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MARIA APARECIDA PINTO SILVA VISIBILIDADE E RESPEITABILIDADE MEMORIA E LUTA DOS NEGROS NAS ASSOCIACOES CULTURAIS E RECREATIVAS DE SAO PAULO (1930-1968). DISSERTACAO APRESENTADA A BANCA EXAMINADORA DA PONTIFICIA UNIVER- SIDADE CATOLICA DE SAO PAULO, COMO. EXIGENCIA PARCIAL PARA OBTENCAO DO TITULO DE MESTRE EM CIENCIAS SOCIAIS, SOB ORIENTACAO DA PROFA, DRA TERESINHA BERNARDO. PUCISP 1997 BANCA EXAMINADORA Resumo Este trabalho trata da memoria dos velhos e velhas negras. que viveram na cidade de Sao Paulo e freqiientaram ou criaram as associagdes culturais e recreativas negras. Em suas trajetorias de vida compartilharam as mesmas experiéncias: enfrentaram a luta por um lugar no trabalho ¢ sofreram no passado e sofrem no presente o racismo. O lugar no mercado de trabalho adquire contomos dramaticos se pensarmos nas relagdes socio-econdmicas da cidade: a passagem do trabalho escravo para o trabalho assalariado, que foi particularmente diferenciada do resto do pai a vinda de imigrantes europeus, a nascente industrializagao e a conseqiiente modemidade deram a Sado Paulo caracteristicas especificas. Quanto as relagdes raciais, a sociedade paulistana foi o paleo de muitas tensées, marcados por interdigdes em relagdo aos negros. Discorreremos aqui sobre a produgao dos negros de um espago caracterizado pelo nao racismo, Trata-se de associagdes culturais, recreativas e até de carter religioso, que surgiram no século XVIII, mesmo antes do término da escravidao, ¢ renasceram no pés-aboligao disseminando a sociabilidade entre os negros, criando por isso mesmo uma identidade étnica afirmativa, na medida em que promoviam entre eles a auto estima, respeitabilidade e visibilidade, fato que contrastava com a sociedade racista. Assim, ao longo desse trabalho poderemos acompanhar como foi essa luta por espago negro e, ainda, como essas lembrangas emergem na memoria coletiva. Agradecimentos Em primeiro lugar, é preciso dizer, que este ¢ um trabalho coletivo. Recebi de forma direta ou indireta, a colaboragao de muitas pessoas Gostaria de agradecer, particularmente, algumas delas Igor Golinelli e Maria Cristina Pinto Silva pela transcrigaio das fitas. Orlando Jeronymo pela revisdo e ajuda na linguagem eserita Meu companheiro Moacyr Cambraia Filho pelo trabalho de diagramagao e arte-final A. Emilene, secretaria da pos-graduag’o que sempre ajudou e dew apoio na esfera da secretaria e na ponte com a Instituigao. Ao corpo docente da PUC, principalmente com quem mantive maior contato e freqiientei seus cursos: Dra. Carmem Junqueira, Dra. Josildeth Consorte € Prof.a. Elisabeth Mercadante. A Pontificia Universidade Catélica de Sao Paulo que tem demonstrado ser uma instituigdo de ensino de peso neste pais ¢, efetivamente, 6 um espago democratico que viabiliza a produgdo do conhecimento. ‘Ao CNPq pelo apoio institucional Finalmente agradego a Dra. Teresinha Bernardo pela forga ¢ determinagdo na orientagao, leitura das diversas versdes e, ainda quero ressaltar a sua luta em prol da democracia racial na sua esfera de atuagao. Dedico este trabalho aos senhores e senhoras negras que me confiaram suas memorias. Aos meus pais que tanto quanto os velhos e velhas negras da cidade lutaram no mercado de trabalho, constituiram familia e desejaram, desesperadamente, formar seus filhos. Aos meus filhos: Daniel e André. Sumario 1 - Introdugaio ——— Aaa i _ ia a 1 A teoria Antecedentes da pesquisa A memoria Técnicas de pesquisa I1- Capitulo I - O lugar do trabalho 31 IIL: Capitulo Il - A questio do racisme ———_ 54 IV- Capitulo III - O lugar do lazer —_______________ 95 ¥ - Consideragées Finais|. — $$$ 152 V- Bibliografia : 159 "Sou um homem iivisivel. Nao, nao sou um fantasma como os que assombravam Edgar Alan Poe: nem um desses ectoplasmas de filmes de Hollywood. Sou um homem de substdncia, de carne e osso. fibras e liquidos - talvez se possa dizer que posstio wna mente Sou invisivel, compreendam, simplesmente porque as pessoas se recusam ame ver. Tal como essas cabecas sem corpo que as vezes sdo exibidas nos mafitas de circo, estou, por assim dizer, cercado de espelhos de vidro duro e deformante. Quem se aproxima de mim vé apenas 0 que me cerca, a si mesmo. ou os inventos de sua prépria imaginacdo - na verdade, tudo e qualquer coisa, menos eu Minha invisibilidade também néto é digamos, 0 resultado de algum acidente bioquimico da minha epiderme. A invisibilidade & qual me refiro ocorre em fungéio da disposicao peculiar dos olhos das pessoas com quem entro em contato. Tem a ver com a disposig¢ao de seus olhos internos, aqueles olhos com que elas enxergam a realidade através dos seus olhos fisicos. ..."” Ralph Ellison - O homem invisivel “Eis, ao meu ver, um fato capital: havermos nés, homens de cor, neste momento exato da evo - lugao historica, tomando posse em nossa conscién- cia de todo o campo de nossa singulariedade e de estarmos prontos a assumir em todos os dominios, as responsabilidades decorrentes desta tomada de consciéncia." Aimé Césaire - "Lettre 4 Maurice Thorez" 1956. "A luta pelo desenvolvimento social da raga, va- mos dizer do negro, aqui em Sdo Paulo, ela dava muito problema, ela dava um "stress" tremendo. A luta faz com que voce ponha a méio na cabega Meu Deus! Por que eu estou passando por tudo isso? Serd que vale a pena ? E necesstirio vocé ‘fazer a introspecao e... nao, vale a pena sim! ” Nao é para mim, mas para o futuro. Sr. Arnaldo, 74 anos, Jornal Novo Horizonte Associagdo José do Patrocinio Clube Negro de Cultura Social Diretor da Vai-Vai (Escola de Samba) Introdu¢io 1a seguranca de nossos trabalhos académicos e na sala de aula, nés proclamamos que a Antropologia é uma ciéncia social que estuda as regularidades do comportamento humano ¢ dos sistemas sociais. Mas, em sua fonte, em meio ao povo com o qual o antropdlogo vive ¢ trabalha, a pesquisa de campo envolve a pratica de uma arte na qual entrelagam atitudes @ reagdes subjetivas, emogdes e, sem diivida, motivagdes subconscientes. * Charles Wagley! Esse trabalho de meméria dos velhos e velhas de Sao Paulo e suas participagdes nas associagdes recreativas e culturais muito me fascinou porque sao histérias de vida e de S40 Paulo que me sdo muito proximas, na medida em que, avés, tios, parentes em segundo grau, amigos quase sem excegdo viveram a histéria que vou relatar aqui. Todos foram funcionarios piiblicos, freqtientadores das associagdes negras e sofreram em maior ou menor grau o racismo da cidade. Todos os meus interlocutores partilharam ‘os mesmos sonhos quanto a um projeto cultural e social para os negros da cidade, Os caminhos de vida dos interlocutores, revelados durante a pesquisa, além de cruzarem entre si, cruzaram-se também com os caminhos da minha " Wagley, Charles - "Champukwi, da aldeia das Antas" In JB. Casagrande In the Company of men, Harper, N. York, 1960, pg.t16 meméria: a infancia na Igreja do Rosario, eu nas procissdes, vestida de anjo, os bailes de camaval do Aristocrata , do saléo Royal : os banho da Dorotéia em Santos, os piqueniques. Lembrangas deliciosas e as vezes cruéis, como ser barrada no Clube Esperia com mais ou menos 7 anos de idade ao lado da melhor amiga, descendente de italianos. Lembrangas de histérias contadas por meus familiares sobre a Barra Funda e seus cortigos; enfim , historias de alegria e miséria ‘A Antropologia foi desde sempre a opgao na minha trajetéria. O encantamento que tenho com a disciplina esta na possibilidade de trabalhar a distancia ¢ a objetividade de forma relativa. A disciplina, ao longo do seu desenvolvimento, promoveu e tornou proximos 0 sujeito ¢ o objeto da ciéncia enquanto tal, reconhecendo que o estudo do Homem é necessariamente permeado por motivagdes pessoais, emogdes ¢ subjetividade, e que nao poderia ser diferente. A forma de encarar essa grandeza ¢ essa limitagao ¢ explicitar as subjetividades. No Brasil, Gilberto Velho e Roberto da Mata” discutem a questéo da subjetividade. Da Mata define a Antropologia como uma ponte entre dois universos de significagdo, e essa ponte ¢ realizada com o minimo de aparato institucional ou de instrumentos de mediag&o; isto significa que ao mesmo tempo que lida com as subjetividades, possui um instrumental tedrico que a torna uma ciéncia e ao mesmo tempo a diferencia de outras. Gilberto Velho discute também a subjetividade, principalmente em relag%io ao familiar (conhecido e préximo). Para o autor “o estudo do familiar acaba sendo enriquecedor porque é possivel transcender as limitagdes de origem do antropélogo e também perceber o familiar nao alata, Robeno da -"O ofcio de Etnélogo, ou como tr “Anthropological Blues" in Comunicardo m1, ‘Museu Nacional, Rio de Janeiro. setembro de 1974. (Edigao Mimeografada) Velho, Gilberto - Individualismo_e_Cultura_-_N« a_uma logia_da_ Soci Comtempordnea, Rio de Janeiro, Zahar Editores. 1981 necessariamente como exético mas como uma realidade bem mais complexa do que aquela apresentada pelos mapas e cddigos nacionais ¢ de classes através do qual fomes socializados. O proceso de estranhar o familiar toma-se possivel quando somos capazes de confrontar intelectualmente e, mesmo emocionalmente, diferentes versdes ¢ interpretagdes existentes a respeito de fatos, situagdes.” * A preocupagao de Gilberto Velho esté em enfati r que no estudo do familiar € possivel lidar com a subjetividade: " A "realidade” (familiar ou exética) sempre é filtrada por determinado ponto de vista do observador.” * Isso nao significa a faléncia da ciéncia e sim a necessidade de perceber que explicitando as subjetividades é possivel ficar mais préximo ao real. Da Mata faz referéncias ao “anthropological blues", como sendo todo © sentimento que o antropélogo experimenta no trabalho de campo, a solidao, as distancias, a saudade.* No caso especifico desse trabalho, o meu sentimento ocorreu em relacdo a distancia que separa dois universos de significagao, tdo precisos € distantes entre si. De um lado, meus interlocutores, os velhos e velhas negras; do outro a Academia e os possiveis leitores deste trabalho. A responsabilidade ¢ enorme ¢ me causa um sofrimento, tal qual 0 blues e seu lamento solitario, ja que tenho um comprometimento muito grande com ambos. Para se ter a dimensfio dessa responsabilidade, os velhinhos sempre me apresentavam como doutora, como a "menina"que iria escrever um livro > Velho, Gilberto - A aventura sociol6gica . Rio de Janeiro, Zahar Editores. 1978. pg. 131 * ata. op. cit = Velho, Gilberto- Individualism ¢ Cultura op. cit. pg. 129 sobre eles, Era motivo de orgulho para os colegas, vizinhos, ascensoristas. etc. Nao adiantavam os protestos, a explicacdo sobre as condigdes do trabalho: eles me identificavam como doutora ¢ escritora e nao havia como remediar Toré-los objeto de estudo nao foi uma tarefa facil. Muitas vezes. por exemplo, ia a Igreja do Rosario, aos domingos e apés a missa_ficava ali, so observando. Nao conseguia fazer contatos ou entrevistar alguém. Queria apenas ficar ali, nutrir minhas energias com as tezas, 0 canto, a dignidade daquelas pessoas. ‘Acredito que tenho um papel a desempenhar. Cheguei até aqui ¢ ndo posso ignorar que esta ¢ uma oportunidade de expressdo, de reflexo sobre tudo que ouvi € senti nessa pesquisa. Ser mais fiel e proxima possivel das falas dos meus interlocutores € um compromisso que assumi comigo mesmo. Dai a opgao pelo trabalho com a memoria. A teoria Os estudos sobre a populagdo negra do Brasil foram, ao longo das décadas, elaborados em fungdo e paralelamente a histéria das ciéncias sociais. O negro sempre desempenhou varios papéis como objeto de estudo, nao obstante nunca foi sujeito de sua propria historia. Nina Rodrigues*, formado em medicina, foi o primeiro estudioso da populagdo negra. Seus estudos mesclavam antropologia e medicina, as diferentes patologias eram exemplificadas com manifestagdes culturais africanas, como o candomblé. © autor analisava 0 candomblé como uma grande manifestago de patologia social. O transe ritual do candomblé era tratado como loucura. Sob influéncia do Evolucionismo europeu do séc. XIX, Nina Rodrigues classificava a populagdo negra: privilegiava grupos, atribuindo-lhes qualidades fisicas ¢ psicolégicas. Elegeu os sudaneses superiores aos bantos, duas das etnias africanas vindas para 0 Brasil Todos os seus argumentos indicavam a influéncia do racismo cientifico. Sua preocupagao em relagéo a raga negra era na verdade a preocupacdo com 0 futuro da nagao brasileira ¢ sua insergao na chamada civilizagdo, preocupagdo muito propria dos cientistas de sua época. Para Mariza Coméa’, 0 autor ¢ considerado o fundador da antropologia brasileira, Nina Rodrigues arregimentou em torno de suas teses outros intelectuais, analisados por ela e denominados membros da "Escola Nina Rodrigues". © Rodrigues. Nina - Os Africanos no Brasil, Sfo Paulo.Nacional, 1945 Comréa, Mariza - As ilusSes ca liberdade. A escola Nina Rodrigues & Antropologia no Brasil. Tese de doutoramento, USP, 1983 Nina Rodrigues produziu muitos estudos sobre a populagdo negra de origem africana. Seus estudos se tornaram fontes para posteriores pesquisas. Jodo José Reis* , por exemplo, informa que um dos aspectos positivos é que ele fez pesquisas etograficas importantes em relagéo aos negros, como 0 estudo sobre os malés na Bahia. Ideologicamente comprometido com as idéias racistas de seu tempo, Nina Rodrigues fazia parte de uma comunidade académica institucional, que era a Faculdade de Medicina da Bahia. Para Lilia Schwarcz” as idéias racistas anteriores a 30 nao devem ser vistas de forma particular, mas sim do ponto-de-vista institucional. Assim, 0 autor utilizava o negro como objeto de pesquisa para demonstrar suas teorias racistas engendradas na nogao de criminalidade e loucura. Atualmente, com a distancia temporal e compreensdéo do contexto histérico de sua obra, ¢ possivel atribuir-lhe méritos, principalmente pelo seu legado etnografico. Artur Ramos!” embora tenha participado da chamada Escola Nina Rodrigues, representou um avango em relagdo ao tema negro. Representante da visdo culturalista, acabou mapeando as culturas negras no Brasil, deixando de lado a classificacao e juizos de valor, oferecendo um painel da cultura negra no Brasil ¢ na América como um todo: "No investigar as influéncias, que o negro africano exerceu no novo mundo, temos de considerar 0s tipos negros, no com as suas caracteristicas biologicas (isso ® Reis, Joao José - " Um balanco dos estudos sobre as revoltas escravas da Bahia " In Escravidio & Invengiio da liberdade - Jodo José Reis (org ), S40 Paulo,Brasiliense, 1988 * Schwarez, Lilia -O espetdculo das racas -Cientstas, Instituigdes © questi racial no Brasil -1870-1930, ‘So Paulo,Compankia das Letras. 