Você está na página 1de 44

Paris Photo 2007/ Portfolio

34 35

Fotografia e “Champagne”
“ Visitar o Salão Paris Photo é participar numa experiência
inebriante onde fotografia e glamour se combinam para criar um
mundo pleno de códigos complexos, indecifráveis aos olhos do
cidadão comum. Um universo onde a qualidade é um requisito, a
De la série Lieux, Léa Crespi, Paris, 2004

discrição um imperativo e o dinheiro o motor que faz transitar de


mão em mão obras artísticas de fotógrafos de todo o mundo.

Texto de Susana Paiva
Fotografias gentilmente cedidas por Paris Photo 2007
������
Paris Photo 2007/ Portfolio

S
ão múltiplas as razões que levam, ano após tindo ferozmente entre si, impedem o olhar pausado
ano, milhares de pessoas de todo o mundo a e atento que cada fotografia merece.
deslocar-se ao Carrousel do Louvre, espaço Claramente concebido como um evento comercial
onde desde há 11 anos se realiza uma das mais cujo público-alvo são os coleccionadores de foto-
conceituadas feiras internacionais de fotografia. Para grafia institucionais e privados, o Paris Photo orga-
as 83 galerias este ano aí representadas, oriundas de niza-se segundo os códigos gerais do mercado da
17 países, o objectivo é inequívoco e bastante claro: Arte que cada participante depois se encarrega de
vender o maior número de obras dos artistas que re- personalizar mediante as suas práticas profissionais
presentam ao melhor preço possível. Já para o público e convicções pessoais.
que gravita em torno dos diferentes espaços expositi- Nem sempre é fácil descortinar a lógica subjacente
vos a motivação nem sempre é a mesma. a cada um dos expositores dado que grande maioria
Muitos visitantes consideram que em anos ímpares, das galerias apresenta uma selecção desconexa das
quando o “Mois de la Photo” – a grande bienal Pa- obras que representa, quiça aquelas que julga mais
risiense de fotografia – não se realiza, o Salão Paris vendáveis. Poucos são os expositores que, como a
Photo constitui um espaço alternativo para se ver Galeria Yvon Lambert, optam por exibir apenas um
boa fotografia. No entanto, não obstante o razoável ou dois autores. Talvez por isso, não nos abstraindo
preço do bilhete de acesso – 15 euros para o pú- da qualidade das imagens que apresenta, a galeria
blico geral e metade desse valor para estudantes e se destaque no meio de toda a cacofonia visual. Aí
grupos de visitantes –, o Paris Photo está longe de as séries “The Other Side” (1971-1974), da autoria
ser um local privilegiado para a fruição da fotografia de Nan Goldin, e “Intimate” (1979 -1986), de Andy
dado que frequentemente em pequenas áreas expo- Warhol ganham uma visibilidade extraordinária e
sitivas, envoltas em brilham no seio de uma das mais concorridas alas
Concebido como um evento
tapetes sonoros de do Salão.
36 comercial cujo público-alvo são os risos e conversas 37
Para a premente sensação de caos geral muito con-
coleccionadores de fotografia, o eufóricas, se exi- tribui a multiplicidade e diversidade de dimensões
Paris Photo organiza-se segundo bem dezenas de das fotografias expostas, percorrendo quase todas
os códigos do mercado da Arte. obras que, compe- as escalas imagináveis, do imensamente pequeno ao

«Cockfosters», Rut Blees Luxemburg, 2007


«Venus #3», Ruud van Empel, 2007
«Garden», Anni Leppälä, 2007

�������
�������

�������
Paris Photo 2007/ Portfolio
extraordinariamente grande, bem como os diferen- Talvez seja a sua franqueza, por muitos proclamada
tes estilos e suportes que tão bem reflectem o largo “honestidade”, que faça com que o seu espaço esteja
espectro que a feira promove – da fotografia do sé- sempre cheio de visitantes. Aos amigos mais próxi-
culo XIX à fotografia contemporânea, passando pela mos oferece um copo de champanhe – do genuíno

«Vectorscape - 118», Hirofumi Katayama, 2003


fotografia moderna. “Champagne” que abunda em quase todos os espaços

«Village de montagne», Loan Nguyen, 2004


Descortinar no seio da Paris Photo a lógica do mer- expositivos neste dia zero de exposição à porta fecha-
cado da fotografia é tarefa ingrata. A maioria das ga- da, acessível apenas por convite e regulado segundo
lerias opta por não afixar o preço das obras à venda áreas profissionais. Entre as 4 e as 7 da tarde desfilam
obrigando os interessados a dialogar e negociar face no Salão todos quantos o visitam por razões exclu-
a face com o galerista. Para galeristas como Agathe sivamente comerciais, excepção feita aos jornalistas
Gaillard, proprietária da mais antiga galeria exclusi- que são livres de circular desta a primeira abertura de
vamente dedicada à fotografia em Paris e membro do portas. Depois entre as 7 e as 10 da noite a entrada é
comité de selecção dos participantes do Paris Photo, facultada aos restantes convidados – artistas, amigos

�������

�������
a não afixação dos preços não só ajuda à especu- e outros sortudos que terão acesso privilegiado às
lação financeira como parece obnubilar a realidade obras em exposição.
que muitos pressentem – a da aplicação de diferen- Ao público geral restará esperar pela manhã do dia
tes preçários de acordo com a natureza do compra- seguinte, quando terá lugar a abertura oficial dos 4
dor. “Chez Agathe”, como todos se referem ao espa- dias do certame, para ter acesso à compra de tudo
ço expositivo da Galeria Agathe Gaillard, não há lugar aquilo que não tenha sido adquirido ou reservado
a equívocos e a tratamentos diferenciados – os preços pelos milhares de profissionais que por lá circularam
encontram-se todos afixados e aos clientes mais inex- na véspera.
perientes até é facultada, numa folha de papel amare- É logo na primeira hora do dia zero que Agathe
lo, um excerto da definição de “fotografia original” de Gaillard vende a primeira obra no certame deste ano.
38 acordo com o esta- Trata-se de “Seville 1933”, uma fotografia de Henri 39
Descortinar na Paris Photo
belecido em 1982 Cartier-Bresson, impressa nos anos 60 e autenticada
a lógica do mercado da fotografia
pela “Associação com carimbo pelo seu autor. São os primeiros onze
é tarefa ingrata.A maioria das para a Defesa e mil euros que Agathe contabiliza, por enquanto um
galerias opta por não afixar Promoção da Foto- magro contributo para amortizar o enorme investi-
o preço das obras à venda. grafia Original”. mento que significa participar no certame. No seu

«Pemex IV», Oswaldo Ruiz, 2006


«Salme», Susanna Majuri, 2007

«JP-22 08», Taiji Matsue, 2005


�������

�������

�������
Paris Photo 2007/ Portfolio
Para Agathe Gaillard, espaço os valores
concorrida galerista, a não das imagens va-
afixação dos preços das riam entre os mil
e os doze mil eu-
obras em exposição ajuda à
ros, sendo a ima-
especulação financeira. gem mais cara uma
outra fotografia também da autoria de Henri Car-
tier-Bresson. Considerada uma galerista que vende a
preços moderados – num certame em que o preço
médio de venda por imagem é cerca de quatro mil
euros –, há na galeria de Agathe umas quantas pre-
ciosidades que merecem bem o investimento. Entre

«Sombre», Miguel Rio Branco, 2005


elas contam-se uma prova de contacto, datada de 1
de Janeiro de 1972, de “Martinique”, da autoria de
André Kertèsz, no valor de nove mil euros, e dois re-
tratos particularmente interessantes, um de Patrice
Chéreau, em 1982, e outro de Margarite Yourcenar,

«Dairyland, Provincetown», Joel Meyerowitz, 1976


em 1987, ambos da autoria de Carlos Freire. Com o

�������
valor unitário de mil e oitocentos euros, os retratos
de Carlos Freire tem a particularidade de apresentar
«Tokyo», Francesco Jodice, 2003

40 41

�������
�������

depoimentos manuscritos pelo seu autor onde este


descreve a experiência do encontro com o sujeito
fotografado. No passe-partout do retrato de Ché-
reau pode ler-se claramente: “Muito impressionado
pelas necessidades técnicas mínimas da tomada de
vista, Chereau fala do seu desejo de um dia realizar

«Chandigarh replay», Stéphane Couturier, 2007


um filme a preto e branco. Nanterre 1982”.
Com uma postura bastante diferente de Agathe
Gaillard, só após alguma insistência se consegue
saber, junto da Galeria nova-iorquina Charles Co-
wles, qual o valor de venda a público de uma das
magistrais obras que o canadiano Edward Burtynsky
captou nas pedreiras de mármore do Alentejo. Um
valor bastante acima da média que o galerista não
deseja ver publicado na Imprensa.

