional começou por implicar uma
alteração legal ao art. 40.º, de forma a nele abranger os casos em que, durante o
inquérito ou a instrução, o juiz (de julgamento) tivesse aplicado e posteriormente
mantido a prisão preventiva do arguido36. As perplexidades levantadas por esta bizarra
formulação legal37 levaram, por sua vez, a nova intervenção legislativa, em 2007, tendo
o preceito sido novamente modificado em 2013, agora noutras vertentes, tudo sempre
no sentido do alargamento da catálogo dos impedimentos por participação em processo.
No termo deste sobressaltado percurso legislativo deparamos com cinco distintas
circunstâncias que ditam o impedimento do juiz para intervir em julgamento, recurso ou
pedido de revisão relativos a processo em que tiver:
34
Apesar de o TEDH ter declarado que do seu ponto de vista “o mero facto de um juiz de julgamento ou de um
juiz de recurso, num sistema como o dinamarquês, ter tomado decisões em momentos anteriores ao julgamento do
caso, não pode por si só justificar receios quanto à sua imparcialidade” (50.), só tendo concluído por uma violação da
garantia do tribunal imparcial inscrita no art. 6.º da CEDH após uma análise das vicissitudes do processo que
envolveu o cidadão Hauschildt, ao estilo de um recurso de amparo; foi essa jurisprudência prenhe de particularismos
que o TC invocou para se pronunciar, em sede de fiscalização abstraca da constitucionalidade, no sentido da
inconstitucionalidade do art. 40.º da versão originária do CPP!
35
Neste sentido crítico, Figueiredo DIAS, RPCC 2/1998 207 ss., e Maria João ANTUNES, O segredo de justiça e
o direito de defesa do arguido sujeito a medida de coacção, Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias 1264
s.41.
36
Art. 1.º da Lei 59/98, mais tarde complementado pelo art. 134º da Lei 3/99 – cf. Mouraz LOPES, A Tutela da
Imparcialidade Endoprocessual 111 ss.
37
Figueiredo DIAS, RPCC 2/1998 206 s.
20
Para além de esta premissa de que o legislador arranca nos parecer destituída de
sentido, continuamos a confrontar-nos com um quadro teleologicamente contraditório e
racionalmente insustentável39. Custa a entender que a ratio legis se considere ausente
em caso de manutenção, e não de aplicação, de alguma das medidas de coação
constantes dos arts. 200.º a 202.º; ou, por exemplo, na hipótese de aplicação de uma
caução não por inexistência de fortes indícios do crime imputado, mas porque o juiz
concluiu que nenhuma daquelas medidas seria concretamente necessária para responder
às exigências de natureza cautelar postas pelo caso. É ainda incompreensível a ausência
de uma delimitação – como a introduzida pelo art. 134.º da Lei 3/99, mas
inexplicavelmente eliminada na revisão de 2007 do CPP – de tal aplicação às fases do
inquérito e da instrução, com o que, sem uma interpretação restritiva da norma, fica
aberta a porta ao absurdo de considerar impedido o juiz de julgamento que, pela
primeira vez, aplica ao arguido uma das medidas de coação previstas pelos arts. 200.º a
202.º (v. g., proibindo o arguido de manter qualquer contacto com as testemunhas da
acusação arroladas para o julgamento, depois de conhecidas pressões e ameaças por ele
38
Assim, a exposição de motivos da Proposta de Lei 109/X, que deu o mote à revisão de 2007 do CPP, e Rui
PEREIRA, Entre o «garantismo» e o «securitarismo», Que Futuro Para o Direito Processual Penal? 2009 251. Pela
não inconstitucionalidade desta solução, Ac. do TC 29/99.
39
Figueiredo DIAS, RPCC 2/1998 208 s.
21
Por definição, o juiz de instrução que preside ao debate instrutório é aquele que tem
a seu cargo a prolação da decisão instrutória, com a qual se encerra a fase da instrução.
Via de regra, competir-lhe-á proferir despacho de pronúncia ou de não pronúncia do
arguido, aí conhecendo do objeto do processo e manifestando a sua posição sobre a
probabilidade da condenação do arguido caso seja submetido a julgamento.
Compreende-se, por isso, que a partir daí deixe de poder ser encarado como estando
habilitado a intervir em condições de plena neutralidade e isenção nas fases
subsequentes do processo, onde se joga diretamente a questão da condenação do
arguido41.
A redação atual da alínea c) do art. 40.º parece ter pretendido substituir o segmento
inicial da versão originária do preceito – “Nenhum juiz pode intervir em recurso ou
pedido de revisão relativos a uma decisão que tiver proferido ou em que tiver
participado” –, através do qual, por razões óbvias, se visava impedir que, em recurso,
um tribunal ad quem integrasse um juiz que houvesse composto o tribunal a quo. Essa
preocupação elementar mantém-se acautelada na versão vigente do preceito, da qual se
depreende que não pode intervir no recurso o juiz que proferiu a decisão recorrida. Mas
é agora patente – até pelo paralelismo que pode traçar-se em relação à alínea d) e pelo
que se prevê no art. 426.º-A42 – que a alínea c) procura cobrir um espectro mais amplo
de participações anteriores no processo, nomeadamente, a intervenção em julgamento
de um juiz que haja participado em julgamento anterior. Fá-lo, todavia, através de uma
formulação com um significado literal tão lato que se transforma em fonte de
40
Não restringindo, porém, o alcance do impedimento, e propondo assim um funcionamento da alínea a) do art.
40.º na sua literalidade, Pinto de ALBUQUERQUE4 40.º/4.
41
Gomes CANOTILHO / Vital MOREIRA, CRP4 I 522.
42
Cf. a exposição de motivos da Proposta de Lei 109/X.
22
Casos haverá em que a intervenção anterior do juiz não é sequer idónea a suscitar
dúvidas sobre a sua capacidade para decidir de forma isenta no novo julgamento (v. g.,
na pendência de uma audiência de julgamento, o juiz declara prescrito o procedimento
criminal, vindo essa sua decisão a ser posteriormente revogada pela Relação, que impõe
um conhecimento do mérito da causa43).
Como também será de admitir que um juiz possa ser confrontado com a
contingência de voltar a intervir no julgamento de uma causa em que inclusivamente já
tomou posição expressa sobre o objeto do processo. Será assim sempre que, em recurso,
um tribunal superior determine o reenvio do processo à 1.ª instância, com fundamento
em vício processual relativo à audiência ou à sentença. E todavia, em algumas dessas
situações parece-nos impensável, porque materialmente injustificado e incompatível
com a lógica da sanação dos vícios processuais, considerar impedido(s) o(s) juiz(es) que
integrou(aram) o tribunal recorrido (v. g., em caso de anulação da sentença por vício de
fundamentação, por omissão de pronúncia, para que seja dado cumprimento ao previsto
no art. 358.º-1, etc.44; ou de nulidade do julgamento em virtude de insuficiência para a
decisão da matéria de facto provada45 ou de omissão de diligências essenciais para a
descoberta da verdade, que impliquem uma específica produção de prova em 1.ª
instância46, com subsequente elaboração de nova sentença).
43
Pinto de ALBUQUERQUE4 40.º/13.
44
Henriques GASPAR, CPP Comentado 40.º/4, e Ac. do TRC de 04-12-2013 (878/07.7TACBR-B.C1)
45
Contra, Ac. do TRP de 26-11-2008 (0845184).
46
Ac. do TC 167/2007.
47
Lapidar, o Ac. do TC 147/2011, concluindo não existir inconstitucionalidade na possibilidade de o juiz que
tenha participado em acórdão que conheceu do mérito do recurso, mas declarado nulo por inobservância de regra
processual, não ficar impedido de intervir na audiência destinada a julgar o mérito desse recurso. Nesta linha, ainda, o
TEDH, v. g., no caso Thomann c. Suíça (10-06-1996) – para mais referências, GUINCHARD / BUISSON4 418., e
RENUCCI4 302.