1993 '° Ramos, Artur - As calturas negras no Novo Mundo, Séo Paulo, Ed. Nacional. 1979 pouco importa ao nosso ponto-de-vista mas como representantes de culturas... ""! Um aspecto porém é necessario realgar; Artur Ramos embora tenha modificado a perspectiva de analise dos fatores raciais para culturais, nao conseguiu se desvencilhar por completo do evolucionismo do séc. XIX. pois ao analisar aspectos culturais, em alguns momentos, julga as culturas negras, estabelecendo inferioridades entre elas. Na realidade, podemos observar que tanto Nina Rodrigues como Artur. Ramos importavam as principais tendéncias internacionais da Antropologia. Nina Rodrigues com a escola francesa e Artur Ramos com 0 culturalismo americano de Frans Boas. De qualquer forma, o debate se transforma entre os dois autores: 0 conceito de raga passa a ser agregado a0 conceit de cultura."? Gilberto Freyre!? ao final da década de 30, aparece como uma terceira corrente das ciéncias sociais a eleger 0 negro como objeto de estudo. Podemos dizer que o autor é 0 idedlogo do racismo cordial brasileiro. Descreveu as relagdes raciais no Brasil de forma harménica, sem conflitos. Casa Grande e Senzala, sua obra de peso, ¢ Sobrados ¢ Mucambos siio descrigdes das relagdes entre negros ¢ brancos, interpretadas ainda segundo o culturalismo da Escola norte-americana. © Ramos, op.cit, pg.15 © pereira, Jodo Baptista Borges - "Estudos Antropologicos das populagées negras na Universidade de ‘So Paulo" In Revista de Antropologia . separata do volume XXIV, Sao Paulo, USP.1981 — - "Estudos Antropoligicos ¢ sociolégicos sobre 0 negro no Brasil- ‘Aspectos historicose tendéncias atuais", In Revista de Antropologia, fo Paulo, USP. 1981 5 Freyre, Gilberto - Casa Grande ¢ Senzala, Rio de Janciro, José Olympio, 1958 ——------ = Sobrados Mucamibos. Rio de Janeiro, José Olympio,1951 Particularmente, a década de 30 & marcada pela discussio do Nacionalismo. Havia a preocupagao de tragar o perfil do homem brasileiro, e nada mais favoravel do que minimizar os conflitos e somar todas as racas. num ideal comum de brasilidade: 0 famoso caldeirao de europeus brancos. negros. africanos e indios natives, todos irmanados por sentimentos nacionalistas e fraternos.'* A partir da década de 50, os estudos sobre 0 negro davam um salto qualitativo Acompanhando o contexto histérico mundial marcado pela Segunda Guerra, os cientistas do mundo inteiro centraram seus esforgos para erradicar das ciéncias todo e qualquer proposi¢do evolucionista € racista pois © mundo, com os horrores da guerra, conheceu os efeitos da combinagao explosiva entre as teorias evolucionistas e a pratica racista, principalmente em relagao aos judeus. A criagao da ONU e posteriormente da UNESCO propiciou a reunido da comunidade cientifica mundial que através das declaragdes de 1950 e 1951'° reiteraram os conceitos de raga e refutaram qualquer divida que ainda pudesse pairar sobre a superioridade de uma raga sobre outra, Nesse contexto no Brasil, o negro volta a ser objeto de estudo, agora nao mais como populagdo exética, estrangeira ou com patologias, mas sim como trabalhador espoliado do sistema capitalista, Marco da sociologia contempordnea, a década de 50 foi bastante frutifera em relagio aos estudos sobre a populagdo negra, porque, pela ‘A imagem de um pais mestigo e convivéncia racial harménica foi a partir de 30 . aclamada aqui no Brasil e no exterior.Gilberto Freyre foi o principal mentor desse ideal de Brasilidade. Lilia Schwarcz aponta: "E ainda a imagem da convivéncia racial pacifica. cunhada por Freyre, que aparece desenhada no Zé Carioca, no carnaval..." op. cit pg. 249 'S Dunn. L, C.e varios autores - Raga e Cigncia , So Paulo. Perspectiva,1972 primeira vez, os estudos so sistematizados em fungdo de um projeto ra 0 Projeto UNESCO." nacional e internacional: O Brasil tinha no exterior, gragas ao trabalho de Gilberto Freyre, a fama de ser um pais cuja convivéncia racial era totalmente harménica, sem conflitos.'” A pesquisa encomendada aos cientistas sociais brasileiros era para demonstrar essa face do Brasil. Ao contrario das expectativas, os estudos aqui realizados de norte a sul, por todos os nomes de peso da sociologia brasileira, evidenciou que havia racismo no pais. Nomes como de Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Roger Bastide, Oracy Nogueira, Virginia Leone, Renato Jardim Moreira estavam envolvidos nesse Projeto."* Com o carater extremamente politizado e marcado pela visdo marxista, esses estudos realizados denunciavam o racismo brasileiro. Florestan Fernandes, 0 intelectual que mais se aprofundou nas relagdes raciais, denunciou o racismo brasileiro como sendo velado, escamoteado, desvendou o Mito da democracia racial no Brasil, exatamente ao contrario da visio Freyriana de harmonia e auséncia de conflitos ¢ 6 projeto UNESCO - Foi patrocinado pela ONU através da UNESCO . a proposta era desvendar as relagées raciais no Brasil, 2 partir de pesquisas realizadas em todo o pais. As atengSes se concentravam sobre fenémenos tais como mobilidade, detencdo de status, competigao, discriminagao, etc. ‘No Brasil. a pesquisa foi realizada sob a coordenagdo de Alfred Metraux. Os resultados foram publicados pela Revista Anhembi, durante 2 anos. * Florestan Femandes- "Editorial" In Revista Anhembi, vi 1953, '8 Como ja referimos anteriormente esses autores publicaram 0 resultado de suas pesquisas na Revista Anhembi rigs autores, volume X, n 30, So Paulo, atribuiu a moral crista e ao preconceito de ter preconceito a principal causa do racismo a brasileira.” A pesquisa encomendada pela UNESCO foi sem davida, um marco has ciéneias sociais. A partir desse projeto muitos outros trabalhos apareceram. Foram intimeras teses, artigos ¢ estudos paralelos. como por exemplo, 0 do Prof. Roger Bastide, que se dedicou as religides negras. Florestan Fernandes produziu sua tese de doutorado sobre o negro na sociedade de classes. Oracy Nogueira desenvolveu seus estudos em relagao 4s modalidades do preconceito ¢ a comparagdes entre o racismo brasileiro ¢ o norte-americano. Renato Jardim trabalhou com as manifestagdes culturais no meio negro, principalmente os bailes. Enfim, houve grande produgao académica sobre 0 tema negro.” Foi também inédita a metodologia de pesquisa envolvendo profissionais de diferentes areas do conhecimento cientifico, elaborada de forma sistematica ¢ multidiciplinar. Podemos delimitar a década de 50 como um marco das ciéncias sociais, tanto por evidenciar esses intelectuais, como por propiciar um avanco na discusstio da questo do negro no Brasil. Hoje, com a distincia temporal e 0 desenvolvimento das ciéncias sociais, podemos enxergar lacunas nesses trabalhos. No entanto, para qualquer tema ligado as relagdes raciais no pais, a década de 50 é uma referéncia historica e intelectual . °° idgia do mito da democracia racial aparece em dis trabalhos de Florestan Fernandes : "Aspectos da ‘Questo racial * In negro no Mundo dos Brancos, So Paulo.Difusdo Européia do Livro, 1972 ¢ "0 mito da "democracia racial” In A IntegracSo do Negro na sociedade de classes, volume I, So Paulo. Atica, 1978 Roger Bastide . como resultado do Projeto UNESCO, produziu textos em co-autoria com Florestan Fernandes: Brancos Neeros em Sto Paul, Sao Paulo, Compania Editora Nacional, 1971 racy Nogueira publicou o artigo: "RelagSes raciais entre negros e brancos em Sdo Paulo" In Revista Anhembi, ano V,n 53. Vol. XVIIL, Abril de 1955, ‘Renato Jardim Moreira publicou " Brancos em bailes de negros" In Revista Anhembi ano VI, n 71, vol, XXIV, Outubro de 1956. No que se refere a esse balango tedrico e a idéia do negro como objeto de estudo, na sua forma mais recente que podemos apontar esta ligado a tese de doutorado de Florestan Fernandes: "A integragao do negro na sociedade de classes"' Embora de excelente mérito, suas analises ficam comprometidas por sua viséo marxista da historia. Florestan cobra dos negros uma coeréncia ¢ uma perspectiva revolucionaria.” Mais tarde, podemos perceber que era impossivel naquele contexto histérico, ou seja , no momento em que a sociedade brasileira como um todo estava passando por transformagdes e acomodagdes dos tecidos sociais numa incipiente sociedade capitalista, que 0 negro tomasse a frente numa perspectiva revolucionaria Nesse sentido, Florestan trata 0 negro como trabalhador espoliado, tanto por sua situagio de classe, como pela inferioridade racial. Duplamente discriminada, a populagéo negra, na ldgica marxista, era de fato potencialmente capaz de fazer a revolugdo do modo-de-produgao capitalista. Em Sao Paulo, sob a coordenagao de Florestan Fernandes foram ouvidos alguns lideres do movimento negro, alids um grande mérito para 0 professor, que até hoje € visto pelo meio negro paulistano com profunda admiragiio ¢ respeito.”* *1 Fernandes. Florestan ~ A i vio do negro na socis classes, Vol. I e TI. S80 Paulo, Atica, 1978. Como exemplo da postura ideol6gica em relaggo aos negros , neste periodo, temos 0 opinido de Sartre: "Ena sua missto, que ele bascia seu dircito a vida, ¢ esta isso como a do proletariado Ihe vem de sua situagao histérica." In Reflexdes sobre racismo, So Paulo, Difustio Européia do Livro, 1968, pg. 120 ® Em artigo assinado por Fernando Azevedo: "Relagdes raciais entre negros © Assim, nas ciéncias sociais, 0 negro assumiu enquanto objeto de estudo varios papéis: negro do candomble e religides exéticas, negro como produtor e reprodutor de varias culturas, o negro como trabalhador espoliado, negro militante, 0 negro da elite, da escola de samba, quilombola entre outros papéis. Da década de 50 até a década de 80, as produgdes académicas giravam em tomo desses papéis, conferindo as manifestacdes negras legitimidade e identidades. A partir da década de 80, a questéo do negro é retomada, principalmente sobre 0 conceito de identidade étnica. Os antropélogos do Museu Nacional, representados por Roberto Cardoso de Oliveira *construiram toda uma teoria sobre identidade constrastiva: "A identidade constrastiva parece se constituir na esséncia da identidade étmica, isto é, a base da qual se define. Implica a firmagao do "nés” diante "dos outros". Quando uma pessoa ou um grupo se afirmam como tais, 0 fazem como meio de diferenciagao em relagao a alguma pessoa ou grupo com que se defrontam. E uma identidade que surge por oposigao. Ela nao se afirma isoladamente".* ‘brancos em Sio Paulo In Revista Anhembi, ano il, n30, vol. X, maio de 1953, pg 438 ha a citaglo & agradecimento aos principais lideres negros que colaboraram com 0 Projeto UNESCO através das associages de negros de So Paulo: Associago José do Patrocinio, Inmandade Nossa Senhora do Rosério dos homens pretos, a Legido Negra de S. Paulo e aos Sts. Raul Joviano do Amaral, Edgard Santana. Arlindo Veiga dos Santos. Francisco Lucrécio. Geraldo de Paulo, José Correia Leite. Geraldo Campos de Oliveira, Ruth de Souza entre outros. > Oliveira, Roberto Cardoso de - Identidade, Etnia e Estrutura Social, Siio Paulo, Pioneira, 1976 op. cit pg. 5 ‘A idéia de uma identidade contrastiva sempre foi complicada quando aplicada a questo do negro no Brasil. Afinal, a identidade afirmativa do negro passaria necessariamente pela identidade do branco? Essa premissa sempre gerou indagagdes Até que uma série de pesquisas, dentre as quais de Maria Manuela Carneiro da Cunha *° apontaram para uma nova perspectiva: a identidade étnica era de fato circunstancial e definida nao pela alteridade mas sim no interior do grupo. ‘Ao estudar os negros estrangeiros, Xe escravos brasileiros que voltaram para sua terra de origem, a Nigéria, a autora demonstrava que aqueles negros alteravam suas identidades de brasileiros e afticanos conforme suas conveniéncias.”” Kabengele Munanga”* avalia que 0 conceito de identidade étnica, assim como outros conceitos , acaba por adquirir uma série de acepgdes. Para o autor, na questio da identidade étnica so estudados apenas alguns aspectos ou manifestagdes sem esgotar o problema. O autor aponta que 0 conceito de identidade envolve trés fatores essenciais 6 Cunha. Maria Manuela Carneiro - Negros Estrangeiros , Sio Paulo, Brasiliense. 