�������
Igualmente prudente na comunicação dos valores
das obras à Imprensa, a fim de evitar futuros equívo-
Paris Photo 2007/ Portfolio
Representando artistas como cos com os clientes,
Helena Almeida, a Galeria é também a Galeria
Filomena Soares, a
Filomena Soares exibe a quase
única galeria portu-
totalidade dos autores portugue-
guesa representada
ses presentes no certame. no Paris Photo e
que este ano repete a experiência iniciada na passa-
da edição. Um regresso a Paris que se deve, segundo
Bruno Múrias, relações públicas da galeria, sobretudo
a uma experiência anterior “muito satisfatória a todos
os níveis”, e na altura muito saudada por permitir a
visibilidade de alguma da obra fotográfica actualmente
produzida em Portugal. Representando artistas como
Helena Almeida – autora da mais cara obra em ex-
posição –, Vasco Araújo, João Penalva, Júlia Ventura e
Rodrigo Oliveira, a galeria exibe a quase totalidade
dos autores portugueses presentes no certame. Ex-
cepção a esta representação são os trabalhos de Rita

«Ouve-me» Helena Almeida, 1979


Magalhães e de Edgar Martins representados respec-
tivamente pela Galeria Fucares, de Madrid, e pela The
Photographers Gallery de Londres.
Exibindo, numa área equivalente a dois módulos ex-
positivos, cerca de 20 obras do acervo de 30 que
42 43

�������
transportou para Paris, a galeria opta pelo sistema
de substituição das obras vendidas permitindo as-
sim uma visibilidade pública a um maior número de
obras e artistas.
Admitindo que a participação num certame desta
natureza envolve despesas muito elevadas que é ne-
cessário rentabilizar, Manuel Santos, director da ga-
leria em parceria com Filomena Soares, garante que
«Katlego Mashiloane and Nosipho Lavuta», Zanele Muholi, 2007

“nunca aposta para perder” revelando desta forma


confiança na cotação internacional dos artistas que
representa. Outra coisa não seria de esperar por
parte da galeria que, dependendo exclusivamente de

Mosteiro de Tibaes Braga I, Candida Hofer, 2006


investimento privado, projecta já no próximo mês
de Março 2008 participar num feira no Dubai, e que
há oito anos leva a Arte Portuguesa à Arco, em Ma-
drid, e mais recentemente, nos últimos cinco anos,
marca presença como a única galeria portuguesa na
Frieze Art Fair, em Londres. �
Próxima edição:
Paris Photo 2008
13 a 16 de Novembro
�������

�������
Carrousel du Louvre, Paris
www.parisphoto.fr
Fazal Sheikh, Fondation Henri Cartier-Bresson

Fazal Sheikh
S.O.S. Humanidade
“Vencedor da edição de 2005 do prémio bienal Henri
Cartier-Bresson, Fazal Sheikh apresenta «Moksha» e «Ladli»,
dois projectos realizados na sequência da distinção e recente-
mente editados em livro pela Steidl, até ao próximo dia 26
de Agosto na Fondation Henri Cartier-Bresson.

Texto e entrevista de Susana Paiva
Fotografias de Fazal Sheikh, gentilmente cedidas pela FHCB

N
as obras que Fazal Sheikh actualmente ex-
põe em Paris, recorrendo à imagem e à
palavra, testemunha-se, com grande fron-
talidade e extraordinária força e poesia, a
condição feminina na Índia, particularmen-
te no caso das crianças e viúvas. Em «Moksha» traça-se
30 o retrato de um conjunto de mulheres que abandonadas 31
após enviuvarem, e em certos casos vítimas de maus-tra-
tos por parte dos seus familiares, rumam à cidade santa
de Vrindavan e, em comunhão com outras mulheres, aí
devotam a sua vida ao deus Krishna. Desde há 500 anos
que a cidade santa de Vrindavan, no norte da Índia, tem
sido um refúgio para as viúvas indianas desapossadas de
tudo. Rejeitadas pelas suas famílias, e condenadas por
uma lei que lhes nega quaisquer direitos, algumas aí de-
cidem rumar, em condições muito difíceis, fazendo por
vezes perigar a sua vida. O seu maior desejo é o de alcan-
çar «Moksha» – o paraíso – onde se libertarão e viverão
rodeadas pelos seus deuses para sempre.
Em «Ladli» – significando «filha bem amada» – o projecto
versa as crianças indianas do sexo feminino que, na socie-
dade indiana tradicional, são vistas como um fardo dado
a sua família ter de constituir um importante dote para
que estas se casem – frequentemente durante a infân-
cia – e integrem com dignidade a família do seu esposo.
Dado este costume oneroso as raparigas são frequente-
mente sujeitas, desde o nascimento, a sevícias inimaginá-
������� veis e frequentemente abandonadas em orfanatos. Nos
Ashram
últimos anos, sobretudo devido à evolução das técnicas
Fazal Sheikh, Fondation Henri Cartier-Bresson
de investigação pré-natais, o aborto de fetos femininos uma tão subtil abordagem. Mesmo sabendo de perança é a vida após a morte, a procura da liberdade, a
aumentou exponencialmente como forma de evitar o antemão que se trata de um ambiente hostil, vio- libertação desse ciclo que trouxe dor. Quanto a «Ladli»,
custo de um dote, indispensável para o casamento da lento, a verdade é que a observação directa dos tem razão, é um trabalho mais assertivo.
rapariga. «Gastar 500 rupias hoje, economizar 50.000 retratos, tão dignificantes, tão pacíficos, não a de- Mais explícito, mesmo. Em «Moksha» podemos
amanhã» é o que afirmam frequentemente os pais que nuncia.Apenas quando começamos a ler os depoi- fazer duas leituras muito diferentes, uma se ape-
optam pelo aborto das filhas. mentos daquelas mulheres, tão fortes, tão sofridos, nas virmos os serenos rostos das mulheres fo-
Nascido em Nova Iorque em 1965, de ascendência que- nos damos realmente conta da enorme violência tografadas, e outra se lermos, a par e passo, os
niana e indiana, Fazal Sheikh tem visto o seu trabalho que os retratos encerram. Por outro lado, o outro seus depoimentos. Nesse caso a sensação é a de
recompensado com diversos e prestigiados prémios que trabalho – «Ladli» – creio que é explicitamente um enorme murro no estômago. Em «Ladli» a
lhe vêm permitindo continuar a sua linha de trabalho mais violento, mais revelador ao primeiro olhar simples observação das imagens, mais «carnais»,
pessoal, socialmente empenhada. O seu talento de fo- da dor e sofrimento daquelas crianças... mais sofridas, é o bastante para nos demonstrar
tógrafo, e também escritor, têm-lhe permitido abordar Fazal Sheikh – Eu não caracterizaria necessariamente o a dor das crianças fotografadas. E depois, quando
os sujeitos não como vítimas simbólicas mas sim como trabalho de «Moksha» como violento. O que penso ser lemos os terríveis relatos da violência a que fo-
personalidades individuais cujos rostos, nomes e vívidos curioso é que normalmente, no legado das imagens de ram sujeitas, apenas confirmamos o terrível sofri-
testemunhos atestam bem o grau de intimidade e pro- guerra, as pessoas se focalizam no «momento do trau- mento que antevíramos já no primeiro olhar.
fundidade das suas abordagens. ma» e não na tomada de consciência de que muitos de Uma sensação dura mais tempo quando resulta da com-
Do seu trabalho, visto como um alerta tranquilo, ressalta nós passam por diversos traumas durante a vida, que to- plexa composição de vários níveis – e não de um único
a beleza e extraordinária poesia com que retrata os sujei- dos somos o total das nossas experiências e não apenas e brusco depoimento –. uma vez que assim se encontra
tos, não obstante as terríveis formas de violência que es- o indivíduo que experiencia um dado trauma. «Moksha», impregnada de outros elementos como a beleza, a trans-
tes relatam. É virtualmente impossível ficar impassível pe- para mim, é a ideia de que podemos realizar uma podero- cendência ou a religião. Aí, cria-se, na minha opinião, algo
rante a contrastante candura dos retratos de «Moksha» sa imagem de uma mulher que relata a sua vida, e depois que perdura mais, que tem uma outra ressonância. No
e os violentos relatos das mulheres fotografadas. O sere- que esse relato possa encerrar uma grande violência. Mas caso de «Ladli» o objectivo é, ao olhar nos olhos da-
no rosto de Renuka, abandonada pelos seus filhos após não desejo, de forma alguma, reduzir essa pessoa a um quelas crianças, criar poderosas imagens que transmitam
32 enviuvar, ganha uma nova dimensão quanto escutadas as episódio de violência na sua vida. Esse trabalho é também compreensão e um enorme respeito pelas suas duras vi- 33
suas palavras – «Sonho com os meus rapazes, sonho que o espaço de evocação, da expressão do conforto que das. O que é interessante é que os livros também funcio-
os alimento e que brinco com eles. Gostaria de ser capaz essas mulheres obtêm naquele lugar, no facto de estarem nam dessa mesma maneira, se vir o primeiro – «Moksha»
de esquecer o passado mas continuo com o coração des- juntas, num ambiente que as tranquiliza. – é muito mais um objecto de emoções, enquanto o se-
troçado. Quando sonho com Krishna, quando danço com De certa forma elas estão ali, pacificamente, à es- gundo é bastante mais clássico. Foram concebidos para
ele, quando canto e o adoro, não sofro mais.» pera da morte. ser «edições companheiras» mas acabaram por resultar
Em «Ladli» são os rostos das crianças – tristes, densos Quando se teve uma vida muito difícil é claro que a es- muito diferentes na sua estrutura.
e lacerados – que lançam o primeiro alerta. As cicatrizes
que ostentam nos corpos são as marcas mais visíveis, em-
bora menos profundas, de todo o seu sofrimento. Os seus
duros depoimentos confirmam o suspeitado – histórias
de abandono, maus-tratos físicos e frequentemente venda
para fins de prostituição. Relatos que nos obrigam a re-
pensar a imagem de uma Índia socialmente estável sobre-
tudo na actual época de grande crescimento económico.

