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A antiga sugestão de parar o tempo

Se inverter o curso do tempo não é possível, resta-nos apenas a esperança de


pará-lo. Mas mesmo o viver num tempo congelado — que é uma condição natural para
partículas desprovidas de massa como os fótons, ou para tudo o que se encontre na
singularidade dentro de um buraco negro — está absolutamente vedado aos seres
humanos. As leis da natureza são muito claras a respeito, mas nada nos impede de
imaginar uma intervenção sobrenatural.
O sonho de parar o tempo encantou a humanidade desde a Antiguidade, e essa
prerrogativa foi atribuída, desde sempre, à divindade. Somente quem vive fora do tempo
pode dominá-lo. No mundo dos escravos de Chronos triunfa o devir, com a sua sucessão
inelutável de nascimento, vida e morte. No mundo sem tempo reina a perene imobilidade,
onde o Ser é; não existe, não muda. A eternidade é a negação do tempo e insinua a
dúvida de que ele é um mero engano, um sonho do qual podemos acordar a qualquer
instante. O fluir do tempo é desvalorizado, torna-se mera representação, que pode ser
interrompida a qualquer momento.
Em “Milagre secreto”, o conto de Borges publicado em 1943 na coletânea Ficções,
um jovem invoca Deus para que pare o tempo. Preso em Praga pela Gestapo na noite de
19 de março de 1939, o protagonista Jaromir Hladik é condenado à morte. É judeu e
assinou uma petição contra o Anschluss, a anexação da Áustria à Alemanha. Isso basta
para mandá-lo ao pelotão de execução. A data marcada é 29 de março, às nove da
manhã.
Borges imagina Hladik como autor de importantes trabalhos sobre o tempo, por
exemplo a Vindicação da eternidade, obra fictícia que ecoava, mesclando os títulos, dois
trabalhos importantes do próprio Borges: História da eternidade e “Uma vindicação da
Cabala”. No primeiro volume da obra imaginária, passavam-se em revista todas as formas
de eternidade idealizadas pela humanidade, desde o Ser imóvel de Parmênides até o
passado modificável de Charles Howard Hinton, um matemático britânico do final do
século xix, autor de obras de ficção científica que em algumas delas se detivera sobre
uma quarta dimensão. No segundo livro, sempre na imaginação de Borges, Hadlik
demonstrava que todos os fatos do universo não podiam construir uma série temporal
coerente.
Na angústia da espera, diante da perspectiva da morte iminente, a principal
preocupação de Hladik é completar a sua última tragédia, Os inimigos, a sua obra mais
importante, destinada a marcar as vicissitudes dos homens. A obsessão em terminá-la
ocupa todos os seus pensamentos, mas faltam poucos dias para a execução e ele nunca
conseguirá.
Assim, chegando à última noite, a mais atroz, Hladik reza: invoca Deus para que
pare o tempo e lhe conceda mais um ano para levar a cabo o seu trabalho. Passa uma
noite terrível, feita de sonhos angustiantes e despertares atormentados. Engaja-se numa
luta pessoal contra o tempo, ou a ilusão do tempo, em meio ao alvoroço dos relógios que,
inexoráveis, nunca param de tiquetaquear.
Ao alvorecer, quando é conduzido ao pelotão de fuzilamento, Hladik já havia
perdido qualquer esperança. Os soldados já estão alinhados no pátio, com os rifles
apontados, e o sargento dá a ordem para atirar. E então ocorre o milagre secreto que dá
título ao conto.
O mundo inteiro congela. Hladik não pode se mexer, mas nenhuma bala o atinge.
O braço do sargento permanece suspenso no ar, enquanto o pesado pingo de chuva que
rolara pela sua face após lhe ter roçado a têmpora parou de correr. O vento se deteve e
uma abelha que voava perto do muro do pátio ficou imóvel no ar, com a sua sombra fixa