23
À semelhança do que se prevê na alínea c), esta alínea d) começa por dirigir-se
àquelas situações em que um juiz de um tribunal superior deva decidir, em recurso,
questão relativa a um processo com que já teve contacto em recurso anterior, tenha este
recurso incidido i) sobre o mérito do decidido, a final, na 1.ª ou na 2.ª instância, quanto
ao objeto da causa, ii) sobre a decisão instrutória ou iii) sobre a aplicação de uma das
medidas de coação previstas nos arts. 200.º a 202.º do CPP. Dirige-se ainda, em
segundo lugar, aos casos em que um juiz tenha intervindo num recurso de revisão
anterior (art. 449.º e ss.).
Pela sua afinidade com a regulação das alíneas a) e c), voltam a suscitar-se aqui as
perplexidades e as dificuldades a que estas dão azo, devendo quanto a esta alínea d)
adotar-se, mutatis mutandis, uma abordagem restritiva paralela àquela que
preconizámos para tais alíneas. Assim, por exemplo, não há razão para que devam
considerar-se impedidos os juízes da Relação que, conhecendo do objeto do processo,
começaram por confirmar a condenação proferida pela 1.ª instância e depois se vêem de
novo confrontados com a causa, na sequência de anulação do seu acórdão pelo STJ com
fundamento em omissão de pronúncia ou de vício de fundamentação50.
48
Ainda mais restritivo, o Ac. do TRP de 09-05-2013 (125/09.7GCPRG.P1): “Deve ser feita pelo mesmo
tribunal a repetição do julgamento ordenada na sequência da verificação de nulidade decorrente da deficiente
documentação da prova oral produzida em audiência”. Não divisando qualquer inconstitucionalidade nesta
interpretação, já antes o Ac. do TC 399/2003. Repudiando, porém, uma abordagem restritiva, apesar de crítico do
regime legal, Pinto de ALBUQUERQUE4 40.º/12.
49
GUINCHARD / BUISSON4 418., com amplas menções à jurisprudência francesa e do TEDH.
50
Ac. do STJ de 27-06-2012 (127/10.0JABRG).
24
Introduzida na revisão de 2007 do CPP, esta última alínea do art. 40.º estabelece o
impedimento do juiz em três hipóteses que podem colocar-se no encerramento do
inquérito e que reclamam uma intervenção judicial. Embora o arquivamento em caso de
dispensa de pena e a suspensão provisória do processo possam ser decretados também
na fase da instrução (arts. 280.º-2 e 307.º-1, respetivamente), a sua eventual aplicação
terá aí lugar na decisão instrutória, pelo juiz que presidiu ao debate instrutório, cujo
impedimento decorre já diretamente da alínea b). A alínea e) tem assim em vista
intervenções prévias do juiz no âmbito da fase do inquérito, especificamente daquelas
que se traduzam i) na recusa do arquivamento em caso de dispensa de pena (art. 280.º-
1), ii) na recusa da suspensão provisória do processo (art. 281.º-1) ou iii) na recusa da
forma sumaríssima do processo por discordância em relação à sanção proposta pelo
Ministério Público (art. 395.º-1, c)).
É de supor que o legislador de 2007 foi motivado pelo receio – a nosso ver, nem
sempre fundado, em especial quando em causa esteja o arquivamento em caso de
dispensa de pena e a suspensão provisória do processo, atenta a natureza da decisão
judicial que aí deve ser tomada51 – de que qualquer uma daquelas três intervenções
implica por si só uma desconfiança tal sobre a capacidade do juiz respetivo para julgar a
causa de modo imparcial que se justifica afastá-lo das fases do julgamento e do recurso
que possam seguir-se. Mas se assim for, ficam por perceber as razões que terão levado o
legislador a não englobar no impedimento situações afins porventura mais suscetíveis
de gerar um tal temor do que as previstas legalmente. Estamos a pensar, nomeadamente,
nos casos em que, no fim do inquérito, o juiz dá a sua concordância à suspensão
provisória do processo, sendo depois esta revogada e o processo remetido para
julgamento nos termos do art. 282.º-4; ou em que, em processo sumaríssimo, o juiz dá o
seu acordo à condenação, mediante aplicação da sanção proposta pelo Ministério
Público (art. 396.º-1), havendo, porém, depois, oposição do arguido, com reenvio dos
autos para outra forma processual (art. 398.º-1)52. Não que entendamos que nestas
51
Numa linha crítica, também Pinto de ALBUQUERQUE4 40.º/17; e em direção contrária, Mouraz LOPES, A
Tutela da Imparcialidade Endoprocessual 162 ss.
52
Pedro Soares de ALBERGARIA, Os processos especiais na revisão de 2007 do Código de Processo Penal,
RPCC 4/2008 503.
25
hipóteses exista sempre necessariamente uma suspeição de tal modo forte que se
justifique a sua previsão como impedimento53. O que repudiamos é a falta de lógica
interna da solução adotada pelo legislador.
53
Assim também, quanto ao processo sumaríssimo, o Ac. do TC 444/2012, em termos, porém, por demais
discutíveis quanto à natureza da decisão judicial de aceitação ou rejeição do requerimento para condenação em
processo sumaríssimo (Nuno BRANDÃO, Acordos sobre a sentença penal: problemas e vias de solução, Julgar 25
2015 177 s.). Aí pugnando, no entanto, pela inconstitucionalidade, Pinto de ALBUQUERQUE4 40.º/18.
26
também requerê-la o arguido, o assistente e as partes civis logo que sejam admitidos a
intervir no processo, em qualquer estado deste54.
III. Suspeições
54
A letra do n.º 2 do art. 41.º – em especial o seu segmento “logo que” – e o receio da utilização desleal e
dilatória da figura dos impedimentos vêm sendo indevidamente invocados por alguma doutrina (Pinto de
ALBUQUERQUE4 42.º/1) e jurisprudência (Ac. do STJ de 28-09-2011, 5/05.5TELSB, na esteira daquele A.) para
sustentar a imposição de um prazo perentório de 10 dias para a apresentação do requerimento de declaração do
impedimento pelo arguido, assistente ou partes civis, contado desde o momento da sua admissão à intervenção no
processo ou do conhecimento do facto determinante do impedimento. Estando em causa circunstância em princípio
tão comprometedora da imparcialidade do juiz que justifica a sua qualificação legal como impedimento, não se
compreende a imposição de tal constrangimento temporal. Pois se ele realmente se verifica, pode e deve ser a todo o
tempo declarado pelo próprio juiz impedido, mesmo oficiosamente; e caso não se verifique, bastará ao juiz visado
não o reconhecer.
55
Diversamente, Pinto de ALBUQUERQUE4 42.º/1.
27
A cláusula geral de suspeição revela que a preocupação central que anima o regime
legal é prevenir o perigo de a intervenção do juiz ser encarada com desconfiança e
suspeita pela comunidade. Para que a suspeição se atualize num afastamento do juiz,
não é, com efeito, necessário demonstrar uma sua efetiva falta de isenção e
imparcialidade, sendo suficiente, atentas as particulares circunstâncias do caso, um
receio objetivo de que, vista a questão sob a perspetiva do cidadão comum, o juiz possa
ser alvo de uma desconfiança fundada quanto às suas condições para atuar de forma
imparcial. Consagra-se, desta forma, um critério que, com a generalidade da
jurisprudência e doutrina alemãs57, pode qualificar-se como “critério individual-
objetivo” de suspeição. Deparamos, portanto, com uma solução eminentemente
objetiva, mas direcionada à concreta atuação do juiz e/ou aos condicionalismos que a
rodeiam.
uma ótica objetiva. Na primeira vertente, deve averiguar-se se o juiz tem algo contra o
arguido ou expressa uma predisposição no sentido da sua condenação (“personal bias”),
devendo a sua imparcialidade pessoal ser presumida até prova em contrário 59. Ainda
que não haja motivo para censurar o juiz quanto à sua imparcialidade, importa ainda, em
todo o caso, averiguar se há “alguma razão legítima que faça temer uma falta de
imparcialidade”60.
59
Esta presunção – afirmada pelo TEDH logo no caso Piersack c. Bélgica (30.) e depois reiterada, v. g., nos
arestos dos casos De Cubber c. Bélgica (25.) e Hauschildt c. Dinamarca (47.) – implica que é ao arguido que cumpre
demonstrar, através de elementos concretos, a falta de imparcialidade pessoal do juiz.
60
Piersack c. Bélgica (30.), seguido e desenvolvido em Hauschildt c. Dinamarca (48. ss.).
