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Algumas Orelhas
(Sergi Muppo)

Dedico este conto à minha fraterna amiga Dra.


Rosângela Cipriano

Em 1799 Joaquim Aguiar morreu na ilha


Terceira, Açores, território de Portugal. Deixou
para os dois filhos alguma terra onde criava
gado e plantava uvas.

Pedro, o filho mais velho, sonhava em viajar


para o Brasil. Pedro Aguiar tinha 25 anos e seu
irmão apenas nove. Os dois perderam a mãe
por morte súbita um ano antes. Sem mãe nem
pai fazia pouco sentido permanecerem na ilha
Terceira. A terra herdada foi vendida e foram os
dois irmãos para a região de São João del-Rei,
Minas Gerais no Brasil.

Pedro era como um pai para Alexandre. Como


não havia escola, Pedro ensinou seu irmão mais
novo a ler e fazer contas. Pedro comprou uma
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fazenda com escravos e engenho de açúcar.


Rapidamente o irmão mais velho dos Aguiar fez
a fazenda prosperar. O patrimônio deles dobrou
de tamanho quando Pedro casou com Maria
Inês, uma viúva.

A fazenda ao lado pertencia aos sete irmãos


Gouveia. Jaime, o mais velho, dizia que uma
área conhecida como Morro Branco pertencia à
sua família. Pedro contestava, pois no contrato
de compra da fazenda estava escrito que a área
era dos Aguiar. O clima era tenso entre as duas
famílias.

Anos passaram. Alexandre era um rapaz de 19


anos. Ele tinha uma amante. A bela Nhá Bia,
uma mulata filha de Jonas, um negro alforriado.
Jonas, para o escândalo da região, havia sido
amante de uma portuguesa, e esta morrera ao
dar à luz a menina Nhá Bia. Jonas era um
pequeno agricultor com uma oficina de ferreiro.
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Alexandre gostava de caçar e frequentar a casa


de Jonas e Nhá Bia. Pedro frequentemente
ficava furioso com as ausências de Alexandre. O
mais novo dos Aguiar odiava Davi, o capataz da
fazenda. Alexandre queria o cargo de Davi, mas
Pedro o considerava imaturo e irresponsável.
Alexandre havia voltado de uma caçada
acompanhada de uma noite de amor
despudorado com Nhá Bia. O rapaz levou um
susto ao ver Jaime Gouveia visitar a sede da
fazenda dos Aguiar. Jaime foi enfático:
— Olha Pedro, quero resolver essa
questão do Morro Branco … Lhe dou essa
quantia (mostrando um saco de pano) e você
tira o seu gado da área do morro …

Pedro Aguiar interrompeu com ódio no tom de


voz.

— A área do Morro Branco sempre foi da


família Aguiar e não está à venda.
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Jaime Gouveia olhou para Alexandre e para


Pedro com ódio:
— Vocês vão se arrepender! Vocês estão
ocupando uma área que pertence aos Gouveia!
Estou oferecendo dinheiro para pôr fim na
questão!

Jaime montou no cavalo e foi embora.


Alexandre perguntou ao irmão:
— Por que você não aceitou o dinheiro?
Era só vender a área do Morro Branco…
— O dinheiro que ele me ofereceu não dá
nem para comprar metade de uma área do
tamanho do Morro Branco. E outra coisa: eu
comprei a fazenda de um homem honrado que
descreveu com detalhes no contrato de venda
que a área do Morro Branco é nossa! Esses
irmãos Gouveia estão acostumados a roubar
terra!

Pedro olhou para um pote de barro que


pertenceu ao avô na saudosa ilha Terceira e
falou com tristeza .
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— Alexandre … Por que você fica tantos


dias fora? Essas caçadas… Eu não ligo se você
namora a Nhá Bia, mas me importo sim em ter
que tocar a fazenda sozinho. Você tem que
estar do meu lado e não longe!

Alexandre respondeu com voz embargada.


— Sabe, Pedro… Eu quero estar aqui,
mas sem esse Davi. Alguma coisa me diz que
ele não é confiável. Por que não posso ficar no
lugar dele ?
— É simples. Você não sabe ser duro com
os escravos. Davi é rigoroso com a negrada e é
por isso que temos lucro. Você, Alexandre,
tem que aprender a ser duro.

Maria Inês interveio:


— Parem com a discussão! Vamos tomar
um café! Acabou de sair do forno aquele bolo
de milho que vocês gostam.

Antes dos três comerem, Pedro fez uma oração.


Maria Inês e Pedro eram como se fossem pai e
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mãe de Alexandre. A briga com os Gouveia era o


prelúdio de uma guerra vindoura.

O coração de Alexandre ficou apertado. Pedro


viu lágrimas escorrerem dos olhos de seu irmão.
Maria Inês e Pedro abraçaram-no.

Pedro pediu para Alexandre levar dois cavalos


até Jonas para este trocar as ferraduras. Como a
casinha de Jonas e Nhá Bia era longe, Alexandre
aproveitou para dormir na casa de sua amada. A
liberdade que Alexandre tinha com Nhá Bia
jamais seria possível com uma moça branca
honesta.

Jonas tinha segundas intenções. Queria que sua


filha engravidasse do rapaz rico, para assim
garantir um futuro seguro para Nhá Bia.

No quarto Nhá Bia se pôs a chorar.


