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DROGAS DE APOLO

USO RITUAL DE ESTEROIDES ANABOLIZANTES EM ACADEMIAS


DE FISICULTURISMO. NOTAS DE UMA POLÍTICA DO CORPO
Editora Appris Ltda.
1.ª Edição - Copyright© 2020 dos autores
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Catalogação na Fonte
Elaborado por: Josefina A. S. Guedes
Bibliotecária CRB 9/870

Sabino, César
S116d Drogas de Apolo : uso ritual de esteroides anabolizantes em
2020 academias de fisiculturismo; notas de uma política do corpo. /
César Sabino. - 1. ed. - Curitiba : Appris, 2020.
331 p. ; 23 cm. – (Ciências sociais).

Inclui bibliografia.
ISBN 978-65-5820-667-5

1. Esteroides anabólicos. 2. Fisiculturismo. 3. Musculação. I. Título. II. Série.

CDD – 613.71

Livro de acordo com a normalização técnica da ABNT

Editora e Livraria Appris Ltda.


Av. Manoel Ribas, 2265 – Mercês
Curitiba/PR – CEP: 80810-002
Tel. (41) 3156 - 4731
www.editoraappris.com.br

Printed in Brazil
Impresso no Brasil
César Sabino

DROGAS DE APOLO
USO RITUAL DE ESTEROIDES ANABOLIZANTES EM ACADEMIAS
DE FISICULTURISMO. NOTAS DE UMA POLÍTICA DO CORPO
FICHA TÉCNICA
EDITORIAL Augusto V. de A. Coelho
Marli Caetano
Sara C. de Andrade Coelho
COMITÊ EDITORIAL Andréa Barbosa Gouveia - UFPR
Edmeire C. Pereira - UFPR
Iraneide da Silva - UFC
Jacques de Lima Ferreira - UP
ASSESSORIA EDITORIAL Alana Cabral
REVISÃO Cristiana Leal Januário
PRODUÇÃO EDITORIAL Gabrielli Masi
DIAGRAMAÇÃO Jhonny Alves dos Reis
CAPA Karen Tortato
COMUNICAÇÃO Carlos Eduardo Pereira
Débora Nazário
Karla Pipolo Olegário
LIVRARIAS E EVENTOS Estevão Misael
GERÊNCIA DE FINANÇAS Selma Maria Fernandes do Valle

COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS


DIREÇÃO CIENTÍFICA Fabiano Santos (UERJ-IESP)
CONSULTORES Alícia Ferreira Gonçalves (UFPB) Jordão Horta Nunes (UFG)
Artur Perrusi (UFPB) José Henrique Artigas de Godoy (UFPB)
Carlos Xavier de Azevedo Netto (UFPB) Josilene Pinheiro Mariz (UFCG)
Charles Pessanha (UFRJ) Leticia Andrade (UEMS)
Flávio Munhoz Sofiati (UFG) Luiz Gonzaga Teixeira (USP)
Elisandro Pires Frigo (UFPR-Palotina) Marcelo Almeida Peloggio (UFC)
Gabriel Augusto Miranda Setti (UnB) Maurício Novaes Souza (IF Sudeste-MG)
Helcimara de Souza Telles (UFMG) Michelle Sato Frigo (UFPR-Palotina)
Iraneide Soares da Silva (UFC-UFPI) Revalino Freitas (UFG)
João Feres Junior (Uerj) Simone Wolff (UEL)
Para minha mãe, Irani.
AGRADECIMENTOS

A escrita de um livro não se sustenta na ilusão da produção individual.


Sua composição envolve uma rede de agentes atuando uns com os outros.
Por isso, gostaria de agradecer à socióloga e professora Madel Therezinha
Luz pela amizade, carinho e paciência assim como pela oportunidade que
me foi concedida de ter participado como bolsista na sua pesquisa sobre
Medicina Ocidental Contemporânea, Medicinas Alternativas e Práticas
Terapêuticas em Saúde no Grupo Racionalidades Médicas do Programa
de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do Instituto de Medicina Social
(PPGSC/IMS) da Uerj. Assistir às suas brilhantes aulas, participar de seus
ensinamentos e admoestações foi um privilégio que desfrutei por quase
uma década. Certo é que a maior parte dos questionamentos presentes neste
trabalho são provenientes desse período. Nesse aprendizado, desenvolvi
não apenas meu interesse pelos estudos sobre corpo, saúde e relações de
poder, mas também o amor incontornável pela Sociologia.
Da mesma forma, agradeço o profissionalismo, a atenção e a dedicação que
encontrei no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia
do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (PPGSA/IFCS) da UFRJ e no
exemplo da antropóloga e professora Mirian Goldenberg. Sou grato a sua
grande paciência, exemplar disciplina, solidariedade constante e valiosa
orientação, além do incentivo proporcionado nos difíceis momentos de
dúvidas e incertezas. Nesse período, se consolidou outro grande amor às
Ciências Sociais: a Antropologia.
Agradeço ainda aos etnólogos Marco Antônio Gonçalves e Elsje Maria
Lagrou pelas sugestões fundamentais, a atenção cuidadosa, as discussões
teóricas repletas de questionamentos, nas quais a tessitura do pensamento
formava o denso terreno pelo qual caminhávamos. Gentil e generosa-
mente, presentearam-me com revistas de cultura física datadas do final
do século XIX e início do século XX, trazidas por eles da Europa e que se
tornaram documentos fundamentais, fontes primárias, para a elaboração
de parte deste livro. Meus sinceros agradecimentos também para outra
presença antropológica fundamental na minha trajetória: a professora
Patrícia Birman, que ainda na graduação de História me aceitou em sua
pesquisa sobre rituais e simbolismo desenvolvida no Departamento de
Antropologia da Uerj.
Aos meus amigos Washington Dener, Marcelo Peloggio, Rafael Mattos,
Marcus Siani, Andréa Osório, Sônia Beatriz, Marcelo Silva Ramos, Douglas
Rocha e Anderson Fraga agradeço a vivacidade crítica e criadora, o apoio e
a afirmação da vida. Agradeço à Aline Mossmann pelas alegrias presentes
nas últimas partes desse trajeto. Por fim, mas não menos importante, agra-
deço à Capes e ao CNPq pelo apoio concedido durante meu aprendizado e
pesquisa, sem o qual a dedicação ao trabalho não poderia ter sido realizada
com o devido aproveitamento.
Nous avions conscience que la connaissance du sport est la
clé de la connaissance de la societé.
(Elias)

Nosso corpo é apenas uma estrutura social de muitas almas.


(Nietzsche)

O corpo é o ponto zero do mundo [...] pequeno fulcro utópico, a


partir do qual eu sonho [...], percebo as coisas em seu lugar e
também as nego pelo poder [...] das utopias que imagino.
(Foucault)
APRESENTAÇÃO

Neste livro busco analisar o cotidiano das academias de fisiculturismo,


vistas como organizações nas quais um sistema de relações sociais de poder
apresenta-se como inerente às práticas da musculação, organizando o dia-
-a-dia dos alunos, atletas e frequentadores em geral. Utilizo como referência
ou modelo analítico academias dos bairros das Zona Norte e Sul da cidade
do Rio de Janeiro. A partir de observações como praticante (aluno) nessas
academias, destaco a importância do uso ritual de esteroides anabolizantes
como elemento fundamental para construção da pessoa ou identidade do
bodybuilder e, portanto, da identificação coletiva do grupo. Esteroides, remédios
utilizados para ganho de massa muscular, (que denomino drogas de Apolo, e
que são chamados “bombas”, “produtos” ou “aditivos” pelos usuários), têm,
nesse contexto, significado oposto àqueles referidos as denominadas “drogas
recreativas”, como maconha, cocaína, ecstasy etc., (as quais, denomino drogas
dionisíacas), que caracterizam outros sentidos e significados para as diversas
“tribos urbanas” da sociedade brasileira. Nessa direção, procuro compreender
aspectos anátomo-políticos relacionados à imagem corporal a qual envolve
a maior parte dos desejos, das crenças, dos comportamentos, das aspirações,
dos sonhos, afetos e das subjetividades referidas ao grupo.
A quase totalidade deste livro foi escrita no início dos anos 2000. Fiz
algumas revisões, acrescentei partes textuais e bibliografia atualizada, além de
alguns comentários de rodapé e Post Scriptum; contudo, a forma original não
foi modificada, nem mesmo o estilo (ou a falta dele) e o conteúdo presentes
no texto. Excertos modificados foram anteriormente publicados em revistas
científicas nos últimos anos, e os relatos colhidos e observações participantes
trazem resquícios do período e das relações sociais da época na qual foram
realizados. Porém, os questionamentos e problemas em geral não mudaram
e, pelo que tudo indica, ainda permanecerão por longo tempo. As relações
sociais postas em foco sofreram, de forma superficial, pequenas variações,
seguindo as tendências que já se apresentavam à época. Os propósitos e
as práticas dos agentes sociais permanecem, talvez de maneira ainda mais
acentuada, nas atitudes voltadas para o cultivo da forma musculosa, imagem,
percebida como símbolo de saúde, beleza, autoridade, sucesso (ascensão
social) e poder em uma era na qual o corpo tornou-se sua própria empresa.
Com efeito, para compreender melhor o grupo é preciso esclarecer o
conceito de anátomo-política, elaborado por Michel Foucault, relacionando-o
a outro conceito seu, que é o de biopolítica. O primeiro refere-se aos disposi-
tivos disciplinares encarregados de extrair dos corpos, por meio de saberes e
práticas, sua capacidade de produção e otimização via controle do espaço e do
tempo no interior de organizações e instituições como escolas, exército, famí-
lia, hospital, fábrica, prisão, academias etc. Por sua vez, a biopolítica ocupa-se
em gerir não apenas o corpo individual, mas também a vida de populações
inteiras, escrutinando suas formas de existência e produzindo gerenciamento
e administração de taxas de natalidade, mortalidade, epidemias, longevidade e
assim por diante. Esse processo também produz uma crescente tecnologia do
poder exercida sobre os corpos coletivos. Dessa forma, academias de fisicultu-
rismo não deixam de ser centros nos quais essa dinâmica se produz. De acordo
com o autor, a descoberta da existência daquilo que veio a ser denominado
“população” pelos saberes políticos-administrativos do Estado Moderno está
diretamente associada à invenção, ou descoberta, do indivíduo e sua identidade,
como corpo maleável ou modelável, corpo a ser melhorado visando a servir
aos propósitos políticos e econômicos. Em resumo, enquanto a disciplina se
realiza como anátomo-política dos corpos e se aplica aos indivíduos e sujeitos,
a biopolítica representa uma medicina social que é direcionada à população a
fim de governar a vida enquanto elemento fundamental do campo do poder
(FOUCAULT, 1997, p. 91; 1993, p. 145-152; REVEL, 2005, p. 26-28). Os
dois conceitos perpassam este trabalho. Sem embargo, busco compreender
as práticas e representações que constituem os elementos cooptados e rear-
ticulados nesse processo de desdobramento da administração das vidas por
intermédio das organizações e instituições (lugar privilegiado de luta política)
em suas sociabilidades capitalistas (LUZ, 1986; GUATTARI; ROLNIK, 1996;
FOUCAULT, 1997; DELEUZE; GUATTARI, 2012; BALCONI, 2012)1.
No caso das academias de fisiculturismo, as sociabilidades têm sido
produzidas pela busca estética relacionada, por sua vez, a uma ética indivi-
dualista e autocentrada, próxima dos ideais neoliberais das últimas décadas
presentes nas relações macropolíticas nacionais e internacionais. Processo
de construção intermitente no qual tendências sociológicas gerais comuns
à sociedade brasileira, como as relações patriarcais de dominação com seu
androcentrismo característico são reproduzidas. Ao longo do trabalho,
pode-se perceber, às vezes de forma sutil e outras nem tanto, como princípios
econômicos gerais do neoliberalismo foram sendo absorvidos por parte do
1
Ainda que pese a importância dos trabalhos de Michel Misse para os estudos relacionados à violência no Brasil,
fundamentalmente no Rio de Janeiro, visto ser ele uma das maiores autoridades sociológicas no tema, compreendemos
como equivocada a última crítica por ele realizada aos autores nacionais em relação a utilização que os mesmos fazem
da ferramenta conceitual denominada biopolítica (MISSE, 2020). Misse aborda o conceito de forma quase escolástica,
como se o mesmo fosse rígido, unívoco e sagrado, emperrando, com efeito, a ferramenta teórico-metodológica e
inviabilizando seu uso em países não europeus ou norte-americanos. Para o autor o mesmo conceito está diretamente
relacionado à estrutura do Estado europeu ocidental, mormente o francês. O modelo político brasileiro não teria se
constituído dentro dos moldes prescritos pelas teorias e práticas político-administrativas liberais dos países centrais
do sistema capitalista os quais passaram a se preocupar com a otimização da vida da sua população, administran-
do-a. Essa preocupação com a vida, para Misse, seria o cerne da atuação biopolítica proveniente do Estado. Desta
perspectiva o conceito seria inadequado para o estudo de nossa realidade social posto que o Estado brasileiro pouco
se importaria com a vida da sua população. Minha perspectiva é que todo conceito – como afirmaram os próprios
Foucault, Deleuze, Guattari etc. – deve ser usado, instrumentalizado, torcido, e não seguido. São ferramentas que
devem auxiliar a pensar com a realidade; isso posto, o conceito de biopolítica certamente relaciona-se à formação dos
Estados na Europa ocidental, porém, também assinala a ultrapassagem da dicotomia Estado/sociedade, via uma eco-
nomia política da vida, independente, de certa maneira, do Estado, já que a mesma biopolítica se apresenta, da mesma
maneira, como conjunto de biopoderes significando a vida como poder de certa forma independente do Estado – essa
modulação conceitual tem a ver com a influência do pensamento de Nietzsche na obra de Foucault. Nesse movimento,
a biopolítica é percebida fundamentalmente na linguagem, no corpo, nos afetos, desejos, sexualidade etc., ou seja, ela
além de ser transversal ao Estado é instância de produção de subjetividades as quais não apenas se adequam à ordem
do mesmo, mas se apresentam como contrapoder e resistência ao sistema social, remetendo ao fato de representar
a passagem da política para a ética ou do cuidado de si como prática de liberdade (FOUCAULT, 1995; DREYFUS:
RABINOW,1995; REVEL, 2005, p. 26-28). Não concebo esse conjunto de relações de poder e forças como apenas
representando estratégias estatais de controle populacional e potencialização da vida como saúde e força de trabalho
útil, mas sugiro, em conexão com os conceitos de disciplina, anátomo-política, necropolítica e controle, uma rede
intermitente e mutante de relações de dominação e contradominação que se tornam características de uma determinada
época. Embora o Estado brasileiro não tenha alcançado a eficácia e a eficiência dos Estados europeus nesse aspecto
da implantação do cuidado populacional, ao menos em alguns aspectos a vida dessa população é administrada, gerida
ou conduzida político-administrativamente nem que seja para ser em parte exterminada como componente inútil
ou prejudicial ao sistema. Misse entende biopolítica de forma apenas positiva, como necessidade de respeito à vida
defendida pelo sistema jurídico, e, portanto, pelo Estado. Concebo o conceito como podendo ser desdobrado, como
fazem Mbembe (2018) e Agamben (2002), ampliando-o, e no qual cabe, por exemplo, a própria destruição da vida de
parte da população (matando ou deixando morrer) como estratégia para otimizar os propósitos daqueles que estão
no governo – e até mesmo sustento a hipótese de que houve e há uma espécie de projeto ou conluio elitista para que
a máquina pública assim funcione, em um modelo recorrente de arcaísmo como projeto de índole escravocrata e Ancièn
Régime (FRAGOSO; FLORENTINO, 1993) . Sendo assim, penso que biopolítica continua sendo um conceito adequado
para a análise da realidade brasileira em suas dimensões micropolíticas e não apenas macropolíticas.
grupo pesquisado como valores éticos e crenças morais em detrimento
dos valores solidários, democráticos e de cidadania no cotidiano dessas
organizações voltadas para o cultivo da forma corporal musculosa e magra
(com o mínimo de adiposidade) como sinônimo de saúde.
O trabalho, portanto, é uma tentativa de ressaltar de que maneira a
forma física, ou corporal, é objeto crucial de preocupações e cuidados que
espelham relações sociais referidas à saúde como signo direto da musculo-
sidade estética em um grupo específico da nossa cultura. Parece, seguindo a
sugestão de Foucault, que as práticas do grupo estudado (as quais refletem
em parte aquelas da sociedade em geral) são desdobramentos da biopolítica
e sua administração da vida, visando a maximizar suas potencialidades
anatômicas em uma nova era do capital, na qual organizações tornaram-se
virtuais e voláteis ampliando o controle sobre a vida e a imagem individual
(DELEUZE, 1995), sendo que a mesma imagem torna-se, não raro, a vitrine
de um corpo visto como empresa. Vida como objeto-mercadoria produzida
e reproduzida nas organizações da forma que são as academias de muscu-
lação e fisiculturismo em uma espécie singular de construção de saberes
ligados a processos de subjetivação ou construção de identidades individuais
e coletivas, por intermédio de
[...] técnicas [que] se incub[em] desses corpos, tenta[ndo]
aumentar [su]a força útil através do exercício, do treinamento
etc. [...] Técnicas de racionalização e de economia estrita de
um poder que deve [...] se exercer, da maneira menos onerosa
possível, mediante todo um sistema de vigilância, de hierar-
quias, de inspeções, de escriturações, de relatórios: toda essa
tecnologia, que podemos chamar tecnologia disciplinar do
trabalho [muscular] (FOUCAULT, 1999, p. 288).
PREFÁCIO

Considero este livro de César Sabino, fruto de seu trabalho em


Antropologia e Sociologia, uma obra densa e original. Sem pretender brin-
car com as palavras, posso dizer que não se trata da “prima obra” do autor,
mas de sua obra prima original, considerando a qualidade deste primeiro
trabalho acadêmico apresentado.
Ao mesmo tempo que analisa conceitualmente, interpretando os
sentidos atribuídos ao corpo no amanhecer da contemporaneidade, César
Sabino nos apresenta, em descrição detalhada e profunda – em escavação
empírica, podemos dizer –, o processo sócio-histórico do desenhar, cons-
truir, talvez do esculpir no imaginário, a matéria corpórea estética de nosso
corpo contemporâneo. Tal matéria é idealizada em músculos desenvolvidos
e torneados, apreciados como fortes, belos e poderosos. Esse imaginário
desenrola-se paulatinamente na cultura contemporânea, a partir da segunda
metade do século XX.
No processo de sua pesquisa, o autor valeu-se das várias técnicas
qualitativas das ciências sociais, a começar pela observação participante, a
qual aderiu inteiramente, assumindo as consequências de pertencimento
a um grupo social olhado por muitos, na época, com olhar bastante crítico.
Além disso, empregou as demais técnicas comumente presentes nas
investigações sociais: entrevistas, observação sistemática e atenta do(s)
terreno(s) onde se desenrolavam as atividades que observava e dos sujeitos
da investigação, tanto nas academias quanto em seus locais de socialização.
A partir do modelamento visual progressivamente desenhado e legiti-
mado do corpo musculoso, de início limitado ao gênero masculino, expan-
dindo-se em seguida para o gênero feminino – com bastante sucesso – em
perspectiva estética, mas bem aceito também na Saúde Pública em sua versão
higienista, a representação do corpo torneado em músculos trabalhados
pela ginástica como força e beleza na cultura contemporânea, sobretudo no
último terço do século XX e início do presente, está fortemente associada
às práticas de atividades físico-musculares desenvolvidas nas academias
de ginástica. E é esse o objeto de estudo de Sabino em pesquisa pioneira.
Da excelência do texto o próprio leitor testemunhará. Preciso apenas,
ao terminar este breve prefácio, quase miniapresentação, apresentar o César
Sabino, meu aluno talentoso de mestrado e pós-doutorado, durante os
anos em que desenvolveu atividades de pesquisa no Grupo Racionalidades
Médicas e Práticas de Saúde no Instituto de Medicina Social da UERJ.
As práticas eram então definidas no grupo como “práticas corporais”
relativas à saúde. Acrescentamos como exemplos dessas práticas outras
atividades, tais como a dança de salão, as práticas de ginástica e mesmo
regimes alimentares. A ligação fundamental em termos conceituais e de
construção de objetos de pesquisa era com a saúde dos agentes.
Mas a vocação de César Sabino não está ligada de forma alguma à
Saúde Coletiva ou à Medicina Social ou à saúde tout court! César Sabino é
um antropólogo nato, ou se preferirmos ampliar a vocação, um sociólogo
e antropólogo de grande talento. Eu tive o prazer e a honra de orientá-lo
por alguns anos, além de escrever vários textos com ele – seu talento me
inspirava muitas vezes, outras vezes me cumpria apenas aperfeiçoar sua
escrita, em estilo e clareza, para que o texto fosse eficaz. Ao longo dos anos,
uma grande amizade floresceu entre a antiga mestre e seu aluno. César é
hoje um dos maiores prêmios de minha profissão de mestre: quantos terão
tido esse presente da vida profissional?
Prof.ª Madel Therezinha Luz
Professora titular de Sociologia do Programa de Pós-Graduação em
Saúde Coletiva do Instituto de Medicina Social da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (PPGSC/IMS/UERJ).
E professora titular aposentada de Sociologia do
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ).
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
O CORPO UTÓPICO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .19