1985 “Religido e etnicidade uma interpretagdo preliminar do catolicismo brasileiro em Lagos, no sec. XIX" In Religiio e Sociedade, ano I, n 1, varios autores. ® Cunha, Maria Manuela Carneiro - Negros estrangeiros, op. cit. 8 Munanga. Kabengele - "Construgiio da identidade Negra. Diversidade de conceitos e problemas ideolégicos." In Religido poli Paulo, Educ, 1988 ica identidade ( org.) Josildeth Gomes Consorte e Maria Regina Costa, So © Munanga, Kabengele op. cit. pe. 144 4 O fator histérico, que considera mais importante, na medida em que se constitui no alicerce cultural, no fio condutor ¢ ainda possibilita a coesao do grupo em tomo de um passado comum. A identidade étnica, nesse sentido, ¢ construida na histéria de um grupo e esse grupo conhece, cria, transforma e transmite as geragGes futuras. segundo fator de identidade seria o lingitistico, como exemplo temos os remanescentes de quilombos que mantém dialetos africanos e que nesses casos a lingua funciona como elemento identificador do grupo. O terceiro fator seria 0 psicolégico, onde a identidade assumiria seu carter ideolégico, seria uma identidade adquirida externamente por fatores raciais, culturais, ete. Assim, a década de 80 marcou para as relagdes raciais novos conceitos e perspectivas de andlise. Além disso, recebemos a contribuigdo de outras areas do conhecimento das ciéncias humanas: a histéria, principalmente a historia das mentalidades ou a nova historia. Hobsbawm® contribuin com a discussio de identidade quando aponta que entre grupos é possivel “inventar" tradigdes. Para o autor, tradig&o inventada seria: "Um conjunto de praticas normalmente reguladas por regras tacitas ou abertamente aceitas; tais praticas de natureza ritual ou simbélica visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetigao, 0 que implica, automaticamente , em uma continuidade em relagiio ao passado."! ® Hobsbawm, Eric Terence Ranger - A invencdo das tradicSes. Rio de Janciro.Paz e Terra, 1984 §1 Hobsbawm., Eric e Terence Ranger - op. cit. pg. 9 15 ‘Ao definir a tradigao de um grupo ou de um povo de forma mais ampla, Hobsbawm faz uma distingdo entre a invengao da tradigao , eriada de forma oficial pelo Estado ou grupos organizados, ¢ a tradigdo inventada por grupos nao organizados que nascem quase espontaneamente © que o autor denomina de real. Para a discussdo de identidade étnica, é a segunda forma que nos interessa. Na verdade, a tradi¢do inventada estabelece ou simboliza a coesdo social ou as condigdes de admissdo de um grupo ou de comunidades reais ou artificiais. Podemos ento pensar que a questdo da identidade étnica, nessas perspectivas apontadas aqui, é uma construgao da historia e da memoria dos grupos sociais e do povo de forma geral. Sera essa perspectiva tedrica que abordaremos nessa pesquisa. Antecedentes da pesquisa Foi a partir desse contexto que iniciei minhas pesquisas preliminares. Durante a graduagdo realizei uma pesquisa sobre um baile negro denominado Chic Show’, baile de freqtiéncia negra, jovens, de classe média baixa, moradores de periferia que em sua grande maioria organizavam suas horas de lazer em fungao da sua cor. © que me chamava atengdo era a questdo da negritude, entendida como um processo de conscientizagao do negro. Ali pude perceber que a identidade étnica, a negritude, tinha um cardter diferenciado, pois 0 grupo ndo tinha um discurso por ser negro, tinha uma pratica e um modo-de-vida que evidenciavam a sua opgiio de identidade. A consciéncia de ser negro era manifestada pela escolha do lazer entre iguais.** De fato, havia uma incongruéncia entre o que observava no baile negro e 0 que durante anos estudei nas ciéncias sociais, os chamados “classicos" ja descritos acima. O negro sempre fora representado em seus papéis agonizantes. A imagem do negro agoitado da escravidao, a vitima de um sistema capitalista espoliador nao correspondia com o negro exuberante e ostensivo: o negro freqiientador dos bailes. 22 4 minha pesquisa com 0 Chic Show, apesar de ter sido um projeto individual realizado em 1981 aparece como fonte de informagSes no trabalho de José Guilherme Cantor Magnani - Festa no Pedaco- cultura popular e lazer na cidade, So Paulo, Brasiliense, 1984, pg 28 A procura de significados para 0 conceito de negritude, as condigSes historicas do negro na Africa e na América, as diferentes acepeées da negritude foram descritas por Kebengele Munanga In Negritude.- Usos e Sentidos, Sto Paulo, Atica, 1986, Outra autora que discute as diversas expressses da negritude & Zila Bernd In A questo da negritude, Sdo Paulo, Brasiliense, 1984 7 No baile havia uma produgiio de valores e cédigos proprios do grupo de freqiientadores: a danga, 0 tipo de miisica, as roupas, os encontros amorosos, tudo produzido e reproduzido nao s6 no interior do baile e como também na postura das pessoas que ali freqiientavam. Havia uma autonomia dessa produgao cultural que saltava aos olhos, pois o baile acontecia uma vez por més no Clube Palmeiras, ¢ nos outros finais de semana o mesmo estilo de bailes acontecia na periferia. Eram as famosas equipes de som como a Zimbabwe, Musicalia, entre outras.Nao havia divulgagao do baile na midia, os contatos eram feitos pessoa a pessoa Para o jovem negro da década de 80 havia todo um circuito recreativo e cultural proprio: o footing no centro da cidade, as galerias do centro onde funcionavam os saldes de cabeleireiros, etc. Inclusive era nesses espagos que se divulgavam os eventos da semana, ou ainda em cartazes espalhados na cidade. O baile contava sempre com uma atracdo nacional ou internacional cuja principal identidade era o fato de serem cantores negros, como Jorge Ben, Gilberto Gil e cantores americanos. Enfim, cantores que de uma forma ou de outra mencionavam a questao racial. E importante ressaltar que esses artistas, com excegio do Gilberto Gil, tinham um publico fiel negro, como Jorge Ben por exemplo, que sé mais tarde, quase uma década depois, foi descoberto pelos jovens de classe média. A pesquisa com 0 Chic Show abriu de certa forma o caminho que propiciou a escolha do tema dessa dissertagdio Em fungdo disso é que fago essas referéncias iniciais. O baile contemporaneo que sobrevive até a década de 90, tem sua origem nos anos 70, ¢ 0 que pude auferir a partir da pesquisa é que 0 baile negro sempre foi uma tradigéo na cidade de Sio Paulo. Os pais dos freqiientadores do Chic Show freqtientavam o Coimbra , o Aristocrata, a Associagao Cultural do Negro; os avés fieqiientavam os Evoluidos e 0 KWY; e ainda os Campos Eliseos e 0s bailes do Royal. Na verdade estes bailes constitufam-se em um momento do lazer proporcionado por estas associagdes. Em que consistia essa tradig’io? A existéncia de bailes negros refletia apenas uma tradico ou também uma necessidade? Qual a relagdo que poderiamos estabelecer entre o racismo da cidade ¢ os bailes? Quais os motivos pelos quais esses bailes sobrevivem ha tanto tempo? Para levar essa pesquisa inicial adiante havia um agravante: Como poderia trabalhar com o lazer negro com a bibliografia existente nas ciéncias sociais? Sem negar a importancia de todos os estudos ja realizados sobre o negro, o fato é que nunca o negro foi tratado como sujeito de sua propria historia. Isto é to real que me defrontei com um problema grave ¢ ao mesmo tempo instigante. A tradigao do povo negro € oral, exatamente como os ancestrais africanos. Na Africa, povos sem escrita conservavam suas tradigdes de forma oral. Ziegler “ aponta quanto a oralidade africana aspectos importantes: "A tradigfio oral é condicionada pela sociedade que a veicula. E um conjunto de conhecimentos histéricos dirigido ¢ limitado, Seus limites sao estabelecidos pela estrutura da sociedade em que se desenvolve... Sua profundidade depende igualmente do grupo; as estruturas profundas, complexas, cheia de matizes, geram uma tradiga0 oral rica, ambigua, complicada, de muitas facetas... "> 5 Zigler, Jean - Q poder africano, Sao Paulo, Difusiio Européia do livro. 1972 % Ziggler, Jean - op. cit. pg, 183 Aqui no Brasil, embora vivendo no séc.XX, no espago urbano, as experiéncias, a trajetéria dos negros continua a ser transmitida oralmente, através dos descendentes. No interior do grupo como diz. Ziegler.” Talvez seja por esse caminho que podemos pensar a tradigao das sociedades recreativas e culturais negras. E a partir dessas indagagées ¢ diante do empasse de como penetrar nessa historia, foi que me deparei com os estudos contemporaneos sobre a Memoria, que hoje representa uma via de entendimento da sociedade e de grupos sociais, importante e que merece atengao Zigler. Jean - op. cit. pg, 184 20 A memoria O estudo da Memoria resgata a experiéncia do individuo, ndo como um membro isolado, mas como pertencente a um grupo social Halbwachs*” com sua inser¢4o na sociologia contemporanea demonstrou que a memoria € sempre coletiva, compartilhada entre os membros de um determinado grupo. Assim pude encontrar uma saida para resolver antigas questées. A memoria de um grupo, agora aqui especifico: Negros e negras freqtientadores das associagdes recreativas, a partir da década de 30, em Sao Paulo, foram ouvidos. Com a memoria desses individuos poderei reconstruir a trajetéria dessas associagdes, a relagdio dos negros com 0 racismo da cidade, nas dificuldades, tensdes, alegrias. Enfim, resgatar um pouco da historia dos negros em Sao Paulo. O estudo da memoria nado é apenas uma fonte histérica, no sentido mais tradicional da palavra. O que seu estudo permite é tomar vivos os momentos historicos que um determinado grupo viveu. Portanto o objetivo nao € tratar o tema como histéria no sentido tradicional da palavra. Trabalhar com a memoria ¢ trabalhar com a descontinuidade, na medida em que datas ¢ fatos so memorados em fungao do significado para o grupo. 139 Datas como aponta Alfredo Bosi®* : "séio apenas pontas de um iceberg’ apenas indicam fatos, o que ha submers6 é 0 que o toma relevante ‘Halbwachs, Maurice - A meméria coletiva, Sao Paulo, Vértice, 1990 Bosi, Alfredo - "O tempo ¢ os tempos " In Tempo ¢ Histéria , Sdo Paulo, Companhia das Letras. 1994 » Bosi. Alfredo - "O tempo e os tempos " In Tempo ¢ Histéria , So Paulo, Companhia das Letras, 1994. Os limites dos fatos mencionados por aqueles que rememoram so irregulares, so varias historias ¢ varias vis6es. O que os tornam fascinantes é que ficam proximos ao vivido, as contradigdes do cotidiano. Lidam com os processos de construgdo de identidade do individuo e do grupo ao qual pertence, Os depoimentos recolhidos dizem respeito a experiéncia de um grupo especifico: so senhores e senhoras que durante a juventude ¢ inicio da vida adulta foram freqiientadores das associagdes recreativas e culturais na cidade de Sao Paulo. Sao eles homens e mulheres negras que se caracterizam como grupo por uma série de caracteristicas comuns. Sao pessoas de classe média .ainda moradores da cidade de Sao Paulo, que conseguiram criar seus filhos, possuem uma casa propria, uma aposentadoria. Estas caracteristicas constituem o presente No passado, foram jovens de origem humilde, filhos de empregadas domésticas, lavadeiras, marceneiros, costureiras, entre outras profissdes. Nao tinham profissdo definida, ingressaram no servigo piiblico, em cargos subalternos. Em geral tiveram uma infancia pobre, vivendo e observando a luta dos pais para crid-los. A trajetoria desses senhores ¢ senhoras foi marcada pela dificuldade O racismo aparece principalmente nos espagos de trabalho, nas escolas, na igreja. A oportunidade para esses senhores foi o ingresso no servigo publico: eram empregados nos Correios ¢ telégrafos, na Rede Ferrovidria Federal, no Forum, entre outros. Foram absorvidos no mercado de trabalho em fungées subalternas, eram continuos, serventes, porteiros, mensageiros, ajudantes gerais. O cotidiano desses senhores era marcado pela luta. Os salarios. embora regulares, eram infimos, obrigando-os a procurar "bicos", O grande projeto de todos era a casa propria e 0 estudo dos filhos. Esse quadro encontrado na pesquisa se reverte em relagao ao lazer Nos finais de semana, as familias desses homens e mulheres freqiientavam as atividades recreativas e culturais negras. Essas associagées surgiram a partir da década de 20, a principio vinculadas a incipiente imprensa negra. Na cidade de Sao Paulo, o que havia de mais tradicional era a Irmandade Nossa Senhora do Rosario dos homens pretos. Essas associagdes promoviam também bailes, piqueniques. Muitos clubes surgiam por vontade de um grupo. As primeiras festas eram promovidas nas residéncias do grupo original. As mulheres levavam comida, os homens as bebidas. Havia a danga, a musica. Os homens organizavam times de futebol de varzea, alugavam o campo. organizavam os