— Por que você tá chorando, minha flor?
— Perguntou Alexandre.
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— Eu era uma moça virgem. Agora não


sou mais! Um dia você vai casar com uma moça
branca de família rica e…
— Pare com isso, Nhá Bia! O Pedro aprova
nosso namoro, você sabe disso! Vou casar com
você um dia. Eu juro. Eu te amo, minha flor!

Alexandre consolou Nhá Bia com beijos e


abraços. Naturalmente Nhá Bia tinha razão em
sua insegurança. Mas o ato de se entregar ao
mais intenso amor era uma fuga de tudo.

Após uma noite de amor tórrido e inebriante, na


manhã seguinte veio muita chuva. A solução
era esperar. No final da tarde o tempo melhorou
e Alexandre rumou para sua casa.

À noite a carroça chegou na sede da fazenda.


Algo estava errado. A iluminação da casa
grande estava apagada. Alexandre deixou a
carroça perto da senzala e foi a pé até a sede.
Uma fogueira pequena estava acesa. Ao lado do
fogo havia uma visão tétrica: Pedro estava com
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os braços amarrados no galho de uma figueira.


Abaixo da cabeça toda pele do corpo de Pedro
havia sido arrancada por faca. Pedro ainda
estava vivo. Em agonia profunda conseguiu falar
as últimas palavras para seu irmão.
— Alexandre! Não quero velório! Quero
que você mate esse canalha do Davi! Ele é um
traidor! Se vendeu para o Jaime! Mate esses
canalhas! Dê dinheiro para Maria Inês voltar
para Portugal, por favor! Os Gouveia só não
mataram você porque você não estava aqui
comigo!

— Pedro! Eu juro que vou matar todos os


Gouveia!! Canalhas!! — exclamou Alexandre em
prantos.

— Cuidado, Alexandre! Deus cuide de


você e de Maria Inês! Ah …

Após pronunciar as últimas palavras, Pedro


morreu. Alexandre ficou desesperado. Minutos
passaram e o ódio substituiu o desespero.
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Alexandre ouviu um barulho. Davi estava


segurando um lampião na mão. Davi estava
chamando alguém. Alexandre chegou à
conclusão que o capataz traidor estava a chamar
um dos Gouveia. Davi entrou na casa grande.
Alexandre tinha uma faca. Davi foi esfaqueado e
morreu rapidamente. Um menino negro filho
da escrava cozinheira apontou para fora da casa.
O menino cochichou para Alexandre dizendo
que havia mais dois irmãos Gouveia lá.

A casa grande continuou escura. Um dos irmãos


entrou chamando por Davi.
— Davi ?
— Estou aqui. — Falou Alexandre
imitando a voz grave do capataz traidor.

O Gouveia foi atraído para a armadilha mortal.


Alexandre deu várias facadas no rapaz. Antes de
morrer ele gritou pelo outro irmão Gouveia que
estava do lado de fora. Alexandre teve uma
idéia macabra: cortar a orelha do cadáver como
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item de coleção. E assim foi feito. O outro


Gouveia entrou na casa à procura do irmão.
Este estava armado com um mosquete.
Alexandre o golpeou na cabeça com um pedaço
de pau. Em seguida o matou com facadas e
cortou a segunda orelha para sua coleção.

Maria Inês estava escondida na despensa.


Alexandre foi até a senzala e escolheu dois
escravos para ajudarem na proteção da fazenda.
— Tenho uma boa notícia para vocês dois:
estão alforriados! Me ajudem na guerra contra
os Gouveia. Acabei de matar o Davi.

Alexandre armou os dois agora ex-escravos com


mosquetes. Após meia hora ouviu-se o som da
carroça de Jaime. Alexandre atirou na direção
do veículo, mas errou o tiro. Alexandre gritou.
— Estamos armados, cambada de filhos
da puta!

Os Gouveia acharam melhor recuar, uma vez


que estavam em território hostil. Jaime Gouveia
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soube naquele momento que dois de seus


irmãos estavam mortos. A guerra estava
declarada.

Alexandre levou Maria Inês até o escritório e


deu a ela metade do ouro que Pedro tinha de
reserva. A viúva estava desesperada. Alexandre
falou com firmeza.
— As últimas palavras de Pedro foram
para matar os Gouveia e dar dinheiro para a
senhora viajar para Portugal. A senhora tem
dinheiro suficiente para comprar uma boa
quinta lá. Minha vida de agora em diante será
vingança. Vou colecionar orelhas. Já tenho
duas. São sete irmãos Gouveia. Faltam cinco
orelhas. Não vou sossegar enquanto não matar
todos os Gouveia!

Jonas foi encarregado por Alexandre de


comunicar às autoridades policiais o ocorrido.
Naquele tempo o Brasil era um lugar sem lei —
ainda mais se tratando da região de São João
del-Rei. A preocupação do governo era quase
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somente cobrar imposto sobre o ouro do


garimpo. Diante das enormes milícias mantidas
por fazendeiros, as autoridades policiais junto
com o fórum eram meros órgãos registradores
de história, uma vez que a impunidade imperava
no Brasil e na região de São João del-Rei nas
Minas Gerais.

O juiz mandou convocar Alexandre e os irmãos


Gouveia a deporem no fórum. Somente
Alexandre foi depor. Os irmãos Gouveia não
foram localizados pelo oficial de justiça.