CAPÍTULO I
1 O SURGIMENTO DO BODYBUILDING: UMA BREVE HISTÓRIA . . . . . . . . . .37
1.1 HERÓIS FUNDADORES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .47
1.2 A GESTA DE ARNOLD SCHWARZENEGGER . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .68

CAPÍTULO II
2 O SURGIMENTO DOS ESTEROIDES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .75
2.1 NO REINO DE DIONÍSOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .83
2.2 DROGA HIERARQUIZANTE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .88
2.3 APOLO - REI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .95
2.4 ENTRE APOLO E DIONISOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .100

CAPÍTULO III
3 ÉTICA CONSUMISTA E ESTÉTICA DO ESTEROIDE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .103
3.1 DO ASCETISMO AO HEDONISMO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .115
3.2 DROGAS MASCULINIZANTES E INDIVIDUALISMO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .124
3.3 RITUAL E CONSTRUÇÃO DE PESSOA NO FISICULTURISMO . . . . . . . . . .128
3.4 A FORMA DA DOR. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .131
3.5 A LÓGICA DA CLASSIFICAÇÃO MUSCULAR. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .139
3.6 SÉRIES DE REPETIÇÕES: A DIVISÃO DO TRABALHO
MUSCULAR . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .157

CAPÍTULO IV
4 COMENDO COMO BICHO: PUBLICIDADE, MITO E GASTRO(A)
NOMIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .165
4.1 DIETA FORTE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .171
4.2 PUBLICIDADE E FORMA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .183
4.3 MITO E MÍDIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .187
4.4 MITOS DA FORMA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .191
4.5 MERCADORIAS CLASSIFICATÓRIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .196
4.6 IMAGENS E PALAVRAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .201
4.7 RAIOS E LEÕES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .204
4.8 FÁBRICA E MECÂNICA DE CORPOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .206

CAPÍTULO V
5 TATUAGENS: A HIERARQUIA DA EPIDERME . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .213
5.1 PELE DE HOMEM. PELE DE MULHER . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .219
5.2 TATUAGEM E LÓGICA DA IDENTIDADE. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .227
5.3 MAGIA CAPILAR . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .234
5.4 O CABELO DO MALHADOR . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .236
5.5 A LOURA VIRTUAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .240

CAPÍTULO VI
6 ELOGIO À BARBÁRIE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .249
6.1 VIOLÊNCIA DIFUSA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .252
6.2 O STATUS DA BRIGA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .255
6.3 VIOLÊNCIA ANÔMICA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .266
6.4 BÁRBAROS E CIVILIZADOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .281

CONSIDERAÇÕES FINAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 289

POST SCRIPTUM
MOVIMENTOS CONJUNTURAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .295

REFERÊNCIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 305
INTRODUÇÃO

Meu corpo é o lugar sem recurso ao qual estou condenado. Penso,


afinal, que é contra ele e como que para apagá-lo que fizemos nascer
todas as utopias.
(Michel Foucault)

O CORPO UTÓPICO

O culto à forma corporal vem ganhando amplitude inédita em nossa


época que elege as imagens não apenas como elemento atuante na vida das
pessoas, mas também como objetivo de vida, paradigma de saúde e sucesso.
Não é mais novidade: músculos definidos e inflados, tatuagens, piercings,
implantes de silicone, botox, bronzeado artificial e cirurgias plásticas estão
constantemente presentes no cotidiano das grandes e pequenas cidades, em
toda mídia atual. Uma espécie de adoração ao corpo vem se consolidando, ao
menos em parte, nas sociedades complexas hodiernas, articulando padrões de
beleza perseguidos por crescente número de indivíduos insatisfeitos com seu
estado físico. Esses, ao buscarem a construção de um corpo mais adequado
aos ideais hegemônicos, acabam por construir também uma ética ou um
conjunto de valores e crenças a interferir em seu comportamento nas práticas
de cuidado de si e subjetividade. Corpo como axis mundi. Acontecimento
que tem conduzido indivíduos e grupos de determinados extratos sociais a
buscarem o ideal de perfeição física – obviamente inalcançável - radicado
na proliferação de imagens, ideologias terapêuticas, métodos milagrosos e
consumismo de produtos da indústria químico-farmacêutica como esteroides
anabolizantes e suplementos alimentares, além de vitaminas e “fortificantes”
dos mais variados tipos; tudo alimentado por imagens de corpos perfeitos
cada vez mais presentes nas redes sociais (LUZ, 1997; DEL PRIORE, 2000;
POPE, PHILLIPS; OLIVARDIA, 2000; NASCIMENTO, 2003).
A preocupação não apenas com a aparência, mas com a forma física,
com o entalhe muscular lapidado a ferro, suor, exercícios, dor, dietas e
mesmo cirurgias, apesar de ser produzida coletivamente, torna-se car-
regada de investimento individual. Famosos anunciam na imprensa, nos
programas de televisão e redes sociais, as transformações corporais que

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CÉSAR SABINO

decidiram realizar lançando mão de recursos tais como personal trainers,


nutricionistas, nutrólogos, cirurgiões plásticos e outros profissionais do
rejuvenescimento, do embelezamento e da saúde – entendida aqui como
“boa forma física” ou beleza. De acordo com esse ideal, cada indivíduo é
considerado responsável (ou culpado) por sua juventude, “boa aparência”
e saúde: só é feio quem quer e só envelhece quem não se cuida. Cada um
deve buscar em si as imperfeições que podem – e devem – ser corrigidas
(GOLDENBERG, 2002; LUZ, 2000); essa é a mensagem do consumo da
forma veiculada em geral.
Nesse âmbito, o corpo encontra-se diante de um crescente mercado
que o tem como principal produto e produtor. Estar em e manter a forma
pode significar, nesse fluxo somatófilo coletivo, sucesso pessoal, autori-
dade, disciplina e talento para vencer, galgando os patamares da hierarquia
social. A saúde torna-se um mandamento com efeito normalizador e adquire
características de uma utopia, entendida como projeto que supera, por sua
natureza praticamente religiosa, dado seu caráter universalista, a ideologia
(SFEZ, 1995). Essa ideologia, embora pretenda universalidade, é reconhecida
pelos teóricos enquanto discurso particular, ou seja, discurso originário de
uma parcela específica da sociedade, sendo, portanto, discurso parcial. No
caso das práticas corporais ligadas primordialmente ao paradigma estético,
essa utopia está perpassada por representações de beleza ancoradas nos
valores individualistas da cultura contemporânea. Assim,
[...] é a estética, mais que a racionalidade médica e seus mode-
los (normalidade/ patologia, ou vitalidade/ energia) o critério
sociocultural maior de enquadramento dos sujeitos para
determinar se realmente são ‘saudáveis’, ou se precisam exer-
cer alguma ‘atividade de saúde’, através do estabelecimento de
padrões rígidos de forma física. Aqui, o comedimento, tomado
como mandamento da saúde, está mais ligado à boa forma do
corpo que ao modelo doença/prevenção (LUZ, 2003, p. 5).
Os imperativos relacionados a estratégias sociais utópicas impe-
lem número significativo de indivíduos a lutarem contra sua genética e o
processo inexorável de envelhecimento levando alguns a cultivarem uma
espécie de obsessão com a magreza, a musculatura e a juventude, tornan-
do-se consumidores do produto saúde. Obsessão que pode ser percebida
pela multiplicação de academias e métodos de exercícios novos lançados a
cada verão nos grandes centros urbanos, pela expansão de dietas inovado-
ras de todos os tipos, pela disseminação da lipoaspiração, dos implantes de

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DROGAS DE APOLO

silicone e cirurgias estéticas de nariz, glúteos e panturrilha, pelo consumo


de remédios e substâncias químicas de tipos variados visando a diminuir o
percentual de adiposidade localizada, além do uso de vários subterfúgios em
forma de cremes e outro produtos farmacêuticos para atenuar as marcas de
expressão, rugas, fadiga e desânimo. Esse poder normalizador, disciplinar e
controlador, padrão de atuação coletiva agindo nas instâncias mais cotidianas,
dominando subjetividades em um espécie de micropolítica, cartografando
desejos (GUATTARI; ROLNIK, 1996), leva inconscientemente milhões de
pessoas a almejarem se enquadrar em um poderoso imperativo estético
que paradoxalmente vai contra o ideal de liberdade individual inerente à
representação do individualismo da cultura ocidental2 (LUZ, 1988; 2000;
DUMONT, 1985).
Esse processo somatófilo, que termina por se gerontofóbico, no caso
da sociedade brasileira, apresenta características peculiares ressaltadas por
diversos sociólogos, antropólogos e historiadores. Em relação ao bodybuil-
ding3 amador, as brasileiras e os brasileiros articulam recursos técnicos
universais para otimizar partes específicas do corpo valorizadas pela sua
cultura. Partes como nádegas e coxas, no caso das mulheres, ou braços e
peitos, nos casos masculinos, são “trabalhadas” por exercícios com pesos
para alcançar forma e volume adequados ao padrão estético vigente (DA
MATTA, 1996; GOLDENBERG, 2002). De acordo com Malysse (1999;

2
Apesar de todas as discussões a respeito da legitimidade dos termos cultura ocidental, Modernidade e Ocidente
(LATOUR, 2009), consideramos, da mesma forma que Duarte (1999, p. 22), viável, apenas para fins de análise
sociológica, a hipótese de que participamos de um sistema específico de significações que se pode chamar,
tentativamente, de “cultura ocidental moderna”, que implica uma certa maneira de perceber e compreender os
fenômenos de nossa vida e, sobretudo, imaginar que podemos perceber e compreender fenômenos das outras
culturas em relação às nossas.
3
O Bodybuilding, ou fisiculturismo, pode ser sumariamente definido como uso de exercícios progressivos de
força e resistência com o objetivo de controlar, administrar e desenvolver musculatura hipertrofiada em todos
seus aspectos. Esse desenvolvimento é conseguido por intermédio de práticas contínuas (exercícios) realizadas
com pesos acoplados a barras – que podem ser curtas ou longas – e/ou em máquinas projetadas para tal. O uso
de pesos é controlado em conformidade com o objetivo físico (trabalho de força ou resistência) ou estético do
executante. A quantidade de pesos aumenta progressivamente com o passar do tempo de treino. Relacionado
à prática, constitui-se o conjunto de saberes científicos (mas também leigos) a respeito da nutrição, fisiologia e
uso de remédios e substâncias diversas que circulam nas academias de musculação. Esse saber geralmente tem
por base os conhecimentos científicos ligados à ciência médica ou biomedicina. Contudo parte significativa do
conhecimento articulado pelos fisiculturistas e personal trainers é prático, ou seja, aprendido e (re)produzido no
cotidiano dessas instâncias de práticas da forma física, via experimentação intuitiva ou por simples imitação.
Assim, uma substância (remédio, suplemento ou alimento) ou variação de exercício que algum praticante percebe
ter funcionado no seu corpo é repassado para aqueles que desejam alcançar o mesmo aprimoramento e que
fazem parte do grupo de relacionamento daquele que conseguiu novas formas de praticar a construção mus-
cular – saber prático ou o que Aristóteles denominava phronésis. Esse saber, porém, torna-se um capital – e por
isso não é repassado para qualquer um – a ser investido nas relações sociais e nas competições de bodybuilding.

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CÉSAR SABINO

2000), a expansão das técnicas de construção do corpo no Brasil – ao menos


no Rio de Janeiro onde o autor realizou sua etnografia – tende a reiterar as
profundas hierarquias sociais disfarçadas pela cordialidade das interações
nas quais o contato corporal se realiza sem significar, contudo, proximidade
social, de fato. Diz o autor,
[...] no contexto do culto [...] ao corpo, este é o portador de
valores de distinção social [...] não é apenas a beleza em si que
constitui o valor fundamental da distinção social, mas também
a energia empregada por cada indivíduo para (re)construir sua
aparência [...] essa relação de espelho com o corpo confirma de
maneira visível os valores hierárquicos da sociedade carioca
[...]. Insatisfeito, privado de seu corpo, o indivíduo é convi-
dado a retomar a posse daquilo que lhe escapa socialmente.
Nesse contexto, o corpo torna-se o símbolo social da pessoa.
A corpolatria seria então uma ensomatose (uma queda em
direção ao corpo), mas uma ensomatose controlada, dosada
e esteticamente orientada por imagens-norma ou por uma
iconologia desse culto corpo. (2000, p. 131).
O corpo, assim, é produto e produtor das relações de poder que o
formam e as quais ele simboliza. Sua estética, cor, comportamento e estilo
são marcados e marcam as hierarquias sociais inerentes às relações sociais,
ainda mais em uma sociedade de tradição escravocrata na qual cada item
remete a uma condição estamental ou de classe. Tocar-se em quantidade
maior do que outros povos em espaços públicos e privados não equivale à
proximidade social efetiva, como uma análise apressada poderia concluir.
Paradoxalmente, o contato físico com o outro, nesse caso, pode significar
distanciamento hierárquico e instrumentalização egoísta da alteridade.
Nesse processo, o problema das representações sociais relacionadas à estética
do corpo brasileiro aparece ligado à concepção de que esse mesmo corpo
encarnaria uma beleza inigualável, tida como produto nacional (inclusive
“para exportação”, como diz o senso comum), que não estaria associada dire-
tamente às questões de reivindicação étnico-política4. Esse aspecto alude a
4
O trabalho de Bomfim (2002) sugere, como prática comum à cultura nacional, a manipulação circunstancial
da identidade étnica denominada etnia virtual. Esse processo ocorre quando indivíduos, ou grupos, manipulam
uma suposta ascendência minoritária – ciganos (no caso específico do trabalho da autora), negros etc. – com o
intuito de construir um papel vantajoso em determinadas relações sociais. Esse esteticismo populista pode ser
claramente percebido no caso polêmico das cotas ou reserva de vagas para negros em universidades públicas no
Brasil – mais especificamente no Rio de Janeiro –, situação na qual vários indivíduos considerados brancos se
declararam afrodescendentes garantindo, estrategicamente, vaga em universidade pública. (cf. Revista Época. n.
244. 20 jan. 2003, p. 36-37). Rezende e Maggie também destacam que no Brasil ser negro, branco, preto, moreno
etc., torna-se atribuição que pode variar “de acordo com quem fala, como fala, e de que posição fala” (2002, p. 15).

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uma percepção falsa de democratização, relacionada mais a um movimento


estetizante, e acima de tudo mercadológico, que de fato político (FRY, 2001;
2002). Não havendo no Brasil vínculo direto entre práticas cosméticas e
contestação às formas de opressão sexual ou racial, a questão da beleza
surgiria enquanto produto final da miscigenação – valorizada, nesse caso.
Essa lógica opera da seguinte maneira: se o corpo da mulher brasileira,
com sua “cintura fina, seu quadril largo e empinado, suas pernas grossas e
seu andar malemolente”, é, supostamente, produto da “mistura de raças”,
a mesma mistura tornar-se-ia (em um caso de doxa da eugenia invertida)
um item indicativo da “democracia racial” brasileira, cultura supostamente
capaz de sintetizar diferenças transformando-as em produto esteticamente
diferenciador: “não há beleza maior do que a da mulher brasileira”, diz
o senso comum nacional. Essa ode à “beleza miscigenada” da brasileira
(FREYRE, 1986) – cliché turístico que esconde o fato de as percepções
estéticas serem produto da socialização – é imagem dominante na repre-
sentação da identidade nacional, e que pode velar um racismo estrutural
(EDMONDS, 2002) como senso comum; algumas vezes contrabandeado
para os estudos sociológicos. De fato, essa é uma das representações mais
distantes da prática que existe no Brasil. A representação que concebe a
beleza da mulher brasileira como produto da miscigenação esquece que, por
enquanto, a grande maioria daquelas mulheres aqui nascidas e reconhecidas
mundo afora pelo seu padrão estético, em geral, nada, ou quase nada, têm
de musas mestiças, ao menos em sua aparência, ostentando nomes e aspecto
que dariam ao incauto a sensação de estar diante de mulheres alemãs ou
italianas: Gisele Bündchen, Daniella Cicarelli, Shirley Mallmann, Mariana
Weickert, Ana Hickmann, e assim por diante.
O antropólogo Alvaro Jarrin, ao pesquisar a beleza no Brasil, entre-
vistou cirurgiões plásticos e percebeu um discurso racial claro e institucio-
nalizado que concebe justamente a mistura racial de forma oposta ao senso
comum (douto ou não) do elogio à mistura. De fato, os médicos ligados à
estética a concebem como item de inferioridade e atraso nacional, posto que
para eles a forma física está relacionada à moral e, portanto, ao comporta-
mento social; sendo a cirurgia plástica elemento corretor de construção da
nação e supressão dos defeitos causados pela miscigenação:
Para os cirurgiões plásticos [...], por outro lado, sua disciplina
tem um objetivo maior e mais elevado [...]: melhorar a popu-
lação brasileira. [...] acreditam que os padrões de beleza são
universais, [...] objetivamente verificáveis e têm significado

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CÉSAR SABINO

não só para os indivíduos, mas para a nação como um todo.


Imaginam sua proeza cirúrgica como capaz de corrigir os
erros causados por muita mistura racial no Brasil, e exaltam
mulheres com clara ascendência europeia, como a super-
modelo Gisele Bündchen, como ideais de beleza para todas
as mulheres brasileiras. O desejo de brancura expresso pelos
cirurgiões plásticos não é acidental — a cirurgia plástica tem
uma longa história no Brasil, e foi celebrada pela primeira
vez como ferramenta médica por eugenistas brasileiros como
Renato Kehl, que no início do século XX equiparou a embe-
lezamento com a higiene, imaginando um futuro em que a
diferença racial e a feiura seriam erradicadas da população
brasileira. Foi esse legado eugênico dentro da cirurgia plástica
que permitiu ao cirurgião plástico mais famoso do Brasil,
Ivo Pitanguy, argumentar que os pobres também deveriam
receber o dom da beleza, e ganhar apoio estatal para ampliar
o acesso à cirurgia plástica dentro dos hospitais públicos.
Uma cidadania mais bonita, a lógica era, se livraria de seus
elementos mais feios e criminosos, e cirurgiões plásticos
curariam as feridas da violência urbana através de seu tra-
balho. (JARRIN, 2017, p. 8, grifo meu).
É justamente esse padrão eurocêntrico de beleza feminina (mas
não apenas) que impera na mídia e que domina, se não na morfologia ao
menos na etnia, o campo das academias de musculação. Como organi-
zações de classe média, as academias pesquisadas expressam as idiossin-
crasias relativas às visões de mundo de seus frequentadores. Com efeito,
essas concepções a respeito das relações étnicas estão de acordo com o
que foi percebido por John Norvell em trabalho que coloca em xeque as
conclusões apressadas sobre as chamadas relações raciais nas camadas
médias urbanas brasileiras, mais especificamente a carioca, destacando
a ambiguidade presente no discurso desse grupo que usa de eufemismos
para si mesmo quando referido a sua cor: denominam-se “claros”, “alvos”,
“morenos claros”, e assim por diante, quando confrontados com suas
características europeias5. Como a representação do Brasil é a de uma
nação miscigenada, não se fala de brancura – ao menos em discursos ofi-
ciais e “politicamente corretos” – como característica valorizada; assim os
5
Farias (2002) ressalta que no Brasil – ao menos em sua maior parte territorial – ser bronzeado é símbolo de status.
A cor bronzeada, o estar moreno, ou ser moreno, com toda ambiguidade que tal termo possui (e por isso mesmo), é
sinônimo de positividade, beleza e mesmo saúde, contrastando com a cor branca vista como palidez ou o vermelho
entendido como castigo do sol aos muito brancos. Contudo, como tais classificações são voláteis, esse discurso
é utilizado em determinadas circunstâncias, por exemplo, quando relacionado às praias na época do verão. Em
outras condições, quando convém, o moreno bronzeado vira branco e, em outros momentos deixa de ser branco.