61
Henriques GASPAR, CPP Comentado 43.º/2.
62
Acs. do STJ de 18-01-2007 (07P163), 05-07-2007 (07P2565), 07-05-2008 (08P1526) e 29-04-2015
(4914/12.7TDLSB.G1-B.S1). Cf., todavia, o Ac. do STJ de 15-11-2012 (947/12.1TABRG-A.S1).
63
Ac. do STJ de 23-09-2009 (532/09.5YFLSB).
29
prestou aconselhamento isso será, em princípio, suficiente para que não permaneça
nesse processo64.
b) A suspeição pode assentar em atos praticados pelo juiz no processo que lhe está
confiado, em declarações que sobre ele produza ou ainda em processos que com aquele
guardem algum tipo de conexão.
A intervenção do juiz em fases anteriores do processo que não seja motivo para
implicar o seu impedimento nos termos do art. 40.º pode constituir fundamento para a
afirmação da suspeição (art. 43.º-2). Ponto é que se tenha tratado de uma atuação que
possa gerar uma dúvida ponderosa e objetivamente fundada sobre a capacidade do juiz
para decidir de modo isento ou sem uma pré-compreensão sobre a imputação que é
dirigida ao arguido. A questão colocar-se-á com maior acuidade naqueles casos em que
64
Acs. do STJ de 20-10-2010 (140/10.8YFLSB) e de 05-12-2012 (1454/12.8PAALM-A.L1-A.S1).
65
Ac. do TC 227/97 e Ac. do STJ de 15-09-2010 (133/10.5YFLSB).
66
Ac. do STJ de 28-06-2006 (06P1937). Vd. ainda o Ac. do TRP de 17-03-2010 (2/07.6GAAMT).
67
Cf. novamente o Ac. do STJ de 15-09-2010 (133/10.5YFLSB) e ainda o Ac. do STJ de 07-04-2010
(1257/09.TDLSB.L1-A.S1).
68
Ac. do TRL de 30-05-2001 (0096383).
69
Acs. do STJ de 13-06-2001 (3914/01) e de 27-07-2006 (06P2554) e ainda, embora num processo não penal, o
Ac. do TC 64/2010.
30
possa recear-se que determinadas decisões tomadas pelo juiz numa fase anterior do
processo revelem, pelo seu concreto conteúdo, uma dúvida séria sobre a existência de
uma predisposição sobre o sentido da decisão que deverá proferir no encerramento da
fase processual em que intervém. Uma ponderação que não tem de cingir-se às fases do
julgamento e do recurso, sendo também admissível na instrução, relativamente a um
juiz de instrução que receba o processo nessa fase processual depois de ter atuado como
juiz de instrução no inquérito70.
Isto que vale para situações em que a competência seja deferida a um juiz que teve
uma participação em fase anterior do processo, vale no essencial também, e ainda por
força do n.º 2 do art. 43.º, para aqueles casos em o juiz interveio noutro processo, penal
ou não71, que tenha tido por objeto a mesma factualidade72 ou uma factualidade
diretamente relacionada com a do seu (novo) processo, em especial se se tratar de
processos que admitiriam o estabelecimento de uma conexão processual (cf. art. 24.º-
1)73. Poderá ser este ainda o caso de o novo processo respeitar a factos (v. g., uma
falsidade de testemunho) ocorridos num processo dirigido pelo juiz em questão74.
A conduta do juiz no decurso dos atos processuais que conduz pode gerar
suspeição se revelar uma perda da equidistância que deve caracterizar o exercício da
função judicial.
70
Admitindo esta possibilidade, mas negando a recusa no caso submetido à sua apreciação, o Ac. do TRC de
16-01-2008 (18/06.0PELRA).
71
Ac. do TRE de 06-03-2012 (17/12.2YEVR).
72
Acs. do TRL de 30-03-2006 (1941/2006-9) e 07-07-2009 (2110/03.3TALSB-5).
73
Cf. infra, § 3., VI.
74
Acs. do TRP de 23-05-2007 (0712825), de 09-07-2008 (0843611), de 15-12-2010 (1130/09.9TAVNG-A.P1)
e de 23-02-2011 (5136/10.7TAVNG-A.P1). Por uma consideração restritiva destes casos, o Ac. do TRE de 20-12-
2011 (0712825).
75
Ac. do TRG de 20-03-2006 (458/06-2).
31
76
Para vários exemplos, Pinto de ALBUQUERQUE4 43.º/14 e ROXIN / SCHÜNEMANN28 § 8/8.
77
Acs. do TEDH Buscemi c. Itália (16-09-1999) 68 e Lavents c. Letónia (28-11-2002) 117 ss.
32
Daí que desde há muito se tenha considerado, com inteira razão, como puro
corolário daquela exigência de legalidade a afirmação do princípio do “juiz natural” ou
do “juiz legal”79, através do qual se procura sancionar, de forma expressa, o direito
fundamental dos cidadãos a que uma causa seja julgada por um tribunal previsto como
competente mediante aplicação de critérios objetivos legalmente determinados e não ad
hoc criado ou tido como competente. O que por ele se pretende fundamentalmente
proibir é, assim, a criação post factum de um juiz para uma determinada causa, ou a
possibilidade de se determinar de forma arbitrária ou discricionária o juiz competente.
Princípio que encontra expressão no art. 32.º-9 da CRP: “Nenhuma causa pode ser
subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior”80. A tanto vincula
a necessária garantia dos direitos da pessoa, ligada à ordenação da administração da
justiça, à exigência de julgamentos independentes e imparciais e à confiança da
comunidade naquela administração81.
Retomando uma experiência já feita pela Inglaterra, desde a Magna Carta de 1215 à Petition of
Rights de 1628, e pelos EUA com as primeiras Cartas Constitucionais de 1776, a França, saída da
Revolução, logo em 1790 incluía de forma inequívoca, na lei da nova organização judiciária, o direito
fundamental do cidadão a ser julgado por juízes que oferecessem as mais sólidas garantias: “A ordem
78
Assim, logo Figueiredo Dias, DPP 94 ss.; e agora, de novo, Figueiredo DIAS / Nuno BRANDÃO,
Irrecorribilidade para o STJ: redução teleológica permitida ou analogia proibida?, RPCC 4/2010 634 ss., com a
concordância do TC (Ac. 324/2013, 4.).
79
A primeira designação é a corrente nos direitos francês e italiano, a segunda no alemão.
80
Cf. Figueiredo DIAS, Sobre o princípio jurídico-constitucional do «juiz-natural», RLJ 111 1978 83 ss., e
Gomes CANOTILHO / Vital MOREIRA4 I 525.
81
Aspetos salientados pelo Ac. do TC 614/2003.
33
constitucional das jurisdições – dizia a lei – não poderá ser subvertida nem os imputados poderão ser
subtraídos aos seus juízes naturais...”82.
Desde então o princípio aparece quase sempre incluído nas Constituições próprias dos Estados de
Direito. Na Sardenha, logo o Statuto de Carlos Alberto (1848) afirmava no seu art. 71.º: “Ninguém pode
ser subtraído aos seus juízes naturais. Não poderão, por isso, ser criados tribunais ou comissões
extraordinárias”. Por seu lado a atual Constituição italiana, no mesmo art. 25.º em que consagra o
princípio da legalidade, e o coloca portanto entre os direitos fundamentais do cidadão, prescreve:
“Ninguém poderá ser afastado do juiz natural pré constituído por lei”. Idêntica norma se encontra na lei
fundamental da Alemanha Federal, onde estatui o art. 101.º-1: “Não pode ser instituída uma jurisdição de
exceção. Ninguém deve ser subtraído ao seu juiz legal”.