No depoimento Alexandre disse que havia


encontrado o irmão morto e que matou os dois
irmãos Gouveia e Davi em legítima defesa. O
juiz deu o caso como encerrado; como se na
cena do crime tivesse havido apenas a
participação de Alexandre, Davi, Pedro e os dois
irmãos Gouveia que haviam morrido.
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Alexandre deu um dinheiro para o padre realizar


o enterro do irmão. Temendo emboscada, ele e
Maria Inês não foram ao funeral.

Pedro era um homem muito bem conceituado


na cidade. Os quatro cadáveres em frente ao
fórum causaram revolta na população. Foram
poucos os que não se indignaram com os irmãos
Gouveia. No fundo o juiz deu carta branca para
Alexandre vingar o irmão. Naquela época
dificilmente um juiz iria contra a população.

Alexandre pensou em Nhá Bia. Ela não poderia


ficar desprotegida. O rapaz pediu a Jonas que
Nhá Bia fosse morar na Casa Grande.

— Sr. Jonas … Creio ser importante que


sua filha vá morar comigo lá na Casa Grande .
— O que ? Você vai casar com minha
filha? Minha filha só sai de casa casando . —
Respondeu Jonas contrariado.
— Sr. Jonas … A questão não é casar ou
não casar. Os Gouveia sabem que na prática Nhá
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Bia é minha mulher, portanto minha família. Se


ela ficar na casa do Sr., eles vão matar ela. Me
desculpe, Sr. Jonas, mas eu não posso deixar a
minha mulher desprotegida. Prometo que um
dia irei casar com sua filha na igreja. Mas agora
é guerra. Pedro morreu. Maria Inês irá para
Portugal. A única família que eu tenho é Nhá
Bia e o Sr. — Disse Alexandre com voz
embargada e lágrimas escorrendo.

Diante de argumentos tão fortes, Jonas não teve


como impedir que Nhá Bia fosse morar com
Alexandre. Era tudo que Jonas queria. Nhá Bia
soube naquele momento que o rapaz de
sobrenome Aguiar realmente amava ela. A
moça pegou uma muda de roupa e subiu no
cabriolé com Alexandre.

Foram contratados três jagunços. Alexandre


propôs aos negros metade da fazenda para ser
dividida em sítios caso eles ajudassem a matar
dois irmãos Gouveia. Os negros foram libertos
com carta de alforria. Os ex-escravos estavam
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motivados a batalhar para conseguir metade da


fazenda.

Naquela época o sonho de todo escravo era um


dia ser liberto pelo seu respectivo senhor. Eles
não só foram libertos, como foram vingados em
sua honra ao verem o capataz cruel morto pelo
patrão. E ainda por cima diante da possibilidade
de adquirir a própria terra. Com a maestria
instintiva de um general, Alexandre montou um
exército de homens realmente motivados pela
causa.

Apenas dez escravos entre homens e mulheres


estavam trabalhando. O restante se dedicava a
treinar tiro sob a orientação dos jagunços.

Bento Correia era o chefe da jagunçada.


Pistoleiro experiente, Bento ensinava no dia a
dia os segredos da pistolagem.

Alexandre teve um plano para atacar os


Gouveia.
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— Bento, depois de amanhã eles vão para


a missa de sétimo dia dos desgraçados que
morreram.
— Patrão, eles vão escoltados com um
exército de pistoleiros…
— Bento, o dia da missa de sétimo dia é
outra coisa. Tenho uma ideia para hoje à
noite… Nós estamos vigiando as duas entradas
que dão acesso à casa grande deles. Até agora
só vejo trânsito de visitantes. Será que eles
estão todos estes dias sem sair da fazenda?

— Talvez.
— Pois eu digo que não. O Jaime e o
segundo mais velho … Como é mesmo o nome
do infeliz?
— Isaías.
— Ah sim … Isaías. O Jaime e o Isaías
gostam de ficar de madrugada nas tavernas com
mulherada, baralho e cachaça.
— Tá bom, mas qual é o plano,
patrãozinho?
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— Até você, Bento? Já disse que não


gosto de ser chamado de “patrãozinho”…
— Tá certo, mas fale do plano então “Seu
Alexandre”!
— A gente poderia armar uma
emboscada na curva da estrada que vai para a
putaria… Eles com certeza fizeram uma trilha
no meio do mato. A gente não sabe qual
caminho eles estão usando, mas com certeza
estão pegando carreiro no meio do mato a
cavalo pra ir e vir passando despercebidos.
— Patrão, você tá pensando que nem
pistoleiro, sô ! É isso aí Seu Alexandre. A gente
espera eles na saída. Eles tão aproveitando a
lua cheia pra passar de noite.

Na noite seguinte Bento, Alexandre e meia dúzia


de ex-escravos foram até a estrada que dava no
cabaré da Lurdinha, o maior meretrício da
região. Naquela noite uma cantora francesa iria
se apresentar com músicos. Imperdível para
quem gosta de boemia.
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Alexandre e seu grupo viu Jaime, Isaías e mais


dois capangas irem na direção do cabaré. Foi
uma longa espera. O grupo de Alexandre
esperou mais de cinco horas para o grupo de
Jaime Gouveia voltar.

Alexandre estava com a mira em Jaime e Bento


em Isaías. Bento acertou Isaías e este caiu do
cavalo. A arma de Alexandre falhou. Jaime saiu
em disparada. Os africanos acertaram os dois
capangas que acompanhavam os Gouveia.