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DROGAS DE APOLO

informantes evitam referir-se a si mesmos como “brancos”, mesmo quando


descendentes diretos de imigrantes europeus com todas as características
inerentes a tal fato. Poucos aceitam o rótulo e, quando o fazem, é com
incômodo ou constrangimento. Apesar dessa constatação discursiva, o
trabalho de campo do autor esclarece que há duplicidade na fala e que a
prática difere, algumas vezes, daquilo que é dito:
[...] os cariocas de classe média [e alta] observam que não
partilham os valores culturais que constituem o núcleo da
nação...em algum momento começam a falar sobre o pas-
sado de imigrantes de sua família [...] apontam, quase com
melancolia, que não gostam particularmente de carnaval,
festa tão brasileira e miscigenada de inversão, sexo e entrega.
Muitas vezes saem da cidade nessa época, fugindo para locais
elegantes de veraneio nas montanhas ou na praia. Confessam
que não sabem dançar samba. Só as mulatas do morro sabem
realmente sambar [, dizem]. Falam sobre o povão, as massas
racializadas, e seu jeito livre, solto, sua gíria, sua irreverência.
Um advogado de classe média alta me disse: “Assim como
você é gringo aqui, eu também. Apontou para rua e explicou:
‘Meu nome não é da Silva. Não uso gíria o tempo todo. Não
sambo. Não tenho sangue negro.” Este último ponto, relativo à
ausência de sangue negro, é uma parte crucial dessa narrativa
que fala de si mesmo como alguém que está de fora. Embora
se descrevam como produtos de uma sociedade de raça mista,
essas origens tendem a desaparecer no plano concreto. Eles
preferem fazer referências a parentes [europeus] imigrantes
específicos, e não a parentes negros, mulatos ou indígenas.
Reconhecem que sua família de fato não é tão misturada
quanto a norma brasileira, embora haja muito provavelmente
um parente indígena ou negro “em algum lugar do passado”.
Às vezes admitem que haveria tensão na família se eles ou
seus filhos tivessem uma relação sexual pública com uma
pessoa de pele escura. Embora a maioria dos homens aponte
a mulata como padrão de beleza e alvo de desejo sexual no
Brasil, seus contatos sexuais reais com mulatas parecem
limitar-se ou a representações, como desfiles carnavalescos
ou em filmes, ou a ligações ilegítimas, prostituição e casos
secretos, por exemplo. (NORVELL, 2002, p. 261).
Compreensível, portanto, o fato de as classes alta e média alta, e conse-
quentemente a mídia, produzirem discursos sobre a beleza miscigenada não
condizentes, ainda na prática, com a realidade que elas mesmas reproduzem.
Da mesma maneira, entre os fisiculturistas e usuários das academias de
25
CÉSAR SABINO

musculação em geral, ocorre processo similar. O padrão de beleza presente


nas representações coletivas mostra-se ainda eminentemente europeu.
Reorientações sobre o corpo não apenas ajudam a construí-lo, mas
também a oprimi-lo. Sobre a tríade conceitual beleza-juventude-saúde,
um número crescente de indivíduos tem sido, cada vez mais, empurrado
ao consumo de práticas ligadas à denominada boa forma (DEL PRIORE,
2000). Longe de desembaraçar-se dos esquemas tradicionais de dominação,
o corpo, nas sociedades complexas, pode sofrer restrições gradativas levando
indivíduos e grupos a construírem suas identidades associadas à tríade con-
ceitual citada. Os valores desses grupos tendem a impelir os indivíduos a se
colocarem a serviço da forma física ou, no mínimo, a articular estratégias
de relacionamento tendo em vista tal demanda coletiva pela “boa forma”.
Esse controle parece se articular por intermédio da mídia, da propaganda e
do marketing. A proliferação de corpos cada vez mais “perfeitos” em redes
sociais, outdoors, revistas, televisão, mídia em geral, tece trama cotidiana
de agenciamentos coletivos (construções de subjetividades) respaldados
no discurso sobre a saúde os quais sugerem a indivíduos e grupos com-
portamento ritual de manutenção da forma, ela mesma concebida como
signo do saudável, que pode custar a própria vida do praticante. Nesse caso,
ocorre significativo investimento no aperfeiçoamento e na manutenção
da aparência. A forma oblitera o conteúdo, em uma sobrecarga sensorial,
como pode demonstrar Samuel Fussel escrevendo sobre a época na qual
era fisiculturista:
Músculos, grandes, expressivos músculos – bem, eles são algo
mais. Obviamente uma rápida olhadela no meu corpo enorme
já me garante imunidade mesmo contra a criminalidade
mais insana. E a beleza de tudo isso é que provavelmente eu
nunca serei obrigado a utilizar realmente esses músculos.
Eu poderia permanecer um covarde e ninguém saberia!
(FUSSEL, 199, p. 25).
Ou ainda o depoimento de um fisiculturista entrevistado em uma
das academias observadas:

Eu gasto muito para manter esse corpo [...] em alimentação e


esteroides eu gasto por mês uns dois mil reais só com isso6. Já vendi
dois carros e uma moto para poder treinar, quando não tenho
dinheiro arrumo de um jeito ou outro, vendo o que eu tenho, depois

6
Na época, o real valia 1 dólar.

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DROGAS DE APOLO

compro de novo [...] são fases, o que eu não deixo é de crescer, isso
é a minha vida, nada vai me desviar disso, nem dinheiro, nem
mulher, nem médico... sofri um acidente de moto em 96 e fiquei
em estado grave, quebrei perna, costela, braço, fiquei entrevado
no hospital, cortei minha cara toda [...] o médico me disse que eu
não ia mais poder malhar pesado, disse que eu ia ficar aleijado;
dois meses depois eu tava ‘malhando’ e seis meses depois da alta
eu já estava bom, não adianta, não deixo de malhar, por nada.
(Marcos, personal trainer de 28 anos).
Para que seja viável a busca de entendimento de um grupo, seja ela
qual for, é necessário “estudar em detalhes a estrutura e o funcionamento da
organização que o sustenta” (WACQUANT, 2002, p. 31). Do mesmo modo,
para que seja possível a busca de entendimento desse processo de adoração à
forma presente nas sociedades complexas atuais, faz-se necessário elucidar o
significado e o enraizamento das práticas corporais realizadas em academias
de musculação e ginástica com todas as suas incessantes variações de práticas
de exercícios que vêm se espalhando de maneira crescente pelas grandes
cidades, e mesmo interior do país. Examinar a trama das relações sociais e
simbólicas tecidas dentro e ao redor das salas de exercícios de hipertrofia
muscular é tarefa imprescindível para que o processo de compreensão dessa
realidade seja possível.
A musculação tornou-se, a partir da segunda metade do século XX,
não apenas uma atividade física complementar aos esportes ou de fortale-
cimento osteoarticular, mas uma prática em expansão conferindo à massa
muscular hipertrofiada o status de novo item da moda associado à crescente
indústria de suplementos, esteroides, publicações especializadas e tecnologia
de máquinas para exercícios. Vasta parafernália se desenvolve ao redor do
globo construindo os ditames da fibra muscular como um modo de vida
(COURTINE, 1995). Se na segunda metade do século XIX, homens hiper-
musculosos eram símbolo do desvio – em geral apresentados (na Europa e
América do Norte) em freak shows –, a partir da primeira metade do século
XX, passam, cada vez mais, a representar um ideal de saúde relacionado à
construção do caráter empreendedor e progressista tido como necessário
para a manutenção da família e de nação, concepções caras às sociedades
disciplinares (FOUCAULT, 1988; COSTA, 1989; RABINOW, 1999; JAR-

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CÉSAR SABINO

RIN, 2017; 2017a). Atualmente, ostentar massa hipertrofiada e definida7


pode significar adesão ao consumo e ao paroxismo da aparência. De meio
para atingir um ideal funcional de saúde, o corpo tornou-se, para muitos,
um projeto estético de vida, ressaltando a importância atual da imagem
corporal e dos exercícios para a articulação do chamado marketing pessoal:
corpo-empresa, corpo-vitrine, corpo-máquina, corpo-produto de consumo,
corpo neoliberal. Nesse processo, o mercado da forma física amplia-se, e
as academias de musculação surgem como locais nos quais uma crescente
parcela da população tenta aprimorar sua forma em nome de um ideal de
saúde respaldado pela dinâmica do consumo.
Dessa forma, a musculação enquanto prática sociocultural, e não
apenas como atividade de educação física – portanto, enquanto elemento
que extrapola, e muito, a dimensão apenas biológica – é uma das instâncias
principais na qual são forjados esses corpos. O local onde são elaboradas,
experimentadas e sistematizadas as habilidades técnicas que permitem
construir e conformar esse material feito de sangue, suor, músculos e dese-
jos. A competência esportiva transmitida pelas academias está diretamente
relacionada à estética (salvo exceções nas quais é usada como apoio e forta-
lecimento para a prática de outros esportes); e nisso ela possui uma função
institucional que é extraesportiva, pois as interações sociais realizadas em
seu interior giram em torno de rituais de construção da forma física e da
imagem saudável. De fato, o bodybuilding, como expressão máxima dessas
atividades corporais, termina por resumir-se a um conjunto de técnicas cor-
porais (MAUSS, 1974) visando ao aprimoramento estético da forma como
elemento de competição esportiva profissional ou amadora.
O fisiculturista, amador ou não, (também conhecido popularmente
no Rio de Janeiro como “Marombeiro”8), espécie de ícone do culto à forma,
sintetiza tendências corpólatras, retira os pelos de seu corpo, cuida de sua
7
Definir musculatura significa não apenas fazê-la crescer, mas também diminuir o percentual de gordura para
que fibras musculares e massa se tornem visíveis sob a pele, por exemplo, o abdômen em forma de gomos, e isso,
a definição muscular, apenas é possível, se o indivíduo tiver baixa camada de gordura corporal (adiposidade) e
não apenas volume muscular.
8
A palavra origina-se de maromba: a vara ou barra a qual o funâmbulo usa para se equilibrar na maroma: a corda
na qual caminha. Maromba pode significar também o(s) peso(s), que incide nas duas extremidades da barra, com
o qual o funâmbulo se mantém em equilíbrio. Como no fisiculturismo e halterofilismo são utilizadas barras com
pesos (halteres) removíveis, ou não, nas extremidades, não é difícil perceber a associação das imagens do homem que
anda na corda bamba, utilizando o peso da maromba para se equilibrar, e daquele que utiliza os pesos para otimizar
sua forma e força. Marombeiro, na cidade do Rio de Janeiro, tornou-se sinônimo de usuário assíduo de academias
de musculação, por vezes chamado pelos próprios como “ratos de academia” (SABINO, 2002). A situação arriscada
inerente às atividades do homem que anda na corda bamba para sobreviver e a condição efêmera do fisiculturista que
luta utilizando meios arriscados para manter uma forma volátil que inexoravelmente desaparecerá é também sugestiva.

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DROGAS DE APOLO

pele, aprende a caminhar de forma dramática ressaltando os seus detalhes


musculares, treina poses no espelho, faz dieta, vai ao esteticista e fica depri-
mido quando engorda ou perde massa muscular. Sua vida, em geral, gira
em torno da forma física, e o olhar do outro é sua maior recompensa. Esse
escultor de si, acredita ser o livre senhor de sua própria morfologia, embora
dependa do olhar do outro para sentir sua liberdade autoconstruída.
Quando tô na rua e todo mundo fica olhando espantado para
mim por causa do meu tamanho é a verdadeira glória [...] não
ser percebido para mim, não ser notado, visto pela maioria é [...]
é bem ruim! Sabe […] Se ninguém te olha, você é qualquer um,
ninguém, nada. Então, sente que seu trabalho não está bom, seus
treinos não estão funcionando. (Carlos. 33 anos, advogado).
Se, por intermédio da exaltação à muscularidade, o fisiculturismo
acaba por inflar o paradigma de masculinidade dominante, que pode ser
denominada hegemônica; por outro lado, subverte o cuidado de si, intro-
duzindo práticas tradicionalmente femininas no cotidiano dessa masculi-
nidade ao transformar a forma física em objeto de sedução, de atenção e
admiração, articulando uma espécie de “feminização” comportamental, da
masculinidade (KIMMEL, 1998; RAMOS, 2000), porém sem alterar a ética
andrólatra da formação dessa mesma masculidade hipertrofiada. Talvez esses
homens sejam uma pequena amostra da onda de pressão estética juvenil que
a sociedade atual faz incidir sobre homens e mulheres em geral. A pressão
para adquirir a forma física adequada aos ditames e representações estéticas
que mulheres sofrem há séculos, agora também incide sob indivíduos do
sexo masculino que utilizam recursos para construir uma forma adequada
às representações sociais de beleza antes impensável: prática compulsiva de
exercícios, uso de esteroides anabolizantes, produtos e remédios redutores
de adiposidade, cirurgias plásticas, cuidados com pele e cabelos, porém
visando, no caso, à imagem hipermasculinizada9.
Toda essa construção prática da pessoa, da sua subjetividade girando
em torno da estética corporal, todo o mecanismo afetivo, de apreensão da
realidade com suas relações sociais, estão relacionados ao que denomino
9
- Se há este grupo que hipervaloriza a masculinidade dominante em valores e estética construindo uma espécie
de adoração ao modelo de “macho alfa”, como denominados pelo senso comum, ou masculinidade hegemônica
(androlatria), existem outros grupos ou “tribos urbanas” simetricamente opostas como, por exemplo, aponta o
trabalho de Osório sobre o movimento Wicca. Nas representações deste grupo o valor atribuído ao que é femi-
nino é sempre positivo, vital e dominante ao contrário do que se observa em sociedades tradicionais. Se, nestas
sociedades, o corpo da mulher surge como representação do que é perverso e impuro, na Wicca ele é fonte de
pureza e criação, e, portanto, sagrado (OSÓRIO, 2002).

29
CÉSAR SABINO

de representações sociais, representações coletivas ou representações culturais. De


acordo com o primeiro a utilizar o termo, Émile Durkheim, elas se consti-
tuem como “[...] maneiras de pensar, de agir e de sentir exteriores ao indivíduo,
dotadas de um poder de coerção em virtude do qual se lhe impõe” (1972, p.
4). Prosseguindo,
[...] designam a camada mais antiga, e também a mais estável
e a mais implícita da visão de mundo dos indivíduos. Nas
representações coletivas encontram-se categorias de classi-
ficação, imagens e símbolos que organizam as relações dos
indivíduos entre si e com a natureza. Essa visão de mundo
apresenta-se como natural não exigindo qualquer justificativa
(BOZON, 1995, p. 123- 124).
Ainda:
[...] são esquemas de pensamento impensados que sob forma de
um conjunto de pares de oposição binária [por exemplo, forte/
fraco, alto/baixo, masculino/feminino, bom/ruim, rico/pobre,
feio/bonito, etc.] funcionando como categorias de percepção,
constroem as relações de poder do ponto de vista daqueles que
afirmam sua dominação, fazendo-a parecer natural. (BOUR-
DIEU, 1990, p. 34, grifo meu).
Com efeito, as práticas cotidianas e os comportamentos do grupo
estudado neste livro estão diretamente associados às suas representações sociais
de beleza, masculinidade, excelência, sucesso, conquista e poder. Penso que,
dessa maneira, pode-se dizer que não há qualquer separação entre corpo e
sociedade, um se efetivando e realizando no devir do outro – dois aspec-
tos de um mesmo fluxo. Por outro lado, a busca por uma beleza ideal, ou
corpo perfeito, encaixa-se em um processo utópico que mobiliza, cada vez
mais, adeptos ao redor do mundo. A busca do grupo pela excelência estética
musculosa leva seus componentes a também buscarem todas as maneiras
possíveis de aprimorar a produção desse item corporal. Sem embargo, trans-
formam-se em espécies de cobaias para a indústria da forma. Assim, o corpo
dos fisiculturistas serve para eles mesmos testarem em si os produtos das
indústrias farmacêuticas, suplementos alimentares, aparelhos de musculação e
moda esportiva. Os resultados também não deixam de ser aproveitados pelas
indústrias que aprimoram seus produtos de acordo com o comportamento
dos praticantes-consumidores.
Os saberes e as práticas sobre o corpo são produzidos e reproduzidos
nesse cotidiano repleto de anilhas, barras e aparelhos, assim como o são as
30
DROGAS DE APOLO

relações sociais com suas hierarquias e práticas de poder. Com efeito, as téc-
nicas físicas desenvolvidas nesses locais estruturam e organizam o processo
de expansão do cuidado com a aparência e a força física, ordenando também
as trocas simbólicas entre indivíduos e grupos no contexto de relações sociais
que giram em torno da busca e ostentação da boa forma. Enquanto muitas
instituições esportivas isolam seus frequentadores da rua, da violência social
e da ação do crime organizado, apresentando-se, não raro, como o único
caminho possível de ascensão social, como é o caso das academias de boxe nos
guetos americanos (WACQUANT, 2002) e dos clubes de futebol n o Brasil, a
academia de musculação, ou de bodybuilding, opera por lógica invertida. Em
sua maioria, pertencentes à classe média, média-baixa urbana, é comum, entre
os frequentadores desses recintos, a admiração pelo submundo do qual não
fazem parte ou que presenciam eventualmente por intermédio do noticiário
sobre os crimes da cidade, distantes das janelas de seus apartamentos em
condomínios. Contudo, diante da gradativa expansão dessas práticas, penso
que logo elas farão parte dos contextos das classes mais baixas.
O trabalho também aborda aspectos culturais relacionados à alimen-
tação, ao uso de suplementos alimentares, assim como dimensões míticas
articuladas pelo marketing direcionado à venda de produtos para a cons-
trução e manutenção da saúde-boa-forma. Saúde considerada utopia da
sociedade contemporânea conforme sustenta Lucien Sfez (1995). Além dos
aspectos citados, busquei compreender o sistema simbólico expresso pelas
tatuagens, as formas e usos do cabelo e a exaltação a um determinado tipo
de virilidade relacionada à violência como imagem de excelência na estru-
tura dessas relações de poder. Concepção de masculinidade dominante que
vem sendo cada vez mais questionada e combatida pelos estudos de gênero,
coletivos e movimentos sociais; mas que continua fazendo vítimas apesar do
esforço contínuo de parcelas da sociedade civil para mudar valores, crenças
e sentimentos androcêntricos ainda arraigados nas práticas e representações
organizacionais e institucionais.
Cabe ressaltar que os fisiculturistas são entendidos não apenas como
frequentadores comuns das academias de musculação e fitness, mas como
indivíduos que se destacam dos outros por dedicarem grande parte de seu
tempo desenvolvendo massa muscular bem acima da média das pessoas, mesmo
atléticas, além de participarem (mas não necessariamente) de campeonatos

31
CÉSAR SABINO

ou competições amadoras, ou profissionais, de bodybuilding.10 É preciso tam-


bém não confundir fisiculturistas, ou bodybuilders, com halterofilistas. Esses
últimos não estão preocupados de maneira alguma com a forma estética ou
com a definição de sua massa muscular, mas têm por objetivo cultivar força.
Suas competições (incluídas inclusive nas Olimpíadas) visam a ultrapassar
recordes de levantamento de peso. Esse grupo, raro, forma elemento à parte
nas academias junto aos fisiculturista, que são os maiores representantes de
aficionados pela hipertrofia muscular, associada ao mínimo de adiposidade
possível e que têm na imagem, e não na força, se não a principal, uma das prin-
cipais preocupações de suas vidas. Já halterofilistas, apesar de desenvolverem
massa muscular significativa para obter força, portam em geral um índice de
adiposidade impensável para um fisiculturista mesmo fora de competição.
Enquanto, para os primeiros, a estética é o capital principal a ser adquirido
e trocado por prêmios, fama e autoridade em seu campo profissional ou
amador; para os segundos, a força muscular (e de forma alguma a estética) é
o capital fundamental.
Permaneci, entre idas e vindas, em torno 54 meses realizando trabalho
de campo em 10 academias de musculação e fisiculturismo das zonas norte e
sul cariocas. Foram realizadas 310 entrevistas com homens e mulheres (200
homens e 110 mulheres) com idades entre 16 e 55 anos. Os nomes de todos
os informantes foram trocados visando a proteger sua privacidade. Priorizei a
abordagem baseada na observação participante – ou participação observante.
Ou seja, durante a pesquisa, frequentei e participei o máximo possível do
cotidiano desses centros de cultivo da forma, variando horários (manhã, tarde
e noite), observando comportamentos e falas não apenas dos fisiculturistas e
simpatizantes do fisiculturismo ou culturismo, mas de todos envolvidos com
a musculação em seu habitat natural, como escreveu Wacquant (2001) em
Notas Etnográficas de um Aprendiz de Boxeur. Retirei, porém, deste trabalho
a maior parte dos relatos etnográficos por serem demasiado extensos e pouco
contribuírem para as ideias gerais do livro.

10
Preciso ressaltar que a categoria fisiculturista ou bodybuilder, (assim como os outros tipos: marombeiros,
veteranos, comuns etc.), aqui neste livro, é um tipo ideal ou puro, não existindo exatamente na realidade empí-
rica como descrito. É uma ferramenta teórico-metodológica criada pelo sociólogo alemão Max Weber visando
a melhor compreensão das relações e ações sociais e seus sentidos. Consiste em um modelo abstrato construído
a partir da observação e do exagero, por parte do pesquisador, de determinadas características que ele considera
dominantes e as quais estão presentes nas práticas dos atores ou agentes sociais ao exercerem um papel em um
determinado contexto ordenado ou situação a qual envolve relações de poder, legitimidade e dominação (WEBER,
1992; 1997). Esse aspecto será melhor desenvolvido no capítulo 2.

32
DROGAS DE APOLO

O trabalho segue o seguinte roteiro: inicialmente apresento um breve


histórico sobre o surgimento do fisiculturismo e dos esteroides anabolizantes,
ou da produção sintética da testosterona. Nessa direção, mostro brevemente
a consolidação do campo profissional, seus ícones e sua projeção interna-
cional, destacando a função do mito de referência para os bodybuilders – o
“herói” Arnold Schwarzenegger. Logo após a análise do “mito Arnold”, como
é chamado no meio, destaco o uso ritual de esteroides os quais percebo como
um novo tipo de uso de novas drogas. Consumo que não deixa de estar rela-
cionado ao processo de crescente medicalização de parcela significativa da
sociedade contemporânea cada vez mais obcecada pela saúde relacionada à
juventude e à boa forma (ILLICH, 1975; 1992; LUZ, 2003). Se fosse utilizar
a teoria ator-rede de Bruno Latour (1996; 2009), poderia dizer que os este-
roides anabolizantes são atores ou actantes em relação com agentes sociais11
. Por outro lado, ao buscar elaborar um histórico sobre o surgimento dos
mesmos esteroides, ressalto o uso da narrativa científica muitas vezes serviu
como justificativa eficaz da produção estética como sinônimo de saúde para
a maior parte das pessoas desse grupo estudado assim como tem se tornado
para nossa sociedade em geral.
O papel da publicidade relacionado à produção e manutenção dos
mitos corporais modernos e sua ligação com as práticas alimentares (em
contraposição à comensalidade) dos praticantes ortodoxos das academias
de fisiculturismo também surgem. Enfatizo a relação do alimento, percebido
como conjunto de elementos químicos ou ferramentas para a manutenção
bioestética, seus aspectos de mitificação da ciência e a demonização da gordura,
além das classificações alimentares, a anticonsubstancialidade animal (ligada
ao uso, por parte do grupo, de vitaminas e remédios para animais), sugerindo
que os significados das dietas e sua relação com o uso dos hormônios sinté-
ticos, suplementos e fabricação da forma corporal ordenam e racionalizam
o cotidiano e a vida do grupo conferindo-lhe o sentido e o significado da
existência que se consolida, por sua vez, apenas por intermédio da presença
paradoxal do risco de morte devido ao uso frequente destas substâncias.