A ideia do “juiz natural” esteve igualmente presente, durante mais de 100 anos, na tradição
jurídico-constitucional portuguesa do princípio da legalidade. Logo o art. 9.º, 2.ª parte, da Constituição de
1822 se devia compreender, na verdade, como sugerindo o princípio do juiz natural 83. Ele aparece porém,
com toda a clareza, no art. 145.º da Carta de 1826: o § 10.º dispõe que “ninguém será sentenciado senão
pela Autoridade competente, por virtude de lei anterior e na forma por ela prescrita”; e consequentemente
determina o § 11.º que “será mantida a independência do Poder Judicial. Nenhuma Autoridade poderá
avocar as causas pendentes, sustá-las ou fazer reviver os processos findos”. E se a expressão do princípio
se amortece no art. 18.º da Constituição de 183884, surge de novo a plena luz no art. 3.º-21 da
Constituição de 1911: “Ninguém será sentenciado senão pela Autoridade competente, por virtude de lei
anterior e na forma por ela prescrita”. Inexplicavelmente, o princípio do juiz natural não aparecia inscrito
na Constituição de 1933, numa quebra da nossa tradição de todo em todo injustificável 85. A tradição foi
retomada com a atual Constituição, que, como referimos, prevê que “nenhuma causa pode ser subtraída
ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior” (art. 32.º-9), deste modo concedendo
autónomo e direto relevo ao princípio do juiz natural.
Esta dimensão, dita positiva86, do princípio do juiz legal abrange não só as regras
legais propriamente ditas com relevo para a determinação da competência, como
também ainda eventuais regulamentos, regimentos, etc., complementares, emanados
pelo próprio sistema judiciário de que a mesma esteja dependente. Todas essas
82
Cf. depois a Constituição de 1791, cap. V, art. 4.º; a Carta de 1830, art. 52; a Constituição de 1848, art. 4.º; a
Constituição de 1852, arts. 1 e 56.
83
Era o seguinte o seu texto: “A lei é igual para todos. Não se devem portanto tolerar privilégios do foro nas
causas… crimes. Esta disposição não compreende as causas que pela sua natureza pertencerem a juízes particulares,
na conformidade das leis”.
84
Cujo texto rezava: “Ninguém será julgado senão pela autoridade competente, nem punido senão por lei
anterior”.
85
Cf. Figueiredo DIAS, DPP 325 ss.
86
Ac. do TC 614/2003 11.
34
87
Figueiredo DIAS, RLJ 111 1976 83 s.
88
Assim, a jurisprudência constitucional alemã citada pelo Ac. do TC 614/2003 (9.); e Henriques GASPAR, CPP
Comentado 10.º/3.
89
Como veremos infra (III., 3.3), é a existência de um critério objetivo e suficientemente determinado de
deferição (concreta) de competência, assim afastando a possibilidade de fixação arbitrária ou discricionária da
competência do juiz de julgamento pelo Ministério Público, que põe o art. 16.º-3 a salvo de inconstitucionalidade por
violação do princípio do juiz natural.
90
Integrando também o art. 209.º-4 da CRP na compreensão do princípio do juiz legal, Marques da SILVA /
Henrique SALINAS, Constituição Portuguesa Anotada I2 738. Em sentido oposto, pela generalidade da doutrina
alemã, em função do disposto no art. 101.º-2 da GG (“Tribunais para matérias especiais só podem ser estabelecidos
mediante previsão legal”), VOLK / ENGLÄNDER8 § 5 3.
91
Nesta conclusão, Gomes CANOTILHO / Vital MOREIRA I4 525.
35
conceder ao princípio do juiz legal. Do que nele se trata, como vimos, é de prevenir que
as regras gerais de competência sejam desvirtuadas por intervenções arbitrárias ad hoc
que desviem o processo do juiz a quem deveria ser distribuído. Uma teleologia que não
resulta comprometida pela possibilidade de a competência vir a ser regulada por normas
posteriores à prática do facto; obstando apenas a tal, mas também sempre, que a
atribuição de competência seja feita através da criação de um juízo ad hoc (isto é, de
exceção), ou do desaforamento concreto (e portanto discricionário) de uma certa causa
penal, ou por qualquer outra forma discriminatória que lese ou ponha em perigo o
direito dos cidadãos a uma justiça penal independente e imparcial 92. De outro modo,
aliás, em face das inultrapassáveis dificuldades que um princípio do juiz natural levado
àquele extremo levantaria, cairiam por terra quaisquer pretensões de reforma da
organização judiciária, com o inerente risco de fossilização do sistema processual.
92
Nestes exatos termos, Figueiredo DIAS, RLJ 111 1976 86, Pinto de ALBUQUERQUE4 4.º/12, Marques da SILVA
/ Henrique SALINAS, Constituição Portuguesa Anotada I2 739; e o TC, v. g., nos Acs. 393/89 e 614/2003.
93
Por isso, Gomes CANOTILHO / Vital MOREIRA4 I 525 falam num “princípio dos juízes legais”. Vd. ainda os
Acs. do TC 614/2003 (12.) e 482/2014 (32.); e na doutrina Figueiredo DIAS, RLJ 111 1976 833.
94
Figueiredo DIAS, Sobre os sujeitos processuais… 18.
36
organização não será aqui, pois, objeto de análise expressa, nem no que toca ao sistema
constituído – que se encontra essencialmente na LOSJ que nos rege –, nem aos difíceis
problemas de política legislativa que suscita95.
Simplesmente, uma tal organização fixa dos tribunais não é ainda condição bastante
para dar à administração da justiça – hoc sensu, à jurisdição96 – a ordenação
indispensável que permita determinar, relativamente a um caso concreto, qual o tribunal
a que, segundo a sua espécie, deve ser entregue e qual, dentre os tribunais da mesma
espécie, deve concretamente ser chamado a decidi-lo. A falta de uma tal ordenação
conduziria fatalmente à confusão na divisão da jurisdição, a inconvenientes conflitos
entre os tribunais e, consequentemente, a prejuízos irreparáveis tanto para os arguidos
como, em geral, para a administração da justiça penal.
Cabe só anotar ainda que também esta determinação da competência vem a revelar-
se como um postulado do princípio do “juiz natural”. Daí que a ordenação respetiva
deva ser alcançada por via geral e abstrata – e portanto legal –, de modo a que o
Ministério Público possa saber qual o tribunal a que deve dirigir-se e este saiba quais os
casos que é chamado a resolver; tudo em ordem a excluir por completo a possibilidade
de a acusação escolher o tribunal que lhe pareça mais favorável à decisão que dele
espere (o denominado forum shopping).
95
Para uma perspetiva geral, António Vieira CURA, Curso de Organização Judiciária2 2014.
96
Cf. Eduardo CORREIA, Processo Criminal 276, Cavaleiro de FERREIRA I 176 s., e Pedro CAEIRO,
Fundamento, Conteúdo e Limites da Jurisdição Penal do Estado 2010.
97
O que não prejudicará, é claro, a possibilidade de o mesmo “caso” (à luz do direito substantivo) dever ser
sucessivamente apreciado por mais do que um tribunal, quer atendendo aos diversos graus de instância, quer à própria
especialização de certos temas dentro do mesmo “caso” (v. g., o tribunal do facto e o tribunal de execução das penas).
98
Cf. por todos G. BELLAVISTA, Competenza penale, NssDI III 1957 68 e G. GUARNERI, Competenza penale,
EdD VIII 1961 100.
37
a) Qual o tribunal que, segundo a sua espécie (v. g., instância central de
competência especializada criminal; secção criminal ou secção de pequena
criminalidade de instância local; tribunal do júri, tribunal coletivo ou tribunal singular;
Tribunal da Relação; Supremo Tribunal de Justiça; etc.), deve conhecer de um caso
penal de certa natureza (v. g., homicídio doloso, crime contra a autoridade pública,
crime de discriminação racial ou de tortura, etc.)? Trata-se aqui do problema da
determinação da competência material.
99
Que pode encontrar-se, por exemplo, em Pinto de ALBUQUERQUE4 art. 10.º ss.
38
daqueles atos100 e importaria, de todo o modo, a antecipação de uma boa parte da matéria respeitante aos
recursos em processo penal.
100
Assim também HENKEL2 § 27 III 1 in fine.
101
Eduardo CORREIA, Processo Criminal 276 s.
102
Circunscrevendo igualmente esta categoria aos tribunais de 1.ª instância, ROXIN / SCHÜNEMANN28 § 6 2.
Alargando-a, pelo contrário, a todas as fases processuais e assim imbricando-a com a competência funcional,
Marques da SILVA I7 170 ss.