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projetada num tijolo. Superado o espanto, Hladik entende que a sua oração foi ouvida.
Terá um ano de tempo para completar a sua obra, mas precisará fazê-la mentalmente,
compondo, ampliando e revendo em sua cabeça os versos faltantes, impossibilitado que
está de se mover, como tudo ao seu redor.
Após um ano de esforços inenarráveis, a obra está completa; ele pôs em ordem
todos os detalhes, com plena satisfação. Falta apenas um último adjetivo. Encontra-o
também. O pingo de chuva volta a escorrer sobre a face, a abelha voa e vai embora, as
quatro balas dos fuzis fazem o seu corpo estremecer. Hladik morre às 9h02 de 29 de
março de 1939.
No nosso mundo contemporâneo, em sociedades que esvaziaram o sentido da
beleza e do sagrado e dedicam todas as energias à posse de bens materiais e à
aparência, a imaginação literária de parar o tempo para concluir uma obra de arte não
goza de muita popularidade. Ao contrário, a antiga sugestão toma a forma de uma
espécie de loucura narcisista. Uma luta pessoal, quase um corpo a corpo individual contra
o passar do tempo, que tem motivações muito menos nobres que as imaginadas por
Borges.
Desde sempre os humanos demonstraram grande atenção ao cuidado com a
própria imagem. Cuidam do seu aspecto porque são conscientes de que em qualquer
comunidade a linguagem do corpo é fundamental para estabelecer relações e hierarquias.
Ornamentos e penteados, tatuagens e máscaras, roupas e cores são poderosos meios de
comunicação: podem significar agressividade ou condescendência, incutir respeito ou ser
instrumentos de sedução.
Cuidar do próprio corpo e disfarçar defeitos e sinais da idade são práticas
documentadas há milhares de anos. Colares, joias, traços de pigmentos foram
encontrados em muitas sepulturas pré-históricas. São famosos os inumeráveis
testemunhos de cuidados corporais e práticas cosméticas entre a elite do antigo Egito e
da civilização greco-romana. A velhice, sinônimo de sabedoria, era respeitada, mas
poucos entre os poderosos resistiam à tentação de mostrar um aspecto juvenil, enérgico,
vigoroso.
O uso de truques e estratagemas para combater o avanço do tempo é, portanto,
uma prática antiquíssima, mas a nossa civilização a transformou numa obsessão. Sobre
ela se desenvolve uma indústria muito próspera; não só hospitais e farmacêuticas que se
ocupam da saúde, mas uma verdadeira fábrica da eterna juventude, que se constrói sobre
a ilusão de parar o tempo só para si, deixando todos os não privilegiados à mercê do
domínio de Chronos.
O sonho de continuar eternamente jovem não cega apenas bilionários ou estrelas
do cinema. A loucura já se insinuou em muitas camadas da sociedade. Todo sacrifício é
bem aceito desde que devolva a rostos e corpos já desgastados um eterno frescor e
apague qualquer sinal que nos lembre o nosso destino inelutável. Ao contrário do que fez
Rembrandt com os seus autorretratos, essas pessoas gostariam de ver no espelho,
conforme os anos passam, uma imagem de si mesmas sempre mais jovem e fresca.
Sonham poder girar ao contrário a moviola da vida.
Assim, circulam entre nós indivíduos de aspecto inquietante que, para esconder os
sinais da idade, mascaram-nos com efeitos frequentemente mais assustadores do que as
rugas e os defeitos que querem ocultar das vistas. Acreditam realizar o sonho de Dorian
Gray e não percebem que exibem em público, no seu rosto, os traços deformados e
grotescos do autorretrato que pensavam guardar no sótão, longe dos olhos de todos.
O tolo, quando procura atalhos para deter Chronos, frequentemente fica cego, sem
perceber.

(TONELLI, Guido. Tempo. O sonho de matar Chronos. Rio de Janeiro: Zahar, 2023).

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