11
A clareza textual de Olívia von der Weid (2017, p. 9) nos ajuda a compreender melhor: “a teoria do ator-rede
considera a sociedade, as organizações, os agentes e as máquinas [ou substâncias, drogas, remédios, etc.], todos
como efeitos gerados por redes de materiais diversos, não apenas humanos. Nesta teoria qualquer agente pode ser
visto como um produto ou efeito de uma rede de materiais heterogêneos. As redes são compostas não apenas por
pessoas, mas também por máquinas, animais, textos, dinheiro, arquiteturas – quaisquer materiais. O princípio de
simetrização implica que os dois lados devem ser explicados simultaneamente, já que ambos são (co)produzidos e
são suas interações que compõem o social. Para desvendar a rede, a estratégia é voltar-se para as práticas e seguir a
cadeia de mediadores que a compõem, acompanha-los em ação, deslocando a atenção para os próprios vínculos.”

33
CÉSAR SABINO

No capítulo posterior, destaco a dimensão ritualística das competições


e dos exercícios e a relação que esses têm com essa organização cotidiana.
Nesse movimento aparece um simbolismo místico-religioso relacionado
às crenças em maus-olhados, superstições e azares marcando uma espécie
de reencantamento de um contexto no qual, paradoxalmente, o ascetismo
e o ceticismo científico são presença constante. O significado, por exem-
plo, dos números pares na lógica classificatória das séries de exercícios é
bastante sugestivo em uma cultura que parece não conviver bem com a
diferença, a dissonância (seja musical ou não) e, sobretudo àquilo que foge
da sua concepção de equilíbrio, primando pela sua simetria e repetição em
detrimento de tudo que é diferenciante.
Prosseguindo a análise simbólica, reitero as relações de hierarquia e
status inscritas não apenas nos músculos, mas também na pele, por inter-
médio das tatuagens de homens e mulheres. Ressalto como esses desenhos
e inscrições possuem uma espécie de gramática própria traduzindo relações
de violência simbólica específicas do grupo e da sociedade brasileira, demar-
cando papéis relacionados ao gênero e à classe social em uma economia
política do corpo. Dentro desse conjunto de observações, surge também a
importância do cabelo louro como símbolo de distinção feminina, sendo o
significado dos pelos alourados – situados em determinadas regiões do corpo
feminino – relacionados à hierarquia da beleza no grupo e ao comércio da
sedução relacionado aos investimentos de capital corporal. Se o conteúdo
do que foi descrito já se modificou a lógica que compõem as relações sociais
de poder no contexto ainda continua a mesma.
Por fim, destaco o aspecto da violência simbólica e prática traduzida
no cultivo e na exaltação do estilo grosseiro, arrogante, anti-intelectual
e agressivo de uma masculinidade tradicional, opressora e, até mesmo,
cruel, associada a uma visão de mundo neoliberal, presente no cotidiano
dos que dedicam tempo significativo de suas vidas a produção diária dos
músculos como marca de uma virilidade que se vê como excelência estética
a ser investida não mais apenas como mercadoria em mercados de trocas
simbólicas, mas também agora como corpo-empresa. Visão de mundo que
oprime também o próprio opressor, fazendo-o por vezes pagar com a vida
o status de sua dominação.
Se é possível alguém tornar-se um fisiculturista de competição no
Brasil, devido à expansão gradativa dessa prática; em sua maioria, esses

34
DROGAS DE APOLO

indivíduos ainda não buscam a profissionalização12, apenas organizam


seu cotidiano por intermédio do sistema simbólico e prático da educação
corporal que confere sentido as suas vidas. Se a representação apregoa uma
existência ilibada, independente de vícios, ligada à família e à ordem, na
prática, é frequente o inverso. Esse paradoxo, como será possível perceber
adiante, é parte da própria constituição do devir fisiculturista; pois, ao
mesmo tempo que deseja ser aceito socialmente, estampando mediante seus
músculos, sua disciplina e dedicação, cultiva um certo ar estigmatizado, de
alguém que tem relação obscura com o lado marginalizado e misterioso da
sociedade – o que por vezes pode comportar uma romantização do crime
e do risco de morte. Obviamente, essa relação confere àquele que cultiva
seus músculos sentimento de poder, já que o estigma também porta um
quantum de força simbólica que não é apenas negativa (DOUGLAS, 1976;
GOFFMAN, 1983; GEERTZ, 1993). Para repetir Foucault (1993, p. 8), se
o poder reprime e exclui disciplinarmente, ele também produz:
[...] o que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito
é simplesmente que ele não pesa só como uma força que
diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz
ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se conside-
rá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo
social muito mais do que uma instância negativa que tem
por função reprimir.
O uso ritualizado de esteroides anabolizantes é parte integrante da
existência daqueles que desejam se integrar ao grupo, embora os próprios
frequentadores não assumam diante de indivíduos estranhos ao seu grupo
e, por vezes, nem mesmo diante de alguns pares – espécie de segredo de
polichinelo – esse uso ou consumo. Substâncias proibidas para o uso não
medicinal, a construção de pessoa do fisiculturista não se faz sem esses itens,
o que envolve sólido e crescente relacionamento com redes de compra e
venda, não raro, ilegais, formando um sistema social suicidário que vive
de flertar com a morte. Paradoxo da sedução do risco de morte sustentado
pela alegria momentânea de viver a ilusão de ser gigante na eternidade de
um instante. Ou, como escreveu Foucault (2013, p. 8-11, grifo meu), sobre
12
A profissionalização efetiva do fisiculturismo é incipiente no país. Os atletas mais famosos são internacio-
nalmente conhecidos como amadores e não recebiam, na época do estudo, prêmios em dinheiro – essa situação,
porém vem mudando gradativamente, o campeonato norte-americano Mister Olympia pagou em sua última
edição, 675 mil dolares ao vencedor –, porém podem receber patrocínio de redes de lojas de suplementos ali-
mentares (o atleta citado recebe apoio de uma indústria de suplementos alimentares) e fazer propaganda dos
produtos ligados ao fisiculturismo e a outros esportes.

35
CÉSAR SABINO

as utopias que no fundo desejam mesmo apagar um corpo imperfeito que,


por isso mesmo, as produz:
É utopia um lugar fora de todos os lugares, mas um lugar
onde eu teria um corpo sem corpo, um corpo que seria belo,
límpido, transparente, luminoso, veloz, colossal na sua potên-
cia, infinito na sua duração, solto, invisível [sem defeitos],
protegido, sempre transfigurado; [...] pode bem ser que a
utopia primeira, a mais inextirpável no coração dos homens,
consista precisamente na utopia de um corpo incorporal
[...]; [utopia na qual] apagamos a triste topologia do corpo
[...]. Enganara-me, [...], ao dizer que as utopias eram voltadas
contra o corpo e destinadas a apagá-lo: elas nascem do próprio
corpo e, em seguida, talvez, retornem contra ele.

36
CAPÍTULO I

É a sociedade inteira que ensina a seus membros que, para eles, só


existe oportunidade, no seio da ordem social, à custa de uma tentativa
absurda de saírem dela.
(Lévi-Strauss)

1 O SURGIMENTO DO BODYBUILDING: UMA BREVE HISTÓRIA

O fisiculturismo, ou bodybuilding, originou-se na Europa – mais espe-


cificamente na Inglaterra Vitoriana13 do final do século XIX – e pode ser
percebido como representação de um dos possíveis desdobramentos, por
um lado, do processo civilizatório destacado por Elias (1990; 1993) em sua
obra, e, por outro, do surgimento dos processos disciplinares e biopolíticos
destacados por Foucault (1993; 1997). Seu surgimento coincidiu com o
advento da fotografia e o fortalecimento da indústria cultural, a qual dis-
tribuiu gradativamente as imagens dos corpos musculosos (e as crescentes
técnicas para transformá-los em tais) para uma audiência, cada vez mais,
espalhada pelo mundo. Dizer que o surgimento do fisiculturismo signifi-
cou um desdobramento do que Elias designou como processo civilizatório
significa repetir, com o autor, que a esportificação das atividades de luta
existentes na Idade Média – maneiras populares, e violentas, de resolver
conflitos – assumiram, a partir de um determinado período, uma forma
estilizada. É necessário destacar, ao menos brevemente, as mutações pelas
quais passaram as práticas de atividades físicas para melhor compreensão
da gênese dessas, no caso específico o bodybuilding, e seu lugar em alguns
contextos sociais hodiernos, sem esquecer, contudo, que não é possível
divorciar a análise do esporte e das práticas corporais do contexto social no
13
Os termos vitoriano e eduardiano referem-se ao período no qual os monarcas ingleses Rainha Vitória
(1837-1901) e Rei Eduardo VII (1901-1910) exerceram seus reinados. O termo vitoriano pode referir-se, além
de outros aspectos, à arte e à arquitetura que grassou no último período do reinado da rainha Vitória perma-
necendo durante o breve reinado de Eduardo VII. O estilo foi fortemente influenciado pela austeridade e pelo
interesse em torno do classicismo greco-romano que levou à promoção das grandes escavações arqueológicas na
Grécia e na Itália. Apesar da inspiração classicista, o estilo vitoriano foi marcado pela busca de maior opulência
e ornamentação se comparado ao prévio período “clássico” da era napoleônica (ELIAS, 1990). Nesse contexto, o
fisiculturismo insurgente na Inglaterra mostrou-se como uma tentativa de retorno à estética atlética da estatuária
grega. Atualmente, contudo, os corpos hipermusculosos também podem ser associados, em suas destacadas e
detalhadas dobras e redobras, a uma espécie de neobarroco.

37
CÉSAR SABINO

qual estão inseridos. Tais práticas apenas fazem sentido quando relacionadas
aos sistemas simbólicos que representam e, também que as constituem com
outras dimensões da sociedade.
A princípio é preciso delimitar, como fizeram Elias e Dunning (1994),
as singularidades entre jogo e esporte. O jogo apresentar-se-ia como univer-
sal, presente em todas as culturas, atuais ou não. Seria prática tradicional,
existente em todas as sociedades ao longo do tempo e do espaço. Já o esporte
é o produto de uma descontinuidade produzida no ocidente europeu, que
– para usar um certo acento metodológico weberiano – racionalizou as
práticas corporais, regrando-as, regulando-as, administrando-as, buscando
delas extirpar a violência presente nessas atividades. O esporte é, portanto,
moderno; produto da modernidade. Não se pode dizer, por isso mesmo, que
sua existência tenha sido sustentada como prática universal. Ao menos em
seu período inicial, ele seria a liberação controlada das emoções, tentativa
de amenizar violentas disputas que, não raro, estariam presentes nos jogos
guerreiros ou rituais das sociedades europeias tradicionais. A existência de
regras escritas e uniformes codificando as práticas, a autonomização do
jogo e, consequentemente, do espetáculo do jogo, além de severas punições
contra atos violentos, seriam algumas das características constitutivas das
práticas esportivas surgidas na modernidade (ELIAS; DUNNING, 1994;
CHARTIER, 1994). Se existe uma disposição psicossocial relacionada às prá-
ticas de jogos presente em todas as sociedades e culturas ao longo do tempo
e do espaço (HUIZINGA, 1988), a prática esportiva, embora relacionada
diretamente aos jogos tradicionais, desses se destaca por sua singularidade.
O esporte, produto da disciplinarização e racionalização, transformou o
jogo em prática distinta, com configurações específicas, em outras palavras.
Essa racionalização da competição e disciplinarização dos corpos
proporcionou o surgimento campos esportivos com toda atual profissio-
nalização que lhes é característica com seus locais (ginásios, academias,

38
DROGAS DE APOLO

clubes e estádios), saberes e tempos específicos14. Ao calendário religioso


e folclórico dos rituais coletivos, o esporte passou a opor, ou conjugar, um
calendário próprio de competições nas quais as datas passaram a existir
em consonância com os ritmos anuais de cada disciplina. A implantação e
a arquitetura dos estádios, ligada também à criação de normas para gestão
da intimidade dos indivíduos, relacionaram-se ao propósito insurgente de
gestão populacional (FOUCAULT, 1987; COSTA, 1989) e à extração do
máximo de lucro possível do espetáculo. O calendário esportivo, então,
passa a depender das exigências da propaganda, do ritmo do trabalho e dos
hábitos de lazer característicos do capitalismo em consolidação (ELIAS;
DUNNING, 1994). Surgem regras fixas que visam a permitir a realização
uniforme e potencialmente universal das práticas esportivas:
A história de cada esporte é portanto, fundamentalmente, a
história da constituição de um corpo de regulamentos cada
vez mais detalhados e precisos, que impõem um código único
às maneiras de jogar e de competir que eram, anteriormente,
estritamente locais ou regionais. (CHARTIER, 1994, p. 16).
A diferença entre o esporte e o jogo tradicional se manifesta, por
um lado, por regras uniformes que suplantam progressivamente os usos
locais e circunstanciais dos jogos tradicionais e, por outro, pela existência
de especialistas que têm a função de constituir um direito específico para
reger as práticas esportivas. Segundo Elias e Dunning, é a partir dessas
regulamentações que dois aspectos fundamentais podem ser compreendi-
dos: a redução do nível de violência tolerável nos enfrentamentos físicos e
o desenvolvimento de uma ética da lealdade que não separa o desejo de vitória
do respeito às regras e do prazer do jogo como objetivo final. Para os autores,
esse longo processo de transformação social (sociogênese) demonstra a
modificação das estruturas da personalidade (psicogênese), possibilitando
14
O exemplo do futebol popular (folk football, soccer), praticado na Inglaterra antes do século XIX, é sugestivo desse
processo de mutação jogo-esporte. A prática era realizada por intermédio do enfrentamento de duas identidades
sociais previamente definidas como a residência em uma mesma comunidade citadina ou domínio senhorial, o
exercício de uma mesma profissão, o pertencimento a um grupo de jovens – ou seja, solteiros possuindo mais
ou menos a mesma idade – ou o grupo dos homens casados. O jogo reproduzia, portanto, as perspectivas que
lhe eram anteriores e exteriores e que organizavam os rituais festivos. Os jogos inscreviam-se nos calendários
das festas religiosas e folclóricas, contudo eram negociados conforme as partes em questão. Desprovidos de um
tempo próprio, independente de outros eventos, eles se realizavam sempre aos domingos após as missas sem
espaço específico, definitivo, para ser realizado. Qualquer espaço comunitário podia ser utilizado para o jogo que
não apresentava regras uniformes, fixas e demarcadas. As convenções que permitiam o jogo eram rudimentares,
locais e costumeiras: de uma região a outra, de um vilarejo a outro, de uma partida a outra, todos os elementos
podiam tornar-se diferentes: o número de participantes, a duração do jogo, as regras aceitas, os objetos utilizados,
os critérios que decidiam a vitória etc. (CHARTIER, 1994, p. 15).

39
CÉSAR SABINO

o relaxamento dos controles emocionais apenas em determinadas cir-


cunstâncias, sem deixar totalmente livre os movimentos espontâneos e
perigosos das pulsões e dos afetos, “descontrole controlado das emoções”,
evitando ou diminuindo as manifestações violentas cotidianas. O esporte,
portanto, teria uma característica civilizatória. De administração de afetos,
disciplinarização dos costumes e modulação dos comportamentos violentos
estilizando-os em competições regradas. Contudo é preciso ressaltar que a
ideia de civilização presente no pensamento de Elias em nada se assemelha
à concepção de progresso, de teleologia histórica, evolução ou superio-
ridade europeia ou ocidental em relação às outras sociedades. Inclusive,
esse processo pode ser revertido intensificando a indisciplina de afetos e o
aumento da violência em todos os seus aspectos e manifestações – como
foi o caso da Alemanha nazista. Com efeito, o autor assinala que “outras
sociedades, localizadas em épocas distintas e continentes diversos também
produziram rigorosos sistemas de autocontrole, contenção de instintos e
modulação das emoções”; ou seja, seus próprios processos civilizatórios, como
as sociedades ameríndias ou a japonesa, para citar apenas dois exemplos
(ELIAS; DUNNING, 1994, p. 18; ELIAS, 1994a; 1996; DESCOLA, 1999;
LÉVI-STRAUSS, 2012; 2012a; ALVES, 2018, p. 178-182.).
O prazer da prática, ou do espetáculo esportivo, coloca em jogo corpos
que disputam e pelejam, devendo realizar tal processo de maneira respeitosa
para com a vida; mesmo as peripécias e demonstrações de lutas severas não
devem passar de um simulacro das batalhas violentas. Essa excitação bem
controlada – batalha controlada em um espaço projetado –, ligada às práticas
esportivas, supõe duas condições: primeira, o aparecimento de práticas de
lazer com características miméticas permitiu o relaxamento, a liberação do
controle ordinariamente exercido sobre as emoções; controle diretamente
equacionado ao mundo opressor do trabalho no capitalismo e da existência
pública que instaura a separação entre a vida privada e essa. Nos espaços
de disputas esportivas, seria permitido expressar e dar vazão às emoções
que cotidianamente deveriam ser censuradas e administradas para que a
manutenção da ordem social fosse possível. Dessa forma, o surgimento
das tecnologias esportivas com todo seu saber que acaba por constituir a
ciência do esporte pode ser visto, também, em uma ótica foucaultiana, como
mais um dispositivo da insurgente sociedade disciplinar que se consolida
a partir do século XVIII na Europa, ou ainda, como mais um processo de
racionalização – entendido enquanto técnica e cálculo administrativo da
vida – inerente às sociedades europeias, de acordo com Weber (FOUCAULT,
40
DROGAS DE APOLO

1997; 1993; 1988; WEBER, 1992;1997). Ao conceito de processo civiliza-


tório de Elias, poderia ser somada a ideia de disciplinarização de Foucault
e crescente racionalização do mundo da vida de Weber.
A segunda condição sustenta que essa administração dos afetos vio-
lentos pela tecnologia esportiva só se faz viável por intermédio da interio-
rização dos sistemas simbólicos de constrangimento que se traduzem em
mecanismos de autocontrole ligados ao surgimento de uma nova economia
emocional. Os estádios e os ringues nos quais os dispositivos de autocontrole
comandam, de maneira quase universal e regular, todos os comportamentos
dos participantes e as liberações emocionais surgem como instâncias nas
quais a sociedade pode efetuar certas atividades de expressão de disputas
sem colocar em perigo um retorno da agressividade destrutiva e da violência
gratuita. Do duelo sangrento às partidas esportivas, o processo de discipli-
narização tem por objetivo a pacificação do espaço social, embora parcial e
tendenciosa, assegurando o monopólio sobre o uso legítimo da força pelo
Estado, transferindo, para o interior do indivíduo, os constrangimentos
que deveriam evitar os confrontos sangrentos e abertos; dispositivo inte-
riorizado de censura efetivado em práticas e comportamentos coletivos e
individuais (habitus) que não têm mais por base a autoridade exterior dos
constrangimentos punitivos15.
O processo civilizatório surge, também, como um processo de
esportização: mudança que transforma os passatempos e as atividades de
enfrentamento tradicional, sem regras fixas nem restrições severas contra
uma possível violência anômica, em práticas estilizadas e controladas por
regras universais. Esse processo poderia ser definido como a tentativa de
codificar normas com o objetivo de suspender o perigo contra os corpos
e a vida produzindo relaxamento controlado das disposições emocionais
com a exclusão definitiva da violência destrutiva do adversário. Uma prática
esportiva que não condiz com tal definição estaria fugindo dos parâmetros

15
Elias em 1939 publicou sua tese (Über den Prozess der Zivilisation. Sociogenetische und psycogenetische Untersu-
chungen) sobre o processo civilizatório destacando que as normas sociais definidoras dos comportamentos e das
sensibilidades, mais precisamente nos altos círculos da sociedade, começaram a mudar radicalmente a partir do
século XIII, consolidando-se do século XVI em diante, passando a ser mais estritas, mais diferenciadas e onipre-
sentes, mas também mais iguais e mais moderadas, posto que elas eliminam o excesso de auto punição assim como
a autocomplacência. Essa mudança é traduzida pelo termo de “civilidade”, lançado por Erasmo de Roterdã, que,
em inúmeros países, simbolizará um novo refinamento que dará mais tarde nascimento ao verbo civilizar; essa
mudança do código de sensibilidades e dos comportamentos está ligada ao processo de formação do Estado e
de seu monopólio da violência, e, em particular, à sujeição das classes guerreiras a um controle mais estrito pela
“curialização” dos nobres nos países da Europa continental. Esse processo, porém, não se deu da mesma forma
e intensidade em todas as regiões europeias (1990, p. 27).