jogos. Conforme 0 grupo fosse crescendo, havia necessidade de criar estatutos, regras para a freqiiéncia e funcionamento das associagées. As associagdes se dividiam em recreativas e culturais, as vezes a soma das duas. As associacées foram criadas em fungdo da necessidade do lazer entre os negros. Nos clubes de origem européia, 0 negro nao podia entrar, nao eram aceitos em seus quadros de associados. A partir desse histérico, estamos diante de um grupo que, com o desenrolar de suas trajetérias individuais, se congregava no espago do clube negro. A convivéncia entre os freqiientadores das associagdes acaba por criar uma identidade de grupo ¢ nesse espago havia a criagao de valores, x cédigos e regras de conduta que possuem existéncia propria sdo elaborados socialmente por esses freqtientadores Essas associagdes sao marcadas pelos valores do grupo. Ha a preocupacdio com os freqiientadores, sua origem. sua idoneidade, seus antecedentes. Sao atividades familiares, onde se troca experiéncias, travam- se amizades, encontram-se pessoas com os mesmos objetivos. A freqiténcia as associagées trazia para 0 negro visibilidade, respeito, valores que fora daquele espago nao havia. ‘A preocupagao com o rigor moral, as roupas, ¢ 0 orgulho de ser negro so os dados recolhidos nos depoimentos. Os conflitos, 0 processo de branqueamento aparecem nos entrevistados que se recusam a admitir 0 racismo. Sao siléncios. Siléncios que Pollak*” caracterizou como proprios das memorias subterraneas, isto é, meméria de grupos marginalizados, excluidos, que se confronta a meméria oficial. Os siléncios, “nao ditos" sio, para o autor, reveladores da angiistia de nao encontrar um interlocutor, de ser punido por aquilo que se fez, ou ainda se expor a mal-entendidos. Da teoria da meméria podemos ainda pensar em Bergson’! que possibilitou a relago entre a memoria ¢ o imaginario, a memoria sem correspondéncia com o real, 0 que nos permite interpretar seus significados ¢ nao exclui-la em fungao de uma pretensa objetividade. © estudo da meméria aparece nesse trabalho como um recurso metodolégico. Mais precisamente, sdo as teorias da memoria que trago aqui, para desvendar essa histéria submersa. “© Pollak, Michael - "Meméria, Esquecimento, Silencio In Estudos Historicos 3- Memoria , Sdo Paulo, Vertice, 1989 “Bergson, Henri -Matéria ¢ Memoria. Sio Paulo, Martins Fontes, 1990 © trabalho com a meméria possibilitou-me a aproximagdo com 0 vivido pelo grupo, Ele permite revelar angustias, tensdes, prazeres, Assim sendo, meus interlocutores tornam-se sujeitos de suas proprias historias. Trabalhar com a meméria proporcionou-me ampliar os horizontes intelectuais, permitiu-me quebrar barreiras da nossa formagao positivista, sempre preocupada com a linearidade, a objetividade cientifica. A linearidade e a viséio sincr6nica da historia foram pontos de tensdo. Muitas vezes, senti necessidade de contextualizar as falas dos interlocutores. Recorri a histéria fatual por estar angustiada com o que ouvia e com pontos obscuros dessas falas. Aos poucos esta tensdo foi diminuindo. Pude até confrontar os dados, e em alguns momentos a historia fatual foi importante. Ela me ajudou a contextualizar as falas dos meus interlocutores, entender que os grandes acontecimentos historicos que marcam o periodo, marcam também suas vidas. Acredito que esta intersegdo dos dados torna o trabalho com a memoria mais rico. trabalho com a memoria permite também a utilizacdo de outros dados, outras analises pertinentes que, nado excludentes com o recurso metodolégico, ao contrario vém somar e enriquecer. A Antropologia como ciéncia interpretativa no entendimento de Geertz” esté a procura de significados. E preciso mergulhar nessas dimensées da vida social ¢ indagar a sua importancia O estudo da meméria procura interpretar esses significados. Na verdade, a interpretagdo que a teoria da memoria possibilita é entender o grupo, visto de dentro e nao externamente. © estudo da meméria possibilita também ao grupo, como diz Halbwachs: "Um quadro de si mesmo que, sem divida, se desenrola no * Geertz, Clifford - op. cit, tempo, ja que se trata de seu passado, mas de tal maneira que ele se a reconhece sempre dentro dessas imagens sucessivas. Halbwachs. M. - op. cit. pg. 88 26 Técnicas de pesquisa Foram entrevistados em média 3 pessoas de cada associagao negra existente em Sao Paulo. As associagdes so: Clube Coimbra, Associagao José do Patrocinio, Clube Negro de cultura social, Associagdo Cultural do negro, Aristocrata Clube, Evoluidos, Clube KWY, Campos Eliseos, Jornal Novo Horizonte, Clube 220. Em alguns casos, 0 mesmo interlocutor era freqiientador de 2 associagées. As entrevistas foram realizadas nas residéncias dos entrevistados, na minha residéncia, em locais de trabalho, na Associagao dos Aposentados dos Correios ¢ Telégrafos e na Igreja do Rosario. Ao todo foram 20 entrevistas, com a duragdo média de 4 horas, num total de 80 horas aproximadamente. As entrevistas foram feitas com senhores e senhoras entre 60 ¢ 85 anos. Aescolha da década de 30 como marco inicial desta pesquisa foi feita em fundo de alguns recortes hist6ricos e também por ser aproximadamente a década em que os pais dos meus interlocutores formavam a populag’io ativa da cidade de Sao Paulo. Meus interlocutores nasceram por volta 1922, seus pais nasceram provavelmente no inicio do século, por volta de 1902, assim na década de 30 tinham em média 28 anos." * 0 negro comega de fato a se integrar no trabalho com uma idade avangada, em torno de 28 anos. Esse fato ¢ explicado por Florestan Fernandes,( A integragio do negro na sociedade de classes) como revelador das condigdes econdmicas precdrias que o negro se encontrava no inicio do século. que 0 obrigava a viver de pequenos expedientes ¢ a ndo ter um salério fixo, ou melhor um emprego. Esta constatacdo aparece também entre na meméria dos velhos negros. na tese de Teresinha Bernardo- Memsria.em branco e negro: um olhar sobre Sto Paulo, tese de doutoramento, PUC, S40 Paulo, 1993. A maioria dos entrevistados acabavam fazendo parte da diretoria dos clubes, alguns eram apenas freqitentadores. A pesquisa foi ficando restrita a pessoas que se conheciam entre si ‘Alguns senhores me indicavam outras associages e me davam nome de pessoas que muitas vezes ja haviam sido entrevistadas. ‘As historias comegaram a se repetir, e esse foi um sinal para 0 que chamamos de bola de neve."* O tema se esgotou na medida em que as informagées foram se repetindo. Durante o trabalho de campo, e devido a idade avangada de alguns deles, dois entrevistados faleceram e um ainda vive, mas esté em situagao critica de satde. As entrevistas foram gravadas com a permissao dos senhores ¢ senhoras. Essas fitas serao doadas a partir da concretizagdo de um antigo sonho: um centro de meméria dos negros paulistanos. E impressionante como nao ha registros escritos de toda essa historia. Os arquivos dos clubes se perderam em disputas pessoais, no abandono simplesmente; outros arquivos sumiram misteriosamente. Para reconstruir essa histéria recorri a diversas fontes das mais inusitadas possiveis. Sendo a década de 30 um marco inicial ¢ tendo os interlocutores em média 70 anos de idade, essa historia anterior 4 década de 30 atinge os seus ascendentes diretos, por isso foi necessario recuar no tempo para 0 pos- aboligao. +5 4 idéia de "bola de neve", como técnica de pesquisa na histéria oral, seria todo 0 proceso cumulative onde as informagées recebidas fossem continuamente conftontadas ¢ reformuladas até que as relagées sociais se tornem claras e suficientes. Ver Aspésia Camargo : "Os usos da historia oral © da historia de vida: trabalhando com elites politicas In Revista Dados. Revista de Cincias Sociais, Rio de Janeiro, vol. 27. nl, 1984, pg.23 28 Como a iinica fonte da visio dos negros pés-abolig’io € a chamada Imprensa Negra, podemos fazer uma leitura daqueles periddicos ¢ chegar a um denominador comum, qual seja, os negros estavam efetivamente lutando por um espago na sociedade que estava sendo construida com elementos de diversas ragas e culturas, e ainda construindo seu lugar num pais que comumente era tratado como um pais de estrangeiros: euro-brasileiros € afro-brasileiros. Utilizei, ainda, a literatura disponivel sobre 0 periodo de que estamos tratando, bem como outras fontes, como 0 trabalho de Florestan Fernandes, que a seu tempo se dedicou a pensar as relagdes raciais no Brasil, assim como, Roger Bastide, Oracy Nogueira, Bob Slenes e Lilia Schwartz. Existe ainda alguns fragmentos dessas historias, disponiveis em locais inusitados como o arquivo do D.E.O.P.S. onde havia registros das associagdes negras. Outro documento importante para a pesquisa foi encontrado, guardado a sete chaves, na Secretaria Municipal de Cultura, sobre as liderangas negras de Sao Paulo. Essa preciosidade foi o registro do encontro entre eles, ocorrido em 1988, por ocasido do centenario da Aboligao. Essa fonte é hoje importantissima porque muitos depoimentos sao de pessoas que ja faleceram, como o Sr. Correia Leite e 0 Sr. Raul Joviano do Amaral, ambos figuras lendarias de Sao Paulo, que participaram desde a Irmandade, jornais negros até o atual Clube Aristocrata. Outro trabalho especial foi publicado pela Pinacoteca do Estado de Sao Paulo, em 1977, relativo a exposigdio: " A Imprensa Negra em Sao Paulo: 1918/1965 ". Exposigao realizada de 31 de maio a 26 de junho de 1977. 29 Como técnica de pesquisa utilizo a historia oral, que segundo Thompson” pode ser construida através de uma coleténea de narrativas utilizadas na construgéo de uma interpretagao histérica mais ampla, agrupando-as como um todo ou fragmentadas em torno de temas comuns. Na pesquisa, essa técnica foi utilizada quando uma série de fatos rememorados pelo grupo foram possiveis de serem agrupados em temas comuns a todos os interlocutores. Esses grandes temas sao 0 trabalho, o racismo eo lazer. Outra técnica de pesquisa apontada por Thompson que considero nao seja excludente da primeira seria a utilizagao da evidéncia oral como fonte a partir da qual se organiza o texto expositivo."? Particularmente, utilizo essa técnica no terceiro capitulo, onde procuro realizar a etnografia dos clubes. E assim utilizo a evidéncia oral para reconstruir a trajetéria dos clubes negros. Assim pretendo nesta dissertagdo organizar os capitulos e o caminho da analise em fungao das narrativas dos velhos ¢ velhas. No primeiro capitulo trato da questdo crucial para todos: a quest&o do trabalho e da sobrevivéncia na cidade de Sao Paulo. Chamei o capitulo de O lugar do trabalho porque ¢ realmente o lugar reservado para o negro, na dindmica das relagdes raciais e sociais da cidade. O trabalho aparece na fala dos meus interlocutores como a esséncia, como 0 ponto de partida, por isso reservei 0 capitulo I, justamente da forma como eles apontaram. No segundo capitulo, aparece o racismo como a experiéneia comum entre todos meus interlocutores. E o racismo que marca o grupo, que 0 “Thompson, Paul - A yoz do passado. So Paulo, Paz. ¢ Terra, 1992 “"-Thompson. Paul -op. cit, define enquanto tal. Sdo as experiéncias compartilhadas que aparecem na meméria do grupo. No terceiro capitulo ¢ tratada a questo do lazer. Tal como o primeiro capitulo, o lazer também tem o seu lugar, é gerenciado e criado pelos negros € para os negros Nesse capitulo, so registradas as informagdes dos interlocutores, a etnografia das associagdes suas caracteristicas, _informagdes complementares. Aqui, as lembrangas aparecem como sonhos : 0 projeto de cidadania dos negros ¢ negras entrevistados. Ternino a dissertagdio com a conclusao, onde fago as consideragdes finais ¢ aponto perspectivas. Finalmente, espero corresponder as expectativas, principalmente daqueles com os quais me fiz interlocutora: os senhores e senhoras que pacientemente me contaram as suas historias. Juntos procuravamos nesses encontros entender 0 que se passa neste pais tao rico em sua composi¢ao étnica € tio cruel nas suas relagdes raciais, Capitulo I O Lugar do trabalho O lugar do trabalho é fundamental para os meus interlocutores, € 0 ponto-de-partida, ¢ 0 referencial de suas vidas, o trabalho traz alegria ¢ dessabores, é a partir dele que se definem as relagdes sociais. A familia, por exemplo, exerce papel de destaque; é a motivagdo para a procura da sobrevivéncia e além disso, justificadora para o bem estar ¢ as perspectivas de futuro, Para entendermos o lugar do trabalho e o papel da familia ¢ preciso contextualizar historicamente ¢ acompanhar o desenrolar do tempo que se constitui a historia de vida de cada um dos meus interlocutores e do grupo de forma geral. A década de 30 foi um marco na historiografia oficial que estabelece o fim da Republica Velha e a tomada do poder de Getilio Vargas. Foi um momento de ruptura com as velhas oligarquias e o Brasil tinha como perspectiva a modemizagio, industrializagai , bem como tratar a questo social, particularmente a questo dos trabalhadores, latente pela ascensdo ¢ crescimento de toda uma camada urbana. Nesse sentido, todo esse movimento por reformas vem atingir em cheio os ascendentes dos velhos e velhas negras. Se deslocarmos a anilise para o final do séc. XTX ¢ inicio do