103
Sobretudo germânica: cf. BOCKELMANN, Strafprozessuale Zuständigkeitsordnung und der gesetzliche
Richter, GA 1957 357 ss., HENKEL2 § 27 III 2, OEHLER, Der gesetzliche Richter und die Zuständigkeit in Strafsachen,
ZStW 64 1952 292 ss., e ROXIN / SCHÜNEMANN28 § 6/3.
39
104
Figueiredo DIAS, DP II § 259 ss.
105
Sem esta diferenciação, considerando que “não são atendíveis as circunstâncias que atenuem especialmente
a pena”, Pinto de ALBUQUERQUE4 15.º/4, e, ao que parece, também Marques da SILVA I7 172.
106
Como exemplos, temos o art. 16.º-3, a que voltaremos infra mais de espaço, e os §§ 24 e 25 da GVG alemã
– cf., respetivamente, Teresa Pizarro BELEZA, Judicialização do Ministério Público? O método de atribuição concreta
da competência material em processo crime, Estudos Isabel de Magalhães Collaço II 2002 489 ss., e ROXIN /
SCHÜNEMANN28 § 6/4 ss.
107
Outro ponto de vista recondutível a um método de determinação concreta da competência seria aquele
segundo o qual a acusação pudesse dirigir o caso à apreciação de um órgão superior ou inferior ao normalmente
competente, consoante julgasse dever atribuir ao caso uma especial ou antes uma diminuta importância.
40
108
Nesta direção, o Ac. do TC 393/89 (10.), e a declaração de voto da Cons. Maria João Antunes ao Ac. do TC
174/2014.
109
Em sentido oposto, todavia, a propósito da atribuição, em processo sumário, de competência ao tribunal
singular em relação a crimes puníveis com prisão superior a 5 anos (Lei 20/2013), o Ac. do TC 174/2014 (AcsTC 89.º
144).
41
O art. 13.º, n.os 1 e 2, define, pela positiva, os crimes em que pode ser deferida
competência ao tribunal do júri. Fá-lo em termos que vão ao encontro da previsão
constitucional no sentido de o júri intervir no julgamento dos crimes graves. Desde
logo, prevê o n.º 1 que a sua intervenção pode ter lugar relativamente a processos por
110
O tribunal do júri deverá funcionar na secção criminal da instância central da comarca (art. 118.º-1 da
LOSJ).
111
Gomes CANOTILHO / Vital MOREIRA4 II 537 s.
112
Não obstante, como nota Mirjan DAMAŠKA, The Faces of Justice and State Authority 1986 3636, estudos
empíricos realizados neste domínio revelarem ser limitada a capacidade de influência dos jurados no processo de
decisão dos tribunais de júri de competência mista.
113
Nada que, todavia, seja um fenómeno exclusivamente nacional, tratando-se de uma realidade relativamente
comum noutros países da Europa ocidental: cf. o número especial da RIDP dedicado ao tema “Le Jury dans le Procès
Pénal au XXIe Siècle”, RIDP 2001 72.º, in: http://www.penal.org/en/ridp-irpl-2000-2009.
114
Paulo Dá MESQUITA, Processo Penal, Prova e Sistema Judiciário 2010 187-212, e Henriques GASPAR, CPP
Comentado 13.º/2.
42
crimes previstos no título III (“Dos crimes contra a paz, a identidade cultural e
integridade pessoal”: arts. 236.º a 246.º do CP) e no capítulo I do título V (“Dos crimes
contra a segurança do Estado”: arts. 308.º a 346.º do CP) da parte especial do Código
Penal, bem como a crimes tipificados pela Lei Penal Relativa às Violações do Direito
Internacional Humanitário (Lei 31/2004). Pode competir ainda ao tribunal do júri,
segundo o art. 13.º-2, o julgamento respeitante a crimes cuja pena máxima,
abstratamente aplicável, seja superior a 8 anos de prisão.
Condição sine qua non para que haja lugar à intervenção do tribunal do júri nos
casos em que a lei lhe atribui competência é a existência de expresso requerimento
nesse sentido formulado pelo Ministério Público, pelo assistente ou pelo arguido.
Qualquer um deles tem o poder para, nos prazos previstos no art. 13.º-3, impulsionar o
seu funcionamento, sem necessidade de motivação para o efeito, sendo que, uma vez
apresentado o requerimento, não mais pode ser retirado (art. 13.º-5). Nos casos em que,
aquando da acusação e para efeitos do disposto no art. 16.º-3, o Ministério Público
manifeste o entendimento de que o crime em apreço, apesar de punível com pena de
prisão superior a 8 anos, não deve ser em concreto sancionado com prisão superior a 5
anos, não parece dever ficar precludida a possibilidade de o arguido requerer a
intervenção do tribunal do júri. Neste conflito, deve ser concedida preponderância à
115
Restrição introduzida pela revisão constitucional de 1989.
116
Limitação inscrita na Constituição pela revisão constitucional de 1997 – cf. DAR-I 102 de 26-07-1997 3850
ss.
117
No espírito do legislador constitucional esteve sobretudo a preocupação de poupar os cidadãos aos perigos
frequentemente inerentes ao processamento deste tipo de criminalidade (DAR-I cit. 3850 ss.). Cf. Damião da Cunha,
Constituição Portuguesa Anotada III 94 s. e Ac. do TC 540/2008.
118
Em princípio, poderão aqui entrar os crimes contra a autoridade pública constantes dos arts. 347.º a 358.º do
CP (art. 16.º-2, a), do CPP), sendo certo, em todo o caso, que na lei penal vigente nenhum deles é per se punível com
pena de prisão superior a 8 anos; e ainda os casos em que o Ministério Público lance mão do mecanismo previsto no
art. 16.º-3.
43
3.2 Tal como sucede com o tribunal do júri, também em relação ao tribunal
coletivo120 o legislador adota os dois critérios que dão corpo ao método de determinação
abstrata da competência.
Por um lado, considerando as previsões do art. 14.º, n.º 1 e n.º 2, a), cabe-lhe julgar
processos por crimes previstos no título III (“Dos crimes contra a paz, a identidade
cultural e integridade pessoal” – arts. 236.º a 246.º do CP) e no capítulo I do título V
(“Dos crimes contra a segurança do Estado” – arts. 308.º a 346.º do CP) da parte
especial do Código Penal; por crimes tipificados pela Lei Penal Relativa às Violações
do Direito Internacional Humanitário (Lei 31/2004); e por crimes dolosos ou agravados
pelo resultado, quando for elemento do tipo a morte de uma pessoa. Em qualquer dos
casos independentemente da pena abstrata aplicável.
Por outro lado, via de regra, o tribunal coletivo recebe igualmente competência para
o conhecimento de crimes cuja punição, isoladamente ou em concurso puro ou efetivo,
possa exceder os 5 anos de prisão (art. 14.º-2, b)). Deste modo, havendo imputação ao
arguido de dois ou mais crimes, o tribunal coletivo será, em regra, competente se, à
partida, em função das regras penais de sancionamento do concurso (art. 77.º do CP)121,
for possível a aplicação de uma pena única de prisão superior a 5 anos. E será assim
mesmo que cada um deles seja punível em medida de prisão não superior a 5 anos (v. g.,
em caso de acusação do arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física
simples e de um crime furto simples, cada um deles punível, nos termos dos arts. 143.º-
1 e 203.º-1 do CP, respetivamente, com pena de prisão até 3 anos, a competência
deverá, em princípio, recair sobre o tribunal coletivo)122.
119
Teresa BELEZA, Estudos I. Magalhães Collaço 491 s., e ALBUQUERQUE4 13.º/4, este último estendendo a
solução a uma possível requerimento do assistente.
120
Trata-se de um tribunal composto por três juízes de direito (art. 133.º-1 da LOSJ), a um deles cabendo o
estatuto de presidente do tribunal, que atua na secção criminal da instância central da comarca (art. 118.º-1 da LOSJ).
Para uma discriminação exaustiva dos atos que cabem na reserva de competência do presidente do tribunal coletivo,
ALBUQUERQUE4 14.º/7 ss.
121
Figueiredo DIAS, DP II § 405 ss.
122
Deste modo, mesmo antes da atual redação do art. 14.º-2, b), o Ac. do STJ 3/95 (DR-I de 21-06-1995).
Contra, Henriques GASPAR, CPP Comentado 14.º/5.
44
123
DR-I de 13-03-2014 1858.