41
CÉSAR SABINO

da estilização da violência e, possivelmente, representando um retrocesso


no controle da violência anômica, ou como Elias diria, um processo de des-
civilização (ELIAS, 1990, p. 59.).
O surgimento do sport (e do processo de esportificação) teve início na
Inglaterra, durante o século XVIII, entre a aristocracia do campo e a gentry.
Nessa época, o termo não estava limitado apenas aos esportes de partici-
pação, mas incluía os jogos competitivos que tinham o objetivo de conferir
distração e prazer aos espectadores; o esforço físico principal era realizado
mais pelos animais do que pelos competidores humanos. A criação dessas
práticas coincide com a consolidação e fortalecimento do Estado moderno
e a consequente tentativa de pacificação do espaço social caracterizada pelo
monopólio da violência legítima por esse mesmo Estado. O esporte apre-
senta-se como parte de toda uma conformação social na qual a tentativa
de organizar e reger o espaço público se consolida; ele torna-se possível
primeiro na Inglaterra devido ao fato de a sociedade inglesa expressar tal
esforço ordenatório. Sua configuração política, calcada no regime parla-
mentarista, apresenta já uma estilização das lutas sociais com tendência
a amenizar o confronto violento16. No regime parlamentar, as lutas não
violentas obedecem a regras estabelecidas representando efetivamente o
nível de tolerância da tensão que caracteriza a cultura inglesa na época, seu
habitus social (ELIAS, 1990; 1993).
A similaridade dos jogos políticos do regime parlamentar com os
jogos esportivos não é acidental. Segundo Elias, no início do século XVIII,
16
A formação do sistema parlamentar na Inglaterra e sua capacidade de moderar as disputas pelo poder data da
época do rei João Sem-Terra (1199-1216). Após ser derrotado em conflitos com a França e com o papado, João
Sem-Terra foi obrigado, pela nobreza inglesa, a assinar um documento denominado Magna Carta que limitava
sua autoridade. Ele não podia, por exemplo, aumentar os impostos sem a autorização dos nobres. A Magna Carta,
considerada por muitos a primeira constituição, estabelecia que o rei só podia criar impostos depois de ouvir o
Grande Conselho, corpo político então formado por condes barões e bispos. Essa disputa entre nobreza e realeza
foi acirrada no reinado do filho de João Sem-Terra, Henrique III (1216-1272) que, além da oposição da nobreza,
enfrentou forte oposição popular. Nesse período, o nobre Simon de Monfort liderou uma revolta da aristocra-
cia e, para conseguir adesão popular, convocou um Grande Parlamento que reunia, além do clero e nobreza,
representantes da burguesia insurgente. No reinado de Eduardo I (1272-1307), a existência do Parlamento foi
oficializada e continuou a se fortalecer como instrumento mediador durante o reinado de seus sucessores. Em
1350, o Parlamento foi dividido em duas câmaras: a Câmara dos Lordes, formada pelo alto clero e nobreza, e
a Câmara dos Comuns, formada pelos cavaleiros e burgueses. Dessa forma, desde cedo na Inglaterra o rei teve
sua autoridade restringida pelo surgimento desse instrumento mediador denominado Parlamento. Para Elias
(1990, p. 56), o surgimento da gentry, classe de proprietários de terra que não pertenciam à alta nobreza e que não
eram representados pela Câmara dos Lordes, mas pela Câmara dos Comuns, teve consequências consideráveis
para a repartição do poder político na Inglaterra a partir do século XVIII. Essa classe, ao disputar o poder com
os outros extratos dominantes da época, proporcionará a articulação de estratégias políticas no Parlamento
que permitirão a “pacificação das classes superiores inglesas” e, simultaneamente, a transformação dos antigos
passatempos em passatempos do tipo esportivo (Idem).

42
DROGAS DE APOLO

na Inglaterra se chamará sport as antigas assembleias de Estado – a Câmara


dos Comuns, a Câmara dos Lordes, representantes das pequenas seções
privilegiadas da sociedade – que constituíam o principal campo de batalha
no qual se forma o Governo. A articulação do poder pelos partidos, por
meio das regras do jogo político, imposta a partir do voto de assembleia,
ou de uma eleição pública, representou as condições fundamentais para
a constituição do regime parlamentar, tal como surge na Inglaterra do
século XVIII. Essa organização não seria viável se as facções antagônicas
não tivessem a mediação do instrumental político para amenizar suas hos-
tilidades, e mesmo ódio, controlando – por meio da violência autorizada
(simbólica) – seus enfrentamentos:
[...] os dirigentes não abandonariam de bom grado aos seus
rivais os imensos poderes que lhes conferiam as funções
governamentais sem a condição assegurada de que eles mes-
mos –seus inimigos políticos – uma vez empossados, não se
empenhariam em lhes perseguir, ameaçar, exilar, aprisionar,
atacar ou matar (ELIAS, 1990, p. 36).
Essa administração das práticas políticas permitiu legalmente a forma-
ção do campo político parlamentar definindo os elementos principais para
a formação, a manutenção e o possível aprimoramento do jogo partidário,
da mesma forma que o campo esportivo articulou regras administrativas
para a produção dos espetáculos permitindo uma estilização dos enfren-
tamentos violentos.
O esporte, a princípio, consolidar-se-á como atividade nobre ou
melhor dos nobres. A alta sociedade, que dispunha de grande capital social
e simbólico, empenhar-se-á em práticas, como a caça, a equitação, o tênis, o
polo, mais tarde as corridas de automóvel. Além de afirmar o status social
do desportista, as práticas do esporte consolidavam uma ética na qual as
afirmações das disposições e dos valores de classe estavam presentes e se
colocavam como exemplo a ser seguido pelas classes inferiores. O fair-play
apresenta-se como o conceito que subsume a concepção de que as atividades
esportivas devem ser gratuitas e desinteressadas, nas quais a maneira de ser,
de aparecer e de fazer conta muito mais que a vitória. O gosto pelo risco, o
culto à proeza e o desprendimento relacionado ao tempo, que deve sempre
estar livre para treinos e práticas, representam uma condição aristocrática
singular. Os meios (a exibição da prática) constituem os próprios fins. Ao
contrário do esporte atual, reduzido a uma prática profissional e mercantil,
e por isso mesmo plenamente dependente da vitória; o esporte dos séculos
43
CÉSAR SABINO

XVIII e XIX dava prioridade ao savoir-vivre e ao savoir-faire, e não à busca


da vitória a todo custo. Eram, como prática da nobreza, uma ritualização,
estilização da existência (SAINT-MARTIN, 1989). Paralela a essa concep-
ção, surgia outra relacionada às atividades administrativas dos Estados
preocupados com a saúde de sua população e, por isso mesmo, buscando
constituir uma pedagogia do corpo disseminada nas escolas por meio da
Educação Física visando a gerir a vida, processo que Foucault denomina
biopolítica. A prática de exercícios físicos relacionada a essa educação física
terá por objetivo formar o caráter do indivíduo mais do que sua inteligên-
cia; educá-lo, mais que o instruir; incitá-lo a cultivar a coragem e a força e,
sobretudo, a iniciativa mais que o saber. Enfim, formar um corpo forte com
caráter obediente e dócil (FOUCAULT, 1987). É uma educação, de certa
forma, relacionada às instituições militares do Estado Moderno.
Nesse aspecto, há, portanto, dois tipos de ethos relacionados às práti-
cas corporais: 1) aquele relativo à nobreza e sua ritualização da tradição; 2)
aquele referente à burguesia e à manutenção de corpos institucionalizados e
funcionais17. Para os nobres, o esporte não era apenas uma forma de inculcar
nos jovens os valores aristocráticos que, a essa altura das práticas esportivas,
estão inscritos, senão nas regras que regem explicitamente as mesmas, ao
menos nos princípios codificados que definem a maneira de as praticar. O
esporte permite acumular e articular o capital social que é transmitido por
herança, reproduzindo a condição social no qual foi produzido. Enquanto
a nobreza olha para a tradição e sua reprodução no presente18, a burguesia
fita o futuro, preocupando-se com o fortalecimento do contingente humano
de seus Estados. Assim, há uma relação entre as transformações de práticas
e de consumo de esportes (invenção ou importação de esportes ou equipa-
mentos novos) e as transformações da demanda social e dos estilos de vida
(BOURDIEU, 1981).
17
De acordo com Luz (1994; 2003a), essas atividades historicamente conhecidas como ginástica têm uma tradição
milenar na cultura ocidental, tendo tido grande desenvolvimento na sociedade urbana durante as últimas décadas
do século XIX e no século XX sob a tutela do Estado. Associada à prática do esporte, a ginástica moderna nasceu
sob o signo do paradigma saúde/vitalidade, estreitamente ligada ao modelo higienista (posteriormente eugenista)
do último terço do século XIX, recuperação moderna nacionalista da concepção latina do mens sana em corpore sano.
18
O “espírito” de tradição, por exemplo, é que engendrará a fundação dos clubes. Para os nobres do século XIX na
Europa ocidental, a prática de esportes, como o golfe, a equitação, o polo etc., se constituirá como meio de trocas
mundanas, bailes, jantares, festas, soirées, rallyes etc., conjunto de atividades “gratuitas” e “desinteressadas” que
possibilitam a socialização escolhida, e, por meio dessa, o aumento do capital social. Nesse processo, serão criados
os clubes organizados em torno de uma atividade esportiva. Assim, por exemplo, na França em 1834, é criado o
Jockey Club com o título de Cercle de la Societé d’Encouragement pour l’amèlioration des races des cheveaux en
France; em 1858 Le Yatch Club; Le Cercle des Patineurs em 1865 e assim por diante. Locais que tinham por objetivo,
entre outros aspectos, constituir espaços reservados para associação de nobres e notáveis (SAINT-MARTIN, 1989).

44
DROGAS DE APOLO

Também uma terceira corrente de práticas relacionadas ao corpo,


além das destacadas anteriormente, deve ser demarcada: aquela ligada aos
tradicionais exercícios circenses, provavelmente com existência anterior
às práticas esportivas da nobreza e à ginástica promovida pelo Estado
burguês. De fato, os espetáculos de força e destreza física faziam parte das
apresentações dos saltimbancos nas feiras medievais. As apresentações se
consolidaram institucionalmente nas chamadas práticas circenses – circos
de lona. No século XIX, tais apresentações deram origem a outra vertente
do espetáculo: os freak shows. Apresentações de extravagâncias nas quais a
força de alguém, ou sua característica física fora do normal, ou, ainda, a sua
incrível flexibilidade era demonstrada para um público específico. Como
toda prática supõe um saber determinado, os exercícios no trapézio e as
performances físicas foram constituídos pelo aperfeiçoamento repassado
de geração para geração de artistas de circo. Os saberes e as práticas, dis-
tantes do processo de esportificação empreendido pelas classes dominantes,
acabaram migrando para as práticas de ginástica que vieram a conformar
o que veio a se tornar a Educação Física (tornada depois ensino superior)
aplicada à busca de eficácia dos exércitos e depois à busca da otimização da
saúde dos cidadãos empreendida pelo Estado Moderno (ARNAUD, 1991;
ANDRIEU, 1992). A prática do fisiculturismo finca suas raízes nessas três
correntes. Em primeiro lugar, se o esporte é a estilização dos combates, os
torneios de fisiculturismo (e inevitavelmente a musculação) constituem-se
como a estilização da estilização, “puras lutas de aparência” (COURTINE,
1995, p. 83), simulacro do simulacro, posto basearem-se apenas na apre-
sentação estética, sem nenhum enfrentamento físico concreto. Em segundo
lugar, seus precursores, no final do século XIX, exaltavam a funcionalidade
da prática de exercícios com peso para o aperfeiçoamento da saúde popu-
lacional, dos exércitos e dos trabalhadores em um movimento disciplinar
da população. Terceiro, os torneios e as apresentações de bodybuilding são
produtos diretos dos freak shows já transformados em espetáculos para as
massas no final do século XIX. Nesses circos de horrores, homens fortes,
gigantes exóticos, apresentavam seu tamanho e força descomunais para
uma plateia ávida por novidades consideradas bizarras19 (BOGDAN, 1994;
19
O artigo de Bogdan (1994), além de apresentar a gênese social da categoria de “monstro” no século XIX –
indivíduos com aparência e capacidades incomuns –, indica a organização de um comércio desses indivíduos e
suas imagens relacionado à formação do campo do show business na Europa e nos EUA. De acordo com o autor,
empresários construíram vários discursos – na maioria das vezes fictícios e repletos de hipérboles – sobre a origem
e as capacidades dos “monstros”, não raro apelando para o imaginário pseudocientífico, radicado no evolucio-
nismo social, que representava tais indivíduos como resquícios de trogloditas ou selvagens de terras inóspitas.

45
CÉSAR SABINO

COURTINE, 1995). Assim, o campo do fisiculturismo originou-se de outro


campo, o das artes e espetáculos circenses – esses, por sua vez, originaram-
-se dos saltimbancos medievais. O conceito de campo criado por Bourdieu
pode ser entendido como um
[...] sistema social (espaço) constituído por termos (pessoas)
em relações de força e monopólios [...], lutas e estratégias,
interesses e lucros. Estas características do campo podem ser
consideradas como sendo invariantes revest[indo] formas
específicas de conformações de campos diversos. Assim,
o campo é um sistema de relações objetivas entre posições
adquiridas (em lutas anteriores), é o lugar, o espaço de jogo
de uma luta concorrencial. O que está em jogo nessa luta é o
monopólio da autoridade [no campo determinado] definida
de maneira inseparável, como capacidade técnica e poder
social; ou [...] o monopólio da competência [...] compreendida
enquanto capacidade de falar e de agir legitimamente (isto é de
maneira autorizada e com autoridade), socialmente outorgada
a um agente determinado. (BOURDIEU, 1976, p. 88-89).
Associado a todos esses aspectos citados anteriormente, também é
preciso destacar que, no período vitoriano, consolida-se uma nova forma de
olhar os sexos. Durante praticamente dois mil anos, o Ocidente concebeu
a mulher como um homem às avessas. Até o século XVIII, não era possí-
vel encontrar o modelo de sexualidade humana que temos hoje. Foucault
(1990) mostra que a categoria sexualidade é uma invenção moderna. Um
termo surgido no século XIX que carrega os sinais de todo um processo
de transformação presente nas relações sociais das culturas europeias. A
concepção hegemônica existente era a do monismo sexual; como disse, a
mulher era considerada um homem invertido: o útero era o escroto femi-
nino, os ovários eram os testículos, a vulva um prepúcio, e a vagina era um
pênis. Nesse aspecto, o centro era o falo, sendo a anatomia masculina o
modelo de perfeição, posto que o modelo do corpo do macho – como no
mito bíblico da criação – seria a matriz do corpo feminino considerado
produto inferior ou secundário. Concebida assim como homem invertido,
a mulher era, de qualquer forma, tida como sujeito menos desenvolvido
na escalada ontológica e teológica (LAQUEUR, 1989; GOMES DA SILVA,
2000). Com a passagem do século XVIII para o XIX, ocorre uma ruptura no
modelo unitário de sexo, e surgem a dualidade e a descontinuidade em um
novo regime de administração dos sexos conformado agora às diferenças
morais, de comportamento e função relacionadas às necessidades da bur-

46
DROGAS DE APOLO

guesia, que reiterou em outra esfera concepção de inferioridade feminina


(BADINTER, 1986). Destarte,
[...] com a chegada do século XIX o culto à masculinidade
vai ser uma decorrência direta desta mudança da concepção
biológica para a política, econômica e social [...] Primeiro
veio a reprodução das desigualdades sociais e políticas entre
homens e mulheres, justificada pela norma natural do sexo.
Em seguida, o que era efeito tornou-se causa. A diferença
dos sexos passou a fundar a diferença de gêneros masculino
e feminino que, de fato, historicamente a antecedera. O sexo
autonomizou-se e ganhou o estatuto de fato originário [...]
Sob a ameaça de uma feminilidade inerente para alguns
homens, decorrente do medo de se fazerem homossexuais,
e diante da obrigatoriedade de por a prova o seu sexo forte,
os homens tiveram que cultivar mais do que nunca a sua
masculinidade e a sua virilidade, caracterizando também
[uma] crise da identidade masculina (GOMES DA SILVA,
2000, p. 12).
Trocando em miúdos, a partir da era vitoriana, esse modelo de mas-
culinidade hegemônica torna-se referência necessária de comportamento,
estética, honra e respeitabilidade masculina, enquanto tudo que se refere
ao feminino torna-se sinônimo de delicadeza, fraqueza, sensibilidade e
inferioridade. O homossexual, nessa nova narrativa, torna-se um ser pato-
lógico posto que, além, e por causa, de seu comportamento avesso, a agora
concebida sexualidade natural e, por conseguinte normal, coloca-se como
um invertido ou desviado. Os gestos brutos, a dureza nas relações sociais,
o controle da sensibilidade e uma postura de imposição, dominação e força
tornam-se, mais do que antes, sinônimo da verdade do homem, mas retrato
viril do homem de verdade. É nesse momento que surge o fisiculturismo
como técnica de cultivo desse homem e dessa masculinidade chancelada
pelo contexto burguês.

1.1 HERÓIS FUNDADORES

As publicações sobre a história da musculação e do fisiculturismo (ou


culturismo como algumas apresentam) sofrem de uma tendência comum
aos escritos realizados por indivíduos pouco afeitos ao trato com as ciências
sociais: tendem a criar super-heróis descolados do contexto histórico-so-
cial, como se fossem verdadeiros prometeus, resolvidos a doar aos simples

47
CÉSAR SABINO

mortais, por conta própria, o saber pertencente aos deuses. Esses trabalhos,
eivados da ideologia individualista do self-made man, esquecem que cada
vida, apesar de toda sua singularidade, deve ser vista como expressão da
história social representativa de seu tempo, seu lugar, seu grupo, “síntese
da tensão entre liberdade individual e o condicionamento dos contextos
estruturais” (GOLDENBERG, 1997, p. 37; 1995; 2001). Cada indivíduo é o
produto individualizado e ativo de uma determinada sociedade localizada
no tempo e no espaço. É a reapropriação singular do universo social e
histórico que o envolve (BOURDIEU, 2001; ELIAS, 1994; GEERTZ, 1991;
1993; GOLDENBERG, 1995; 1997; 2001; DENZIN, 1984; CERTEAU,
1982; MAUSS, 1974).
Analisar, mesmo que brevemente, o processo de surgimento do campo
do fisiculturismo é perceber as modulações entre o mito e a história, essa
última pode ser utilizada como teoria-mito para justificar e reproduzir
práticas sociais; isso se não for percebido o fato de que o indivíduo se faz
por suas atividades e pelas condições que dispõe para realizá-las no contexto
social em que existiu (ELIAS, 1994). Friedrich Wilhelm Müller, nascido na
Prússia em 1867, é considerado, por todas as publicações sobre fisicultu-
rismo e musculação, o pai do bodybuilding. Esse homem é tido, por aqueles
que escrevem sobre o tema, como o primeiro fisiculturista famoso de que
se tem notícia. Mais do que isso, a ele é creditada a base da organização das
regras do fisiculturismo tal como é praticado hoje, tendo retirado do âmbito
circense e dos freak shows a prática do espetáculo dos chamados “homens
fortes”. Müller, que –para a época – era grande e musculoso desde os 16
anos devido aos exercícios realizados como artista de circo, adotou desde
cedo o nome artístico de Eugen Sandow. Na década de 1880, o circo no
qual trabalhava viajando pela Europa foi à falência em Bruxelas, deixando-o
então desempregado e sem rumo específico.
Nessa mesma cidade, Sandow conheceu um pequeno empresário de
nome Oscard Attila (nascido Louis Dularcher em 1847). Como homem de
negócios e atleta, Attila realizava apresentações profissionais de exibição
de força também em arenas circenses e em espetáculos que ele mesmo
promovia. Obcecado por exercícios físicos, havia, de forma inovadora,
transformado uma sala de concertos musicais em uma espécie de academia
de musculação da época. Percebendo que Sandow tinha um físico propício,
já trabalhado pelos exercícios no picadeiro, para levantar pesos, resolveu
treiná-lo com o objetivo de transformar seu corpo de ginasta das lonas em
um corpo de levantador de pesos, dando-lhe também emprego de atendente
48
DROGAS DE APOLO