séc. XX. tivemos a abolig&io da escravidio e como conseqiiéncia uma grande massa de ex-escravos sem profissdo definida, sem escolaridade e sem moradia deslocou-se do campo para a cidade 32 Particularmente Sao Paulo foi o exemplo completo dessa situagdio, pois todo o capital gerado pela produgao de café se concentrou aqui e foi aplicado nas primeiras industrias, tomando-a um polo de atragéo populacional. Sérgio Silva” aponta que o maior fluxo de escravos oriundos das fazendas de café se concentrou na cidade. Os escravos de ganho, igualmente importantes e em grande volume, ja estavam acomodados na cidade, vivendo de pequenos expedientes e quase sem vinculo com seus donos, na medida em que alugavam quartos, locais para dormir, até mesmo antes do fim da escravidao. Portanto, Sao Paulo, em pleno final do séc XIX ,ja engendrava uma série de contradigdes: era o centro da economia brasileira com a produgaio de café, estava também em formagdo o centro da industrializagdo e da modemizagao; por outro lado, era também o palco de disputa entre trabalhadores, ex-escravos e ainda de imigrantes europeus oriundos do campo, ou que chegaram e acabaram ficando na cidade. Eram tempos dificeis, os pais dos velhos e velhas negras sentiam dificuldades imensas com a sobrevivéncia. Assim em suas Jembrangas afloram: Nés éramos de Pogos de Caldas, minha mae era lavadeira, meu pai era de_—‘Ribeirdo Preto, Minas(sic), meu pai ndo queria lutar na Revolugdo de 32 porque era mineiro. Meu pai morreu e minha mae tinha 8 {fithos. De Minas fomos para Ribeirato e depois para Sao Paulo. So Paulo foi 6 sofrimento, foi morar em cortigo. Havia fiscalizagao e nao podia ultrapassar 0 mimero de ~ Silva, Sérgio - A expansio cafeeira e origens da indistria no Brasil. Séo Paulo, Alfa-Omega, 1978 pessoas por comodo, Komos parar na rua. A patroa da minha mae ajudou. D, Nilza-68 anos - Irmandade Neste depoimento ha um pouco da situagdo descrita acima, o deslocamento de Minas para Sao Paulo, a falta de profissionalizacao. a questio da mulher negra como cabega da familia, nota-se que ela nao menciona a profissao do pai. ‘A mulher sem profisséio tinha como saida o emprego doméstico. A maioria dos meus interlocutores tinham as maes como empregadas domésticas. Esta lembranga ¢ um exemplo tipico da vida da familia negra, em especial da mulher negra: Meu padrinho era o livreiro Saraiva, ele era portugues... ele me dava livros ¢ cadernos minha mae trabathava na casa dele, como cozinheira, justamente quando eu nasci, foi ele e uma fitha dele que me batizaram. Bira - 67 anos -Clube 220 As primeiras 3 décadas do séc. XX foi um periodo de desemprego, de concorréncia ferrenha para as poucas vagas existentes, principalmente para aqueles que nao tinham profissao. 0 papel da mulher foi lembrado: Pode pér ai no seu trabalho que 0 problema da mulher negra, ela ajudou muito o homem, porque teve época que ela tinha trabaiho ¢ 0 homem negro ndo tinha. Porque ela cozinhava comida, trazia a comida de noite para a casa, para a turma, e por intermédio dela se arrumou muito emprego pro negro, porque ela entrava na casa do homem do poder, arrumou muito emprego para o negro. Pode por isso ai.. Sr. José Aparecido- 68 anos- Clube Coimbra Este meu interlocutor revela a preocupagao em destacar o valor da mulher negra, como chefe de familia ¢ responsivel pela sobrevivéncia do grupo. Alguns entrevistados tinham os pais em profissdes definidas como costureira. marceneiro. Mesmo com profissdes definidas havia dificuldade, como lembra uma das entrevistadas: Eu sou de Campinas, nasci em Campinas, Vim aqui para Sao Paulo com 9 anos de idade, mas quando nés viemos aqui havia jd 0 racismo Quando nés viemos aqui fui morar na Méoca, e Id era o reduto dos hungareses ¢ lituanos, E minha mée era modista, e antigamente usava por folha de figurino na janela para ser costureira. Vinha o pessoal na porta, minha mde vinha, ai o pessoal: - Ah! Negro! Negro nao! E com isso a gente foi acabando o que tinha, e a gente foi ser emprega D. Pedrina - 77 anos - Associagao Cultural do Negro. No que podemos observar, mesmo o negro e no caso especifico, a negra com profissdo definida como a de costureira softiam com o racismo da cidade. A concorréncia com o imigrante europeu era sem precedentes, ¢ na obtengao de emprego, principalmente nas profissdes definidas, o negro era preterido. Na realidade 0 mercado de trabalho antes de 30 constituia a forma objetiva do racismo. O negro passou de escravo a cidaddo, contudo a sociedade paulistana nao absorveu essa mudanga de categoria, permanecendo presa ao passado escravocrata e se recusando a admiti-lo como um igual. Sérgio Silva aponta "Sabe-se que os preconceitos raciais encontram, muitas vezes, as suas origens na escravidao. As dificuldades da passagem do trabalho escravo-para o trabalho assalariado, em particular a resisténcia do ex-escravo a disciplina capitalista do trabalho, esta certamente ligada a manutengao de tais preconceitos."*" Lilia Schwarcz’' caracterizou primorosamente 0 século XTX, quando trabalhou com a imprensa branca da cidade e¢ revelou o receio dessa populagao representada nos jornais, em relagdo aos negros. O negro assumia papéis teriveis no imaginario dessa elite. Era 0 traigoeiro, 0 bébado, o suspeito nimero | de crimes Como poderia essa mesma elite empregar os negros? A mulher negra era admitida nos lares brancos porque a visio do senhor de escravos era uma visdo sexista de que a mulher nao apresentava perigo maior, era mais décil, controlavel do que o homem negro. op. cit. pg. 46 *! Schwarez. Lilia M. - Rs sm branco ¢ negro. jornais. ¢ no final sfculo XIX. Sto Paulo, Companhia das Letras. 1987 36 Essa pode ser uma pista da insergao das mulheres em empregos domésticos. Outro fator importante que explica o fato das mulheres continuarem a ser domésticas ap6s a aboligao era a falta de perspectiva: a maioria no tinha escolaridade, ¢ ainda havia uma caréncia generalizada de trabalho e, no quadro de discriminagao, a mulher negra era a tiltima a ser admitida em um emprego. Lelia Gonzalez, ao fazer um balango do papel da mulher negra na sociedade brasileira aponta que como escrava a mulher era em menor mamero ¢ trabalhava em duas categorias: o eito ¢ a mucama. Com raras excegdes, tiveram um papel de importancia nas revoltas escravas. Apés a aboligao essa mulher continuou principalmente a ser mucama, para manter-se empregada e sobreviver com sua familia Podemos pensar que o papel da mulher negra foi fundamental para a sobrevivéncia do negro. A mulher faziara ponte entre o mundo dos brancos ¢ sua familia: arranjava emprego, comida, roupas, escola para seus maridos ¢ filhos. Essa situagdo comega a se delinear no periodo pés-aboligao. Florestan Fernandes ** descreve os primeiros anos pos-aboligdo como um momento de extrema miséria, responsdvel até por uma diminuigao da populagdo negra. Ainda responsabiliza o Estado por abandonar os negros 4 propria sorte. A questo social desse periodo anterior a década de 30 era a questo do trabalho. As camadas médias urbanas constituidas por operarios, comerciantes, artesdos e prestadores de servigos estavam sem legislagao trabalhista. Nao havia jomada de trabalho pré-fixada, néio havia férias, carteira de trabalho, ‘Gonzalez, Lelia ~" A mulher negra na sociedade brasileira" In O lugar da mulher . varios autores, Rio de Janeiro, Graal, 1982 © Fernandes, Florestan - "Do escravo ao cidadiio" In Brancos e nesros em Sao Paulo, Sd0 Paulo, Companhia Ed. Nacional, 1971 37 FGTS etc. A regulamentagao vinha com a boa vontade do empregador. Assim, a oposigao capital-trabalho era totalmente baseada na livre iniciativa, sem a intervengao do Estado. Com a Revolugao de 30 e 0 contexto mundial, marcado pela crise de 29 e a Segunda Guerra Mundial 0 Brasil voltou a crescer, principalmente com as pequenas indistrias que substituiam os produtos manufaturados estrangeiros. A cidade adquire o dominio da cena. E nela que se concentram os trabalhadores e as relagdes de produgdo essencialmente capitalista.™ Do ponto-de-vista politico e social, todo o discurso do poder era voltado para essa classe trabalhadora emergente da cidade. 0 populismo tinha como grande base de sustentagdo a classe trabalhadora, Todo movimento reivindicatério desse periodo sufocado e ou arregimentado pela politica oficial, através dos sindicatos pelegos e pelo discurso populista do bem estar social, da paz e dos interesses nacionais. Durante a primeira fase do governo getulista, houve euforia, os trabalhadores de forma geral sentiram o impacto das leis trabalhistas. A composigéo racial dos trabalhadores desse periodo pode ser resumida como a maioria de brancos europeus concentrada nos servigos especializados e também na classe operaria. Nos servigos sem especializagaio, como ajudantes gerais, faxineiros, balconistas, carregadores, etc concentrava-se a populagdo negra. Os imigrantes também estavam a frente nas pequenas industrias familiares de fundo de quintal. O comércio também era conduzido por imigrantes. ** Sevcenko, Nicolau - Orfen Extétioo na Metropole. Sio Paulo, Companhia das Letras, 1992 “Pereira, Luiz Carlos Bresser - "Origens étnicas do empresariado paulista” In Revista de Administractio de empresas, S40 Paulo, junho de 1964 Um dos meus sujeitos lembra: Eu nasci em 1921. Fiz até a quarta série, diplomei e fui embora. E nao tinha mais condicéo de ir em frente com 0 estudo porque tinha que pagar tudo. Entao da admissdo pra frente tinha que pagar e comecei a trabalhar numa firmazinha de botées, perto da 25 de marco. Trabalhei ali um bocado de tempo ¢ 0 dono gostava de mim, Era turco. Eu fazia cola Sr. Armando - 75 anos - Associagdo Cultural do Negro. Em varias lembrangas a presenga estrangeira aparece na relacdo patrao empregado: Eu nasci em 1927, em 22 de fevereiro, e hoje estou com 68 anos de idade. Vim para Sao Paulo com 13 anos. Meu primeiro emprego foi numa mercearia de "iidiche". cheguei até a falar um pouco de ifdiche, depois fui para o Licew... ¢ vim para os Correios Sr. José Aparecido O iidiche, referido pelo meu interlocutor, diz respeito aos judeus, Foi utilizado como marca para diferenciar o estrangeiro, aquele que fala uma lingua diferente. No processo de desenvolvimento do capitalismo brasileiro, Sao Paulo mobilizou a mao-de-obra nacional em toro da industrializagao em fase crescente. Nesse momento a populagio negra compartitha dessa disponibilidade de empregos. 39) Como em todo 0 processo de exploragao capitalista , 0 lucro auferido pela industria nascente crescia a proporgao da explorag’io das classes trabalhadoras: negros, mulheres, eriangas, imigrantes sem qualificagio constituiam a massa de trabalhadores. O salario era muito baixo, nao havia regras trabalhistas. Enfim, um prato cheio para a politica populista que Vargas assumiria a partir da constituigao de 34 com a consolidagao das leis do trabalho. Florestan Fernandes® aponta a década de 30 como um marco para a transformacao de mentalidade do negro, que passa a se preocupar com a alfabetizagao, com a aprendizagem profissional, a especializagao. Foi também a partir de 34°” que Getulio Vargas estabelece a proporgiio de trabalhadores nacionais nas empresas estrangeiras, que de forma indireta beneficiou os negros. Havia a constante denuncia de discriminagdo nas empresas estrangeiras. A memoria desta interlocutora mostra a situacado de discrimine muitas vezes explicita: Antigamente o pessoal fazia 0 quarto ano e era técnico de contabilidade. Estudei na Escola Técnica de comércio Sao Paulo fiz, terminei o curso. No primeiro emprego fui e fiz 0 teste. Nos éramos em trés candidatos, nos fizemos 0 teste. Dali a3 dias, fui para saber a resposta. Foi quando cheguei Id, 0 gerente di - Otha por mim vocé era a candidata preferida, °° Fernandes, Florestan - op. cit. pg 69 © § constituigdo de 34 entre outras inovagées, estabelecia a proporgio de trabalhadores brasileiros nas indistrias, Para o tema consultar: Pinheiro, Paulo Sérgio - Politica ¢ trabalho no Brasil . So Paulo, Paz e Terra, 1977 40 mas como aqui é uma firma estrangeira, nao aceita negro. Dai ‘fiquei revoltada, vim chorando. D, Pedrina Mais adiante em seu depoimento, lembra que uma das campanhas da Associagao Cultural do Negro era a denincia de firmas estrangeiras que nao aceitavam negros em seus quadros .... No Mappin nao podia trabalhar negros. Nos fomos a radio ¢ nés denunciamos. E ai o negro foi aceito D.Pedrina®® Os negros que conseguiam ser admitidos em firmas estrangeiras sofriam com 0 racismo na rotina de trabalho. Estas lembrangas sao exemplos Quando comecou o preconceito na Sambra era quando eu estava no escritério. O tinico negro do escritério era eu Tinha os chefes. Embaixo trabathavam os negros que carrega- vam sacos. Trabalhavam e cantavam, suando. Eles falavam: - Essa negrada, com esse barulho. E eu continuava, ficava escrevendo. Eles olhavam para mim e diziam: O Sr. Armando, o Sr. nao é negro, nao. Eu disse: - Nao! Nao sou nao! E minha mde que é. Entéo eles paravam. Sr. Armando * 4 Joja Mappin em sua origem pertencia & ingleses, era uma loja considerada elegamte da cidade. sitwada na Praca do Patriarca. aL Nas empresas estrangeiras vocé podia encontrar negros, mas eles trabathavam no maximo como porteiros. Na minha época de 1913 até 1940, por ai, ndo passava disso: ow era fiscal ou eram continuos. Néo passava disso. Sr. Jodo Rosa - 83 anos Clube KWY e Evoluidos. Ao aprovar a lei que obrigava as empresas estrangeiras a ter um percentual de trabalhadores brasileiros, Getulio beneficiou indiretamente os negros. A mesma medida foi tratada nos servigos ptiblicos.” A populagao negra paulistana ligada a prestagdo de servicos acabou também ingressando no servigo publico, principalmente no federal. Em Sao Paulo, foi grande o niimero de negros nos Correios e Telégrafos, que na época pertencia ao Governo Federal (hoje é uma autarquia), a rede Ferrovidria Federal , o Forum entre outras. Os trabalhadores ingressavam por provas ou por indicagao. Podiam ser empregados parentes entre si. Outro expediente para o ingresso no servigo publico era o apadrinhamento. Nas campanhas cleitorais, muitas vezes o voto era negociado com o emprego no servigo piblico. Meu interlocutor lembra e nomeia o partido: Quando tinha esse presidente, quando o PRP mandava, tinha o Bernardino de Campos .A negrada toda era do PRP. Eram cabos eleitorais, como meu pai. Eles arranjavam emprego, essa coisa toda, mas por intermédio do partido do °° Getilio Vargas através de sua politica nacionalista ao proteger o trabalhador brasileiro. indiretamente beneficia 0 negro. 