Os três homens atingidos estavam agonizando.


Bento terminou de matar os dois capangas com
facadas. Alexandre fez o mesmo com Isaías.

— Pelo amor de Deus! Piedade em nome


de Deus! Não me mate! — Gritou Isaías.
— Vá pro inferno, canalha! — vociferou
Alexandre.

Os cavalos e as moedas dos mortos ficaram com


os ex-escravos.
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Bento olhou torto para Alexandre e perguntou


por quê ele não havia matado Jaime.
— A arma falhou. Veja! Esse filho da puta
tem sorte!

Alexandre cortou a terceira orelha para sua


coleção.
Ao amanhecer Alexandre reuniu os africanos
para uma reunião. Um negrinho de uns dezoito
anos foi flagrado voltando da fazenda dos
Gouveia.
— O que você foi fazer lá ? Posso saber?
— Patrãozinho, eu fui visitar meu irmão,
não sabe? Ele tá trabalhando na plantação de
cana do engenho dos Gouveia…
— Quem lhe deu permissão para ir lá ?
— O senhor, seu patrãozinho, o senhor
disse que eu era livre…
— Qualquer homem que faz
compromisso é escravo da própria palavra,
negrinho! Você é um traidor! Aqui não tem
lugar para Judas informante! Lhe dei a liberdade
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com chance de você conseguir um pedaço de


terra! Você não é homem. Você é um safado!

Alexandre matou o rapaz sumariamente com


um tiro de mosquete na cabeça. O patrão
deixou claro à todos que não admitia traição.

— Gente! Hoje nós vamos pôr fogo na


casa grande deles. Hoje à tarde é dia da missa
de sétimo dia dos dois desgraçados que
morreram no dia em que Pedro foi pendurado.
Eles vão escoltados com um monte de jagunços.

Alexandre fez uma longa pausa. Todos sabiam


que o confronto estava próximo. O peso no
estômago, lábios ligeiramente trêmulos e
amargo na boca. Os efeitos da ansiedade e da
adrenalina estavam no coração de todos.

— O plano é matar a jagunçada por lá,


libertar os escravos, roubar o gado e incendiar
tudo por lá. Gente boa, só falta vocês matarem
mais um dos irmãos Gouveia. Sou um homem
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de palavra. Quando matarem o próximo


Gouveia, metade da fazenda será de vocês.
Vocês estão comigo?
— Sim senhor, Patrãozinho. —
Responderam todos em coro.

De longe pôde ser observado três carruagens e


cinco cavaleiros saindo junto para a missa.

Alexandre, Bento e trinta ex-escravos armados


invadiram a fazenda dos Gouveia, mataram o
capataz e três jagunços. Em seguida libertaram
trinta e cinco escravos, roubaram o gado e
incendiaram a casa grande e a senzala.

O gado e os cavalos viraram propriedade dos


ex-escravos. Os escravos recém libertos foram
contratados por Alexandre. Ouro e açúcar do
estoque dos Gouveia entrou no caixa para
despesas da guerra. Mulheres libertas foram
para a casa grande da fazenda Aguiar. Os
homens se juntaram ao pequeno exército da
vingança.
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Depois do ataque Jaime e os irmãos estavam


praticamente falidos. Um dia foram vistos dois
rapazes com bateias garimpando na beira do rio.
Os Gouveia ficaram observando de longe. Dois
dias depois havia cinco rapazes e alguns dias
após quinze. Jaime foi maquiavélico.
— O rio passa em nossa terra. Então o
ouro é nosso. Não vamos matar ninguém,
apenas vamos cercar o garimpo e cobrar uma
parte para nós. Com o dinheiro do ouro vamos
montar um exército de pistoleiros para acabar
de uma vez por todas com a alegria do
Alexandre Aguiar.

O rio estava carregado de ouro. Os garimpeiros


não tinham outra opção senão dar uma parte
para os Gouveia. Jaime foi cauteloso e só
permitiu quinze garimpeiros no rio. Havia um
temor sobre uma possível revolta armada
desses homens.
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Com o dinheiro do ouro os Gouveia


reconstruíram a casa grande. Jaime e os irmãos
ficavam o dia inteiro na beira do rio. Tudo
parecia tranquilo, quase rotineiro.

Um dia, Alexandre resolveu atacar com todas as


forças na direção do rio do garimpo. Não foi um
bom dia. Bento e oito ex-escravos morreram.
Do lado dos Gouveia apenas três jagunços
foram baleados fatalmente.

Alexandre se arrependeu de ter feito um ataque


frontal com cavaleiros. Havia os garimpeiros que
estavam armados e naturalmente reagiram. Os
homens do garimpo tiveram a chance de se
esconder atrás das árvores e pedras. Um
desastre.

Jonas deu sua opinião.


— Vamos fazer uma emboscada. Eles
sempre vão escoltados para a cidade.
— Então pegamos eles na cidade. —
Disse decididamente Alexandre.
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E foi o que ocorreu. Era festa de São João.


Alexandre, jagunços e ex-escravos se
misturaram à multidão. Um ex-escravo dos
Gouveia reconheceu um dos Gouveia e chamou
Alexandre. O ex-escravo o matou com facadas.
Rapidamente a quarta orelha foi cortada para
aumentar a coleção. Alexandre e os ex-escravos
fugiram a galope para a fazenda. A jagunçada
dos Gouveia era mais numerosa. Jaime e seus
capangas foram a cavalo logo atrás.