em seu salão de cultura física em Bruxelas. Com o tempo, Sandow e Attila


passaram a aprimorar os instrumentos de exercícios do salão, criando,
entre outros itens, uma barra (barbells) com duas bolas ocas de metal nas
extremidades que podiam ser preenchidas com areia ou esferas de chumbo
com o objetivo de graduar o peso. Esse invento tornou-se o precursor das
atuais barras longas com anilhas (pratos de ferro) descartáveis (CHAPMAN,
1994; EMERY, 2003).
Após intermitente preparação no salão-academia, Sandow e Attila
resolveram organizar uma espécie de empresa de espetáculos físicos e
passaram a exibir-se em várias cidades europeias com números de força
desafiando oponentes e vencendo-os. Talvez seja esse o marco inicial da
indústria do músculo. Com isso, a situação financeira dos dois começou
a melhorar. Em 1889, os dois parceiros de exibição de força se separam,
mantendo, porém, contato frequente um com o outro. Em Veneza, Sandow
foi convidado para posar para um artista plástico americano chamado
Aubrey Hunt que o pintou em um lenço, hoje de posse do mais influente
empresário do fisiculturismo Joe Weider. Porém, o que deve ser ressaltado
nesse acontecimento é que Sandow, posando como modelo para o artista,
percebeu que, além da apresentação da força física, a exibição estética de
seus músculos – e não apenas as demonstrações de destreza e força bruta –
também poderia interessar às pessoas, sendo, portanto, um possível meio de
promoção econômica. Passou, então, a imaginar uma competição estética
na qual a harmonia muscular, e não a força física, como era realizado até
então, pudesse ser avaliada.
Nesse ínterim, Sandow continuava sendo desafiado para disputas de
força por aqueles que tentavam amealhar alguma fama e uns poucos pro-
ventos buscando vencê-lo. Fixou-se em Londres e acabou por aceitar um
desafio de dois gigantes da época que ofereciam 500 libras esterlinas para
aquele que conseguisse vencê-los em um embate. A força dos dois nunca
havia sido superada por ninguém, até Sandow aparecer. Após ter vencido os
concorrentes e aumentado ainda mais sua fama entre os ingleses, Sandow
passou a apresentar-se em competições de força, além de exibir-se em poses
estéticas para o público. Durante quatro anos, ganhou a vida e a crescente
fama dessa maneira. Em 1893, Sandow viajou para os Estados Unidos para
tentar ampliar sua carreira de atleta e artista, mas fracassou no empreen-
dimento. Retornou para a Alemanha e conheceu um dos mais importantes
empresários de espetáculos da época Florenz Ziegfeld. Ao perceber o sucesso
das apresentações de Sandow entre o público feminino, Ziegfeld resolveu
49
CÉSAR SABINO

investir em tais apresentações, promovendo turnês mundiais nas quais seu


astro era exibido apenas com uma sunga ou folha de parreira fazendo poses
que destacavam seus músculos.
A confirmação do sucesso entre as mulheres se realizou quando o
empresário resolveu levar Sandow para apresentações nos Estados Unidos
por ocasião da Exposição Mundial Comemorativa do Descobrimento da
América, realizada em Chicago. Ziegfeld alugou um teatro e convidou
o público para assistir “The World’s Most Perfectly Developed Man”, “A
Living Greek Statue”. Na época, as apresentações habituais de homens for-
tes nos EUA eram realizadas com homens vestidos em peles de leopardo.
Ziegfeld e Sandow empreenderam outro tipo de demonstração física: San-
dow invadiu o palco vestido apenas com uma sunga. O público feminino
manifestou-se ruidosamente parecendo ir à loucura (CHAPMAN, 1994;
EMERY, 2003; GIANOLLA, 2003)20. O êxito da apresentação foi grande,
o que fez com que Sandow e Ziegfeld empreendessem uma turnê não só
pelos EUA, mas também no Canadá. Em São Francisco, Sandow chegou a
apresentar-se lutando contra um leão – que estaria desdentado e dopado.
Após anos percorrendo os principais países do hemisfério norte ocidental,
Sandow sofreu um colapso nervoso; retornou à Inglaterra, onde se casou
com Blanche Brookes, e recuperou-se física e mentalmente. A partir de
então, dedicou-se à expansão das atividades de fisiculturismo, inaugu-
rando academias, elaborando métodos de exercícios, estudando nutrição
e publicando dietas, livros e revistas sobre o assunto. Em 1898 publicou
a primeira revista de bodybuilding – termo inventado por ele. O termo
bodybuilding advém do título de um livro de Sandow: Bodybuilding, or Man
in the Making, publicado em Londres em 1898 (cf. EMERY, 2003). A revista
chamava-se: Sandow Magazine. A fama de Sandow tornou-se tamanha que
ele foi convidado para administrar atividades físicas com pesos para os reis
Eduardo VII e George V, da Inglaterra, tornando- se o primeiro personal
trainer da modernidade e recebendo de George V o título de “Professor da
Ciência da Cultura Física de Sua Magestade”. Passou, então, a entusiasta

20
Necessário se faz notar que essas apresentações parecem representar um relaxamento das interdições puritanas
que censuravam a exposição da nudez corporal permitindo acesso à cultura de massa do espetáculo estético.
Essa ambiguidade era respaldada pelo discurso da busca de realização do ideal da estatuária grega. Discurso que
servia como álibi estético para a apresentação dos corpos nus contornando as resistências puritanas. Contudo as
mesmas resistências não cederam de imediato aos apelos da nudez. Mac Fadden, por exemplo, enfrentou inúme-
ros obstáculos e brigas com as ligas americanas de virtude e em particular com Anthony Comstock, secretário
da Sociedade para a Supressão do Vício, quando quis organizar em 1904, no Maddison Square Garden, um
campeonato de fisiculturismo (COURTINE, 1995).

50
DROGAS DE APOLO

do insurgente ensino de Educação Física obrigatória nas escolas, colégios


e indústrias da Inglaterra (GIANOLLA, 2003).
Nesse processo, Sandow começou a estudar e aperfeiçoar métodos de
musculação e criou o primeiro campeonato de fisiculturismo de que se tem
notícia. Em 14 de setembro de 1901, realizou o que foi chamado “The Great
Competition”, em Londres, no Royal Albert Hall, reunindo 156 atletas que
apresentaram seus músculos para um júri composto pelo próprio Sandow,
por um escultor de renome na Inglaterra da época, Charles Lawes, e por
Arthur Conan Doyle, o famoso criador de Sherlock Holmes. O vencedor da
competição foi Willian Murray, que posteriormente se tornou ator e músico,
além de promotor de campeonatos de musculação na Inglaterra. Os prêmios
para os três primeiros lugares foram estatuetas de ouro, prata e bronze, idea-
lizadas pelo escultor Frederick Pomeroy em 1891, representando a figura
do próprio Sandow segurando a barra com pesos nas extremidades por ele
inventada. Essa estatueta – a de ouro conquistada por Murray – nunca foi
encontrada, e suspeita-se que tenha sido derretida ou destruída durante a II
Grande Guerra. Sandow mandou fazer várias cópias das estátuas para ofertar
aos amigos ou vender para admiradores, além de expô-las em suas academias.
A cópia dessa estatueta de Sandow serve hoje como troféu de um dos maiores
campeonatos de fisiculturismo da atualidade: o Mr. Olympia.
Segundo a versão oficial, Sandow faleceu em outubro de 1925, aos
58 anos, de uma hemorragia cerebral devido a um acidente de carro. Após
derrapar com o veículo na estrada – confiando em sua enorme força – foi
retirá-lo com as próprias mãos do buraco no qual havia caído. O esforço
foi fatal para o primeiro organizador dos campeonatos de cultura física
que, naquele momento, passava por sérios problemas pessoais ocasionados
por desentendimentos conjugais. Curioso destacar que, apesar de toda a
sua fama, Sandow foi enterrado como indigente no cemitério londrino
de Putney Valle. Além da importância simbólica de seu corpo musculoso,
Sandow também causou impacto no mundo dos empreendimentos empre-
sariais da cultura física, inovando nesse ramo dos negócios. Seus interesses
comerciais incluíram a publicação de numerosos livros de fisiculturismo,
oito volumes de uma revista de bodybuilding (Sandow’s Magazine of Physical
Culture), inúmeros cursos por correspondência e a fabricação de máquinas
e aparelhos para musculação.
O trabalho de Chapman (1994) – considerado até o momento a melhor
biografia sobre o pai do fisiculturismo – apresenta a tese de que Sandow foi

51
CÉSAR SABINO

enterrado em um túmulo anônimo, devido ao fato de sua mulher, Blanche


Brookes, e suas duas filhas, Helen e Lorraine, terem o objetivo de apagar as
lembranças deixadas pelo marido e pai. Para confirmar essa tese, Chapman
escreve que, logo após a morte do pai do fisiculturismo, elas venderam todos
os bens da família, mudando-se rapidamente de Londres. De acordo com o
autor, não enfrentavam, à época, qualquer dificuldade financeira, ou outro
tipo de pressão, que as obrigasse a vender suas propriedades. Além de se
desfazerem dos bens deixados por Sandow, destruíram quase todos os docu-
mentos (correspondências e papéis em geral) pessoais do atleta, (o que causa
certa dificuldade para os historiadores e pesquisadores atuais interessados em
compreender melhor sua vida), isso porque o ódio que elas alimentavam por ele
as acompanhou até o fim de suas vidas (CHAPMAN, 1994, p. 188). Esse ódio,
segundo o autor, poderia estar ligado a dois fatores: primeiro, antes de morrer,
Sandow apresentava um problema de saúde, atestado pelo seu empresário
Florenz Ziegfeld, que indicava um quadro agudo de sífilis adquirida por uma
vida de inúmeras parcerias sexuais; é possível ter infectado a esposa. Talvez
a doença tenha sido o fator decisivo para sua morte causada pelo aneurisma.
Segundo, a despeito de seu casamento e de suas duas filhas, Chapman escreve
que Sandow provavelmente era bissexual, o que para época era escandaloso:
certas coisas são inegáveis. A verdade é que Sandow era definitivamente um
mulherengo. Porém, é verdade também que seu gosto direcionou-se para o
outro lado (CHAPMAN, 1994, p. 51). Essa afirmação do autor advém do fato
de que Sandow viveu, até casar-se, com o pianista Martinis Sieviking, que era
seu parceiro em números nos palcos e que rompeu a relação quando soube
que Sandow se casaria com Blanche Brooks.
Chapman destaca ainda a insinuação de uma conhecida de Sandow
– que por ele nutria interesse amoroso – a qual teria dito: “eu deveria ter
entendido quando o Sr. Sandow recusou beber da minha fina champagne...
ele deve ter tido momentos aborrecedores comigo antes de eu mandá-lo de
volta para o jovem com o qual ele vivia” (CHAPMAN, 1994, p. 25). Verdade
ou não, a hipótese ao menos ajuda a compreender o suposto ódio que a
família nutria por Sandow e que repercutiu no fato de ele ter sido enterrado
como indigente, embora tenha sido, à época, um dos mais famosos atletas
na Inglaterra e Estados Unidos. Sandow, além de levar uma vida promíscua,
não devia ser um marido e pai presente, sempre viajando e se envolvendo
em casos amorosos diversos.
Outros dois grandes nomes do fisiculturismo insurgente foram Ber-
narr Mac Fadden e Angelo Siciliano, mais conhecido como Charles Atlas.
52
DROGAS DE APOLO

Mac Fadden inventou um instrumento de exercício para os músculos do


peito e publicou, no mesmo ano que Sandow – 1898, uma espécie de revista,
manual, para práticas de exercícios com o objetivo de divulgar sua invenção
e seu método de treinamento. Como a Inglaterra era o centro das atividades
físicas da época, Mac Fadden, que era norte-americano, para lá viajou com
o objetivo de popularizar o invento e a revista (Physical Development) que
havia criado. Retornou aos EUA com o objetivo de empreender a expansão
das suas atividades, o que o levou a promover o primeiro campeonato de
fisiculturismo dos Estados Unidos no Madison Square Garden em Nova
York, no ano de 1903. As poses que os fisiculturistas realizam atualmente
em suas competições foram desenvolvidas ao longo dos campeonatos
promovidos por Mac Fadden que se tornou o grande promotor de eventos
de fisiculturismo nos Estados Unidos (COURTINE, 1995). Em 1921, um
jovem imigrante italiano foi o vencedor do primeiro lugar na competição
que Mac Fadden promovia, ganhando o prêmio de U$ 1000. Esse jovem
era Charles Atlas que, a partir de então, passou a ostentar, até a década de
1950, o título de “O Físico mais bem Desenvolvido da América”.
O que deve ser destacado nesse processo empreendido por Mac
Fadden é o sentido que as competições de fisiculturismo foram adquirindo
a partir dessa época. Quando Eugene Sandow iniciou a promoção de suas
atividades pela Europa e Estados Unidos, não buscava necessariamente
a separação de força e estética. De fato, suas apresentações eram um
misto de halterofilismo – pois levantava grande quantidade de pesos,
demonstrando força – com fisiculturismo – exibição, em trajes sumá-
rios, de sua forma corporal para o público. Sandow seguia a tradição de
apresentação dos saltimbancos conhecida desde a Idade Média e dos freak
shows circenses do homem monstruosamente forte. Assim, por exemplo,
Arthur Saxon, artista circense, no final do século XIX, era conhecido por
conseguir levantar um peso de 203 kg acima da cabeça apenas com um
braço (ARQUIVOS WEIDER apud SCHWARZENNEGER; DOBBINS, p.
8). Também a publicação bimensal parisiense La Culture Physique, exemplo
de promoção de atividades físicas nesse período, em seu número 216 de
primeiro de janeiro de 1914, escrevia sobre os “Acrobatas e os Jogos de
Circo” na página 6:
Les Rasso [grupo circense] foram célebres atletas até 1890. O
primeiro representante deste grupo tinha uma extraordinária
força naquela época: Henri Herzog podia levantar 100kg com
uma mão e lançar 110 kg com as duas.

53
CÉSAR SABINO

Também na página 25:


Jean Lebedew, mais conhecido pelo pseudônimo de Tio Jean,
é um professor de pesos e halteres que treinou um grande
número de lutadores e homens fortes de todos os tipos. Lebe-
dew nasceu em 1879 em S. Petersburgo. De pequena altura
(1m 65) ele possui as formidáveis medidas que se anunciam
a seguir: braço direito: 49 [cm], esquerdo 47, ante-braço 35
½, peito 128, coxa 75, panturrilha 49. Nos pesos ele realizou,
é atestado, valorosas apresentações à moda alemã: levantou
135 kg cinco vezes sem largar a barra.
Mac Fadden, em suas publicações, começa já a apresentar uma mudança
nesse aspecto. Fanático pelo conceito de saúde associado à aparência e à
moral do indivíduo, ele passa a promover a ideia de que a fraqueza física
era imoral e, visto que os métodos de cultura física estavam começando a
tornar-se disponíveis para todas as pessoas, segundo ele, apenas não era forte
e saudável aqueles que escolhiam o fracasso representado pelo desprezo
aos exercícios. Fortalecia-se, assim, uma espécie de ética associada à cultura
física. Suas apresentações – assim como a de todos aqueles que passaram
a seguir tal prática – eram, acima de tudo, estéticas. O uso da força passou
a restringir-se às apresentações de halterofilismo, enquanto o bodybuilding
construiu-se gradativamente tendo por objetivo apenas as apresentações da
forma muscular. Mac Fadden marca, dessa maneira, não apenas uma nova
configuração de práticas de exercícios e valorização da forma musculosa,
mas também o surgimento e a consolidação do campo do fisiculturismo,
para usar uma categoria de Bourdieu.
Um dos principais itens que contribuiu para a consolidação desse
campo foi o caráter puritano anglo-saxão que muito cedo associou obsti-
nação, ascetismo e trabalho, com aparência física e moral. As tradicionais
preocupações religiosas, segundo Courtine, permearam as estratégias de
desenvolvimento da forma física tentando apagar qualquer cesura entre
trabalho e lazer. A antiga repreensão puritana às distrações e ao tempo
ocioso encontram, na prática diária do exercício físico, a possibilidade de
enquadrar o tempo individual em um modelo de atividade contínua: o
exercício físico passa a ser um lazer às margens do tempo de trabalho e um
trabalho instalado no coração do tempo de lazer.
Ninguém ficaria mais sem fazer nada. Lutar contra o tempo
morto, a vacuidade, a desocupação: esses prolongamentos da
ética puritana da ‘tarefa’ marcaram profundamente o desen-

54
DROGAS DE APOLO

volvimento de uma civilização [...] do lazer, tendendo a nela


confundir o dever e o prazer, o útil e o agradável. A herança
desse conjunto de práticas e desses modelo psicológico pesa
ainda, com todo o peso do seus paradoxos, sobre a cultura
do corpo. (COURTINE, 1995, p. 94).
Trabalhar o corpo, construi-lo, moldá-lo, transformá-lo continua-
mente em busca de um ideal, eis a lógica da ética protestante do trabalho
deslocada para o mundo do esporte e das atividades físicas. A salvação
inscrevendo-se na aparência de saúde muscular conquistada pelo self-ma-
de-man, ícone do esforço ascensional burguês 21.
Um dos exemplos de aplicação dessa ética do trabalho muscular
foi o italiano imigrado para os Estados Unidos chamado Angelo Siciliano
(Charles Atlas). Dizia ter criado um método de musculação devido a um
fato ocorrido com ele, quando adolescente, em Coney Island Beach. Atlas
passeava pela praia com seus exíguos 44 kg, quando um indivíduo bem
maior resolveu caçoar da sua forma esquálida gritando: “Ei, magrelo, suas
costelas estão aparecendo!”. Tal provocação gerou uma discussão que acabou
com Atlas levando um punhado de areia na cara. O pequeno ítalo-ameri-
cano então empenhou-se em desenvolver musculatura para não apenas
encarar os mais ousados oponentes, mas também amedrontar aqueles que
possivelmente pudessem tornar-se seus adversários. Criou o “método de
tensão dinâmica”, que o permitiu mais que dobrar de tamanho em muscu-
latura. De fato, segundo contam os biógrafos e os relatos do próprio Atlas
em suas propagandas, tempos depois ele voltou à praia e deu uma surra no
grandalhão que tinha atirado areia em seus olhos.
Após ter vencido a competição promovida por Mac Fadden em 1921,
Atlas passou a propagandear seu método e a se apresentar como “o homem
mais bem desenvolvido do mundo”, ganhando fama internacional e publi-
cando revistas em vários idiomas, nas quais apresentava a si mesmo e outros
homens musculosos que diziam ter conquistado tal forma utilizando seu
21
O aspecto ascético do trabalho muscular organizado para atingir um fim específico se contrapõe à ética da prática
esportiva enquanto mera diversão. Essa apologia ao trabalho lembra aquele trecho de A Ética Protestante e o Espírito
do Capitalismo: a aversão do puritanismo pelo esporte [como diversão] não era devido a uma questão de princípio.
O esporte deveria ter como função fundamental servir a uma finalidade racional, a um objetivo específico e não
ao desperdício de tempo. Com efeito, ele torna-se veículo ao estabelecimento necessário da eficiência do corpo.
Mas suspeito se visto enquanto meio de expressão espontânea de impulsos indisciplinados, e servisse apenas como
diversão ou para despertar o orgulho, os instintos, ou o prazer irracional do jogo. Assim posto era estritamente
condenado. (WEBER, 1981, p. 120). Isso mudará com o surgimento da sociedade de consumo, a qual dependerá
do hedonismo para seu funcionamento, conjugando o racionalismo destacado por Weber a uma ética romântica
do consumo conspícuo como elemento identitário, mesmo que evanescente (CAMPBELL, 2001; CASTRO, 2003).