42 Almeida Prado. Enfim, tinha ld um mimero de homens que gjeitavam a situagdo por intermédio de partido. Sr. Joao Rosa” Os negros ingressavam no servigo piiblico em fungdes subaltemas: Como mostra a lembranga do meu interlocutor ao descrever seus cargos dentro do funcionalismo: .. Depois vim para o Correio e trabalhei como mensageiro. Fui ¢ fiz prova para comegar o trabalho de mensageiro em 1942, na época de Geniilio Vargas. Dat, de mensageiro fui carteiro do telégrafo, en desci para ser car teiro expresso. Sr. José Aparecido Ou ainda tinham oportunidade de trabalho nos momentos de excegao. Como lembra meu interlocutor’ Ja trabalhava no Correio desde 43 que eu entrei como censor postal. Era um servigo excegdo. Era um servigo de guerra. Eu nao era funciondrio. Censurava cartas e censurar cartas sé podia ser executado em épocas de excegao, que ¢é 0 caso de guerras e revolugdes. Agora, quando terminou a Como ja mencionamos, ao consultar os arquivos do antigo D.O.P.S, na pasta referente a Frente Negra cencontramos referéncias a0 PIR.P. da seguinte ordem: era uma solicitagdo do D.LP. aos agentes do Dops ‘para a verificaglo da ligaco dos negros ao Partido Republicano Paulista (P-R.P), principalmente nas ‘idades do interior paulista guerra, que voltou a paz, automaticamente a censura deixou de existir. Entdo nds fomos dispensados em agosto de 1945 e voltamos em 46, Prestamos concurso para funciondrios, Ai sim. nés viramos funciondrios. Mas para aposentadoria foi contacto 0 tempo da censura Sr. Arnaldo, 74 anos, Clube Negro de Cultura Social Esses concursos e provas que os interlocutores lembram s&o provas de portugués e matematica de nivel primario Outra questo importante do servigo publico era que embora qualificado, 0 negro acaba recorrendo ao servigo pblico como a tnica opgao de trabalho As memorias destes dois sujeitos mostram esse fato, evidenciando ainda que homens e mulheres sentiam essa dificuldade: Alé mesmo aqueles que tinham diploma ingressavam no _funcionalismo porque ndo tinham op¢do nas empresas privadas, Eles preferiam ingressar no funcionalismo que tinham certas garantias do que o desemprego. Eram advogados, professores . contadores Silva, 66 anos, Associagao Cultural do Negro Antes eu trabalhava no Banco, Banco Noroeste. Entrei com 14 anos. Com 18 anos entrei no funcionalismo. Quando me formei, fui pedir conselho aos meus pais; e nao satisfeita fui consultar o professor que foi meu paraninfo, Sr. Licurgo. 44 Era um senhor que jé deve ter falecido. Ele me deu 0 mesmo conselho que os meus pais, para nao sair do funcionalismo, Nao for facil, porque eu nunca tive protegao politica, Demorei muito para ter gratificagdo universitdria que eu tinha direito. Maysa, aproximadamente 63 anos, Aristocrata Clube Outro tipo de empresa piiblica que absorvia o negro era a Rede Ferroviaria Federal, que cortava o Estado de Sao Paulo, construida inclusive para 0 escoamento da produgdo de café, além de ser também um simbolo da modernidade paulista. Célia Marinho® aponta a importancia da Rede Ferrovidria para a propagagao das idéias abolicionistas e ainda a comunicagao da cidade, como centro politico e cultural, com o interior. Na Rede ferroviaria trabalhavam os negros em fungdes subalternas: eram os maquinistas, cobradores, carregadores de carga, entre outras fungdes; e na rotina de trabalho o contato entre as pessoas era intenso, propiciando informag@es ¢ trocas. No interior de Sao Paulo, a maioria das familias negras foram constituidas em fingao do emprego na ferrovii ainda ha noticias de que muitas associages culturais e recreativas negras do interior foram criadas por esses negros funcionarios do Estado. A insergdo do negro no mercado de trabalho através do funcionalismo publico, como podemos perceber, foi concretizada de varias formas: pela via politica, através de indicagdes, trabalhos eleitorais; pelo parentesco, pais °" Azevedo, Célia M. Marinho - Onda negra, medo branco, So Paulo,Paz ¢ Terra. 1987 45 empregando filhos, sobrinhos, irmaos, ou ainda por esforgo pessoal através de provas de admissao. Concretamente, o que ocorreu foi um niimero significativo de negros nos servigos publicos, mesmo que em fungdes subalternas, Apesar de proporcionalmente ser um ntimero significativo, esse grupo que conseguiu ter acesso ao funcionalismo acabou por ser pequeno em fungéo de uma maioria de negros que continuavam no desemprego, nos subempregos, na absoluta miséria, Florestan Fernandes™ define esse grupo de negros do funcionalismo como a “elite negra” de Sao Paulo, Era assim chamada porque conseguiram um emprego estavel, conseguiram de fato melhorar suas condigdes de vida em relagdo aos outros negros Essa denominagdio corresponde ao real, no entanto, gera equivocos na interpretagdo dos fatos. pois 0 termo elite significa, nas ciéncias sociais uma minoria prestigiada e dominante no grupo, constituida de pessoas mais aptas e mais poderosas. O problema do termo elite é a associagao imediata que se faz com 0 poder. © poder por sua vez engendra dois grupos distintos: 0 dominado e 0 dominador. Portanto, fica obscura a idéia de que esses negros que tiveram acesso ao mercado de trabalho tenham submetido os outros negros a relagdo de dominagao, A existéncia dos clubes e associagdes negras demonstram que, ao contrario, esse grupo que se destacou no mercado de trabalho tinha uma preocupago com o grupo residual, com propostas concretas de ascensaio social e cultural do negro, através de varias ages , como por exemplo: °° Fernandes. Florestan- op. cit. 46 cursos de alfabetizagdo, supléncia, corte e costura, poesia, canto coral ¢ esportes, Todo 0 esforgo das associagées recreativas ¢ culturais, bem como a Imprensa Negra, demonstra a preocupacdo com os outros negros que ficaram 4 margem da sociedade de classes. Esse era 0 objetivo central de todo o movimento social no meio negro. Podemos encontrar essa preocupagao nos editoriais dos jornais da Imprensa Negra, nos estatutos dos clubes ¢ principalmente na lembranga dos senhores ¢ senhoras negras. Outro problema referente ao termo elite diz respeito a idéia de que o grupo era privilegiado, no sentido de ter melhores condigdes de vida ¢ trabalho. Podemos também dizer que isso era real, mas a idéia de que empregos em servigos subalternos e de baixa remuneragao sé configuram um privilégio se comparados ao trabalho escravo ou ao desemprego. O que pudemos auferir, através da memoria dos interlocutores, € que essas condigdes nao se aplicavam ao negro, porque como ja vimos, 0 trabalho se caracterizava por baixos salarios e fungdes subalternas que nado podiam ser confundidas com um privilégio, com prestigio e assim por diante. Alias, os meus interlocutores, ao rememorarem, foram enfaticos a0 descrever essas condigdes e a luta didria pela sobrevivéncia, mesmo estando empregados Comecei como mensageiro nos Correios. Meu pai era zelador Id ele arranjou para trabathar no elevador. E depois fui para a sala de aparethos e depois fui datilégrafo... Foram 35 anos de luta . Naquele tempo néio era nada facil o negro se desenvolver. Para a cultura néo tinhamos recursos. Minha mde que era costu reira, tinha todo um desespero para me colocar no colégio... Trabathei como biscate, trabalhei no Banco Noroeste para poder completar e cumprir com a 47 despesa da casa... I: assim foram os dias da minha vida, O pior é que nunca vocé ganhava o suficiente para formar os filhos. Sr. Jodo Rosa A lembranga acima ilustra o debate sobre o termo elite: Podemos pensar que para dar sentido ao que Florestan Fernandes** observou em sua pesquisa, em designar um outro termo para esses negros funcionarios piblicos, termo como grupo social étmico, que se fortaleceu enquanto grupo por compartilhar as mesmas experiéncias. Roger Bastide™ identifica esse grupo como a classe média negra, aglutinada por um passado comum de luta contra o racismo. Outra questéo polémica em relag’o ao trabalho de Florestan Fernandes ¢ a sua interpretago sobre a situagao do negro no Brasil. O autor vai buscar na escraviddo a possivel causa da apatia do negro ¢ da sua inadequagio a sociedade de classes.°° Amplamente analisada pela historiografia, a escravidio no Brasil acabou sendo a justificativa imediata e concreta para todos os males das relagdes _inter-raciais. Florestan Fernandes® baseado nessa tendéncia, acabou reforgando essa idéia. Em sua vasta produgo sobre o negro aparece invariavelmente a questdo do trabalhador negro como um apitico, incapaz de reagir a situagao de discriminagao e marginalidade, e essa incapacidade advém do trabalho Fernandes, Florestan- op. cit. Baste, Roger - "Manifestagdes do preconceito de cor" In Brancos e negros em Sao Paulo, Sd0 Paulo, Companhia Ed Nacional. 1971 © Femandes. Florestan, op. cit esse sentido, outros autores importantes tefoream essa idéia, como Furtado, Celso - Formac Eoonémica do Brasil,Sdo Paulo, Companhia Editora Nacional,1970 ¢ Prado Jr. Caio - Historia ‘econdmica do Brasil, Séo Paulo, Brasiliense, Sid 48 escravo, Isso se explica por varias razées, que nao se ligam 4 constituigdo biopsiquica dos negros, mas a heranga negativa deixada pela escravidao."*” Nota-se que Florestan descarta, ¢ isso é um mérito, explicagdes de cunho racial, a apatia advém do sistema escravocrata e nao do negro, De qualquer forma, o trabalho escravo ¢ um referencial, um ponto de partida 68 Florestan cita 0 historiador Caio Prado”: "O trabalho escravo nunca ira além do seu ponto de partida: o esforgo fisico constrangido; nao educara o individuo, nao o prepararé para um plano de vida mais elevado.".° Podemos pensar que esse determinismo estrutural do autor acaba por limitar suas andlises. Como ja mencionamos, do ponto de vista metodologico, Florestan estava preocupado em caracterizar a transigao do regime escravocrata para os sistema de trabalho livre. A partir da década de 70 .a historiografia avanga no sentido de acrescentar novos dados a questio do trabalho escravo. Dois autores tragam criticas importantes ao trabalho de Florestan Fernandes que acabam por desencadear uma nova perspectiva de analise sobre esse momento histérico de transigéio e também sobre as relagdes raciais atuais. Carlos Hasenbalg” ¢ Bob Slenes.”' Hasenbalg aponta: "Do ponto-de-vista tedrico, foi discutida a interpretagdo onde as relagdes raciais pds aboligdo sao vistas como uma ®T Fernandes, Florestan - op. cit. pg. 62 5 Prado Jr, Caio -Formaciio do Brasil contemporaneo.obra citada por Florestan Fernandes, pg. 62 op. cit. pg. 341 © 342 °° Hansenbalg, Carlos - "1976: As desigualdades raciais revisitadas" In Ciéncias Sociais Hoje , Séo Paulo, volume 2, Anpocs, 1983, 7 Slenes, Bob- "Lares negros, olhares brancos: hist6rias da familia escrava no século XIX In Escravidio, Revista Brasileira de Historia, So Paulo, ANPUH,Marco Zero, vol. 8. n 16, margo de 1988 49, area residual de fenédmenos sociais, resultante de padrdes “arcaicos" de relacdes inter-grupais formados no passado escravista. Contra esta argumentagao foi sugerido que : 0 preconceito e discriminagdo raciais nao se mantém intactos apés a aboli¢do, adquirindo novas fungdes e significados dentro da nova estrutura social ¢ as praticas racistas do grupo social dominant, longe de sem sobrevivéncia do passado esto funcionalmente relacionadas aos beneficios simbdlicos e materiais que os branco obtém da desqualificagdo competitiva do grupo negro e mulato.” ” Hasenbalg traz em seu trabalho novas perspectivas e aponta que outros fatores podem explicar, diagnosticar as desigualdades raciais contemporaneas: a desigualdade geografica de brancos e nao brancos, a desproporgdio de negros e negras que vivem em regides mais pobres (Norte e Nordeste) que portanto tem menores oportunidades sécio-econémicas em relagdo a regidio Sudeste, concentra majoritariamente brancos. Outro dado importante ¢ 0 racismo, as praticas de discriminagdo ¢ a violéncia simbélica sobre os negros. Dois mecanismos que se reforgam para a nao mobilidade dos negros. Bob Slenes também contesta Florestan Fernandes, principalmente quando o autor se refere 4 auséncia de lagos familiares entre os escravos e afirma que essa situacdo contribuia para a instabilidade e reprodugdo da forga de trabalho. Novamente Florestan se remete a escravidao como causa da nao integragao do negro: " A vida sexual dos escravos nao encontrava uma expresso normal e reguladora no matriménio.” ‘Hasenbalg, op. cit. pg. 180 Fernandes. Florestan - "Cor e estrutura social " In Brancos ¢ negros em $0 Paulo,S20 Paulo, Companhia Ed. Nacional, 1971. pg. 97 50 Bob Slenes com seus estudos sobre escravos em Campinas no séc.XIX contesta a visio de Florestan e de outros historiadores sobre a familia negra: " © que os estudos recentes indicam ¢ 0 que o peso da escravidio, 9 desequilibrio numérico entre os sexos e a possivel sobrevivéncia de normas favoraveis @ poliginia, nao destrufram a familia negra como instituigéo. Além disso ¢ 0 mais importante, esses estudos sugerem fortemente que a unido estavel constituia a norma cultural no grupo cativo. Podemos pensar que a escravidao desarticulava 0 casamento como instituigdo, no entanto as familias negras monogdmicas existiam muito mais em fungao dos lagos familiares, vinculos afetivos, do que pela "oficialidade" do casamento. Tanto essas afirmagées de Bob Slenes correspondem ao real, que toda a luta dos senhores e senhoras negras desta pesquisa sO faz sentido se pensarmos nessa profunda ligacdo familiar. A luta pela sobrevivéncia nao era individual, significava concretamente a conquista de uma vida melhor para si e para os filhos, através da casa propria e de dar condigdes melhores para os filhos, principalmente pelo estudo.”