...
Magazine Artes – Confesso que fiquei muito im-
pressionada com o projecto «Moksha», e isso
porque na altura desconhecia «Ladli»... Há uma
enorme violência nesse trabalho, uma violência ������� ������� �������
Tamana Jamuna Sarkar Renuka
silenciosa que nos atinge fulminantemente por
Fazal Sheikh, Fondation Henri Cartier-Bresson
Pode dizer-me como se interessou tanto pela
condição feminina na Índia?
Em 2000 voltei à fronteira da Somália, onde oito anos an-
tes havia trabalhado, maioritariamente sobre os homens,
e dei-me conta de que 80% eram mulheres e crianças
e que poderia ser interessante desenvolver um projecto
sobre pessoas a quem geralmente não se dá voz, nesse
caso as mulheres e as crianças. Foi assim que cheguei à
ideia de uma série de projectos nos quais estes se in-
cluem, que viriam a ser sobre as mulheres e as crianças.
Uma coisa que sempre me interessou foi atravessar fron-
teiras. Quando fiz o meu primeiro livro sobre o Quénia
as pessoas relacionaram-no com as minhas raízes, com o
facto de ter um pai queniano como justificação para a re-
�������
Gulafshah
alização desse trabalho. Diziam que estava bem fazer esse
trabalho pois tinha sido feito por um queniano, ignorando O que me surpreende é que sempre que as pessoas falam
que eu estava a trabalhar em diferentes áreas linguísticas da Índia entram numa espécie de «onda yoga hippie» e
e sob diferentes perspectivas religiosas. Acabamos muitas sendo verdade que há coisas maravilhosas na Índia tam-
vezes por artificialmente compartimentar dizendo que bém é verdade que essa é uma das sociedades mais pa-
apenas uma mulher somali pode fazer isto ou aquilo... A triarcais e que ser mulher na Índia pode ser realmente di-
mim interessa-me confrontar essas barreiras e fazer estes fícil... Há pelo menos que ter em conta as duas facetas...
dois projectos foi um verdadeiro desafio pois eles negam Sobretudo porque a Índia está a ter um cresci-
o género como barreira para a realização de um certo mento económico extraordinário...
34 trabalho. O que realmente conta, no final, é o trabalho E celebremos isso mas tenhamos consciência que há
que fazemos e não as nossas origens ou género. problemas sérios que têm de ser equacionados. Toda a
Mas sendo a Índia uma sociedade patriarcal não gente diz «Índia, está tudo perfeito!» – Mentira! É incrível
acredita que o facto de ser homem possa ter aju- como funciona... Nos Estados Unidos também se igno-
dado a cativar o interesse das mulheres fotogra- ram esses problemas pois é importante estar ligado eco-
fadas e entrevistadas para «Moksha»? Sobretudo nomicamente à Índia. Porquê focar então esses outros
sendo mulheres abandonadas e maltratadas... níveis da sociedade? Isso enlouquece-me... Para mim, é
impensável não o fazer e faz-me acreditar cada vez mais
�������
Sonal que tenho de continuar a realizar projectos desta natu-
reza. Há alguns anos a imagem que tínhamos da Índia era
de desespero total e as pessoas eram vistas como algo
diferente de nós, como vítimas. E de repente, com a Índia
num novo cenário económico, formou-se a ideia de que
esse desespero, esses problemas desapareceram. A visão
popular da Índia é agora de grande glória... Penso que, no
mínimo, devemos manter estas questões em aberto...
Então o seu trabalho é um alerta silencioso...
Esperemos que não demasiado silencioso... É mais um
alerta calmo. O meu trabalho não é concebido da mesma
forma que outros trabalhos e, tendo consciência que po-
derá não chegar a tantas pessoas, penso que chegará de
uma forma mais profunda, mais duradoura, deixando es-
paço para a imprescindível interpretação individual. �
31
Anjos do deserto
S
ão poéticas e elucidativas
as palavras com que Elisa-
betta Balasso descreve o

“ É do reino do maravilhoso que saem os personagens fotografados por Horst


Friedrich, verdadeiros “anjos do deserto” como lhes chamou a escritora venezuelana
contacto entre os autores
e os habitantes do deserto venezue-
lano – “viemos de longe, da capital ou
de além mar, de lugares míticos dos
Elisabetta Balasso, co-autora do livro “Doña Maria und Ihre Träume”, uma das mais
quais quem lá estava apenas tinha ou-
telúricas obras fotográficas e literárias da actualidade.

vido falar. Chegamos às terras áridas e
encontramos paisagens calcinadas pelo
Fotografias gentilmente cedidas por Horst Friedrich vento, árvores iluminadas e uma bebida
Texto de Susana Paiva cheia de espírito, que convoca as som-
bras transparentes do desejo, e que não
acalma a sede mas magnifica e produz
eventos excepcionais. Chegamos e co-
nhecemos os habitantes – anjos com
rugas profundas e preciosos corações
plenos de sabedoria e hospitalidade. E
assim comprovamos que a realidade é
bem mais mágica do que qualquer lite-
ratura, quando se penetra suavemente
no tempo do deserto”. Nas palavras ini-
ciais de “Dona Maria e os seus sonhos”
se encerra, com grande mestria, o mis-
tério e a beleza de todos quantos habi-
tam as esquecidas paisagens do deserto
venezuelano, território onde o tempo
parece ter outra dimensão.
“O tempo está parado em casa de Dona
Ruperta, presenças fantasmagóricas pa-
recem aguardar nas esquinas que fica-
ram escuras, tão fiéis e resignadas como
um cão enfraquecido. Nada sucede, e
no entanto tudo está cheio de sentido
- o pau que serve de bastão para espan-
tar os animais, tão seco como os seus
braços, apoiado na parede; o pedaço
de queijo de cabra sobre o pratito de
barro; a pequena cadeira de criança, em
que Ruperta se senta nas noites em que
não consegue dormir; as gretas na terra
das paredes que parecem querer dizer-
nos algo que não conseguimos compre-
ender. A casa respira com a respiração
pausada e profunda de um adormecido,
quem sabe sonhando por Dona Ruperta,
sonhando os sonhos que ela esqueceu”.
Foi este o ambiente telúrico que o fotó-
grafo alemão Horst Friedrich encontrou
quando, há cerca de doze anos, viajou
33
pela primeira vez ao deserto venezuela- A voz entrecortada e trémula, os olhos
no. Lia na altura o romance «Cem Anos húmidos, pois é difícil recordar as dores
de Solidão», de Gabriel García Márquez, da mulher, o medo, a fatalidade, a re-
e estava longe de imaginar que iria en- signação. O tempo suspendeu-se, o sol
contrar o mesmo realismo mágico em cristalizou, a abelha deteve o voo en-
terras venezuelanas. quanto o homem contou a sua história.
“Não se ouve nada mais do que o ven- Custou-lhe muito, mas seguiu valente-
to. Nem cabras nem pássaros, apenas o mente, como se fora necessário, como
vento. Um céu sólido, azul infinito igual à se fosse um dever, e não o era, não nos
cafeteira pousada sobre a laje de pedra devia nada, não era indispensável contar-
assente na terra. O céu dissolve-se nu- nos nada; e agora não sei o que fazer,
mas nuvens brancas ali onde a terra seca dá-me pudor este fio de água cristalino
se esmigalha em rectos cactos, em yabos e secreto, correndo debaixo das pedras,
de mil ramificações e em cujís retorci- este desenho de águas subterrâneas,
dos”. Percorrendo, a partir de Caracas, este passarito ferido entre as mãos.
um cenário espantoso para lá dos An- Conta-me tudo e eu fico devastada
des chegou ao estado de Lara, e depois com as experiências de sofrimento que
a Falcón, na costa, onde conheceu Dona o marcaram, com todas essas mortes
Maria, Margarita, Eustiquio e família bem sempre presentes, novamente presen-
como tantos outros habitantes, “pesso- tes enquanto as rememora, presentes
as especiais que fabricam um artesanato no pátio de trás, onde desde então se
precioso”, afirmou Horst. “São persona- erguem duas cruzes brancas”.
gens, são heróis... Esta gente é incrível, Construído numa simbiose perfeita en-
interessante, forte. São pobres, mas fe- tre os universos imagéticos e literários,
lizes, pois têm sabedoria. Claro que às “Dona Maria e os seus sonhos” é um
vezes gostariam de ter uma vida melhor exemplo maior daquilo que ainda hoje
mas, por exemplo, Eustiquio tem um te- se pode criar no âmbito da fotografia
lemóvel e eu de vez em quando telefo- documental. Justamente aclamado como
no-lhe e ele fica feliz”. um projecto ao nível dos desenvolvidos
Tendo viajado múltiplas vezes a esses no Estados Unidos da América por fo-
dois estados no noroeste da Venezuela, tógrafos como Walker Evans e Robert
Horst fez-se sempre acompanhar da sua Frank, este trabalho de Horst Friedrich
Hasselblad, uma máquina fotográfica ale- consagra-o como um dos grandes no-
mã de médio formato, com a qual retra- mes da fotografia documental, sedimen-
tou os habitantes das povoações visita- tando aquilo que já se intuía na publi-
das. Nem sempre a aproximação foi fácil cação, em 1999, do seu primeiro livro
pois quando inquiridos alguns populares “Troubadours of Allah” (Trovadores de
recusavam a oferta de serem fotografa- Alá), também editado pela alemã Fre-
dos por Horst mas ainda assim este não derking & Thaler.
desanimava. No ano seguinte voltava a Repleto de poesia e excelentes imagens,
inquiri-los, estreitando, pouco a pouco, “Dona Maria e os seus sonhos” dignifica
os laços de amizade que lhe permitiriam todos quantos aí estão retratados, trans-
uma aproximação incondicional. Assim portando-nos para um universo humano
foi com quase todos os populares. Al- de extrema pureza, difícil de imaginar no
guns resistiram durante três anos mas mundo em que vivemos hoje.
acabaram por dar corpo e rosto às ima- “O filho mais novo de Eustiquio olha o
gens de Horst e por, mais tarde, parti- céu, procurando nas estrelas a conste-
lharem as suas histórias com Elisabetta lação que nos guia: O coração de Maria
Balasso. e Jesus, disse-me, assinalando os dois
“São seis os filhos mas deviam ser nove. corações desenhados na noite”, escreve
Elisabetta Balasso como a contrabalan- de beleza e sensibilidade e que certa-
çar o insustentável peso das palavras an- mente perdurará como um dos mais
teriores: “O céu ilumina-se aos poucos, belos livros da nossa década. �
acende-se e apaga-se seguindo a navega-
ção das nuvens. Mais próximo da terra «Doña Maria und Ihre Träume»
voa uma mosca, suspensa por asas tão (Dona Maria e os Seus Sonhos)
rápidas que só se distingue uma sombra de Horst A. Friedrichs e Elisabetta Balasso
de cada lado do corpo. Não muito longe 192 páginas, aproximadamente 120
ouve-se um compacto zumbido de en- fotografias a cor e a preto e branco
xame. De resto, o silêncio é tão espesso Formato: 24,0 x 34,0 cm
que pesa no ar”. Um peso que Horst e Editora: Frederking & Thaler
Elisabetta souberam retratar com gran- www.horstfriedrichs.com
35
«Green Light Against Grey, New York, 1955»
Saul Leiter na Fondation Henri Cartier-Bresson, Paris
Poeta da selva urbana
“ As 84 anos de idade, 60 dos quais dedicados à fotografia, Saul Leiter apresenta em
Paris a sua primeira exposição retrospectiva na Europa. Uma oportunidade única para
apreciar, até 13 de Abril na Fondation Henri Cartier-Bresson, a obra do fotógrafo cuja
falta de ambição artística ocultou do grande público, durante cerca de 50 anos, um
dos mais brilhantes e modernos Olhares da segunda metade do século XX.

