Você está na página 1de 3

Manifesto dos Alunos de Antropologia (ISCTE 2006-07)

MANIFESTO
DOS
ALUNOS DE ANTROPOLOGIA
(ISCTE 2006-07)

Objectivos
O presente documento tem como objectivo manifestar por parte dos discentes do curso de Antropologia
do ISCTE o seu desacordo e preocupação relativamente às mudanças efectuadas nos últimos anos, tanto
no que diz respeito políticas de gestão relativas ao ensino superior em termos gerais, como relativamente
ao curso de Antropologia no ISCTE em particular.

Considerações gerais
A intenção, expressa na nossa lei fundamental acerca da necessidade de estabelecer progressivamente a
gratuitidade de todos os graus de ensino[1], como tantas outras manifestações de boa vontade expressas
quer no normativo legal quer na demagógica verborreia dos nossos políticos e gestores, não encontra
infelizmente na prática mais do que a realidade inversa, dura e crua, com a qual se têm visto confrontados
os cidadãos do país em termos gerais e os alunos do ensino superior público em particular.

A tendência mercantilista, qual neoplasia amoral, instalou-se no país e cresce agora no Ensino Público, à
conta da exploração e sacrifício das famílias, que já tendo uma carga fiscal das mais altas de Europa e um
dos níveis de vida mais baixos, se vêm agora na contingência de ter que pagar o ensino público segundo
critérios de gestão privada, onde o aluno é encarado como um cliente.

Sobre as propinas
As mudanças que têm ocorrido no ensino superior público nos anos recentes, não são mais do que uma
aproximação do modelo público ao privado, em que os gestores, face ao desinvestimento do Estado na
educação, optaram pela iniciativa mais fácil, sobrecarregando os discentes com aumentos brutais de
propinas que são em si um indicador não só de falta de consciência em termos sociais, como mostram que
o acesso ao ensino superior está - em detrimento da capacidade intelectual, único critério de selecção
válido num Estado social que encare o ensino superior público como um garante de investimento futuro
em termos de valências intelectuais - cada vez mais sujeito a critérios de selecção dependentes apenas da
capacidade financeira dos seus clientes.

Relativamente ao curso de Antropologia, as propinas têm nos últimos anos conhecido aumentos
perfeitamente escandalosos, que chegaram ao cúmulo de no corrente ano de 2006/07, a propina assumir o
valor de novecentos de vinte e três euros (€ 923,00)! A inconsciência do valor actual das propinas, além
de mostrarem o mais flagrante desprezo pelo consagrado na Constituição Portuguesa, revela bem a falta
de consciência social vigente, dado o contexto dos lamentáveis salários nacionais médios, onde as pessoas
perdem de ano para ano cada vez mais poder de compra dadas as tendências neoliberais que encaram a
remuneração dos trabalhadores como um custo a ser reduzido. A política mercantilista que tem regido as
propinas nos últimos anos só pode ser encarada como uma manifestação de falta de consciência social
relativamente aos discentes, aparecendo enquadrada numa lamentável e redutora visão empresarial, que
leva a que se encarem os alunos como clientes, para quem tendencialmente o ensino superior passa a ser
um luxo, acessível apenas aos que possam pagar os valores exigidos.

Sobre o modelo de Bolonha


O recém implementado modelo de Bolonha, embora reconheçamos a priori o interesse de um projecto
Europeu comum relativamente ao ensino superior – assim venhamos a conhecer também o mais depressa
possível um nivelamento europeu em termos de política salarial e uma política de saúde e segurança
social também comuns – tem servido para ajudar a perceber que a mera importação de modelos teóricos
transpostos apressadamente para realidade nacional não só não ajuda a resolver os problemas como pode
servir para evidenciar e potenciar algumas das suas injustiças. Apresentamos seguidamente alguns
exemplos:

• Com o modelo de Bolonha, a avaliação contínua passa a ser uma realidade vincada, expressa
através de seminários, debates e leitura obrigatória de textos em carácter semanal. O que se tem
observado todavia é que esta realidade, sobretudo relativamente aos estudantes a tempo parcial –
que estão consagrados no modelo de Bolonha – estão a ter uma extrema dificuldade em
acompanhar o ritmo pretendido, por uma manifesta falta de tempo. A informação relativa a
material teórico disponibilizada com pouco tempo de antecedência relativamente às avaliações
por parte de alguns docentes, também não tem ajudado à resolução deste problema. A lei de
bases do sistema educativo estipula claramente o direito ao acesso a um regime especial de
estudos por parte de trabalhadores-estudantes, que são estudantes a tempo parcial pelas
circunstâncias a que ficam sujeitos pelos seus empregos[2]. Efectivamente, o nível de exigência da
licenciatura é o mesmo para os dois regimes, embora os estudantes a tempo parcial tenham muito menos tempo
para dedicar aos estudos e se perspective assim que demorem tendencialmente mais dos que os três anos
necessários para a conclusão do 1º ciclo, tendo que gerir a conclusão das cadeiras em função das suas
possibilidades. Com a lamentável manutenção da propina anual – apesar de segundo o modelo de Bolonha deixar
de haver “anos curriculares” no sentido tradicional do termo – é fácil de perceber que haverá cada vez mais
discentes a fazerem em determinados anos apenas algumas cadeiras semestrais e a verem ser-lhe exigida a
propina anual, com se estivessem a fazer as cadeiras todas e os dois semestres. Sendo a a unidade curricular do
modelo de Bolonha o semestre[3], a manutenção da uma propina anual não é mais do que mais um efeito perverso
da mercantilização do ensino a que infelizmente assistimos, onde não se respeitam os próprios ditâmes dos
modelos instituídos.
• A elevada concentração de alunos nas turmas, por vezes superior a 40 elementos, bem como a entrada no 1º ano
de alguns já depois de mais de um mês de aulas – devido a critérios de selecção e calendarização da
responsabilidade da Academia e do Ministério e não dos discentes em causa - é dificilmente compatível com o
modelo de avaliação contínua proposto. É uma questão de bom senso perceber que para os docentes será muito
complicado avaliar numa aula de debate uma turma com o número de elementos referido, o mesmo se aplicando à
avaliação por seminário. Se ao invés se optar por dedicar várias aulas a este tipo de avaliações, tal só será possível
de algum modo sacrificando ou condensando as aulas teóricas. Por outro lado a hipótese do prolongamento do
primeiro semestre em termos de aulas, como alguns docentes sugerem, implica o desrespeito pelo calendário
curricular estabelecido e a sobreposição de aulas ao calendário projectado para a entrega de trabalhos finais e de
exames, contexto que não é de todo desejado pelos discentes.
• Finalizada a licenciatura anterior, no modelo de quatro anos, para os discentes seguirem para mestrado – actual 2º
ciclo – era necessária uma média de 14 valores, podendo embora ser considerados casos excepcionais. Este ano,
verificou-se que foi permitida a entrada aos alunos que o requereram, alguns deles com médias mínimas
constantes em toda a licenciatura. Tal parece-nos configurar mais um dos efeitos perversos do modelo de
Bolonha, pois além da óbvia desclassificação das licenciaturas relativamente ao modelo anterior, parece assistir-se
agora ao facilitismo no acesso aos mestrados – no seguimento da política de mercantilização seguida pela gestão
da Academia, a que não será alheio o facto de cada mestrado ter o valor de mil euros. Não duvidamos que dentro
de poucos anos assistiremos ao propagandear por parte da classe política de que Portugal aumentou imenso em
termos percentuais o seu número de licenciados e de mestres, mas perguntamo-nos se tal número corresponderá
efectivamente em termos técnicos aos standards desejáveis e à manutenção da imagem de excelência que o
ISCTE possui. Pese embora tristemente reconheçamos que tais preocupações talvez pouco contem num país que
cada vez mais vive de imagem.