° Podemos ainda acrescentar que as formas de organizagao familiar no Brasil, particularmente a dos negros, nao corresponde apenas ao modelo patriarcal tal qual nos fora imposto até pela historiografia e estudos sobre familia”? “Slenes. Bob - op. cit. pe 194 § Pachoco, Moema de Paoli Teixeira- As desigualdades sociais em dois tipos de familia In Estudos afto-asiaticos, S40 Paulo, USP, 1989 © Nesse sentido, Mariza Corréa faz um balango dos estudos sobre a famnflia patriarcal brasileira no artigo: "Repensando a Familia Patriarcal Brasileira (notas para o estudo das formas de organizagio familiar no Brasil) ” In Colcha de Retalhos- Estudos sobre a familia no Brasil - varios antores, Si0 Paulo, Brasiliense, 1982 st E preciso relativizar esse modelo patriarcal ¢ admitir outras possiveis formas de organizagao e lagos familiares. Nesse sentido, 0 exemplo da mulher negra, jé discutido acima, reforga a idéia de que o modelo patriarcal precisa ser relativizado, principalmente quanto ao papel do homem como a figura central da familia. Maria Odila” aponta a importancia do trabalho das mulheres escravas € ex-escravas nas ruas, principalmente no comércio ambulante, no século XIX : "Enredadas nos lagos pessoais muito fortes ¢ conturbados que as ligavam as proprietarias, era com 0 desdobramento de relagdes sociais inerentes ao pequeno comércio ambulante que as escravas reconstruiam seus lagos primarios, para além do espago doméstico, chegando a improvisar uma vida comunitéria intensa, pritica dissimulada de uma resisténcia que permitia a sua sobrevivéncia e devolvia 4 sua vida a dimensio social, arrebatada pelo trafico."”8 Essas mulheres que rompem com as barreiras do trabalho escravo € da familia vio encontrar no poder piblico resisténcias, e sobre essas mulheres vao se intensificar a repressdo ¢ a intolerancia , principalmente porque elas seriam elos de ligagdio e meios de contato com maridos e filhos fugidos. Outra questdo importante é 0 suposto vinculo que se faz da familia patriarcal ao progresso econémico, a légica seria que quanto mais organizado o grupo em familias nucleares, mais chances tem de sobrevivéncia. Isso ndo é real. Podemos pensar que ao invés da familia, as estratégias de sobrevivéncia de um grupo pode se dar através de outras 7" Dias. Maria Odila Leite da Silva - Quotidiano e poder cm So Paulo no século XIX, Sdo Paulo. Brasiliense, 1984 78 Dias. Maria Odila L. da Silva - op. cit, pg. 157 52 estratégias, como por exemplo, o apoio comunitario, ou ainda através da mulher. Nesse sentido, temos o trabalho de Carol Stack” que estudou o comportamento sexual de um grupo negro norte-americano que se caracterizava pela pobreza e desemprego. Na auséncia do homem negro, eternamente desempregado, as mulheres tinham o controle da familia e dos recursos econdémicos. Essas condigdes acabaram por gerar novos comportamentos no grupo. A unidade basica deixou de ser a familia restrita e passou a ser um micleo de familiares consangiiineos ¢ nao parentes, constituindo-se numa rede de cooperagao para a sobrevivéncia. Podemos entao coneluir que seja qual for a forma de organizagao familiar, e aqui o modelo patriarcal é apenas um entre outras formas de familia, o que importa para nés, como perspectiva de trabalho, ¢ que entre 0s negros havia sim, lagos familiares que proporcionavam as estratégias de sobrevivéncia. O trabalho ¢ a luta por essa sobrevivéncia em tempos tao dificeis eram movidos por esses vinculos afetivos entre homens ¢ mulheres ¢ seus respectivos filhos, mesmo ndo tendo necessariamente que “oficializarem" ou tomarem como empréstimo 0 modelo cristéo e europeu de familia patriarcal. Para encerrar esse capitulo, podemos concluir que o lugar do trabalho desses senhores e senhoras negras ja estava definido; eram em sua maioria funcionarios piiblicos, que em fungao das condigées histéricas aqui apresentadas , se constituiam numa minoria que tinha como privilégio um ” Stack, Carol - "O comportamento sexval c estratégias de sobrevivéncia numa comunidade negra urbana." In A muther a cultura a sociedade , varios autores, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979 53 emprego fixo e consequentemente a possibilidade de melhorar suas condigdes concretas de sobrevivéncia O objetivo de todos os interlocutores era de uma vida melhor para suas respectivas familias. cotidiano desse grupo foi marcado pela luta. Os salarios, embora, regulares cram infimos, 0 que os obrigava a procurarem um emprego extra em firmas particulares, para conseguirem complementagdo de renda. E, embora empregados, sofriam o racismo no interior do trabalho. No capitulo seguinte, vamos nos ocupar em caracterizar o racismo na cidade de Sao Paulo, através da meméria do grupo. Sao experiéncias compartithadas pelo grupo ¢ rememorados por cada um deles. Capitulo IL A questio do racismo Como podemos avaliar, a luta dos negros pela sobrevivéncia ¢ um lugar no mercado de trabalho era permeada pelo racismo da sociedade brasileira como um todo e particularmente da cidade de Sao Paulo.O racismo sofrido por estes interlocutores estava localizado em situagdes concretas ocorridas em suas trajetrias de vida: aparece na escola, no trabalho, na religiado, na vida social e nas suas relagdes , especialmente, no namoro, casamentos inter-¢tnicos, nas amizades ¢ no lazer. Diante dessa realidade, acreditamos ser necessdrio definir 0 racismo e seus possiveis desdobramentos, em primeiro lugar como uma concepgao ampla . originaria na Europa, num contexto bem definido, e depois como chegou ao Brasil , aqui tomou seus contomos e finalmente atingiu meus interlocutores. Todorov? faz uma distingdo terminolégica interessante para pensarmos no racismo: " a palavra racismo em sua acepgao corrente designa dois dominios muito diferentes da realidade: trata-se de um lado, de um comportamento, feito, o mais das vezes, de édio e desprezo com respeito a pessoas com caracteristicas fisicas bem definidas e diferentes das nossas, ¢, por outro lado, de uma ideologia e de uma doutrina referente as ragas humanas.” ® Todorov. Tzvetan -N6s e os outros: ~ A reflexfio francesa sobre a diversidade humana 1, Rio de Janeiro, Jorge Zahat Editor, 1993 35 Ao fazer essa distingdo, 0 autor chama a face do racismo ideolégico como sendo o racialismo, ou seja, um conjunto de proposigdes cientificas, desenvolvidas na Europa, entre o séc XVIII até meados do séc. XIX Segundo o autor, essa ideologia era constituida de um conjunto coerente de proposigdes que se resumem em cinco: A existéncia das ragas; a correlagao direta entre 0 fisico e a moral; a ago do grupo sobre o individuo; a hierarquia universal dos valores e por tiltimo a politica baseada no saber. O conjunto desses tragos que constitui o racialismo tinha como objetivo dar a essas proposigdes um carater cientifico, Assim, entre os séculos XVIII ¢ XIX, 0 racismo e o evolucionismo se entrelagam e marcaram o pensamento ocidental. O racismo bioldgico tratava de construir 0 mito da inferioridade fisica dos nao brancos. O evolucionismo, especialmente o unilinear, tratava de organizar a humanidade do ponto-de-vista sécio-cultural, tendo como modelo a Europa, estabelecendo, de forma hierarquizada, a superioridade dos europeus em relagao aos demais,forgando inclusive o sentido de unidade da humanidade Lilia Schwarez® ao discutir as doutrinas raciais do sec. XIX , aponta © proprio século XIX como um marco na emergéncia do termo raga, na literatura mais especifica, para diferenciar os grupos, nagdes ¢ povos. Para a autora essa mudanga de orientagdo "inaugura a idéia da existéncia de herangas fisicas permanentes entre os varios grupos humanos". Outro marco importante para a discussdo e o século XIX foi a publicagao da Origem das Espécies de Charles Darwin®* . Preocupado com as origens das espécies animais e vegetais, Darwin construiu sua teoria para 'S_ Schwarcz, Lilia M. - © Espeticulo das racas, Sio Paulo. Companhia das Letras, 1993 ™ Schwarcz, Op. cit. pg. 47 ‘Darwin, Charles - The Origin of Species , New York, Gramercy Books, 1979 56 pensar a Evolugao das espécies, com conceitos tais como selegao natural, evolugdo, selegdo do mais forte, hereditariedade. Para Schwarez®, esses conceitos darwinistas constituem, também , referéncias para os intelectuais, "as maximas de Darwin transformavam- se,aos poucos, em referéncia obrigatéria, significando uma reorientagao tedrica consensual” A amplitude das teorias darwinistas estendeu-se desde o campo social até o politico, eram usados como justificativa para a dominagio colonial A civilizagao ocidental desenvolvida e expansionista propiciaram agdes cuja justificativa estava nesse bloco coerente e cientifico que comprovava a inferioridade dos nao brancos e ndo europeus. Hobsbawm®™” ao discutir racismo, cita a fala de um capitao inglés em relagdo ao seu dominio sobre os chineses: “Trate-os como criangas. Faga-os fazer 0 que sabemos que é melhor para eles como é para nés, e todas as dificuldades com a China chegardo a um fim" Essa frase sintetiza exemplarmente a combinagao entre o colonialismo e o racismo. Aqui os orientais sao tratados como infantis ¢, portanto, incapazes ¢ obedientes. As racas eram " inferiores” porque representavam um estagio anterior da evolugao biolégica ou da evolugdo sécio-cultural. Assim o século XIX é fortemente marcado pela ideologia da civilizagdo e do progresso, ambos privilégios exclusivos do branco europeu e tomados como principios universais. ° Schwarez. Op. cit. pg 55 © Hobsbawm , Eric J. A era do Capital, Rio de Janeiro, Paz.¢ Terra, 1977, pg. 276 387 Em qualquer cultura, em todas as partes do mundo, os estagios deveriam ser tinicos e obrigatorios, caminhando no mesmo sentido, 0 que, em iltima instancia, implica na mesma diregao. No Brasil. 0 racismo como ideologia chegou aos meios intelectuais no séc. XIX e dominou a cena até a década de 30. Lilia Schwarez®* pesquison a influéncia desse pensamento europeu do séc. XIX sobre os intelectuais brasileiros, ¢ optou por estuda-los no contexto de suas instituigdes. Essas instituigdes tinham uma importancia fundamental no séc. XIX, traduziam o pensamento e as preocupagées da época quanto ao futuro da nagdo e do conhecimento cientifico de forma geral, que variava desde 0 campo social a0 da medicina ¢ criminalistica. As instituigdes concentravam em seus quadros todos os intelectuais nacionais, Os museus etnograficos, por exemplo, eram instituigées de peso e tinham essa marca européia, eram: "profundamente vinculados aos parametros bioldgicos de investigagéo e a modelos evolucionistas de andlise"®’ . Igualmente havia ainda outras instituigdes como as Faculdades de Medicina ¢ Direito ¢ o Instituto Historico e Geografico. Os intelectuais brasileiros vinculados as instituigdes se encarregavam de produzir a nivel nacional as possiveis verses e adaptagdes das teorias racistas e evolucionistas européias. Como resultado , temos os autores nacionais que adaptavam as teorias européias realidade brasileira.E viviam num grande impasse intelectual para definir quem éramos nés, nosso futuro e o cardter de nossas relagées interétnicas. ® schwarez - Op. cit. ® Schwarez~ op. cit. pe 67 38 A questdo da miscigenacdo. tratada 1a fora como a degenerescéncia da raga e, portanto, pensada negativamente , aqui era tratada como uma realidade Para alguns intelectuais, a miscigenagao era a perspectiva de futuro , uma oportunidade de “melhorar a raga”, a sucessiva miscigenacdo poderia irazer de volta a raga"pura"ou dar origem a "raga brasileira" Para outros, a miscigena io era o principal motivos de nossa pobreza e desgraca Na realidade, podemos concluir que essas duas vertentes do pensamento racista brasileiro convergem para 0 mesmo principio racista, gual seja, de eliminar o negro na formagao do povo brasileiro, seja diluindo a raga negra em constantes miscigenagdes, seja elegendo o mesti¢o como a originalidade do povo brasileiro Antes do século XIX e da eminéncia da Aboligdo e da Republica, o contexto brasileiro era caracterizado principalmente pela opressao da metropole e a escravidao negra, mantidos e legitimados pelo evolucionismo e pelo racismo. O negro escravo encamava todas as diferencas: era uma outra raga, inferior culturalmente, incapaz intelectualmente e assim por diante. A escravidao € tratada aqui como mengdo . porque € apenas um ponto de referéncia. Nao podemos estudar a questao racial e simplesmente descartar 0 fato de que durante 388 anos os negros foram escravos indiscutivel que durante esse tempo este contigente popualcional viveu em condigdes desumanas. © que podemos avangar na discussio é pensar a escravidao como referéncia mas n&o como explicagao para o racismo de ontem ¢ hoje da sociedade brasileira. 