55
CÉSAR SABINO

“método de tensão dinâmica”. Além de apresentar tais fotos de “homens


desenvolvidos”, contava sua história da praia. Uma das singularidades de
Charles Atlas é que se dizia contra os exercícios realizados com pesos, contra
a musculação tradicional que, segundo ele, dava ao indivíduo um aspecto
artificial. Seu método de exercícios baseava-se na utilização do próprio
peso corporal – isometria – para o desenvolvimento muscular. Em uma
de suas revistas de 1947, Saúde e Força Duráveis, Atlas anuncia na página
28 (grifos do autor):
Tenha cuidado com o desenvolvimento produzido por meio
de aparatos! Porque usar pesos com o fim de adquirir desen-
volvimento muscular , é o mesmo que usar muletas para
ajudar a caminhar, pois quando se usa muletas muito tempo,
chega logo o momento que não se pode andar sem elas... o
tigre, o leopardo e o leão, com suas fulminantes forças e
energias, não as ganharam, por certo, por meio de pesos...
só USAM O SEGREDO QUE EU DESCOBRI – o princípio
da TENSÃO DINÂMICA – ou seja, um meio natural para
desenvolver e manter devidamente todos os músculos de
seu corpo... o esforço contínuo que se requer para manejar
os vários aparelhos de um ginásio chega a ser tão excessivo
quanto daninho para os órgãos vitais. Você não tem mais do
que um corpo, que é sua mais preciosa possessão. Trate-o,
pois, como se deve tratar! Meu sistema não faz uso de apa-
ratos. Só utiliza a resistência do próprio corpo. O segredo
deste sistema se baseia no fato de que, quanto mais forte
você se torna, maior será sua resistência. Mas, os aparatos
debilitam depois de algum tempo de uso e, no geral, podem
romper-se e produzir feridas distenções no exercitante. Que
os meus métodos de tensão dinâmica me hão dado melhor
desenvolvimento físico que aqueles que se pode obter com
todas as classes de aparatos se PROVOU quando me foi con-
cedido o meu título, em competição leal, com os melhores
que usaram aparatos.
Atlas procurava demarcar sua autoridade no campo insurgente das
práticas institucionalizadas de exercícios físicos da época; embora seu método
sem pesos e aparelhos não tenha feito sucesso, seu discurso rendeu-lhe
influência durante tempo significativo devido a sua projeção na mídia. A
postura que mantinha é o exemplo de atitude do agente em disputa pelo
poder em um campo profissional específico: demarcar sua singularidade
diante da tradição consagrada, no caso os bodybuilders de então. Por inter-
médio da figura e da postura de Atlas, a história do fisiculturismo sugere
56
DROGAS DE APOLO

que ela mesma se constitui enquanto luta entre os concorrentes no interior


do campo (BOURDIEU, 1977; 2001a). Luta para conquistar e impor seu
ponto de vista sobre a prática e a conduta a ser adotada no meio; luta por
um lugar na tradição e na história do sistema de práticas e representações
que caracterizam o grupo; luta pela dominação, autoridade e reconheci-
mento. Esse período da história do surgimento das práticas de musculação
pode ser considerado exemplar no sentido de preconizar as intermináveis
e crescentes disputas, tanto no campo das ciências do exercício dentro das
universidades, por intermédio das faculdades de educação física – pela
disputa dos cientistas do esporte em descobrir e inventar práticas mais
eficientes –, quanto no campo das academias de musculação e fisicultu-
rismo nas quais, a cada ano, professores e fisiculturistas tentam impor
novos métodos de exercícios supostamente mais eficazes que os anteriores,
ocasionando modas de verão.
Por outro lado, esboçam o que Foucault definiu como a articulação do
saber-poder, produto de sociedades disciplinares que, ao intervir no corpo
individual, acaba por produzir uma tecnologia de agenciamento populacio-
nal em nome da saúde (1993). O criador da “tensão dinâmica” mostrou-se
também, empreendedor eficaz, consolidando, durante quase 50 anos, o
comércio do seu método de exercícios físicos por correspondência, propa-
gandeado em revistas em quadrinhos e outras publicações, além de viajar
pelo mundo apresentando-se em espetáculos estéticos e de demonstração
de força. Na época, a indústria do exercício e da forma consolidava-se com
o aparecimento de diversos métodos e cursos que prometiam a qualquer
um a rápida construção de um corpo musculoso.
Charles Atlas parece ter contado com a nascente indústria da pro-
paganda e com o seu talento e capacidade para conquistar e fazer perdurar
relações pessoais influentes. Além de encarnar, de certa forma, o sonho ame-
ricano por ser um imigrante que na América consegue tornar-se, mediante
seu esforço e mérito, rico e famoso. Talvez essas características ajudem a
explicar seu longo sucesso. Um dos fatores da grande popularidade de seu
método era o fato de não necessitar de frequência a qualquer organização
ou compra e utilização de pesos. Contudo, apesar de ter vencido o con-
curso de Mac Fadden e ter um corpo relativamente forte para a média dos
homens comuns da época, Atlas era um mestre da autopropaganda, pois
não era, nem de longe, um gigante musculoso, e a ausência de exercícios
com pesos do seu método certamente limitava o crescimento muscular.
Schwarzenegger e Dobbins escrevem, em seu livro, que Atlas, apesar de
57
CÉSAR SABINO

se dizer contra o uso de aparelhos de musculação e pesos, utilizava-os de


forma velada (2001, p. 11).
Destarte, homens bem maiores e mais musculosos que Charles Atlas,
como George Jowett, por exemplo, dono do Jowett Institute of Phisical
Culture de Nova York, localizado, na época – década de 40 do século XX –
na 5a Avenida n. o, 23022, não conseguiram alcançar a fama e o sucesso do
ítalo-americano, sendo até mesmo esquecidos nas citações sobre o tema.
Após a Segunda Grande Guerra, os EUA se consolidaram como o centro do
fisiculturismo no mundo. Durante os verões da década de 1940, uma praia
da Califórnia, Santa Monica, começou a ser cada vez mais frequentada por
fisiculturistas que, durante o verão, aglomeravam-se diante da multidão de
banhistas para praticar seus exercícios com os pesos livres colocados à vista
do público. Essa espécie de exibicionismo muscular ficou tão famosa que
recebeu o nome de Muscle Beach. Um dos frequentadores dessa praia, afi-
cionado por pesos e músculos, Joseph Gold, resolveu abrir uma academia de
musculação na região (Venice Beach) denominada Gold’s Gym. Essa acabou
tornando-se uma espécie de meca dos fisiculturistas e modelo para as outras
academias que vieram a se espalhar pelo mundo. O vencedor do concurso
Mr. America em 1940 e 1941, John Karl Grimek, era assíduo frequentador
dessa região. Grimek foi um propagandista do treinamento com pesos em
academias tentando sempre demonstrar – ao contrário do que muitos diziam
(como Charles Atlas, por exemplo) – que o treinamento com peso não oferecia
qualquer tipo de problemas se fosse realizado adequadamente. Na época, os
detratores da musculação diziam que os treinamentos com pesos prejudicavam
a coordenação motora e a flexibilidade. Grimek tentou aprimorar poses que
exigiam elevado grau de flexibilidade e coordenação. A partir desse período
(década de 1940 em diante), devido ao intenso treinamento com pesos em
academias, o físico daqueles que praticavam o bodybuilding começou a se
distinguir efetivamente da forma de outros esportistas e desportistas. A par-
tir de John Grimek, a musculatura dos fisiculturistas tomou, cada vez mais,
identidade própria, devido à baixa porcentagem de adiposidade e grande
volume, ocasionado pelo aprimoramento de exercícios e dietas.
Paralelo a todo esse processo, ocorria um forte desenvolvimento da
indústria da forma e do espetáculo nos EUA. O cultivo da forma física tor-
nava-se, cada vez mais, expressivo alimentado pela crescente propaganda
da saúde. Se, durante o século XIX, ter força e físico musculoso estava
22
- Conforme propaganda veiculada na revista How to Achive Nerves Like Steel Muscles Like Iron do próprio
Jowett, publicada em Nova York em 1950.

58
DROGAS DE APOLO

relacionado ao acaso e à genética – o indivíduo já nascia diferente dos


outros, por isso apresentava-se como exótico (BOGDAN, 1994) –, a partir
do início do século XX, cresce a concepção de que qualquer um, de posse
de métodos desenvolvidos por experts, poderia transformar seu corpo para
melhor. De fato, nas propagandas da época, percebe-se que a ideia é a de
que só não transforma seu corpo quem não quer. Em conformidade com
esse movimento, a AAU (American Athlete Union) havia fundado, em 1939,
o campeonato Mr. America com suas regras definidoras das competições
de bodybuilding. Porém, foi um empresário canadense, Ben Weider, que
em 1946 consolidou as estruturas das competições de fisiculturismo atual,
fundando a IFBB (International Federation of Body Builders).
O irmão de Ben Weider, Joe Weider, também envolvido com o culto
à forma física, chegou a vencer algumas competições de fisiculturismo
durante a década de 1950 e passou a publicar revistas com entrevistas e
fotos de fisiculturistas, dicas de treinamento com pesos e alimentação.
Joe Weider, seguindo a tradição dos atletas empresários, também criou
o método Weider de treinamento e boa forma, o qual, além de exercícios
físicos, promovia o que denominou sua filosofia de vida. Um conjunto de
princípios que lembram os principais mandamentos do Velho Testamento.
Princípios escritos nos do grupo Weider. Dentre todos aqueles que inves-
tiram no mercado da musculação e fisiculturismo, nenhum conseguiu
superar o êxito dos irmãos canadenses Ben e Joe Weider criadores de um
império da forma física. Publicações (os principais periódicos sobre fisicul-
turismo do mundo atual são de propriedade de Joe e Ben Weider), fábricas
de pesquisa e produção de suplementos alimentares, além de fábricas de
pesos e máquinas para academias no mundo todo. Joe Weider também foi
o criador, de fato, da profissão de bodybuilder, sendo, por isso, considerado
o pai dos bodybuilders. Ainda em 1965, empreendeu o primeiro campeonato
profissional, até hoje considerado por muitos o principal campeonato de
bodybuilding do mundo, o Mr. Olympia, que desbancou, à época, as com-
petições das organizações rivais, incluindo o Mr. Universe sustentado pela
Nabba (National Amateurs Body Building Association), dominando, a partir de
então, o cenário do fisiculturismo americano e internacional. As empresas
Weider ainda hoje dominam grande parte do cenário mundial dos negó-
cios de bodybuilding. A IFBB tem atualmente mais de 100 países membros
filiados e é a sexta maior federação esportiva do mundo; e o Mr. Olympia
continua o principal campeonato de fisiculturismo da atualidade (EMERY,
2003; SCHWARZENEGGER; DOBBINS, 2001).
59
CÉSAR SABINO

Joe Weider também participou do lançamento da carreira de um jovem


austríaco que se tornaria o principal expoente do fisiculturismo de todos os
tempos, despontando ainda em jovem nos campeonatos do Mr. Olympia.
Vencedor de sete títulos até 1980, ele era um imigrante de nome Arnold
Schwarzenegger, nascido em 30 de julho de 1947, na área rural da Áustria.
Schwarzenegger veio a tornar-se o maior mito do bodybuilding de todos
os tempos, sendo atualmente adorado como um semideus em academias
de musculação do mundo inteiro que não raro estampam suas fotos nas
paredes. Dono de personalidade carismática e capaz de manter contatos
pessoais com os indivíduos mais importantes e influentes do mundo artístico
e político, Arnold Schwarzenegger consolidou de vez a popularidade do
fisiculturismo ao levar o mundo e o corpo das academias para as telas de
Hollywood. Além de toda apologia ao trabalho muscular, Schwarzenegger
também tornou-se empresário de sucesso do fisiculturismo, criando em
1989 o campeonato anual denominado Arnold Classics que em 2002 pagou
U$ 300.000,00 aos vencedores masculinos e femininos de suas competições.
A figura de ícone-mor do fisiculturismo encarnada por Schwarze-
negger não se deve apenas às suas atitudes e tamanho físico. Toda a conjuntura
sócio-histórica dos anos 80 do século XX, com a política individualista neoli-
beral, confluiu para a consolidação do mito. A adoração do físico musculoso
e sua relação com a representação de saúde se deve, dentre outros fatores,
de acordo com Gontijo (2002), ao surgimento devastador da epidemia de
Aids e da aparência esquálida que os doentes de então apresentavam; por
isso, de acordo com o autor, o público gay rapidamente adotou a estética e
o ideal musculoso dos bodybuilders como veículo de aceitação social. Esse
processo (com a expansão da doença) ampliou-se para outros grupos, pro-
piciando, a partir de então, com toda sua prescrição de exercícios físicos
para a “manutenção da saúde” e a “qualidade de vida”, a crescente expansão
do bodybuilding. A esse fator também pode ser somado o surgimento da era
Reagan, que consolidou o poder dos Estados Unidos como império mundial
da demonstração de força e da conquista bélica como amostra desse poder
e a consolidação hollywoodiana da figura de heróis conservadores (Rambo,
Conan o Bárbaro e, principalmente, o Exterminador do Futuro), além do
surgimento da era yuppie, com jovens dedicados ao trabalho, lucro e cultivo
da aparência musculosa e supostamente saudável e livre de vícios.
Schwarzenegger, nesse âmbito, passou a encarnar a realização do
sonho americano. Assim como Charles Atlas, foi um imigrante que chegou
praticamente sem nenhum dinheiro à América e tornou-se não apenas
60
DROGAS DE APOLO

milionário, mas famoso astro de Hollywood. Entrou para um dos clãs


mais influentes da política norte-americana, casando-se com a sobrinha (a
jornalista Maria Shriver) do ex-presidente John Fitzgerald Kennedy. Após
uma vida de sucessos no esporte, no cinema e nos negócios, entrou para a
política e conseguiu eleger-se duas vezes seguidas pelo Partido Republicano,
em 8 de outubro de 2003, depois em 5 de janeiro de 2007, governador do
estado da Califórnia, com 55% de votos contra 45% do seu adversário Gray
Davis, do Partido Democrata. Arnie, como é chamado pelos estadunidenses,
sustenta uma postura política conservadora, aliado, à época, às políticas de
George Bush filho do qual também foi presidente do Conselho de Saúde
Física e Desportos de 1990-1993. Ao ser eleito, disse aos jornalistas do Daily
Telegraph: somente na América um agricultor austríaco sem um tostão pode
construir uma vida tão fantástica.
Fato é que a imprensa muito contribuiu para a consolidação do campo
fisiculturista, ao menos nos EUA, reforçando as narrativas heroicas dos
atletas com talento para se promoverem via esse dispositivo. Edgar Morin
(1987) escreve que a cultura de massa sustentada pelos aparelhos midiáti-
cos produz “olimpianos” seres que vendem a imagem de sobre-humanos,
sejam campeões esportivos, astros e estrelas de cinema, políticos ou outros
artistas populares célebres. A imprensa reveste essas pessoas de um caráter
mitológico ao mesmo tempo que busca exaltar supostos acontecimentos de
suas vidas particulares para que esses novos mitos possam ser identificados
pelos consumidores de suas imagens e produtos. O caso Schwarzenegger é
o exemplo maior deste procedimento no fisiculturismo.
A história de vida de Arnold Alöis Schwarzenegger, nascido em
Groz, Áustria em 1947, ao menos aquela que é veiculada pela imprensa,
encarna mitologicamente toda a lógica inerente à ética protestante do
esforço, da obstinação e do trabalho – embora fosse de origem católica.
Filho de um policial que era ex-membro do Partido Nazista, aos 15 anos,
começou a levantar blocos de concreto com o objetivo de trabalhar sua já
avantajada massa muscular e a sonhar em ir para os Estados Unidos, mais
especificamente para a Califórnia. Em 1968 chegou lá, sem ter fluência no
idioma e sem dinheiro, com o objetivo de tornar-se figura de destaque no
fisiculturismo, campo dos esportes que estava se consolidando. Começou,
na companhia de um jovem imigrante italiano, Franco Columbo, a exercer
a função de pedreiro nas mansões de Los Angeles. Percebendo que não con-
seguia arrumar trabalho, mesmo cobrando mais barato que os outros, partiu
para outra estratégia que apontava já para a percepção de que, na sociedade
61
CÉSAR SABINO

americana dos espetáculos e simulacros, mais vale a propaganda, a forma,


que o conteúdo: colocou o anúncio “pedreiros europeus especializados” e
passou a cobrar mais caro do que toda a concorrência.
Em pouco tempo, já havia amealhado, com seu sócio, um milhão
de dólares, e fundado uma empresa de construção. Os dois imigrantes,
nesse ínterim, continuavam treinando e participando de campeonatos de
fisiculturismo. Schwarzenegger começou a vencer os principais concursos
aplicando o dinheiro que recebia como prêmio. Ao contrário da maioria
que fazia fortuna na Califórnia em sua época, não comprou uma mansão
Californiana, e sim um prédio de apartamentos para alugar. Dessa forma,
passou a viver em um pequeno apartamento e usar o aluguel que lhe paga-
vam para cobrir a hipoteca do prédio. Em seu primeiro filme da série O
Exterminador do Futuro, Schwarzenegger disse apenas 73 palavras. Sempre
enfatizou que nunca pretendeu ser ator. Seus filmes são apenas diversão e
não arte, como sempre reiterou. E foi com a imagem que se tornou um astro
de fama internacional. Schwarzenegger demonstra articular um dos mais
puros exemplos de ação racional com relação a fins ao modelo de análise
weberiana (WEBER, 1997).
Por outro lado, seu sucesso apenas foi possível pelo fato de viver
em uma era em que a administração imagética faz parte das práticas e
representações vigentes nas sociedades. Sempre soube escolher ou criar
papéis em que sua carência dramática não faria diferença – seu principal
personagem é um robô. Soube, desde sua época de atleta, calcular todos os
meios possíveis para tornar-se campeão, buscando aliar-se e relacionar-se
com pessoas que poderiam ajudar em sua projeção para o sucesso. Por
meio de seus papéis no cinema, é possível perceber como ele diversificou
atividades e maximizou lucros. Nesse processo de construção imagética, o
campeão de fisiculturismo que chegou a governador demonstra que soube
sempre calcular os meios para atingir seus fins fazendo política, partidária
ou não. Encarna, dessa forma, o modelo de self-mademan, espécie de ás
daquilo que se tornou o cerne da ação na era dos simulacros e das imagens:
o marketing pessoal. A história de sua vida está diretamente relacionada ao
desenvolvimento e expansão do bodybuilding pelo mundo, além de constituir
um prisma pelo qual uma época pode ser analisada.
O ícone-mor do fisiculturismo pode sugerir, para aqueles que tentam
analisar sua carreira, a forma como os mecanismos disciplinares se insta-
lam no corpo e o perpassam reproduzindo-se. Demonstra, em entrevistas,

62
DROGAS DE APOLO

filmes, livros e manuais de exercícios, técnicas de fisiculturismo (muitas


desenvolvidas ou aprimoradas por ele), que podem ser percebidas como
“representando uma maquinaria de poder que esquadrinha [o corpo], o
desarticula e o recompõe [em] uma anatomia-política que é também uma
mecânica do poder” (FOUCAULT, 1987, p. 126), desenvolvida com o pro-
pósito de produzir o aumento das habilidades musculares submetendo o
corpo à obediência e à manipulação e aprofundando sua sujeição. Contudo o
processo não apenas submete o corpo, como também o torna útil, aplicável,
maximizado esteticamente e submetido aos polifônicos e mesmo paradoxais
discursos da saúde. Essa articulação micropolítica não deixa, como Foucault
(1990) demonstrou, de se relacionar a uma dimensão macropolítica e utópica:
[...] o corpo humano é o ator principal de todas as utopias.
Afinal, uma das mais velhas utopias que os homens contaram
para si mesmos não é o sonho de corpos imensos, desmesurados,
que devorariam o espaço e dominariam o mundo? É a velha utopia
dos gigantes que encontramos no coração de tantas lendas
na Europa, na África, na Oceania, na Ásia, essa velha lenda
que há tão longo tempo nutre a imaginação ocidental, de
Prometeu a Gulliver (FOUCAULT, 2013, p. 18, grifo meu).
Esses micropoderes, ao se constituírem de forma capilar ou molecular
em instituições e locais específicos que são suas extensões organizacionais
– no caso as academias de musculação e fitness –, administram aspectos da
vida social refletidos nos registros molares da sociedade alimentando sonhos,
ideologias e utopias23. A passagem de Schwarzenegger de uma dimensão
micropolítica cotidiana para aquela da política partidária não deixa de ser
reflexo de uma articulação possível do biopoder e da biopolítica, pois “o
corpo [...] está diretamente mergulhado num campo político” (FOUCAULT,
1987, p. 27), o que representa claramente a ligação direta com a esfera
micropolítica e macropolítica. Portanto,
[...] ter-se-ia, por um lado, uma espécie de corpo global, molar,
o corpo da população, junto com toda uma série de discur-
sos que lhe concernem e, então, por outro lado, e abaixo, os
pequenos corpos, dóceis, corpos individuais, os microcorpos
da disciplina. (FOUCAULT, 1993, p. 124).

23
Vale ressaltar que para Karl Mannheim (1976, p. 66-67), a diferença, por vezes tênue, entre a utopia a qual
apresenta caráter mobilizador, transformador e mesmo revolucionário, e a ideologia que representaria aspectos de
conservação dos sistemas sociais. O autor, contudo, também destaca que, em todo movimento social que prima pela
transformação da realidade, tendo em vista um ideal inexistente, há uma tendência à ideologização quando principia
a realizar seus objetivos. Em outras palavras: o revolucionário atual pode tornar-se o conservador de amanhã.

63
CÉSAR SABINO

Essas duas dimensões das tecnologias de poder estão profundamente


articuladas e, pode-se dizer, estão presentes na história de vida de Schwar-
zenegger. Sua associação com as políticas de Estado não deixa de ser um
reflexo do poder micropolítico que incidiu, desde cedo, sobre seu corpo,
e que ele desdobrou – sem deixar também de ser por essas forças desdo-
brado – em reflexos macropolíticos. Processos que o construíram como
ícone daqueles que percebem na disciplina do exercício corporal levado à
exaustão, na dedicação física e mental a um propósito, na abnegação e no
cálculo racional o sentido mesmo da existência. Assim, a história de Schwar-
zenegger pode representar o desenrolar de um processo social específico
analisado por Foucault. O autor, ao longo de sua obra, constrói uma teoria
social que pode fornecer instrumentos para a uma melhor compreensão
dos processos de desenvolvimento com o cuidado do corpo.
O exemplo Schwarzenegger de trajetória social e de vida sugere a arti-
culação de micropoderes disciplinares, uma anátomo-política, que permeiam
o cotidiano dos indivíduos nas sociedades complexas. Essa disciplina pode
ser definida como uma arte de distribuição espacial dos indivíduos – o que
seriam, a princípio, essas instituições de bodybuilding e fitness nas quais os
indivíduos constroem e hierarquizam suas potencialidades físicas e estéticas?
–, exercendo seu controle não sobre o resultado de uma ação, mas sobre seu
desenvolvimento. Com efeito, ela implicaria uma técnica de exercício de poder
que exige uma autovigilância constante dos indivíduos rebatida em uma rede
de olhares (panóptico) escrutinadores que regulariam as ações individuais e
coletivas pelo controle, além de outras características, do tempo (FOUCAULT,
1987; RABINOW, 1999; MAIA, 2003). A história de Schwarzenegger é o
exemplo de atualização dessa potencialidade disciplinar cotidiana: “a disciplina
é de suma importância para o sucesso no fisiculturismo. Da mesma forma o
é a capacidade de concentrar-se, de estabelecer uma meta e não permitir que
nada se coloque no seu caminho” (SCHWARZNEGGER; DOBBINS, 2001, p.
243). Um fisiculturista de uma academia de Copacabana certa vez me disse:
[...] cara, o negócio aqui é de dedicação continuada [...] eu sonho
com meus exercícios, com a dieta, com o que eu devo comer e fazer
para crescer, para definir, qual técnica que eu tenho que usar para
expandir o quadríceps, o bíceps, o peitoral... sigo uma dieta rigorosa,
quando o verão vai chegando... eu tenho uma balança para pesar
alimento lá em casa, tudo que eu como, carboidrato, proteína, é
pesado...também não falto ao treino, venho seis vezes por semana,
sempre na mesma hora. (Mário. 35 anos. Instrutor de exercícios).