Texto de Susana Paiva
Fotografias de Saul Leiter gentilmente cedidas por Fondation Henri Cartier-Bresson

E
scutar Saul Leiter discur- de electricidade, algo que nem sempre foi branco. Em 1948 entra numa loja de foto-
sando sobre o seu próprio possível”. grafia e inesperadamente decide comprar
trabalho é simultaneamente Nascido em 1923 em Pittsburgh, nos Esta- um rolo a cores, acção que se viria a reve-
uma experiência descon- dos Unidos da América, filho de um famoso lar determinante na sua prática fotográfi-
certante e uma imensa lição de humilda- rabino, Saul Leiter decidiu, aos 23 anos de ca, não parando desde então de alternar
de. Ouvi-lo confessar que nunca imaginou idade, abandonar os estudos em Teologia entre ambos os suportes.
ver o seu trabalho exposto num museu e mudar-se para Nova Iorque a fim de se Foi o trabalho a preto e branco de Leiter
ou que jamais ambicionou criar obras de consagrar totalmente à sua paixão pela pin- que primeiro prendeu a atenção de Stei-
Arte causa perplexidade a todos quantos tura. Será pela mão de alguns pintores com chen, na época conservador de fotografia
observam as suas extraordinárias fotogra- quem privou nessa época, nomeadamente no Museu de Arte Moderna (MoMA) em
fias de rua impregnadas de uma poética com Richard Pousette-Dart, que Saul Leiter Nova Iorque, e que, em 1953, seleccionaria
onde pontuam silhuetas em fuga, aponta- se começará a interessar pela fotografia. Na 25 fotografias suas, exibindo-as na exposi-
mentos inesperados de cor e enquadra- sua memória resta ainda bem vívida a forte ção colectiva “Always the Young Stranger”.
mentos improváveis. impressão causada, em 1947, pela exposi- No entanto, a sua grande mestria, patente
Compreender tamanha modéstia, tama- ção de Henri Cartier-Bresson no MoMA, sobretudo na forma revolucionária como
nha falta de ambição artística é a principal evento a que ainda hoje atribui a causalida- utilizava a cor, teria que aguardar 4 anos
chave para descodificar o universo de Saul de da sua escolha profissional. antes de ser revelada ao público nova-ior-
Leiter, autor que ainda hoje admite, com Pleno de estímulos e munido de uma Lei- quino no âmbito da conferência “Experi-
franco sorriso, que a sua maior preocupa- ca começou assim a deambular pelas ruas mental Photography in Color” proferida
ção foi sempre “conseguir pagar as contas de Nova Iorque, fotografando-as a preto e por Steichen no MoMA em 1957.

Catálogo da exposição
Prefácio de Agnès Sire
© Saul Leiter/ cortesia Howard Greenberg Gallery, New York”

Entrevista de Sam Stourdzé


a Saul Leiter
50 fotografias a preto e branco
e 50 fotografias a cores
Edição cartonada com sobrecapa impressa
20x24 cm, 144 páginas
Editado por Steidl, Paris
37
“Snow, New York, circa 1960” Com uma visão pragmática da vida e con- descoberta, a Fondation Henri Cartier-
centrado na sua sobrevivência Saul Leiter Bresson apresenta oportunamente, em
torna-se, por intermédio de Robert Frank dois pisos do seu edifício na zona de
que lhe havia apresentado Alexey Brodovi- Montparnasse, uma exposição comissa-
tch – na altura director artístico da revista riada por Agnès Sire onde através de dois
“Harper’s Bazaar” –, num bem sucedido núcleos expositivos, a cores e a preto e
fotógrafo de moda espelhando, ao longo branco, se revelam uma centena de ima-
de duas décadas, as suas obras “dignas de gens da autoria de Saul Leiter. Realizadas
museus e não de páginas de revistas” em entre 1947 e 1960, as imagens apresenta-
publicações de moda como a “Esquire” e das a público são na sua maioria impres-
a própria “Harper’s Bazaar”. sões de época, emprestadas pela Galeria
O seu trabalho mais pessoal, centrado Howard Greenberg e por coleccionadores
na fotografia de rua, acabará por per- privados, onde se revelam “silhuetas em
manecer esquecido aos olhos do mundo trânsito, sombras, visões misteriosas e in-
até meados dos anos 90, altura em que directas entre romantismo e filme negro”
a galeria nova-iorquina Howard Gre- tão características do Olhar do fotógrafo
enberg lhe consagra uma exposição de que elegeu a “selva urbana” como sujeito
fotografias a preto e branco. Será esta do seu trabalho pessoal revelando assim o
exposição, em 1993, juntamente com a seu extraordinário universo “poético, oní-
publicação de “Early Color”, em 2006 rico e calmante, sobre o qual plana a doçu-
– pela mão de Martin Harrison na Steidl ra da melancolia”. � «Saul Leiter»
–, que voltarão a concentrar na sua obra Colecção Photo Poche
a atenção por parte dos especialistas in- Saul Leiter Edição brochada
ternacionais. Fondation Henri Cartier-Bresson, em Paris 64 páginas
Hoje, na celebração desta brilhante re- Até dia 13 de Abril Editado por Actes Sud

«Snow, New York, 1958»


© Saul Leiter / cortesia Howard Greenberg Gallery, New York”

© Saul Leiter / cortesia Howard Greenberg Gallery, New York”


«On the Edge», de Robert Adams
Patente até 27 de Janeiro
Fondation Cartier pour l’Art Contemporain
www.fondation.cartier.com 33
Escutar a Natureza