124
Marques da SILVA I7 175.
125
Assim, o art. 2.º, n.º 2, 58), da Lei 43/86, a lei de autorização do CPP de 1987.
45
Entendeu o legislador que havendo bases objetivas para crer que, em caso de
condenação, provavelmente a punição do arguido não excederá os 5 anos de prisão,
126
Pinto de ALBUQUERQUE4 16.º/2. Contra, Ac. do TRP de 05-12-2007 (Proc. 0744577).
127
Henriques GASPAR, CPP Comentado 14.º/4.
46
razões não há para mobilizar um tribunal coletivo, que se pretende reservar para os
chamados casos de maior merecimento penal, em prol da celeridade e de uma eficiente
afetação dos recursos do sistema judiciário. O juízo em questão é deferido ao Ministério
Público, a quem cabe o exercício da ação penal e a representação do interesse punitivo
do Estado, num exercício de discricionariedade vinculada. Durante o inquérito, cumpre
assim ao Ministério Público recolher todos os elementos necessários a uma prognose
sobre a previsível punição do arguido, de modo a ponderar se, tendo em conta os
critérios gerais de determinação da pena (arts. 40.º e 71.º do CP)128, será de esperar a
aplicação de uma pena de prisão não superior a 5 anos. Se o juízo for afirmativo caberá
ao Ministério Público manifestar esse entendimento, de modo devidamente
fundamentado (art. 97.º-5).
Já se, no entanto, o Ministério Público lança mão do disposto no art. 16.º-3 quando
a sua aplicação é inadmissível (v. g., em caso de acusação por crime de espionagem –
art. 14.º-1), deverá o tribunal singular declarar-se incompetente e remeter a causa para o
tribunal coletivo (arts. 32.º-1 e 33.º-1)131. O mesmo deverá suceder quando o Ministério
Público, na acusação, aponta para a competência do tribunal singular, sob invocação do
art. 16.º-3, mas limitando-se a afirmar, sem qualquer fundamentação, que no seu
entendimento a pena a aplicar não deverá ser superior a 5 anos de prisão132. Mais do que
uma falta de motivação, que poderia porventura sugerir uma recondução da questão à
128
Figueiredo DIAS, DP II 7.º e 8.º Caps. e passim.
129
Contra, Teresa BELEZA, Estudos I. Magalhães Collaço 492. Por razões mais gerais atinentes às relações
internas da magistratura do Ministério Público, nem mesmo o imediato superior hierárquico do magistrado do
Ministério Público que haja recorrido ao art. 16.º-3 pode fazer recuar essa aplicação – assim, Henriques GASPAR,
CPP Comentado 16.º/4; contra Marques da SILVA I7 1835, e Pinto de ALBUQUERQUE4 16.º/9 s.
130
Além da letra do preceito e do espírito de agilização processual que lhe vai associado, em abono desta
conclusão depõem os trabalhos preparatórios do CPP de 1987, em especial o art. 2.º, n.º 2, 58), da Lei 43/86, que
eliminou as exigências de concordância que constavam dos projetos legislativos anteriores – cf. Figueiredo DIAS,
Sobre os sujeitos processuais… 20. Concordante, com numerosas referências jurisprudenciais, Pinto de
ALBUQUERQUE4 16.º/15.
131
Marques da SILVA I7 184, Henriques GASPAR, CPP Comentado 16.º/4, e Pinto de ALBUQUERQUE4 16.º/14.
132
Trata-se de um vício que, como informa João Conde CORREIA, Questões Práticas Relativas ao
Arquivamento e à Acusação e à sua Impugnação 2008 109, “ainda parece acontecer demasiadas vezes neste
domínio”.
47
c) O tribunal singular detém ainda, por fim, uma competência residual, por força da
qual lhe compete “julgar os processos que por lei não couberem na competência dos
tribunais de outra espécie” (art. 16.º-1). É o que sucede relativamente a crimes puníveis
apenas com pena de multa (v. g., art. 366.º-2 do CP). Com esta previsão não pretende o
legislador adscrever um papel secundário ou um estatuto de “segunda categoria” ao
tribunal singular, mas somente prevenir lacunas legais de atribuição de competência.
133
Na jurisprudência, por outros, o Ac. do TRL de 12-11-2002 (CJ 2002 5 123 s.); e na doutrina, Pinto de
ALBUQUERQUE4 16.º/14.
134
Cf. Figueiredo DIAS, Sobre os sujeitos processuais… 18 ss., defendendo a conformidade constitucional da
solução, e ainda Teresa BELEZA, Estudos I. Magalhães Collaço 493 ss.
135
Para uma recensão minuciosa desta jurisprudência, vd. Ac. do TC 614/2003.
136
Figueiredo DIAS, Sobre os sujeitos processuais… 20 s.
137
Figueiredo DIAS, Sobre os sujeitos processuais… 18 s.
48
138
Cf. Acs. do STJ de 15-12-2011 (7/10.0YGLSB.S2-A) e de 16-03-2015 (122/13.TELSB-L.S1).
49
critérios essenciais que presidem à repartição das funções do juiz pelos diversos órgãos
judiciais. Temos assim139:
139
Seguiremos de muito perto, na sistematização subsequente, G. FOSCHINI I 346 ss., embora a identidade seja
mais terminológica que de fundo.
140
A uma “competência funcional em sentido próprio” se referia neste contexto Cavaleiro de FERREIRA I 232.
50
V. Competência territorial
144
Figueiredo DIAS, DP I2 11.º § 37 ss., e Susana Aires de SOUSA, Responsabilidade Criminal pelo Produto e o
Topos Causal em Direito Penal 2014 328 e ss.
145
Figueiredo DIAS, DP I2 27.º § 11.
146
Parece existir uma tendência jurisprudencial para, na esteira da doutrina de Faria COSTA, Comentário
Conimbricense do CP I2 180.º/21, considerar que a consumação ocorre no lugar onde a ofensa à honra é pela primeira
vez conhecida pelos seus destinatários – assim, por outros, o Ac. do STJ de 12-07-2007 (07P2288) e o Ac. do STJ de
05-06-1997 por aquele citado.
147
Arts. 38.º-5 da Lei de Imprensa e 88.º-2 da Lei da Televisão. Para mais disposições específicas referentes
aos demais crimes nelas previstos, cf. o art. 38.º, n.os 1 a 4, da Lei de Imprensa e o art. 88.º, n.os 1 e 3, da Lei da
Televisão.
52
148
Contra, Pinto de ALBUQUERQUE4 19.º/2, apesar de o ilícito-típico de infanticídio integrar a morte do recém-
nascido (cf. Figueiredo DIAS / Nuno BRANDÃO, Comentário Conimbricense do CP I2 136.º
149
Pinto de ALBUQUERQUE4 19.º/2.
150
Nuno BRANDÃO, A tutela penal especial reforçada da violência doméstica, Julgar 12 2010 20 ss., a propósito
da desnecessidade de reiteração.
151
Figueiredo DIAS, DP I2 11.º § 54 s.
53
atos preparatórios cuja punição esteja prevista como crime autónomo (v. g., art. 271.º
do CP).
f) Nos termos do art. 7.º-1 do CP, deverá considerar-se como praticado em território
português mesmo o facto cuja execução só haja sido parcialmente realizada no espaço
nacional (delitos itinerantes ou de trânsito). Quando tal se verifique, “é competente o
tribunal da área nacional onde tiver sido praticado o último ato relevante” (art. 22.º-2).
152
Mesmo que a bordo de navio ou aeronave estrangeiros: cf. Figueiredo DIAS, DP I2 9.º § 17.
153
Cf. ainda o art. 4.º do DL 254/2003, relativo a aeronaves alugadas a um operador que tenha a sua sede em
território português ou registadas noutro Estado, em voo comercial fora do espaço aéreo nacional, se o local de
aterragem seguinte for em território português e o comandante da aeronave entregar o presumível infrator às
autoridades portuguesas competentes – vd. Figueiredo DIAS, DP I2 9.º § 18.
154
Critério mais restritivo é o seguido pelo art. 27.º-5 da Lei do Cibercrime: em caso de dúvida quanto ao
tribunal territorialmente competente, designadamente por não coincidirem o local onde fisicamente o agente atuou e o
local onde está fisicamente instalado o sistema informático visado com a sua atuação, a competência cabe ao tribunal
onde primeiro tiver havido notícia dos factos.