Alexandre, jagunços e ex-escravos conseguiram


chegar na fazenda a tempo de evitar a morte.

Jaime estava furioso. Decidiu atacar a fazenda


de Alexandre Aguiar com todas as forças. Levou
todos os jagunços, amigos chegados e
garimpeiros ao ataque.

Jaime só não contou que os africanos estavam


armados, treinados e em maior número. Foi um
massacre. Do lado dos Gouveia morreram
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quatorze homens. Do lado dos Aguiar morreram


três ex-escravos.

Houve um contra-ataque surpreendente. Os


homens de Alexandre perseguiram a jagunçada
dos Gouveia até a casa grande deles.

Jaime e seu séquito de cavaleiros fugiram em


disparada até a casa deles. Jaime estava
apavorado com o tamanho e da eficiência da
milícia montada por Alexandre. Os mosquetes
disparavam um tiro de cada vez. Devido a isso
os Gouveia conseguiram chegar sãos e salvos na
fazenda. Foi improvisada de maneira muito
precária uma resistência. Entre Jagunços e
ex-escravos havia mais de cinquenta homens
armados e treinados.

Os Gouveia decidiram fugir. Não seria mais


possível continuar o confronto. Jaime chamou
seu sobrinho para a fuga. O rapaz de uns
dezesseis anos tentou montar no cavalo, mas foi
baleado na perna.
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Jaime e os dois irmãos fugiram a galope para a


cidade. Alexandre tomou posse da terra dos
Gouveia. O rapaz baleado na perna estava
tremendo de medo. Alexandre ordenou que não
matassem ele. O rapaz tentou levar na fuga uma
sacola de couro. Havia cinco quilos de ouro em
seu interior.

— Não matem o coitado ! Ele não


participou do assassinato de Pedro. Mas o ouro
fica comigo — ordenou Alexandre.

Jonas levou Victor Gouveia, sobrinho de Jaime,


até a fazenda de um médico. A bala foi extraída.
Victor sobreviveu. Um homem que trabalhava
para Jaime também foi rendido. Alexandre
mandou esse peão entregar uma carta ao Jaime.
Na carta ficou claro que Victor era refém e que
em qualquer tentativa de ataque o rapaz
morreria.
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Olhando de maneira pensativa, Alexandre


perguntou para Victor:
— Me diga uma coisa rapazinho; sei que é
embaraçoso perguntar isso, mas … Seu pai está
vivo ou morto ?
— Está morto, Patrãozinho.
— Você sabe qual o motivo disso, não
sabe
— Meu pai matou o seu irmão. Acho que
é esse o motivo, não é?
— É Victor … Não é fácil. Eles arrancaram
toda a pele do corpo dele com faca. Pedro
sofreu muito antes de morrer. Apesar de eu ter
jurado para meu irmão matar todos os Gouveia,
você está vivo. Victor: eu não tenho nada contra
você. Mesmo assim, vou trancá-lo na senzala.
Você é minha garantia para que não me
ataquem.

Victor ficou cabisbaixo e seguiu mancando atrás


de um jagunço até a senzala.
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No dia seguinte, no rio do ouro, garimpeiros


estavam preocupados. Queriam saber se o
sistema seria o mesmo. Eles pagavam uma
fração da produção do garimpo para os
Gouveia. Alexandre foi conversar com eles.
— Quanto vocês costumavam pagar aos
Gouveia?
— Um oitavo, uma oitava parte. — Disse
um dos garimpeiros.
— Vai continuar a mesma coisa. — disse
Alexandre.

O rapaz ficou por algum tempo pensando na


vida. Maria Inês já estava há meses em Portugal,
mas ele não tinha nenhuma notícia dela e de
sua família. Nhá Bia era sua mulher, mas ele não
era casado com ela. Era como se ela fosse a
amante antes do casamento. Ele queria dar o
sobrenome Aguiar para ela. Alexandre olhou
demoradamente para o rio e começou a falar
bem devagar.
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— Vocês não querem comprar a área do


rio ? Eu não gostaria de me desfazer dessa área,
mas…
— Um garimpeiro velho foi rápido na
resposta. Nós podemos comprar, qual é o
preço?
— Vinte quilos de ouro.
— Vinte quilos é muito dinheiro. Ofereço
quinze.
— Por dezoito quilos eu posso conversar.
— Fechado. Começamos a pagar amanhã.
— Negócio fechado.

Alexandre tinha enfraquecido os Gouveia de


uma vez por todas. Eles definitivamente
perderam quaisquer chances de obter lucro com
aquela terra. Estavam sem terra, sem garimpo e
sem dinheiro. No dia seguinte foi entregue
metade da fazenda Aguiar para os ex-escravos.
A área foi dividida em sítios grandes. Mesmo
assim metade dos ex-escravos continuou a
trabalhar para o “Patrãozinho”.
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Nhá Bia engravidou. O engenho havia


recomeçado. A contragosto Alexandre comprou
vinte escravos homens e dez mulheres para
tocar o engenho. Naquele tempo não havia
maneira de obter lucro com plantação de
cana-de-açúcar sem escravos. Mesmo assim
Alexandre não se sentia bem com aquilo. Em
seu íntimo nunca concordou com a escravidão.
A realidade daquela época era cruel.