R
aras vezes fotografia e como virtude a aspirar. Nas suas belas ima-
consciência ecológica se gens revela-se ainda, com grande ímpeto e
conjugam tão perfeitamen- fulgor crítico, a raiva que o fotógrafo sente
te como na obra de Robert perante as práticas anti-ecológicas do seu
Adams. Actualmente em Paris, a Fondation país, sobretudo no que concerne à siste-
Cartier pour l’Art Contemporain apresen- mática destruição das paisagens naturais
ta “On the edge”, a sua primeira exposi- do Oeste americano.
ção individual em França onde, através de Em entrevista concedida a Thomas Weski
fotografias e livros, se traçam e revelam em Maio de 2004, Adams relata o início da
quarenta anos de sucessivas mutações da sua actividade fotográfica em 1964 como
paisagem do velho Oeste americano. “uma resposta emotiva à paisagem”, refle-
É nos livros que melhor se revela a força xo das suas preocupações ecológicas numa
da obra de Robert Adams. A sua eloquên- “América bárbara onde a ganância é vista
cia espelha-se caleidoscopicamente nas 34 como uma virtude”. Para o fotógrafo, que
monografias que até hoje publicou e onde recorda ter tido o privilégio de experien-
desde 1970, com o precioso auxílio da sua ciar o natural desde a infância, pela mão do
mulher Kerstin, Adams tem vindo a ensaiar seu pai, a fotografia de paisagem ganhou
novas narrativas para as suas séries foto- força simbólica no seu activismo e expres-
gráficas. Contrariamente a muitos dos seus sa hoje, com grande eficiência, as suas opi-
contemporâneos que utilizam os livros me- niões políticas.
ramente para catalogar os seus trabalhos, Na exposição “On the Edge”, actualmente
Robert Adams encontrou na edição um es- patente no piso inferior da Fondation Car-
paço de expressão onde activa plenamente tier pour l’Art Contemporain, em Paris,
o poder literário do medium, permitindo Robert Adams expressa a preto e branco,
às suas imagens interagirem, dialogarem e através de 150 fotografias e cerca de qua-
criarem novas e efectivas ligações com vis- renta livros, as suas actuais preocupações
Fotografias de Robert Adams ta à agudização da percepção e à extensão ecológicas, criando um denso e contras-
da vivência estética. tante universo fotográfico que oscila entre
gentilmente cedidas por
Não receando protagonizar uma possível o desespero e o optimismo. Bom exemplo
Fondation Cartier pour l’Art Contemporain contra-corrente na fotografia contemporâ- disso é a imagem onde um tronco decepa-
nea, Robert Adams tem sido um ardente do e desenraizado se revela solitário numa
defensor dos valores tradicionais da es- idílica paisagem da costa americana. �
tética, sem medo de promover a “beleza” Por Susana Paiva
35

Uma resposta emotiva à paisagem.


37

A preto e branco cria-se um contraste entre o desespero e o optimismo.

Raras vezes fotografia e consciência ecológica se conjugam tão perfeitamente.


Kai Wiedenhöfer

F
oi Christian Schimdt, escritor baseado em compreendendo a Considerado um fotógrafo com
Kai Wiedenhöfer Zurique, quem pela sua insistência conven- necessidade de fa- “uma lente tendencialmente

O novo Muro da Vergonha ceu Kai Wiedenhöfer a regressar a Israel e lar o idioma local anti-Israelita”, Kai dedicou
� ��� �� ��� � � � aos territórios ocupados da Palestina. Cor- caso quisesse con-
os 3 últimos anos a fotografar
respondente no Médio Oriente durante mais do que cretizar o sonho de
a construção do muro...

“ uma década, Kai Wiedenhöfer, hoje com 41 anos, es- trabalhar no Médio
Vencedor em 2005 da bolsa de fotografia editorial Getty Images tava relutante em regressar. Oriente, Kai rumou a Damasco, Síria, onde aprendeu a
com o projecto “Sharon’s Wall: Holly Land, Divided Land”, o fotógrafo Desde os 13 anos, idade em que lera um livro sobre falar árabe no Arabic Teaching Institute for Foreigners.
os conflitos políticos no Médio Oriente, que se sentia Munido das ferramentas mínimas necessárias, Kai
alemão Kai Wiedenhöfer publicou recentemente, pela Steidl, o livro “Wall” fascinado pelos problemas da região. Inevitavelmente, Wiedenhöfer estabeleceu-se então no Médio Orien-
reunindo 51 imagens que documentam a construção de 650 quilómetros na primavera de 1989, acabou por viajar rumo a Jeru- te, trabalhando como fotógrafo para a agência Suíça
salém a fim de produzir um portfolio fotográfico para “Lookat Photos”. Considerado não raras vezes como
de muros, vedações, diques e outras barreiras ao longo da fronteira entre a sua candidatura universitária. Foi com esse portfolio um fotógrafo com “uma lente tendencialmente anti-
o Estado de Israel e a futura entidade Palestiniana. Um vívido testemunho, que acedeu ao curso de fotojornalismo na Folkwang Israelita”, Kai dedicou os 3 últimos anos a fotografar
School, em Essen, onde concluiu os seus estudos em a construção do muro fronteira que divide o Estado
pleno de imagens desconcertantes, que enfatiza o lado humano do conflito, 1991. de Israel dos territórios Palestinianos, revelando os
revelando famílias divididas por uma barreira incompreendida.

Ainda enquanto estudante Wiedenhöfer visitou duas dramas humanos daqueles que coabitam diariamente
vezes Jerusalém, focando o seu trabalho nos aspectos com a construção. “Erigido com um único propósito –
Texto de Susana Paiva religiosos e nos problemas da ocupação, reflectidos no o de manter os terroristas Palestinianos, que desejam
Imagens de Kai Wiedenhöfer, cortesia Steidl quotidiano da Cidade Santa. Acabada a universidade, e assassinar cidadãos Israelitas, fora”, segundo o Minis-

34 35
36 Optando por fotografar com tro dos Negócios do imagens extraordinariamente eficazes. Um poderoso 37
uma máquina panorâmica 6x17, Estrangeiros Israe- documento que perdurará e onde ecoarão as palavras
lita, “Israel, uma so- do fotógrafo alemão – “O que resta do muro de Berlim
Wiedenhöfer criou imagens que
ciedade democráti- serve como recordação constante do conflito político
agudizam visualmente a extensão
ca, está a construir que separou a Alemanha durante mais de 25 anos. E
horizontal e vertical do muro. essa vedação para nesse muro, num graffiti, pode ler-se ainda «O muro da
proteger cidadãos de ataques mortais, não para im- vergonha ergue-se agora em Israel»”. �
pedir contactos pacíficos com o outro lado”. Livro “Wall” de Kai Wiedenhöfer
Na capa de «Wall», numa fotografia captada em 2004, 104 páginas, 30 cm x 20 cm, capa dura
Abu Adnan Schawarib, de 70 anos, passeia ao longo do publicado por Steidl
muro em Nazlat Isa. Do outro lado encontra-se Baqa ar- ISBN: 3-86521-117-8
Rarbiya, uma localidade habitada por Palestinianos com (www.steidlville.com)
cidadania Israelita. “A barreira cortou a cidade separan-
do famílias. 105 lojas e 7 casas foram destruídas para
construir o muro. Aí 25% da barreira de separação está
construída a seguir à fronteira reconhecida internacio-
nalmente. O resto entra profundamente nos territórios
Palestinianos ocupados, dobrando praticamente a exten-
são da fronteira”, escreve Wiedenhöfer no seu livro.
Tendo optado por fotografar este projecto com uma
máquina panorâmica 6x17 cm emprestada por um ami-
go, Wiedenhöfer criou panoramas que agudizam visual-
mente a extensão horizontal e vertical do muro, crian-
Edward Burtynsky

Paisagens manufacturadas
“Visualizar uma obra de Edward Burtynsky é partilhar da
certeza de estar perante um trabalho minuciosamente pensado,
magistralmente executado, onde a falha não tem lugar. As suas
fotografias, tecnicamente perfeitas, fascinam pela terrível beleza
com que traduzem o frágil (des)equilíbrio entre aquilo que
a Natureza produz de mais precioso e o Homem tão insistentemente
explora, funcionando como espelhos onde, tão claramente,
se reflecte o mundo em que vivemos.
” Texto de Susana Paiva
Imagens de Edward Burtynsky, cortesia Mongrel Media e Steidl

N
o stand que a editora Steidl exibe na Pa-
ris Photo todo o espaço é exíguo para
folhear os dois livros onde as fotografias
44 de Edward Burtynsky brilham. «China», de 45
2005, e «Quarries», de 2007, são álbuns fotográficos, tec-
nicamente irrepreensíveis – editados segundo o mesmo
grau de exigência que Burtynsky põe nas suas imagens –,
onde magníficas reproduções traduzem o melhor que o
fotógrafo canadiano tem produzido nas duas últimas dé-
cadas. Inútil observá-los fugazmente, folheando-os sobre
o joelho ou recorrendo ao auxílio de apenas uma mão.
Os seus livros, tal como as grandes impressões fotográfi-
cas que produz, necessitam da tranquilidade da contem-
plação, do silêncio que promove a concentração e obriga
a mergulhar nas paisagens captadas e que traduzem na
perfeição o efeito de séculos de acção humana sobre os
recursos naturais do planeta.
Nascido em 1955, em St. Catharines, Ontário, Bur-
tynsky atribui o seu interesse pelas intricadas rela-
ções entre indústria e Natureza à observação, desde
tenra idade, da dinâmica da empresa General Motors
estabelecida na sua terra natal. Fascinado pela acção
humana na paisagem, Burtynsky completa os seus
estudos em Fotografia na Ryerson University, em To-
������� ronto, e em Artes Gráficas no Niagara College, em
“Shipyard #11”, Shipyard at Qili Port, Zhejiang Province, China Welland, fundando, em 1985, o Toronto Image Works
Edward Burtynsky