54
h) Norma especial é oferecida pela lei aqueles casos em que num processo for
ofendido, pessoa com a faculdade de se constituir assistente ou parte civil um
magistrado, e a competência para o processo pertença ao tribunal onde o mesmo exerce
funções. Por razões evidentes de imparcialidade e prestígio do julgamento, será
competente o tribunal da mesma hierarquia ou espécie com sede mais próxima (art.
23.º). Assim deverá ser mesmo que na circunscrição judicial onde aquele magistrado
exerce funções existam outros juízes ou juízos da mesma hierarquia ou espécie156.
i) Tendo um arguido sido condenado por dois ou mais crimes cujos processos não
foram objeto de conexão e aos quais deva aplicar-se uma pena única conjunta, por
verificação dos pressupostos do regime legal do conhecimento superveniente do
concurso (art. 78.º do CP)157, estipula o art. 471.º que para determinação dessa pena será
territorialmente competente o tribunal da última condenação (em 1.ª instância158),
funcionando em tribunal coletivo ou singular, mediante aplicação, devidamente
adaptada, do disposto na alínea b) do n.º 2 do art. 14.º159.
155
De acordo com o n.º 2 do art. 120.º da LOSJ, estando sob investigação um crime do referido catálogo com
ligações a várias comarcas pertencentes a um mesmo Tribunal da Relação, a competência cabe à secção de instrução
criminal da cidade onde se encontra sedeado tal Tribunal da Relação.
156
Ac. do STJ 6/2005, DR-I de 14-07-2005 4248 s.
157
Figueiredo DIAS, DP II § 426 ss.
158
Pinto de ALBUQUERQUE4 471.º/1, e Ac. do TRE de 19-08-2010 (CJ 2010 4 252).
159
Uma vez que a pena única será encontrada dentro de uma moldura formada a partir das penas concretas já
aplicadas aos crimes em concurso, e com trânsito em julgado (art. 78.º-2 do CP), só haverá lugar à intervenção do
tribunal coletivo se o limite máximo da moldura do concurso, dado pela soma das penas concretamente aplicadas aos
vários crimes (arts. 77.º-1 e 78.º-1 do CP), for superior a 5 anos (art. 14.º-2, b)). Se o não for, a competência
pertencerá ao tribunal singular.
55
j) Os arts. 19.º a 21.º regem apenas para as hipóteses em que a infração foi cometida
em território nacional (art. 4.º, a) e b), do CP). Sabe-se, porém, que os tribunais
portugueses têm também competência, em certas hipóteses, relativamente a infrações
cometidas no estrangeiro, cabendo o seu estudo ao tema da aplicação no espaço do
direito penal substantivo português160. Para a determinação do tribunal português
territorialmente competente rege então o art. 22.º-1, que defere competência ao tribunal
da área onde o agente tiver sido encontrado ou do seu domicílio ou, subsidiariamente,
ao tribunal da área onde primeiro tiver havido notícia do crime.
160
Figueiredo DIAS, DP I2 9.º, e Pedro CAEIRO, Fundamento… passim.
161
Figueiredo DIAS, DPP 347 s., e CHIAVARIO3 IV/10.
56
2.1 A conexão determinante da competência pode ser, como logo começámos por
afirmar: a) pessoal ou subjetiva, quando uma pluralidade de infrações se encontra
relacionada através da unidade do agente; b) material ou objetiva, quando, sendo dada
162
Henriques GASPAR, CPP Comentado 24.º/7.
163
No bom sentido, a Circular da PGR n.º 4/2010 (III, 2.).
164
Marques da SILVA I7 191, e Henriques GASPAR, CPP Comentado 24.º/2, qualificando-a inclusivamente
como um princípio processual. Considerando por isso que o art. 24.º constitui uma disposição taxativa e excecional
que não admite aplicação analógica, Pinto de ALBUQUERQUE4 24.º/1.
57
a) A conexão pessoal ou subjetiva encontra-se prevista nos arts. 24.º, n.º 1, a) e b),
e 25.º, integrando diversas constelações de pluralidade criminosa imputável a um
mesmo agente.
Diferente é a terceira situação de conexão pessoal prevista pelo Código, no art. 25.º,
aquela que tem em consideração os casos de pluralidade criminosa imputável a um
mesmo agente em que os diversos crimes não se relacionam materialmente entre si.
Quando isso suceda, só podem ser abrangidos pela conexão os processos cujo
conhecimento seja da competência de tribunais com sede na mesma comarca167. Assim,
se A deve responder por um crime de violação praticado em Coimbra e por um crime de
roubo no dia seguinte cometido no Porto não há base legal para efetuar a conexão. Se,
porém, os dois crimes tiverem sido praticados em Coimbra, há lugar à conexão. Como a
conexão depende da competência e não o contrário, não é este um caso de competência
165
ROXIN / SCHÜNEMANN28 § 6/3. Invertendo todavia os termos da qualificação, CHIAVARIO3 IV/10.1.
166
Figueiredo DIAS, DP I2 41.º/9.
167
A atual redação do art. 25.º foi introduzida pela revisão de 1998 do CPP, no âmbito da qual foi rejeitada,
com boas razões, uma solução de conexão subjetiva ampla como aquela que se conhecia na vigência do CPP de 1929
(cf. a exposição de motivos constante da proposta de lei 157/VII).
58
c) Pode suceder que o mesmo agente cometa várias infrações, das quais algumas
(ou alguma) possuam conexão material com infrações de outros agentes: há então
concurso de conexões pessoal e material, a resolver nos termos gerais dos arts. 27.º e
28.º
Considerando o disposto no n.º 2 do art. 24.º, a conexão só pode operar até à fase
do julgamento, inclusive, sendo portanto inadmissível durante a fase de recurso 171. E
168
Sobre a matéria, Figueiredo DIAS, DP I2 30.º ss.
169
Excluindo, porém, a autoria mediata do âmbito de aplicação do art. 24.º do CPP, Marques da SILVA I7 195, e
Pinto de ALBUQUERQUE4 24.º/7.
170
Para uma compreensão da instigação como forma de autoria, Figueiredo DIAS, DP I2 30.º ss.
171
Ac. do STJ 10-02-2005, citado por Henriques GASPAR, CPP Comentado 99.
59
2.3 O Código não esclarece qual a entidade a quem cabe proceder à conexão de
processos dela suscetível. Uma vez que só é possível agregar processos que se
encontrem na mesma fase processual, a competência para o fazer deverá ser
reconhecida à autoridade judiciária a quem cumpre a direção processual em cada uma
das fases em que os processos estejam pendentes173. Estando os processos nas fases da
instrução ou do julgamento, a derradeira e decisiva palavra174 para decretamento da
conexão deve ser do tribunal que, após a conexão, passará a ter a competência para o
processo.
172
Figueiredo DIAS, DP I2 21.º/62 ss.
173
Restringindo, todavia, o poder do Ministério Público para estabelecer a conexão de inquéritos aos casos em
que o(s) inquérito(s) não foi(ram) levado(s) ao conhecimento do juiz de instrução, para apreciação de questão da sua
competência reservada (arts. 268.º e 269.º do CPP), com base na ideia, por demais discutível, de que a partir daí passa
a haver um juiz de instrução do processo, Pinto de ALBUQUERQUE4 24.º/13, e Marques da SILVA I7 197.
174
Sem prejuízo, naturalmente, de uma eventual intervenção de um tribunal superior.
60
De acordo com o n.º 1 do art. 30.º, a cessação da conexão pode ser decidida pelo
tribunal175, oficiosamente ou a requerimento, nas seguintes situações, não de modo,
digamos, “automático”, mas mediante um juízo que contraponha as desvantagens que
lhes são inerentes com as vantagens que advêm da manutenção da conexão176:
necessidade de proteção de um interesse ponderoso e atendível de qualquer arguido,
nomeadamente no não prolongamento da prisão preventiva (a)), ou de evitar o
retardamento excessivo do julgamento de qualquer dos arguidos (c))177; grave risco para
a pretensão punitiva do Estado (b)), como sucederá quando a conexão possa implicar
um prolongamento do processo que gere perigo de prescrição do procedimento criminal
relativamente a crimes dele objeto; grave risco para o interesse do ofendido ou do
lesado (b)); houver declaração de contumácia em relação a algum dos arguidos (d); e
art. 335.º-4); ou o julgamento decorrer na ausência de algum arguido (d)).