Alexandre mandou Victor para Salvador estudar.


Todo semestre ele teria que pagar um bom
dinheiro para o colégio interno jesuíta. Na
verdade ele não queria Victor perto. Havia um
sentimento de remorso difícil de conviver. A
mãe de Victor havia fugido durante a contenda.
Subitamente o jovem rapaz ficou sem família.

Jaime e seus dois irmãos sobreviventes foram


obrigados a viajar atrás de trabalho. O dinheiro
havia acabado e a guerra foi vencida pela família
Aguiar.
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Nhá Bia deu à luz a um menino. O casal Aguiar


o batizou com o nome de Pedro Aguiar
Sobrinho. Nhá Bia implorou para que Alexandre
desistisse de matar Jaime e o resto dos irmãos
Gouveia. Alexandre era irredutível. Enquanto
não matasse os assassinos de seu irmão não
estaria satisfeito.

Alexandre deixou Jonas, um capataz e Nhá Bia


tomando conta do engenho e da fazenda. Ele
foi atrás de Felipe Gouveia, irmão de Jaime.
Felipe ficou sabendo que Victor estava
estudando no colégio interno jesuíta em
Salvador. De quando em quando Felipe visitava
o sobrinho no colégio.

Um dia Alexandre esperou Felipe na saída do tal


colégio. O Gouveia foi seguido à distância até
um casebre onde morava.

À noite, na rua, Alexandre atacou Felipe com


vinte facadas. Agora restavam dois Gouveia.
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Naturalmente a orelha foi cortada para a


coleção. Cinco orelhas!

Alexandre tinha planos de visitar Victor, mas não


teve coragem de enfrentar o rapaz cara a cara.

O vingador voltou para a fazenda. Os anos


foram passando. Alexandre tentava conseguir
informações sobre o paradeiro dos dois últimos
Gouveia e nada. Um dia uma prostituta
fofoqueira disse que o irmão de Jaime estava
em São Paulo.

Não havia outra opção senão viajar até São


Paulo e frequentar os cabarés da vida. Levou
meses até que o paradeiro do irmão de Jaime
fosse localizado.
Maurício Gouveia era dono de um prostíbulo de
baixo nível. Não foi difícil armar uma
emboscada. Doze facadas foram suficientes
para dar cabo à vida do infeliz. Mais uma orelha
foi cortada. Seis orelhas!
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De volta ao engenho uma surpresa: Victor havia


se formado no colégio interno. Alexandre não
conseguia abraçá-lo. Era um bloqueio. Mesmo
assim Victor o abraçou.

Nhá Bia havia dado a luz ao segundo bebê.


Victor foi enviado a Salvador novamente para
estudar medicina. Todas as despesas pagas pela
família Aguiar.

Os anos passaram. Victor ganhou da família


Aguiar um área de terra para fazer uma fazenda.
Victor Gouveia havia se tornado um médico
conceituado na região de São João del-Rei em
Minas Gerais.

Alexandre viajou novamente. Dessa vez para se


infiltrar nos garimpos da vida. Uma barba
cobria seu rosto pela primeira vez. Com o
passar dos anos seu cabelo foi ficando cada vez
mais grisalho.
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Seu objetivo ao se infiltrar nos garimpos era um


só: Jaime Gouveia. Alexandre não tinha
nenhuma pista, mas sabia que seu maior
inimigo gostava de garimpo e putaria.

Em um dos retornos de suas viagens Alexandre


ficou muito doente. Victor foi chamado para
atendê-lo.
— Já matou meu tio Jaime? — perguntou
Victor em tom irônico.
— Por que essa pergunta? ! Você é o
médico! Se quiser me matar me mate!
— Eu não sou como você. A vingança não
norteia minha vida. Sou médico. Salvar vidas é
a minha missão.

Após três meses de repouso Alexandre sarou.


Um dia Victor viu Alexandre montado no cavalo
e disse:
— É… Ainda bem que você não me
matou! Tá vendo só? Agora você tá curado!
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— Victor … É difícil para mim falar isso …


Mas muito obrigado por ser meu amigo, não sei
como agradecer.
— Acho que o destino quis assim,
Alexandre. Não culpo você por nada. Faria tudo
o que você fez em memória à covardia que
fizeram com Pedro. Meu pai e meus tios nunca
prestaram. Você fez muito mais por mim que
qualquer um dos Gouveia.

Ao ouvir as palavras de Victor, Alexandre se


afastou com o cavalo. Lágrimas escorriam de
seus olhos. O Aguiar não queria que Victor o
visse emocionado.

Alguns anos passaram. Alexandre gastou um


bom dinheiro para o padre casar ele com Nhá
Bia. A sociedade local nunca viu a união dele
com Nhá Bia com bons olhos. Como poderiam
ter filhos sem casamento? Era um absurdo para
a época.
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Dificuldades financeiras vieram e Victor ajudou


Pedro Aguiar Sobrinho a estudar em Salvador.
Alexandre foi trabalhar num garimpo na
província do Mato Grosso. Virou comprador de
ouro. Um dia, por acaso, ficou sabendo do
paradeiro de seu inimigo maior.

Jaime Gouveia trabalhava num garimpo e estava


passando uns dias em Cuiabá. Numa taverna
com prostitutas e baralho Alexandre e Jaime se
encontraram.