46 47

�������
“Nickel Tailings #34”,Sudbury, Ontario, Canada
Edward Burtynsky
– um centro educacional e de produção artística na gistou em 16 mm. Em «Paisagens Manufacturadas»,
área da imagem analógica e digital – onde inicia um filme projectado pela primeira vez no Festival de
extenso trabalho fotográfico que se constitui hoje Cinema de Toronto em Setembro de 2006, Jennifer
como testemunho da relação evolutiva do Homem Baichwal acompanha Edward Burtynsky através da
com a Natureza, perfeitamente espelhada nas paisa- China, enquanto este fotografa os efeitos da massiva
gens industriais que constrói. revolução industrial que o país protagoniza. Aproxi-
Dedicando o máximo de tempo de maturação possí- mando-se da postura de Burtynsky, o filme promove
vel a cada um dos seus projectos, Burtynsky acaba de a reflexão sobre o impacto humano no planeta, evi-
editar «Quarries», um livro onde se reúnem imagens tando julgamentos simplistas ou soluções redutoras,
de pedreiras – essas “arquitecturas invertidas”, como deixando ao espectador a responsabilidade individu-
gosta de lhes chamar – captadas durante mais de al da tomada de consciência.
uma década em países de vários continentes, entre Rodado maioritariamente na China, o documentário
os quais pontua Portugal com dez imagens realizadas proporciona a observação dos métodos e técnicas
em diversas pedreiras do sul do país. empregues por Edward Burtynsky na obtenção das
Dos seus trabalhos mais notáveis destaca-se o pro- suas imagens, enfatizando as suas capacidades diplo-
jecto desenvolvido na China, esse gigante cujo cres- máticas de negociação e de acesso a locais onde ja-
cimento não conhece barreiras ecológicas, e que a mais outro fotógrafo acedera. Particularmente belas
premiada realizadora canadiana Jennifer Baichwal re- e dramáticas, aparentando um cenário apocalíptico,

�������
Three Gorges Dam Project, Feg Jie #5, Three Gorges Dam Project,Yangtze River, China

48 49
�������
“Shipbreaking #49”, Shipbreaking in Chittagong, Bangladesh

�������
“Bao Steel #8”, Bao Steel in Shanghai, China
Edward Burtynsky
�������
Noah Weinzweig (China line producer, at left) and Edward Burtynsky in the Tianjin suburbs, China, Photo by Peter Mettler �������
“Manufacturing #18”, Cankun Factory, Zhangzhou, Fujian, Province, China

50 51

�������
“Dam #6”, Three Gorges Dam Project,Yangtze River, China �������
“China Recycling #9”, Circuit Boards for recycling in Guiyu, são as imagens obtidas no local de implantação da «China», de Edward Burtynsky
Guangdong Province, China «Three Gorges Dam» -- a maior barragem do mundo, 180 páginas, 80 imagens a cores
50% maior do que qualquer outra existente e res- 38,1 cm x 30,5 cm, capa dura com sobrecapa impressa
ponsável pela deslocação compulsiva de cerca de um Editado por Steidl em Novembro de 2005
milhão de habitantes daquela região.
Reconhecendo que a grande força das imagens de «Quarries», de Edward Burtynsky
Burtynsky reside «na sua recusa em as tornar didác- 176 páginas, 80 imagens a cores
ticas» Baichwal acaba por desenvolver, em «Paisagens 38,1 cm x 30,4 cm, capa dura com sobrecapa impressa
Manufacturadas», uma obra que prolonga de forma editado por Steidl Photography International em Setembro de 2007
poética e eficaz as metafóricas imagens de Burtynsky
dando assim a percepcionar, num belo estilo, o dile- «Manufactured Landscapes», sobre a obra de Edward Burtynsky
ma da nossa existência moderna – o continuo desejo Realização de Jennifer Baichwai
de ter uma maior qualidade de vida não obstante a Estreia em sala em França – Novembro de 2007
tomada progressiva de consciência das consequên- Documentário, 1h26m, cor
cias naturais que daí advenham. � Canadá, 2006
49
Gérald Bloncourt no CCB
“ Partiram clandestinamente de Portugal rumo a França, fugindo à miséria
e opressão. Para trás deixaram família e amigos envoltos em saudade. Suportaram
os tortuosos caminhos da emigração sonhando com um glorioso regresso a Portugal e
lutando “por uma vida melhor”.Tudo isso documentam as imagens de Gérald Bloncourt
patentes, até ao próximo dia 18 de Maio, no Museu Colecção Berardo, em Lisboa.

Texto de Susana Paiva

P
ara Bernardette Caille, co- França desde 1965, que apresenta nes- buas e chapas metálicas se erigiam as
missária da exposição «Por ta mostra dois dos seus documentários precárias habitações de milhares de fa-
Uma Vida Melhor» que reú- e excertos de um terceiro em fase de mílias portuguesas –, as reais condições
ne no Museu Colecção Be- edição e cuja cinematografia aborda sis- de vida dos emigrantes portugueses em
rardo, em Lisboa, cerca de 50 fotografias tematicamente a temática da imigração França captaram a atenção de Gérald
de Gérald Bloncourt em torno da temá- portuguesa em França». Bloncourt ainda na década de 50, altu-
tica da imigração portuguesa clandestina Assunto esquecido ou apenas talvez do- ra de que datam as suas primeiras ima-
em França, não existem dúvidas acerca loroso de mais para recordar, alicerçado gens temáticas. No entanto, foi apenas
da importância e pertinência da mos- na culpa – de todos quantos tiraram di- em 1964, ano em que Bloncourt tomou
tra. «A exposição fala de uma realidade videndos da precariedade e consequente conhecimento do “bidonville” de Cham-
que durante muito tempo os franceses fragilidade da imensa massa laboral por- pigny-sur-Marne, nos arredores de Paris
ignoraram. As duras condições de so- tuguesa em busca da legalização –, e na – um dos maiores bairros de lata então
brevivência dos emigrantes portugueses vergonha – daqueles que, sujeitando-se habitado por famílias portuguesas –, que
clandestinos em França, nas décadas de às terríveis condições que a clandestini- o seu trabalhou adquiriu a proximidade
50 e de 60, é um assunto do qual ainda dade impunha, silenciaram a dura realida- e intensidade que hoje se pode testemu-
hoje pouco se fala, apesar de existirem de dos “bidonvilles”, periféricos bairros nhar na sua exposição.
no país autores como o José Vieira, do- de lata privados de electricidade, sanea- Inicialmente recebido com desconfian-
cumentarista português residente em mento e água canalizada onde entre tá- ça e hostilidade no seio do “bidonville”,
Bloncourt teve a felicidade de encontrar destinos, e da qual resultariam apenas reflexão sobre as indignas condições com
no bairro de lata português um homem duas imagens obtidas clandestinamente que no passado a França recebeu a mão-
que conhecera anteriormente e que se e mostrando o grupo de costas tal era de-obra portuguesa e que hoje, um pouco
revelaria a chave certa para a imersão o receio de identificação por parte dos por toda a Europa, não se hesita em repe-
naquele mundo secreto e proibido. Com seus elementos. tir perante as novas e crescentes vagas de
permissão para regressar e fotografar li- Foi por uma dessas imagens, datada de emigração”. �
vremente, Gérald Bloncourt desenvolveu 1965, que Bloncourt resolveu começar a
um extenso trabalho documental sobre sua exposição fotográfica patente no Mu- «Por Uma Vida Melhor»
o quotidiano dos portugueses, trabalho seu Colecção Berardo onde revela com Fotografias de Gérald Bloncourt
que enriqueceu com a abordagem foto- sensibilidade, mas sem grandes preocupa- Projecção dos documentários «Gente
gráfica de outros momentos capitais no ções estéticas, a dura caminhada da emi- do Salto» e «Os Anos da Lama»,
processo da emigração clandestina. Ain- gração portuguesa clandestina em França, de José Vieira
da hoje recorda, com emoção, a dureza esses “filhos dos grandes descobridores” Museu Colecção Berardo
da única viagem que fez “a salto” entre que sonhavam um dia regressar gloriosa- Centro Cultural de Belém, Lisboa
Portugal e França, seguindo um pas- mente a casa. Um trabalho que, não pre- Todos os dias, das 10h00 às 19h00
sador que guiava através dos Pirenéus tendendo ser moralizante, devia permitir, Horário alargado à 6ª feira, até às 22h00
um pequeno grupo de emigrantes clan- nas palavras de Bernardette Caille, “uma Entrada gratuita
33
Portfolio Joakim Eskildsen
Cantos nómadas
“ Entre 2000 e 2006 Joakim Eskildsen e Cia Rinne
percorreram sete países, da Europa à Ásia, documentando
a vida de diversos grupos étnicos colectivamente
designados por Ciganos.Agora no livro “The Roma
Journeys [Le romané phirimàta]”, materializam em
imagens, palavras e sons a intensa experiência de partilha
do quotidiano das inúmeras famílias ciganas com que
ao longo de sete anos privaram.
” Texto de Susana Paiva
Fotografias de Joakim Eskildsen, gentilmente cedidas pela editora Steidl