59 A. escravidio. como uma experiéncia degradante para o negro americano. nao pode ser atualmente a justificativa para a nova ordem social e racial que se consolidou apés a aboligao. Acreditamos que a passagem do sistema escravista para o trabalho livre, acabou se tornando o momento chave para entendermos as relacdes raciais atuais, Segundo Foner” “Entre os processos revolucionarios que transformaram o mundo no século XLX. nenhum foi téo dramatico em suas conseqiiéncias humanas ou teve implicagées sociais tio profundas como a aboligéo da escravatura. Realizada por revolugao negra, legislagao ou guerra civil, 2 emancipagdo nao apenas eliminou uma instituigdéo em crescente antagonismo com a sensibilidade moral da ¢poca, como também introduziu questdes dificilimas acerca do sistema de organizagdo econémica e de relagdes sociais que substituiria a escravidao."”' Autores como Degler” tentaram entender o racismo brasileiro . via de regra, comparando-o com 0 racismo norte-americano. Este autor reconhece que a escravidéo em ambos os paises teve caracteristicas semelhantes, no entanto, a aboligéo da escravidao e as relagdes raciais pos-aboligao se tornaram diferenciadas, principalmente em relagdo as leis pos-aboligdo ¢ ao comportamento da sociedade, e como conseqiiéncia as diferengas culturais devidas a circunstancias historicas particulares, ® Foner, Eric Nada Além da liberdade. Rio de Janeiro, Paz ¢ Terra, 1988 ° Foner. Op. cit pg 17 ” Degler. Cari N. -Nem preto nem branco . Rio de Janeiro, Editorial Labor do Brasil. 1976 60 Atualmente, a historiografia nos ajuda a entender a questio racial quando avanga seus estudos sobre 0 papel social do negro durante a escravidao. As revoltas negras sto emblematicas, funcionam como um contraponto para enxergarmos 0 negro sob uma outra otica, ou ainda outros papéis possiveis que no o de escravo. A questo que interessa, e hoje & debate na historiografia, diz respeito a reagao dos negros diante do pesadelo da escravidao. Desde sempre os negros reagitam a escravido: fugindo, organizando quilombos, suicidio, levantes ¢ assassinatos de seus feitores.°> Degler™ informa: "As comparagGes entre a escraviddo no Brasil e nos E.U.A. ressaltam a maior rebeldia dos escravos no Brasil”. A partir do séc. XIX, as revoltas negras se intensificaram, difundindo © panico, medo, e acirrando os debates entre os abolicionistas e os mantenedores da ordem escravocrata. Embora, reconhecida como localizada e as vezes fragi . a luta dos negros se agigantou diante do sistema escravista, que sempre, através de muita violéncia e crueldade manteve os negros apaziguados, na certeza de que diante de tanta violéncia, eles fossem incapazes de reagir. Maria Helena Machado™ analisa os autos de pegas judiciais sobre crimes e fugas dos escravos na cidade de So Paulo e no interior, no séc.XIX. Sao Paulo ¢ todo o oeste Paulista vivenciaram intenso movimento social de libertagtio dos escravos. De um lado, eles se rebelavam contra os seus senhores, ¢ por outro lado. nas cidades, cresciam os movimentos de * Moura, Clovis - Rebelides na senzala, S40 Paulo, Ciéncias Humanas, 1981 ¢ Freitas, Décio - Guerra dos escravos. Rio de Janeiro, Graal, 1990 *Degler - Op. cit. pg 59 * Machado, Maria Helena -O plano ¢ 0 pinico. 0s movimentos sociais na década da aboligfo. Sao Paulo. Eidusp, 1994 61 apoio, ndo so formal, mas de fato, através de agdes ¢ de apoio aos negros fugitivos. Todos esses dados apareciam nas peas judiciais analisados pela autora. Essas agOes libertadoras e as fugas em massa de escravos eram comunicadas principalmente pela ferrovia, principal meio de comunicagao entre cidades do interior do Estado e a capital, e que contribuia para espalhar ainda mais o medo entre os donos de escravos e a sociedade como um todo. O séc. XIX marca 0 inicio do processo de libertagdo dos escravos e aqui ao contrario da historiografia oficial e por muito tempo como um verdade absoluta, a participagdo do escravo nesse processo era negada ou simplesmente colocada em segundo plano; o escravo sempre foi visto como um elemento passivo no processo. Hoje, ao contrario dessa perspectiva, sabemos que 0 negro teve um papel importante na aboligdo da escravidao. Estados como a Bahia foram palcos da insurreigdo negra em grandes proporgdes, no restante dos Estados as rebelides eram localizadas. Essa movimentagdéo dos escravos e a participagdo de uma camada média da populag&o que apoiava essas insurreigdes se consolidaram como fatores internos que propiciaram a aboligao da escravidao. Externamente, a questéo que se colocava era a expansio do capitalismo industrial. Nesse sentido, a Inglaterra como poténcia pressionou © Brasil para libertar os escravos em fungdo de seus interesses econdmicos no mercado exterior, Era preciso com urgéncia mercados consumidores para 0s seus produtos, agora produzidos em grande escala, gragas 4 Revolucao Industrial. A Inglaterra usou de todo o seu poderio para pressionar o Brasil, chegando a se indispor com o Brasil frente as suas constantes violagoes da soberania nacional, e até sua arrogancia diante da resisténcia brasileira em libertar os escravos. Internamente, os levantes de escravos, que foram muitos e em sua maioria sangrentos, com o apoio da classe média branca e letrada, formaram no conjunto 0 processo que culminou com a libertagao dos escravos em 1888. O que estava em jogo em toda essa discussdo sobre a libertagéo dos escravos é que de fato os negros participaram intensamente desse processo. E a grandeza desse feito confere ao negro a capacidade de luta e de indignagao diante de sua situagao de escravo. A partir do momento em que se consolidou a liberdade, o problema que se apresentou para a classe dominante foi o que fazer com os ex- escravos na nova ordem social. Célia Marinho” caracteriza 0 medo que assolou o branco brasileiro face ao negro liberto. A questo que se colocava no momento é se de fato haveria vinganga generalizada dos negros face ao passado de violéncia e opressio. No antigo regime, a ordem era mantida com repressdo, essa consolidada com uma série de restrigdes sancionadas em leis que "domesticavam " 0 negro ¢ mantinham os senhores de escravos tranqiiilos. Com os levantes escravos e a prépria libertacdo, 0 medo tomou conta do pais, segundo Célia Marinho: "Frente a estas expectativas disseminadas de inversao da ordem politica e social, de vinganga generalizada contra os brancos, os ouvidos educados nao sé ouviram como comegaram a falar e sobretudo escrever, registrando todo um imaginario em que se sobressai a percepgao de um pais marcado por uma profunda heterogenia sdcio-racial, Azevedo. Celia Maria Marinho de - Onda nezra medo brance - 0 negro no imaginario das elites século XIX, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987 63 dividido entre uma minoria branca, rica e proprietaria e uma maioria ndo branca, pobre e nao proprietaria."”” O que autora ressalta é que esse medo era reconhecido através da escrita, Lilia Schwarez” confirma esse medo referido por Célia Marinho, quando analisa a Imprensa Branca no final do séc, XIX em Sao Paulo Essa Imprensa branca surgiu, substituindo os jomais de pequeno porte e circulagdo na cidade de Sao Paulo, Foi essa imprensa que criou imagens e tepresentagdes do negro para a cidade e para o pais, Os jornais, como fonte histérica, retratavam 0 panico, receio e as expectativas do pais em relagdio a toda aquela massa de homens e mulheres negros recém saidos da escravidao Para Lilia Schwarz,” a imagem do negro nao era linear, nem tnica, aparece em diferentes segdes e em diferentes momentos, mas fundamentalmente era uma visio negativa: 0 negro escravo fugitivo, feitichista, desleal, ébrio, alienado, incapaz, imoral Reitero que atualmente o que nos interessa diz respeito a intensificagao do racismo apds a aboligdo. Podemos avaliar, com os dados das duas autoras, que houve de fato um aumento das tensdes raciais, na medida em que os movimentos abolicionistas tendiam a crescer e tomar proporgdes, principalmente no espago urbano, na década de 80, e depois atingindo 0 meio rural através das ferrovias ¢ comunicagdes com o interior do Estado de Sao Paulo, particularmente nos cafezais. Os negros correspondiam potencialmente a uma ameaga constante da estabilidade da nova ordem. Azevedo- op. cit. pg 36 ® schwarcz, Lilia Moritz - Retrato em branco ¢ negro jornais .escravos ¢ cidadiios em So paulo no final do século XIX. Sao Paulo, Companhia das Letras. 1987 * Schwarcz , Lilia Moritz - O espeticulo das racas - op. ci 64 Mesmo se pensarmos nos abolicionistas que viam a escravidéo do Brasil como um atraso, 0 que fazer com o negro constituia-se num problema. Concretamente esse medo, panico e a preocupagao com os destinos da nagao acabaram se revertendo em racismo em relagdio aos negros recém saidos da escravidao. Assim, 0 racismo persistiu ¢ tomou nova face. A inferioridade negra nao tinha mais correspondéncia a condigdéo de escravo. A escraviddo acabara. A construgao de uma nova identificagao para o negro vem agora com um novo conjunto de qualificagdes, O negro n&o era capaz de ser um trabalhador livre, o negro nao tinha uma familia estruturada, nao tinha um patriménio, do ponto-de-vista cultural o negro tinha uma religido feitichista; era analfabeto e incapaz. Somada a essas novas qualificagdes houve ainda por parte da elite branca uma intensa campanha para atrair imigrantes europeus. Fato que por muito tempo foi interpretado como uma contingéncia, porque havia falta de mao de obra no pais. Hoje, pode-se até sugerir que 0 projeto de imigragao tinha um cunho racista. A vinda dos europeus contribuiria para diluir a populagao negra, ou na pior das hipéteses para inseri-la num ideal civilizador Degler’ também refere-se a diferenca fundamental entre a experiéncia norte-americana ¢ a brasileira diante do fim do regime escravocrata. No Brasil, 0 medo e o panico em relagéo ao negro se consolidavam em sentimentos confusos de aproximagao ¢ rejeigéo ao mesmo tempo. A intensa mestigagem, caracteristica quase que exclusiva do Brasil, trazia um quadro complicador na nova ordem social pés-aboligdo. Medidas Degler. Op. cit 65 explicitamente racistas seriam complicadas aqui, pois iria atingir muitos membros da classe dominante, que poderiam ter em suas origens sangue negro. A variada gama de mestigos e suas diversificadas posigdes no meio social tornava-se dificil aplicar medidas segregacionistas, tal como ocorreu nos EUA. Nao havia ddio expresso em relagdo aos brasileiros. Os norte- americanos, por sua vez, transformaram o medo em 6dio; as leis tornaram-se mais rigidas com o fim da escravidio. Eram as famosas leis segtegacionistas, vigentes nos EUA. até a década de 60. O mundo negro era radicalmente separado do mundo branco Nao havia convivéncia entre negros ¢ brancos em hipdtese alguma: Bares, restaurantes, clubes, hotéis, sanitarios, énibus eram distintos. "A discriminagéo no Brasil ndéo é a mesma dos Estados Unidos: raramente ¢ admitida, muitas vezes disfarga-se em alguma coisa e as vezes nem ocorre. Resumindo, & muito diferente da discriminagdo aberta, indisfargada e constante, t40 comum nos Estados Unidos, nao sé no sul, como também no Norte. Mas a existéncia dessa diferenga nao significa que nao haja discriminagao contra negros e mulatos no Brasil."!°! No Brasil, a convivéncia social entre ragas era tolerada e o racismo mascarado .Se havia restrigdes, e havia, essas ndo eram explicitas. Concretamente , 0 racismo na sociedade brasileira ¢ particularmente em Sao Paulo apareceu no séc. XIX, sobre varias formas e em novas roupagens: através da preocupagdo com o progresso do pais, através do Projeto de imigragio,através da veiculagao de imagens negativas do negro, como crimes, conflitos, etc, e ainda através do debate sobre a modemnizagdo ea evolugao.! ' Degler. Op. cit. pg 151 * Schwarez. Lilia M. - op. cit

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