Devido aos cabelos grisalhos, a idade e a barba;


Jaime não reconheceu seu inimigo. Aquele
homem barbudo não era parecido com o
sobrevivente dos Aguiar vinte e cinco anos
atrás.

Os dois resolveram jogar baralho. Jaime olhou


para Alexandre com um sorriso.
— Como é seu nome ?
— “Antônio”. Sou de “São Paulo”.
— Prazer. Sou Jaime, sou de Minas Gerais.
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— O que vamos apostar?


— Antônio, tenho um pouco de ouro
dentro desse caixinha de madeira. E você ? Tem
um pouco de ouro?
— Nesse saco saco de couro tenho
também um pouco de ouro.
— Tá certo, Antônio. Antes do jogo vamos
tomar um gole de cachaça. Veja: essa daqui é
cachaça mineira. É ótima. Um brinde!

Os dois tomaram meio copo de cachaça e foram


para o jogo.

Alexandre perdeu de propósito. Jaime Gouveia


ao receber o prêmio da aposta ficou
tetricamente pasmo: ao abrir o embrulho de
couro das mãos de Alexandre, verificou que não
era ouro, mas sim seis orelhas!! Levou um susto.
Olhou para o lado com vontade de fugir. Tarde
demais. Uma facada certeira no coração pôs
fim à sua vida.
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Alexandre o golpeou com mais facadas e cortou


a última orelha para sua coleção. Saiu da
taverna como se nada tivesse acontecido.
Montou em seu cavalo e para as Minas Gerais
pôde finalmente em paz voltar.

Nota

O conto “Algumas Orelhas” é parcialmente


histórico. O que há de real no texto é somente o
local e o método usado pelo vingador. O resto é
ficção. Usei liberdade total na redação. Meu pai,
Rubens Junqueira Portugal era natural de Minas
Gerais. Ele me contou sobre o terrível “Sete
Orelhas”. O início da tragédia ocorreu onde hoje
é o município de São Bento Abade, MG.

Há uma estátua em homenagem ao


personagem histórico. A figueira onde o irmão
do Sete Orelhas foi brutalmente assassinado
existe até hoje. Em meu conto todos os nomes e
fatos secundários são fictícios. Portanto, o leitor
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ávido por leitura de ação encontrará algo


inédito.

Abaixo segue trecho de matéria publicada pelo


jornal O Estado de Minas em 28 de janeiro de
2012 pelo colunista Gustavo Werneck.

Num tempo em que Minas era capitania e a


Justiça estava a léguas de distância dos arraiais –
quando estava! –, o bárbaro assassinato de um
fazendeiro desencadeou a morte igualmente
sangrenta de sete irmãos. Amarrado a uma
figueira, João Garcia Leal, de 43 anos, foi
despelado vivo, sem a menor chance de defesa,
depois da disputa com um vizinho pela
demarcação de terras. Sedento de vingança e
sem apoio das autoridades coloniais, o irmão da
vítima, Januário Garcia Leal (1761 –1808),
considerado um homem bom e trabalhador,
jurou vingança e seguiu os criminosos território
mineiro afora, eliminando um a um. Para
finalizar o ato, cortava a orelha do homem
“justiçado”, salgava e enfiava num cordão. Não
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demorou muito para ser conhecido como Sete


Orelhas. A história, que completa 210 anos e já
foi tema de inúmeras obras literárias, teria se
passado onde é hoje uma propriedade
particular em São Bento Abade, a 256
quilômetros de Belo Horizonte, no Sul do
estado. O local é tombado pelo município e a
saga do justiceiro está a caminho de ganhar
registro como patrimônio imaterial.

Mais do que trazer à tona a violência nos


rincões do Brasil colonial, terras sem lei e gente
para fazê-la ser cumprida, a saga do
personagem trata da ocupação de Minas no
século 18. Os antepassados de Januário
emigraram do Arquipélago dos Açores,
pertencente a Portugal, e se instalaram primeiro
na capitania e em São Paulo. Em seu livro
Jurisdição dos capitães – A história de Januário
Garcia Leal, o Sete Orelhas, e seu bando, o
promotor de Justiça Marcos Paulo de Souza
Miranda, integrante também do Instituto
Histórico e Geográfico de Minas Gerais, conta
41

que as raízes, formação étnica e costumes da


maioria do povo das Gerais estão nos Açores.

“Ao açoriano cabe a primazia de ter sido o nosso


colonizador, o nosso desbravador, foi aquele
bravo que fixou as nossas fronteiras, matou e
morreu pela preservação da nossa integridade
territorial”, diz Marcos Paulo, destacando outra
característica dos ilhéus que os distinguiam dos
portugueses, mais preocupados com o brilho do
ouro. “Os açorianos cultuavam tradições,
reveladas nas festas do Espírito Santo, Divino e
folia de reis. Tinham espírito festeiro e
transmitiram isso aos descendentes, deixando
como legado as rodas de fiar, os teares
domésticos para se fazer colchas de lã, o carro
de boi mineiro e os doces caseiros.

Mas toda essa alegria não foi suficiente para


aplacar a ira de Januário, homem branco,
possuidor de vários bens e pertencente a uma
das famílias mais tradicionais do Sul de Minas,
ao descobrir a morte do irmão – de acordo com
42

os relatos históricos, ele teria visto, do alto de


um morro, a trágica cena de João Garcia tendo a
pele retirada, ainda vivo, pelos filhos do
fazendeiro Francisco Silva. Abandonou a mulher
e o filho, Higino Garcia Leal, e começou a sua
caçada pelos sertões, que duraria seis anos.