D
esde 1975, ano em que Rinne, do ensaio e da recolha sonora e
o fotógrafo Josef Kou- musical que deu origem ao cd integrado
delka publicou pela na edição, reformulam o género criando
editora Aperture o len- não só uma obra de importante valor
dário «Gypsies», que nenhuma outra documental mas sobretudo um trabalho
obra fotográfica sobre a comunidade onde a valência estética impera.
cigana se constituía como uma verdadei- Numa obra onde se traça o quotidiano
ramente referência internacional. Apesar dos Roma, Sinti, Calé e outros grupos
de alguns trabalhos sistemáticos e con- étnicos colectivamente referenciados
sistentes na área como o do britânico como Ciganos, existe ainda em «The
Nigel Dickson, que ao longo de 12 anos Roma Journeys» espaço para a afirma-
fotografou diversas comunidades ciganas ção da sua diferença revelando-se, de
na Europa e nos Estados Unidos da Amé- forma brilhante, como a maior minoria
rica e que, em 2003, publicou pela Actes da Europa se difunde através do globo,
Sud o interessante «Sara – Le pèlerinage vivendo em micro universos onde cada
des gitans», obra dedicada à anual pere- grupo étnico é marcado por um idioma
grinação cigana em honra da sua santa e cultura específicas. Há, nas brilhantes
padroeira na localidade francesa de imagens de Eskildsen, uma força e es-
Saintes-Maries de la Mer, foi necessário tranheza que evidenciam traços de in-
esperar cerca de três décadas para que dividualidade e solidão no seio de uma
o mercado editorial voltasse a publicar comunidade sobre a qual durante muito
nova obra de referência, desta feita atra- tempo assumimos que o colectivo se
vés do renovado olhar do fotógrafo di- sobrepunha ao indivíduo. Há nas suas
namarquês Joakim Eskildsen. fotografias, sobretudo nas imagens a co-
Publicado pela Steidl, «The Roma Jour- res, uma luz improvável e estranhamente
neys [Le romané phirimàta]» é uma obra bela onde amanhecer e crepúsculo se
excepcional onde, longe de produzirem tornam predominantes, reforçados aqui
um trabalho documental linear, Joakim e ali por pequenos focus de luz artifi-
Eskildsen, através da fotografia, e Cia cial que nos remetem para o plano da
35
irrealidade. É assim, pela poética combi-
nação do poderoso universo imagético
de Joakim Eskildsen e da incisiva prosa
de Cia Rinne, que a obra editada pela
Steidl veemente veicula a forma dis-
criminatória como os Roma tem sido
perseguidos e expulsos um pouco por
toda a Europa, sujeitos à escravatura na
Roménia e até proibidos de se expres-
sar na sua própria lingua. Parafraseando,
em jeito de conclusão, Günther Grass
que no prefácio denuncia a injusta des-
criminação a que esse povo tem sido
sujeito: «No seu permanente estado de
dispersão, eles, os Roma, são de facto
Europeus no sentido em que, aprisiona-
dos nas nossas estreitas nacionalidades,
deveríamos ter em mente que a nossa
Europa unida não se deveria desenvol-
ver num monstro burocrático, num co-
losso económico todo-poderoso. Pelo
menos num nível, na sua mobilidade que
desafia fronteiras, os chamados Ciganos
estão um passo à nossa frente. Eles de-
veriam ser os primeiros a receber passa-
portes Europeus, garantindo-lhes direito
de residência da Roménia a Portugal.
Nascidos Europeus, eles estão, nos seus
séculos de experiência, em posição de
nos ensinar como cruzar fronteiras, de
abolir as fronteiras dentro e à volta de
nós e de criar uma Europa sem frontei-
ras que não seja apenas um sujeito de
vazio orátorio mas um real estado da
situação». �

«The Roma Journeys


(Le romané phirimàta)»
Fotografias de Joakim Eskildsen
Prefácio de Günter Grass
Introdução de Cia Rinne e Joakim Eskildsen
Ensaios e gravação sonora de Cia Rinne
Edição musical de Sebastian Eskildsen
416 páginas, imagens a cores e a preto e branco,
23.3 cm x 26.6 cm
Capa dura com CD de gravação de som e música gravada
durante a viagem
ISBN: 978-3-86521-371-6
www.steidlville.com
27
Sophie Calle
Objectivar a dor criando Arte

“ Autora de algumas das mais singulares e desconcertantes obras de arte


plásticas da actualidade, Sophie Calle foi, com «Prenez soin de vous», a
representante francesa na última edição da Bienal de Veneza. Agora, de regresso
a Paris, exibe na Bibliothèque Nationale de France a referida obra, criando com
mestria novas oportunidades de atestar como pode o sofrimento ser objectivado
e, mais importante do que isso, transformado em obra de Arte.

Texto de Susana Paiva
Fotografias gentilmente cedidas por Bibliothèque Nationale de France
Retrato de Sophie Calle da autoria de Jean Baptiste Mondino
29

H
á 30 anos que Sophie em campos artísticos tão diversos como
Calle transforma publi- a literatura, a dança, o canto lírico e o tea-
camente a sua intimi- tro sem esquecer todas as outras que são
dade e vida afectiva em fruto de análise de disciplinas científicas
obras de arte, prática que lhe tem valido ou territórios académicos como os da
tão grande número de admiradores quan- consultoria matrimonial, da psiquiatria, da
to de críticos. Debruçando-se sobre a sua grafologia ou do direito.
esfera íntima, onde ao público não é possí- Instalada na histórica Sala Labrouste, in-
vel traçar fronteira entre real e imaginário, fra-estrutura da BNF fechada ao público
talvez nunca venha a ser possível alcançar nos últimos dez anos, a exposição co-
consenso sobre a validade da sua obra. De missariada e instalada in situ por Daniel
qualquer modo talvez não seja condição Burren – comissário da exposição original
necessária o público saber a veracidade apresentada durante a Bienal de Veneza
das suas premissas, digam elas respeito a de 2007 e seleccionado por Sophie Cal-
rupturas amorosas, perda de entes queri- le entre os mais de 200 candidatos que
dos ou outros desaires emocionais, dado responderam ao seu anúncio nos jornais:
todos elas reflectirem uma certa universa- «Sophie Calle, artista seleccionada para
lidade em que cada um dos espectadores representar a França na 52° Bienal de
se poderá projectar. Veneza, procura um candidato entusiasta
É precisamente nesse grande espaço de para comissariar a sua exposição. Pedem-
reflexão e projecção que reside o magne- -se referências. Honorários a negociar»
tismo da obra de Sophie Calle, o segredo – materializa com elegância os vídeos,
do seu sucesso e, em última instância, a ra- fotografias e livros produzidos no âmbito
zão pela qual, ainda que subsista a dúvida do projecto, deixando ao visitante a sen-
da credibilidade, nos sentimos tão atraí- sação de mergulhar num universo pessoal
dos pelas suas desconcertantes propostas ao qual apenas ele tem acesso.
artísticas. Há na sua obra a dimensão de Entre os múltiplos registos desta falsa in-
uma humanidade por vezes obnubilada timidade pontuam interpretações de mui-
pela Arte, um espaço para o humano tal tas figuras públicas, entre as quais Maria
como ele é, com as suas fragilidades, as de Medeiros e Mísia – ambas a residir em
suas feridas afectivas mas também com a Paris –, que criam performances antagóni-
sua generosidade e enorme capacidade cas, onde à tranquilidade da actriz Maria
criativa para ultrapassar adversidades. Em de Medeiros lendo a carta deitada numa
«Prenez soin de vous», derradeiras pala- chaise longue se contrapõe o inflamado
vras de uma inesperada e dolorosa carta registo de Mísia, onde segundo a fadista
de ruptura que Sophie Calle recebeu via se revela impossível a interpretação à luz
correio electrónico, a artista comprova do fado da referida carta de ruptura. Dois
isso mesmo ao fazer interpretar a referida bons exemplos da teoria que a artista en-
carta por 107 mulheres de diferentes ida- quanto agente provocador parece querer
des e profissões.. afirmar – que na esfera das emoções e dos
Longe de se tornar num objecto estéril afectos não há racionalização e homoge-
onde, através do coro das mais de 100 neização possível. �
vozes, se destila a mágoa de uma mu-
lher face à incapacidade de responder à Sophie Calle
carta do seu amante, o projecto que So- «Prenez soin de vous»
phie Calle agora expõe na Bibliothèque Bibliothèque nationale de France
Nationale de France (BNF) revela-se um 58 Rue de Richelieu, 75002 Paris
objecto maior onde a pluralidade de in- 3a a sábado, 10h-20h, domingos, 12h-20h,
terpretações dá lugar, entre tragédia e horário alargado à 5ª, até às 22h
comédia, a interessantes performances Até 8 de Junho
31
«Topologies», de Edgar Martins
Morfologias do real
“ Tal como em Robert Adams é nos livros que melhor se revela a força da obra de
Edgar Martins.As suas séries fotográficas ensaiam poderosas narrativas e, tal como em
Adams, encontram na edição um espaço de expressão onde se activa o poder literário
do médium, estimulando a interacção e um diálogo criadores de novas e efectivas
ligações que agudizam a percepção e extensão da vivência estética do leitor. Ideias de
força que não passaram despercebidas à Aperture Foundation que edita agora o seu livro
«Topologies», uma excelente obra disponível mundialmente já a partir deste mês.