Exigências

1 - Os alunos que subscrevem este manifesto não pretendem continuar a pagar o desinvestimento do Estado na educação
superior, através da opção mais fácil tomada pela gestão das universidades públicas e que se tem traduzido nos aumentos
brutais de propinas que têm sido característica dos últimos anos.
Compete à gestão a renegociação – que nos parece urgente – com a tutela, o possível estabelecimento de protocolos com
empresas numa lógica que poderia passar por futuras garantias de empregabilidade, ou pensar em esquemas alternativos de
financiamento que não passem pelo contínuo massacre que tem sido nos últimos anos IMPOSTO aos alunos. Basta de falta
de consciência social, basta de sobrecarregar os alunos com propinas para justificar uma educação para a qual as famílias
portuguesas já contribuem largamente através dos impostos. O valor das propinas deve ser revisto urgentemente e retornar
para valores que o enquadrem com um contributo (valores próximos das propinas pagas em 2000-01) e não como um
financiamento que cada vez mais sobrecarrega sempre os mesmos. As propinas devem equivaler a um valor sensato,
devendo ser encaradas como um contributo por parte dos alunos – cujas famílias ou eles próprios já descontam largamente
nos impostos e que estão num modelo público por mérito próprio - e não uma fonte privilegiada de financiamento
enquadrada no mercantilismo geral vigente.

2 - A contingência de estarmos a realizar apenas algumas cadeiras – ou apenas uma - relativas a um semestre e nos vermos
na contingência de ter que pagar as cadeiras todas relativas aos dois semestres devido à manutenção da propina anual é uma
injustiça, uma violência e um abuso que tem que terminar imediatamente. Os alunos não podem, não querem e não devem
continuar a ser prejudicados por lógicas mercantilistas com deficit de consciência social. Com o adoptar do modelo de
Bolonha e o subsequente fim dos anos curriculares, exigimos o fim imediato da propina anual e o estabelecimento de uma
propina semestral, que tenha em conta as considerações referidas neste documento, nomeadamente o valor indicador das
propinas em 2000-01 e o estatuto dos estudantes a tempo parcial. Sendo a unidade curricular do modelo de Bolonha o
semestre, a manutenção da propina anual apenas pode ser encarada como um nítido e escandaloso aproveitamento por parte
do modelo de gestão face aos alunos. O facto de haver pessoas com apenas algumas cadeiras semestrais ou apenas uma a
verem-lhes imposta uma propina anual no valor de quase mil euros só pode ser considerado um escândalo inqualificável e
um indicador da mais profunda falta de respeito pelos alunos e pelas suas famílias.
Nota final
Parece-nos que na prática, as virtudes do tão apregoado modelo de gestão vigente, apenas se têm consubstanciado na
continuada e aumentada exploração financeira dos alunos, pois em termos de funcionamento interno, para lá do já referido
anteriormente neste documento no que diz respeito ao presente semestre em termos de aulas, também os serviços parecem
estar a ter algumas dificuldades em termos organizacionais. Parece-nos por exemplo espantoso o facto dos alunos que
requereram a mudança para o modelo curricular de Bolonha não estarem à data ainda no sistema informático da Secretaria,
tal como nos parece um abuso e uma falta de respeito a Tesouraria ter indicações para não receber o dinheiro das propinas
em numerário, querendo obrigar as pessoas a efectuar o pagamento por multibanco, ou a terem que se deslocar à CGD para
efectuar o depósito.

Os alunos e cidadãos que subscrevem este manifesto, confessam a sua preocupação e indignação face às tendências
mercantilistas vigentes, onde se parece ter perdido completamente a noção do que significa o termo Ensino Público e do
consagrado na Constituição Portuguesa relativamente às propinas. A manutenção da propina anual no modelo de Bolonha é
indigna de uma instituição como o ISCTE. Esperamos que este documento sirva como contributo para uma alteração de
situações que só pecará por tardia.
Lisboa, 23 de Novembro de 2007
Os Alunos

[1] Constituição da República Portuguesa, artigo 74º, alínea E.


[2] n.º 7 do artº 12º e artº 32º da Lei n.º 49/2005
[3] De acordo com o n.º 1 do artº 9º do Decreto-Lei n.º 74 “No ensino universitário, o ciclo de estudos conducente ao grau de licenciado tem 180 a 240
créditos e uma duração normal compreendida entre seis a oito semestres curriculares de trabalho dos alunos.”, e confirmado pela Lei n.º 49/2005 no
seu artº 14º n.º 3

Você também pode gostar