Ocupante do posto de capitão de ordenança –


organização da população civil de caráter militar,
para defesa local em caso de ataque de inimigo
–, Januário adotou como primeira providência
apelar para as autoridades, em São João del-Rei,
sede da comarca do Rio das Mortes. Sem
sucesso, devido à inércia do Poder Judiciário
colonial, decidiu fazer justiça com as próprias
mãos, seguindo a Lei de Talião: “Morte aos
matadores”. “Assim, chegou um tempo, em
Minas, que se podia falar na existência de duas
justiças: a do Estado português, lenta,
burocrática e ineficaz; e a dos Garcia, célere,
imperativa e implacável”, diz o autor do livro.
43

Olho por olho

A história do Sete Orelhas passou de geração


em geração e, na infância em Andrelândia, no
Sul de Minas, o futuro promotor de Justiça a
escutou muitas vezes, contada pelos avós.
Adulto, Marcos Paulo decidiu estudá-la a fundo,
afinal ele também descende dos Garcia.
“Pesquisei a genealogia em São João del-Rei e
encontrei também documentos em Portugal e
no Arquivo Público Mineiro, descobrindo que
aquilo que parecia lenda era realidade.” Um
exemplo: “Em 1803, uma moradora da
Freguesia de Campo Belo, então subordinada à
Vila de São Bento do Tamanduá, hoje
Itapecerica (MG), fez representação ao governo
português contra o Sete Orelhas. No
documento, ela cita ‘uma fiada de orelhas’
usada pelo justiceiro”.

O promotor localizou em Lages (SC) o auto de


corpo de delito e o inventário de Januário,
nascido em Jacuí (MG). Depois de anos de caça
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aos assassinos, ele seguiu para a cidade


catarinense, vivendo como comerciante sob
proteção de parentes, já que a colônia açoriana
era grande naquela região. Curiosamente,
morreu com uma pancada na altura da orelha,
depois que a madeira de um curral o acertou.
“Não há dúvida de que Januário passou a
infância ouvindo de seus pais as façanhas do
parente Bartolomeu Bueno do Prado, que
mandou ao governo de Minas, segundo alguns
historiadores, 3,9 mil pares de orelhas de negros
fugidos. Se isso foi verdade, teria influenciado,
de alguma maneira, a formação de Januário”, diz
Marcos Paulo.

O justiceiro não matou sozinho os sete irmãos,


tendo a companhia do irmão Salvador Garcia
Leal e do primo Mateus Luís Garcia. De início, o
bando matou três dos algozes de João Garcia
Leal, quando se preparavam para fugir. Os
restantes estavam em localidades diferentes e o
último se fazia de “santo” perto de Diamantina,
no Vale do Jequitinhonha. Sete Orelhas lhe deu
45

a chance de viver: mandou que ele caminhasse


100 passos e avisou que atiraria; se não
acertasse, poderia ir embora, do contrário…
Não deu outra e, finalmente, o capitão cumpriu
o prometido.

A coroa portuguesa não deu trégua e pôs no


encalço do bando o temido Fernando
Vasconcelos Parada e Souza, o mesmo
encarregado de perseguir os inconfidentes. “Ele
não conseguiu pegar Januário, mas Salvador foi
preso. Já o primo Mateus conseguiu fugir”. O
promotor traz a história para os dias atuais,
lembrando que “se não tivermos um eficaz
aparelho estatal de repressão à criminalidade,
as pessoas que buscarem e não encontrarem
justiça vão fazê-la com as próprias mãos”.

LINHA DO TEMPO
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Século 18 –Início da formação, no Brasil, do clã


dos Garcia, com a emigração dos antepassados
de Januário Garcia Leal, o Sete Orelhas, vindos
do Arquipélago dos Açores
1802 –Em 21 de janeiro, Januário recebe a carta
patente de capitão de ordenança, em Alfenas,
antigo Arraial de São José e Nossa Senhora das
Dores
1802 – O fazendeiro João Garcia Leal, irmão do
capitão Januário, é cruelmente assassinado por
sete irmãos, sendo despelado vivo, amarrado a
uma figueira, em São Bento Abade, no Sul de
Minas
1802 –Januário Garcia Leal jura vingança e,
diante da inércia da Justiça colonial, parte em
busca dos sete assassinos do irmão. Durante
seis anos, o capitão parte em busca dos
assassinos, matando-os um a um
1803 – Moradora da Freguesia de Campo Belo,
então subordinada à Vila de São Bento do
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Tamanduá, hoje Itapecerica (MG), faz


representação ao governo português contra o
Sete Orelhas
1808 –Januário Garcia, então com 47 anos e
vivendo como comerciante, morre em Lages
(SC)
Década de 1820 – Grande parte dos Garcia Leal
segue para as capitanias de Mato Grosso e
Goiás, passando a povoá-las
1990 –Lei Orgânica de São Bento Abade (MG)
determina o tombamento da Figueira do
Tira-couro, onde morreu João Garcia
2004 –Em 12 de abril, Conselho Municipal do
Patrimônio Cultural de São Bento Abade tomba
a Figueira do Tira-couro, com área de 1 mil
metros quadrados, em propriedade particular

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