Texto de Susana Paiva
Imagens gentilmente cedidas por Edgar Martins

E
dgar Martins não receia o históricas. Algumas fotografias são provas do lente grande angular numa câmera gran-
«belo». Tal como o fotógra- mundo tal como o conhecemos enquanto de formato montada em tripé, técnica um
fo Robert Adams não receia outras, na opinião de John Beardsley, «obs- pouco anacrónica que Edgar Martins reco-
protagonizar uma possível curecem o seu sujeito através de um ilusio- nhece ser «uma forma pouco espontânea
contra-corrente na fotografia contemporâ- nismo que tange a magia». As fotografias dos de trabalhar, muito estática e premeditada»,
nea, produzindo imagens que enfatizam va- grandes maciços gelados mostram a sua ten- esta metodologia serve na perfeição os seus
lores tradicionais da estética com a «beleza» dência para a tradição pictorialista, revelando projectos cujo discurso teórico é tão forte e
como virtude a aspirar. Nas suas imagens, o artista que, tal como um explorador, cria consistente como a técnica fotográfica.
simultaneamente clássicas e contemporâne- um inventário de montanhas, rios e campos Nas imagens dos fogos florestais, captadas
as, Martins consegue recapitular a história, gelados com recurso a uma paleta de cores em Portugal em 2005 e em 2006, Edgar
criando imagens que utilizam as mais antigas onde apenas pontuam o cinzento, o castanho, Martins atinge na sua obra o apogeu dos
estratégias pictóricas para expressar uma o branco e por vezes o azul.Algumas das suas efeitos da pintura, sobretudo na imagem
forma nostálgica de ver e registar a paisa- imagens apresentam-se em apenas dois tons, onde o verde da vegetação é invadido por
gem, e ser um criador do seu tempo ao im- onde sépia e cinzento parecem sugerir ima- chamas, vendo-se o seu reflexo na água.
buir o seu trabalho de espantosas qualidades gens coloridas manualmente o que, de certa Contudo, neste caso, a sua intenção não é
abstractas e de uma carga política traduzida forma, é verdade já que o tons creme do céu apenas pictórica, existindo subjacente uma
na ansiedade reveladora do tempo em que são obtidos através de uma pré-exposição da ansiedade reveladora dos efeitos da seca
vivemos. película à luz, produzindo assim um efeito de e do extremo calor, indícios que poderão
As suas séries apresentam frequentemente véu que acaba por ser percepcionado como ser lidos como sinal da clara mudança cli-
características distintas que revelam diferen- uma suave tonalidade sépia. mática global, bem como consequência de
tes níveis de envolvimento com as tradições Obtendo as imagens com recurso a uma uma má gestão florestal, conivente com a

«Landscapes Beyond AA»


������� «Landscapes Beyond Part 2»
������� «Landscapes Beyond Part 2»
�������

�������
«Landscapes Beyond Part 2»
33
«The Accidental Theorist 2»
������� «The Accidental Theorist 20»
������� «Hidden 1»
������� «Hidden 3»
�������

«The Rehearsal of space 9» plantação maciça de eucaliptos, espécie que Breton podia liberar a imaginação artística, �������
«The Rehearsal of space 10»
�������
para além de esgotar os recursos do solo exprimindo o maravilhoso e constituindo-se
se apresenta como altamente inflamável. como um dos atributos de uma beleza que
Não obstante a beleza das suas imagens dos apelidou de convulsiva.
fogos florestais, é na série «The Accidental Seja em «Landscapes Beyond», «The Burden
Theorist», reunindo imagens captadas em of Proof», «The Rehearsal of Space», «The
2005 e 2007, que o documentarista Edgar Accidental Theorist», «Approaches» ou em
Martins se transforma em ilusionista, mate- «Hidden» – as seis séries que Edgar Martins
rializando o estado entre sonho e desper- apresenta na obra que acabou de editar - a
tar que André Breton caracterizou no seu realidade é que todas as imagens publicadas
manifesto de 1924 como «um género de cabem no conceito de “topologia” que es-
realidade absoluta, uma surrealidade se assim colheu para titular o livro, ora porque reme-
se pode dizer». Revelando as incongruên- tem para o estudo das propriedades das for-
cias e inconsistências de quando, à noite, a mas geométricas que se mantêm invariáveis
cidade encontra o oceano, Martins trabalha sob certas transformações – como dobrar,
«num terceiro espaço – entre realidade e esticar ou torcer – ora porque remetem
representação». Há ainda, nas suas imagens para o estudo das modificações que ocor-
nocturnas da praia, um outro subtil elo com rem ao longo do tempo, mostrando assim
o surrealismo – a presença do «object trou- como essas alterações afectam a história de
vé», o objecto encontrado, que segundo um lugar. �

«The Accidental Theorist 22»


������� «The Accidental Theorist 23»
������� «Hidden 4»
�������

«Topologies», de Edgar Martins


Capa dura com sobrecapa impressa, 75 imagens
em quadricromia, 136 Páginas. Editado por Aperture, Nova Iorque
www.aperture.org
Exhibition Road

C
oncebo ser o dever de toda a pessoa educada
estudar e observar cuidadosamente o tempo
em que vive», declarou o Príncipe Albert no
� ��� �� ��� � � � discurso proferido a 11 de Outubro de 1849,
na cidade de Londres, durante num banquete concedido por
Lord Mayor. Nesse discurso, acentuando a importância da
ciência, bem como as suas relações com a arte, apresentava
«The Great Exhibition», o grandioso projecto expositivo ma-
terializado, dois anos mais tarde, em Hyde Park. Mercê dessa
visão, «plena de ambição intelectual, inventividade e energia»,
e graças ao enorme sucesso da Grande Exposição de 1851,
cujos lucros foram investidos na compra de 400 metros qua-
drados de terreno em South Kensignton, nasce “Exhibition
Road”, «um centro nacional permanente para a educação
pública». Em poucas décadas, com o apoio da Comissão da
Exposição de 1851, o local tornou-se a casa de um extraor-
dinário conjunto de reputadas instituições. Hoje, South Ken-
signton é um dos maiores e mais importantes centros artís-
ticos e científicos de educação pública a nível mundial.Aí, no
coração de South Kensington, se reunem três importantes
museus nacionais: o Natural History Museum, o Science Mu-
seum e o Victoria and Albert Museum. No mais, aí se encon-
tram três universidades – o Imperial College, o Royal College
42 of Art e o Royal College of Music –, e múltiplas instituições 43
culturais, incluindo o English National Ballet, o Royal Albert
Hall e a Serpentine Gallery. Conjuntamente, estas instituições
de índole variada atraem todos os anos cerca de dez milhões
de visitantes, tornando a área um dos destinos culturais mais
importantes de Londres. Representando o espectro total da
criatividade humana, através das artes e das ciências, essas
instituições representam igualmente o compromisso nacio-
Exhibition Road nal de acesso público à cultura e educação – algo que já os
Victorianos sabiam essencial para uma sociedade saudável.

Onde arte Actualmente, volvidos mais de 150 anos, “Exhibition Road”


- actualmente conhecida como a “auto-estrada da educação”

e ciência - superou as expectativas de todos quanto o projectaram


e, mais do que um centro de educação nacional, transfor-

se cruzam mou-se numa prestigiada referência internacional, atraindo


visitantes de todas as nacionalidades que enchem, dia após
dia, o Victoria & Albert e os Museus de História Natural e
Texto e fotografia de Susana Paiva da Ciência. Três universos gigantes onde, gratuitamente, mi-
lhões de visitantes de todas as idades se deslumbram com as
colecções permanentes enquanto muitos outros não pres-
cidem de visitar as exposições temporárias onde, como no
caso do Museu de História Natural, brilha o universo dos
dinaussauros mecânicos e o famigerado T-Rex. �
Exhibition Road

� ��� �� ��� � � �

44 45
Exhibition Road

� ��� �� ��� � � �

46 47
Documenta 12

Documenta 12
O museu dos 100 dias
Encerradas as portas da 12ª edição da Documenta, no sos locais e estruturas da cidade das quais se destacam
passado dia 23 de Setembro, a pacata cidade de Kassel os seculares Museum Fredericianum e Neue Galerie,
regressa à normalidade enquanto decorre a contagem bem como os modernos Documenta-Halle e Aue-Pa-
decrescente para a inauguração da próxima edição, villon – uma estrutura efémera de 9500 metros qua-
32 agendada para 9 de Junho de 2012. drados, construída especialmente para aumentar o es- 33
Considerada como uma das mais importantes manifes- paço expositivo normalmente oferecido pela cidade.
tações de arte contemporânea a nível mundial, a Docu- Também designada, dada a sua duração, como “museu
menta realiza-se desde 1955 em Kassel na Alemanha, re- dos 100 dias”, a Documenta apresentou nesta edição
gendo-se por critérios de alternância, a cada cinco anos, mais de 500 obras de arte, realizadas por 109 artistas
da equipa artística, que este ano contou com os alemães de 43 países, e beneficiou de um orçamento 19 milhões
Roger M. Buergel e Ruth Noack, ele como director ar- de euros, metade dos quais suportados pela cidade de
tístico, ela enquanto comissária da exposição. Kassel, pela região de Hesse e pela Federal Cultural
Fundada no período pós-II Guerra Mundial pelo artista e Fondation. Com um crescimento de 16% de entradas
educador Arnold Bode, como forma de abrir a Alemanha pagas relativamente à última edição, foram contabiliza-
ao mundo, o evento cedo assumiu por missão mostrar das 754.301 visitantes na Documenta 12 tendo o even-
arte contemporânea das mais diversas regiões do mun- to sido coberto por 15.537 jornalistas originários de
do relacionando entre si as diferentes obras expostas. 52 países.
Concebida como uma experiência estética e educacio-
nal, a Documenta 12 apresentou exposições em diver- Texto e fotografias de Susana Paiva
Documenta 12

34 35
Documenta 12

36 37
38

Você também pode gostar