175
Quando estendida a aplicação do preceito à fase do inquérito (art. 264.º-5), a competência para a cessação da
conexão pertence à entidade a quem cabe a sua direção, o Ministério Público, ainda que no processo haja já
intervindo um juiz de instrução – caucionando este entendimento, o Ac. do TC 21/2012 (AcsTC 82.º 155 ss.); contra,
Marques da SILVA I7 199, e Pinto de ALBUQUERQUE4 30.º/10, este último com numerosas referências jurisprudenciais,
reveladoras de uma corrente jurisprudencial maioritária a favor de uma competência exclusiva do juiz de instrução.
176
A única exceção a este modo de proceder ocorre na hipótese de declaração de contumácia de algum dos
arguidos, pois aí a cessação da conexão não pode deixar de ser ditada quanto a quem for abrangido por tal declaração
(cf. art. 335.º-4).
177
Uma preocupação que dá ainda sentido à previsão específica do n.º 3 do art. 426.º, no âmbito da fase de
recurso.
61
potestativa178, de provocar a cessação da conexão (art. 30.º, n.os 2 e 3). A pretensão não
colherá, no entanto, se o requerimento para a formação do tribunal do júri for
apresentado pelo Ministério Público ou pelo assistente relativamente a imputação que
lhe seja dirigida.
178
Henriques GASPAR, CPP Comentado 30.º/3.
179
CHIAVARIO3 IV/10.2, por referência aos arts. 15.º e 16.º do CPP italiano, que inspiraram o regime português
nesta matéria.
180
Marques da SILVA I7 200.
181
CHIAVARIO3 IV/10.2.2.
62
pacífico que os tribunais colegiais, do júri e coletivo, são de espécie mais elevada do
que o tribunal singular; mas já é discutível se o tribunal do júri tem prevalência sobre o
tribunal coletivo, parecendo-nos, em todo o caso, que sim182, considerando a sua
composição, que integra os juízes que comporiam o tribunal coletivo, o “plus” que é
dado pela intervenção direta do povo na realização da justiça e o próprio estatuto
constitucional do tribunal do júri.
A conexão pode ainda influir sobre a competência territorial, nos termos do art.
28.º, que realiza a atribuição de competência pela seguinte ordem subsidiária de
critérios: é territorialmente competente o tribunal que deva conhecer do crime a que
couber pena mais grave; em caso de crimes de igual gravidade, o tribunal a cuja ordem
o arguido estiver preso ou, havendo vários arguidos presos, aquele à ordem do qual
estiver preso o maior número (critério do forum deprehensionis); e, subsidiariamente, o
tribunal da área onde primeiro tiver havido notícia de qualquer dos crimes.
4. Perante uma hipótese de conexão do tipo das estudadas, pode suceder que o
tribunal venha a considerar improcedente a acusação relativamente ao crime ou ao
arguido que serviram para fixar a sua competência. Sustentar que, neste caso, todo o
processo deveria ser remetido para o tribunal material e territorialmente competente
para conhecer das acusações que ainda podem proceder significaria desatender, sem
vantagem para o processo e para os seus sujeitos, todas as razões que justamente
levaram a lei a estabelecer a conexão. A solução correta estará pois em manter a
competência do tribunal previamente designado.
182
Nesta conclusão, Pinto de ALBUQUERQUE4 27.º/2; contra, Marques da SILVA I7 200.
63
Uma idêntica solução de prorrogação de competência deve ainda ser adotada nas
situações, já não necessariamente de competência por conexão, em que, fruto de uma
alteração da qualificação jurídica dos factos ou de uma alteração não substancial dos
factos, o tribunal decida condenar por crime menos grave do que aquele que vinha
imputado ao arguido na acusação ou na pronúncia: por exemplo, em caso de acusação
por ofensa à integridade física grave (art. 144.º do CP), depois “desgraduada” na
condenação para uma ofensa à integridade física simples (art. 143.º-1 do CP), não há
por que pôr em causa a competência do tribunal coletivo para tomar esta decisão
condenatória mais branda, apesar de tratar-se de crime para o qual seria, afinal,
competente o tribunal singular (art. 16.º-2, b))183, pois quem pode o mais pode o menos
e não se mostram comprometidas as garantias de defesa do arguido, bem pelo contrário.
A hipótese inversa já não é todavia admitida, porque a tal se opõem o n.º 3 do art. 359.º,
em caso de alteração substancial dos factos, e o limite à intervenção do tribunal singular
em função da pena aplicável constante da alínea b) do n.º 2 do art. 16.º, na hipótese de
alteração da qualificação jurídica dos factos.
183
Gil Moreira dos SANTOS 169.
64
direitos dos sujeitos processuais, em especial do arguido, e para uma boa e eficiente
realização da justiça penal, o legislador fulmina, em regra, a sua violação com nulidade
insanável (art. 119.º, e)). Importa, em todo o caso, distinguir consoante o tipo de
incompetência verificada, na medida em que o art. 32.º-2 prevê um regime diferenciado
para a incompetência territorial que é posto a salvo daquela cominação da alínea e) do
art. 119.º
O tribunal que se declarar incompetente deve remeter o processo para o tribunal por
si tido por competente, o qual, por sua vez, se reconhecer a competência que lhe foi
deferida, deve tomar posição sobre os atos praticados anteriormente (art. 33.º). Isto
184
Sendo embora estes os sujeitos processuais a quem o n.º 1 do art. 32.º confere legitimidade para deduzir a
incompetência do tribunal, nada impede que o tribunal a declare mediante impulso de uma parte civil, dado que
sempre o poderia fazer oficiosamente.
185
Assim o nota também, exatamente, G. LEVASSEUR, Réflexions sur la compétence, Études Hugueney 25
nota1.
186
O mesmo sucede, por exemplo, no processo penal italiano (art. 21.º, n.º 2, do CPP) – vd. CORDERO8 15.3.
187
Pela conformidade constitucional deste limite temporal, Ac. do TC 71/2000.
188
O momento relevante é aquele em que a audiência de discussão e julgamento é declarada aberta pelo
tribunal (Ac. do STJ de 09-05-2007, SASTJ 113.º 26, e Ac. do STJ 04-07-2007, SASTJ 115.º 14), independentemente
de possíveis interrupções ou adiamentos antes do início da produção de prova (contra, Pinto de ALBUQUERQUE4
32.º/2, com indicações jurisprudenciais concordantes).
65
189
Marques da SILVA I7 203 s.
190
Gil Moreira dos SANTOS 179 s.
191
Figueiredo DIAS, DPP 356.
192
Ac. do STJ de 12-10-2000 (CJ STJ 2000 3 202).
193
Já é mais duvidoso saber se a ideia vale também para as divergências em relação a uma intervenção em 2.ª
instância (v. g., Relação e Supremo divergem sobre qual o tribunal competente para conhecer um recurso interposto
pelo arguido de condenação em pena de prisão superior a 5 anos com fundamento exclusivo em vício previsto pelo
n.º 2 do art. 410.º) – considerando que não, para tal invocando o poder do STJ para verificar os pressupostos de
conhecimento do recurso, Henriques GASPAR, CPP Comentado 34.º/2.
194
Revela-se, assim, equívoca a afirmação de Pinto de ALBUQUERQUE4 34.º/7 s., de que o art. 34.º não regula o
conflito entre tribunais de diferente hierarquia.
66
195
Haverá, no entanto, base para recurso (399.º) quando o tribunal negue procedência a uma arguição de
incompetência deduzida por um sujeito processual com legitimidade para tal (32.º-1) e não haja um outro tribunal a
reclamar a sua competência para a causa.
196
Suscitando dúvidas de constitucionalidade, que podem entretanto considerar-se adensadas em face do
decidido pelo TC no Ac. 482/2014, Pinto de ALBUQUERQUE4 36.º/4.
67
BIBLIOGRAFIA
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Processo Penal, RPCC, 4/2008, p. 465-507.
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Figueiredo Dias, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, p. 1237-1268.
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