64
DROGAS DE APOLO

A administração cotidiana do corpo, de sua forma, e do comporta-


mento em contextos de relações de poder (micropolítica), da perseguição de
uma estética lipofóbica (MATTOS, 2012) e de um padrão de saúde radicado
em uma concepção específica de beleza e força muscular sugere a prática
disciplinar de gestão dos corpos individuais ressaltada pelas análises de
Foucault; mas também remete aos seus conceitos de biopoder e biopolítica
visto que a disciplina não está dissociada da atuação de toda uma máquina
abstrata articuladora de dispositivos coletivos de ações voltadas para a suposta
manutenção de uma saúde populacional (FOUCAULT, 1990; DELEUZE,
1995). As práticas corporais parecem assumir, por intermédio dos meios
institucionais e de comunicação, o caráter de dever coletivo voltado para a
busca da otimização da saúde. A figura de Schwarzenegger tem sido tam-
bém emblema de afirmação desse biopoder voltado para o gerenciamento
populacional. Sua vida cotidiana, das academias de musculação à política
na Califórnia, pode esboçar um trajeto que articula as duas dimensões da
tecnologia do poder anteriormente citadas, micro e macropolíticas, mole-
cular (microssocial) e molar (macrossocial), reiterando o ideal liberal de
self-made man. Se o poder disciplinar é aquele que esquadrinha, desarticula
e recompõe o corpo visando a otimizá-lo, extraindo dele sua utilidade por
meio de um saber acumulado pela observação perene em instituições e
organizações específicas, a trajetória de Arnold Schwarzenegger é o exemplo
de um esquadrinhador que empreende seu próprio corpo como vitrine e
empresa para produzir um saber colocado em circulação, por intermédio
de filmes e documentários sobre fisiculturismo, filmes hollywoodianos,
campeonatos, livros e enciclopédia; enfim todo um modelo de empreen-
dedorismo do corpo em torno do corpo em expansão. Por outro lado, esse
aspecto articula-se com o mecanismo molar de aplicação coletiva de saberes
para a saúde, ou seja, políticas de saúde da população ou biopoder definido
como função desdobrada da realidade cotidiana (mecanismos moleculares)
dela não necessariamente se separando. Sua função poderia ser definida
como sendo a de “gerar e controlar a vida dentro de uma multiplicidade
desde que ela seja numerosa (população), e o espaço estendido ou aberto”
(DELEUZE, 1995, p. 79).
Com efeito, a utilização do conceito de campo de Bourdieu pode ser
associada aos conceitos de disciplina, biopoder e biopolítica de Foucault,
ampliando o instrumental teórico para a compreensão de determinados fenô-
menos relacionados à somatização na sociedade atual. O surgimento do campo
do fisiculturismo, com todas as suas práticas específicas de musculação, não
65
CÉSAR SABINO

está dissociado do surgimento dos mecanismos disciplinares e da constituição


da biopolítica e do biopoder – que também podem ser associados ao conceito
de processo civilizatório de Elias. De fato, os campos, sendo dimensões sistê-
micas específicas, estariam ligados a processos de ordem macrossociais que
forneceriam a base de suas articulações. Assim, por exemplo, a consolidação
do fisiculturismo só foi possível de ser realizada no século XIX porque havia
significativo movimento de expansão das tecnologias corporais capitaneadas
pelas políticas dos Estados europeus ocidentais preocupados com a saúde
populacional e com a formação de cidadãos fortes, resistentes e destemidos, ou
seja: “saudáveis”. No número 216 do ano de 1914 da já citada revista La Culture
Physique, o articulista Edmond De Geoff, após criticar a falta de exercícios das
crianças francesas, escreve:
[...] quase sempre o homem é uma cópia do que foi na infância
[...] cuidemos de nossas crianças educando-as [...] tornando-
-as fortes pelo uso dos halteres, habilidosas, tenazes para o
trabalho e para os projetos de construção que preparam os
homens para a grandeza da pátria [...] todos os verdadeiros
descendentes da raça gaulesa me compreenderão [...]. (DE
GEOFF, 1914, p. 14).
Essa preocupação com a saúde populacional e com o futuro da nação
representa o espírito de agenciamento corporal voltado para as políticas
públicas que se fortaleceram a partir da segunda metade do século XIX na
Europa e nos Estados Unidos. Houve um aumento do controle e da busca
de uma espécie de estabilidade social radicada nas potencialidades do corpo
da população. De acordo com umas das teses mais radicais de Foucault, a
associação entre saber e poder se constituiu devido ao processo inicial de
isolamento vigiado que acabou por produzir um conhecimento sobre o
homem – verdadeiro nascimento de homem enquanto conceito –, as ciên-
cias humanas: psiquiatria, psicologia, sociologia etc. (FOUCAULT, 1974).
Essa articulação entre as práticas discursivas e as práticas não discursivas
– relações econômicas, sociais e políticas –, postas em funcionamento no
regime da biopolítica, vincula-se intrinsecamente à emergência do Estado
do bem-estar social na Europa do final do século XIX. A densificação da
malha de relações de poder perpassando o tecido social acompanha outro
estágio de desenvolvimento da acumulação capitalista. Se, por um lado, essas
modulações políticas produzem uma espécie de domesticação do capita-
lismo, por outro lado, implementam os mais insidiosos e sutis mecanismos
de controle social (MAIA, 2003).

66
DROGAS DE APOLO

O processo coletivo de preocupação crescente com o corpo, a saúde


e a vida, produz também um crescente aprimoramento de tecnologias de
gestão populacional e o controle das ações cotidianas individuais. Essas
articulações, como citei anteriormente, entre as dimensões micro e mola-
res, denominadas por Deleuze “máquinas abstratas” (1995), poderiam ser
compreendidas como articulação entre ação e estrutura. O excesso de
biopoder que marca o acirramento atual da disciplina sobre a vida passa
não apenas a organizá-la, mas também a modificá-la, abrindo a possibili-
dade da fabricação de algo vivo. Nesse âmbito, o campo do bodybuilding
não passa de uma manifestação, portanto um exemplo da manifestação
desse biopoder na atualidade, com desdobramentos específicos em cada
sociedade de acordo com suas características próprias. Sua eficácia sobre
os corpos, a proliferação das academias e lojas de suplementos para atletas,
as pesquisas voltadas para o desenvolvimento de substâncias que possam
melhorar o desempenho atlético e a forma corporal, a crescente produ-
ção midiática sobre musculação e boa forma não seriam possíveis sem a
nova organização econômica da saúde, sem os projetos de intervenções
genéticas e aprimoramento de fármacos. A ritualização crescente do uso
dessas drogas e fármacos específicos entre os praticantes de esportes com
o intuito de melhorar sua condição físico-estéticas se processa também
nesse movimento de dominação e biopoder atual em busca da criação de
um supercompetidor.
A tentativa de análise desse grupo de fisiculturistas de academias
de musculação do Rio de Janeiro pode, talvez, sugerir algumas tendências
sociais específicas de uma época em que a corporeidade tem grassado entre
as camadas médias urbanas cariocas; mas não apenas. Até a década de 60
do século XX, o bodybuilding era visto como sinal de capacidade, disciplina
moral, densidade emocional e sentimental representada na concepção
de homem integral e integrado (participante dos ideais de nação, família,
política e progresso), sendo o corpo exercitado o signo de lealdade e fideli-
dade, abnegação e tenacidade, companheirismo e sociabilidade – por mais
ambíguas e obscuras que tais categorias pudessem ser. A partir da década
de 80 do mesmo século, o surgimento de outro sentido ligado às práticas de
musculação se fez presente. Na era do “marketing pessoal”, na qual a lógica da
economia monetária do lucro (em geral, imediato) invade progressivamente
os espaços que antes eram das relações solidárias; a forma física basta a si
mesma e a imagem do corpo é a tradução da capacidade imediata de viver
mais e intensamente, consumir ao máximo os prazeres da existência, ostentar
67
CÉSAR SABINO

juventude e beleza perenes. Corpo-produto-empresa consumidor de outros


corpos-produtos, vetores de novas hierarquias estéticas relacionadas a um
mercado que busca se flexibilizar abolindo fronteiras para mais acumular
e concentrar riquezas.

1.2 A GESTA DE ARNOLD SCHWARZENEGGER

Dando prosseguimento ao mito e à imagem paradigmática do herói,


tentaremos mostrar que nossa sociedade autodenominada moderna, apre-
senta (como qualquer outra denominada não moderna) sua mitologia em
jornais, redes sociais, filmes, shows de música, eventos esportivos etc. A
presença desses ícones remete à noção de que eles são referências de ação
e respaldo dos valores constitutivos desta sociedade. Mas quem é o herói?
Segundo alguns estudiosos, ele é aquele que vive por sua causa, a social,
intermediário entre os deuses e os homens, guardião, defensor, aquele que
nasceu para servir (BRANDÃO, 1993; HELAL, 1998). Campbell (1995), por
exemplo, ressalta que o herói parte do mundo cotidiano aventurando-se
pelas regiões sobrenaturais onde enfrenta forças fabulosas e arrasta vitórias
decisivas, regressando de seu périplo com o poder de conceder dádivas aos
seus semelhantes.
Ele é aquele que ultrapassa as condições medianas da existência
comum, abrindo caminho para o novo e trazendo, com seus atos, a glória
e a redenção de um povo ou grupo social específico. Para que a trajetó-
ria heroica seja bem sucedida, é necessário que as pessoas acreditem nas
representações que os feitos do herói reiteram (HELAL, 1995). Portanto,
o mito é parte de um sistema no qual as estruturas subjetivas (representa-
ções, valores, normas) e objetivas (a prática cotidiana dos grupos sociais)
interagem (re)produzindo as condições de existência de uma determinada
sociedade. O herói é a síntese das várias representações coletivas, ele é o
emblema de um grupo e de uma época. Uma breve tentativa de análise do
mito mais difundido entre os fisiculturistas, o das realizações de Arnold
Schwarzenegger (Arnold como é referido por todos os fisiculturistas) será
efetuada adiante. Essa narrativa, com algumas variações, é veiculada tanto
em publicações especializadas quanto nas conversas dos bodybuilders das
academias. Não se questiona aqui a veracidade dos fatos que compõem a
narrativa, mas reitera-se o aspecto mítico da construção dela.
Em uma pequena cidade dos Alpes austríacos, vivia um jovem que
desde criança adorava fazer exercícios e levantar pesos. Seu pai, um poli-
68
DROGAS DE APOLO

cial pobre, reunia os filhos, quase todos os dias, para a prática de flexões
de braço, caminhadas pelas montanhas e abdominais. Ensinava-lhes que
a abnegação, a disciplina e o trabalho duro eram o caminho certo para
alcançar a felicidade, sendo os exercícios item fundamental nessa busca.
Certo dia, o irmão mais jovem do herói morre em um acidente de carro.
Muito triste, ele se dedica ainda mais aos exercícios prometendo a si e aos
pais alcançar o mais rápido possível o sucesso. Nesse processo é um filho e
aluno exemplar: exercita-se muito, tira notas excelentes no colégio e ajuda
sua mãe a fabricar conservas.
Quando se torna adolescente, Arnold percebe que o lugar onde vive é
escasso em oportunidades de trabalho. Se continuar ali, não irá muito longe.
Quer vencer na vida, tornar-se famoso, ajudar seus pais e não levar uma vida
de dificuldades como eles levavam. Aos 15 anos, toma contato com os filmes
vindos da América, fica fascinado com todo o glamour que cerca os astros
norte-americanos, principalmente dos personagens que demonstram força
e poder, e passa a almejar ainda mais a fama. Ainda bem jovem, viaja para a
Londres para treinar melhor o fisiculturismo e melhorar sua compreensão
da língua inglesa. Após um período, fica sabendo que na América existem
também campeonatos de bodybuilders ainda mais aprimorados, criados por
um canadense, descendente de germânicos como ele, Joe Weider, que havia se
tornado empresário famoso e rico cultivando seus músculos. Arnold resolve
então que deve ir para a América, atrás da fama e do sucesso. Está decidido
a tornar-se campeão de fisiculturismo. Em 1968, chega aos Estados Unidos
com apenas alguns trocados no bolso, uma grande massa muscular e quase
nenhum conhecimento de inglês. Na Áustria não havia desafios para mim,
diz Arnold, a América, ao contrário, era um grande desafio, era o futuro.
(SCHWARZENEGGER; DOBBINS, 2001).
Em suas primeiras competições em Miami, forças adversas atrapa-
lham seu caminho em direção à glória. Não consegue se preparar de forma
adequada, devido à falta de recursos, e acaba perdendo as disputas. Discipli-
nado, não desiste facilmente, tenta fazer contatos com pessoas influentes,
até que, em seu auxílio, intervém o sumo sacerdote do fisiculturismo, Joe
Weider, que percebe seu talento e o convida para ir com ele à Califórnia –
meca americana do músculo – dispondo-se a auxiliá-lo nos treinamentos e
a investir nos campeonatos e apresentações. Rapidamente, o herói passa a
ganhar campeonatos e a ficar cada vez mais famoso. Torna-se o primeiro a
ganhar seis vezes consecutivas o título mundial de Mister Olympia e passa
a ser reconhecido no mundo inteiro pelos praticantes de musculação. Em
69
CÉSAR SABINO

1972 estreia no cinema com o documentário Pump Iron, no qual relata sua
trajetória e a de outros fisiculturistas famosos, como Lou Ferrigno e Frank
Columbo. Nesse filme são dadas dicas para a construção de um corpo mus-
culoso: dedicação, trabalho intermitente, abnegação, superalimentação e fé
em seus próprios objetivos. A fórmula para a construção do self-mademan
dos músculos estava, ao menos supostamente, traçada. Logo em seguida faz
o papel de Conan, o bárbaro, em filme homônimo, e torna-se ainda mais rico
e famoso. Daí em diante, Schwarzenegger passa a ser considerado a maior
autoridade em fisiculturismo do mundo, atuando em mais filmes que são
sucessos de bilheteria e sendo convidado pelo presidente dos EUA (George
Bush I) para ocupar o cargo de consultor de assuntos para a Educação Física.
Nesse ínterim, Schwarzenegger casa-se com uma destacada aristocrata da
famosa família Kennedy entrando para o high society. Apesar de tornar-se
cidadão americano, o herói dos músculos retorna glorioso em visita a sua
terra, alardeado como o filho pródigo dos Alpes.
Além de tornar-se o maior ícone do bodybuilding, astro de Hollywood
e empresário bem sucedido, Arnold Schwarzenegger conseguiu, em 8 de
outubro de 2003, coroar sua carreira de sucesso tendo sido eleito gover-
nador da Califórnia, o estado mais rico dos Estados Unidos. A façanha do
herói começa com alguém de quem algo foi usurpado ou que percebe que
está faltando algo entre as experiências cotidianas das pessoas comuns na
sociedade. O herói parte, então, para uma série de aventuras, quer para
recuperar o que tinha sido perdido, quer para descobrir algum elixir doa-
dor da vida. Normalmente faz um círculo com partida e retorno glorioso.
Em biografias de heróis midiáticos é comum a presença de uma perda ou
dificuldade séria na infância. No caso, a pobreza, a perda do irmão, a vida
difícil nos Alpes. Essa construção da narrativa, com ênfase nas dificulda-
des, torna-se o fio de identificação do ídolo com as pessoas comuns (fãs,
seguidores, admiradores).
Em sociedades capitalistas, nas quais a mídia exerce uma forte influên-
cia, a princípio, podem ser destacados dois tipos de heróis: os heróis por
acaso e os heróis preparados; os primeiros são lançados heróis, defrontados
com a aventura, que neles desperta uma qualidade que ignoravam possuir.
O segundo tipo é o do self made man, aquele que persegue com todas as suas
forças a glória. As provações, nesse processo, são concebidas para ver se o
pretendente a herói pode realmente ser um herói. O passado difícil, cheio de
provações, repleto de forças maléficas, é ressaltado e superdimensionado em
todas as gestas (HELAL, 1998). O mito de Arnold, ampliando veiculado de
70
DROGAS DE APOLO

forma intermitente nas revistas e filmes, e contado pelos fisiculturistas das


academias, reflete esse processo estrutural inerente às sagas míticas. Arnold
vive uma infância difícil, tendo que partir do lugar onde nasceu para iniciar
sua aventura. Lévi-Strauss mostra que, nos mitos, o herói tende a se separar
dos seus realizando um périplo que é seguido pela maioria daqueles que
almejam o sucesso. O mito estabelece, então, uma regra, um exemplo, para
aqueles que objetivam realizar o mesmo processo (LÉVI-STRAUSS, 1976).
Estudando mitos ameríndios, o autor nos mostra outros dois tipos
de heróis, o criador e o demiurgo, e o administrador e organizador. Por
exemplo, a organização social dos Bororo está dividida em duas metades
denominadas Tugare e Cera. Seus heróis são provenientes dessas metades;
os heróis Tugare são demiurgos e os Cera administradores. Os Tugare
[...] são em geral responsáveis pela existência das coisas: rios,
lagos, chuvas, vento, peixes, vegetação, objetos manufaturados
[...] os heróis Cera intervém num segundo momento, como
organizadores e administradores de uma criação cujos autores
foram os Tugare. (LÉVI-STRAUSS, 1976, p. 55).
Comparando com o mito bodybuilder aqui analisado, é possível dizer
que o papel exercido por Joe Weider24 é o do herói demiurgo, enquanto
Arnold Schwarzenegger surge como organizador e divulgador maior.
Weider, um rapaz de entregas, tornou-se um empresário multimilionário
do fisiculturismo, criando laboratórios de pesquisas e fábricas de suple-
mentos alimentares e de halteres e máquinas de musculação, academias e
concursos de boa forma e bodybuilding que movimentava, em 2003, mais
de 300 milhões de dólares. Além de ter criado inúmeras publicações sobre
bodybuilding (livros e revistas mensais), institucionalizou o fisiculturismo
nos EUA e já era reconhecido como uma das maiores autoridades quando
ajudou Arnold em sua aventura americana. Esse último é hoje conhecido
pelo seu empenho em expandir e preservar as conquistas de Weider levando
“a saúde e boa forma a todos” por meio de suas próprias empresas e de seus
próprios campeonatos, além dos de Weider. Arnold Schwarzenegger começou
seguindo os conselhos e os métodos inventados por Weider, seu protetor, e
hoje é o seu maior aliado, reproduzindo, em seus próprios métodos, tudo
24
Weider é o fundador, ou consolidador, do fisiculturismo profissional influenciado direta ou indiretamente pela
ética protestante. É o patrono do campo profissional consolidado nos EUA. No editorial de suas revistas mensais
de musculação (Muscle e Fitness, por exemplo), aparece o princípio Weider de vida (principles of the Weider lifestyle):
busque a excelência, exceda a si mesmo, ame seus amigos, fale a verdade, pratique a fidelidade e honre seu pai e
mãe. Esses princípios o ajudarão a tornar-se mestre de si mesmo, o farão forte, darão esperança e o colocarão no
caminho da grandeza.

71
CÉSAR SABINO

o que Weider lhe ensinou e indicou. A ética produzida pelos dois heróis do
bodybuilding está resumida em inúmeras publicações produzidas por eles
e por seus admiradores. Essa visão de mundo consiste em uma mistura
de cientificismo, conselhos bíblicos e prática capitalista, radicando-se nos
itens fundamentais constitutivos do imaginário das sociedades capitalistas
atuais. A seguir, um trecho do editorial da revista mensal Muscle e Fitness,
presente em todas as edições:
Este estilo de vida pauta-se pela educação e o desenvolvi-
mento da pessoa em sua totalidade – corpo, mente e espírito.
O desenvolvimento muscular supervisionado desempenha
um importante papel na nossa sociedade e Muscle and Fitness
serve como orientação. Nossos princípios estão fundados
na resistência progressiva, treinamento com peso, nutrição
apropriada, condicionamento aeróbico, boa forma, controle
de stress e recuperação. O músculo é a marca plena da saúde e
da boa forma na ética Weider – além de ser a marca da cons-
trução da imunidade, do funcionamento adequado do meta-
bolismo, e do desaceleramento do processo de envelhecimento. O
superior desenvolvimento muscular acompanhado do apelo visual
representa um alto estado de saúde livre da gordura. Boa forma
representa músculos em ação pautados na fisiologia do exer-
cício que auxilia a reduzir os múltiplos fatores de risco para
a saúde que prevalecem em nosso mundo moderno. Deixe
o estilo de vida Weider fazê-lo forte, belo, cheio de energia,
com melhor saúde e mais eficiente, dando simultaneamente
a você uma autoimagem perfeita. Deixe o bodybuilding ser
parte de sua vida” (1998, p. 12, grifo meu).
Essas regras ditadas pelos mitos da musculação descrevem o que
vem a ser boa saúde, beleza, sucesso e longevidade, prescrevendo ações que
produzem e reproduzem a realidade não apenas dos fisiculturistas, pois
gradativamente tais preceitos têm se tornado mandamento divino, com
respaldo médico, para toda a sociedade, cada vez mais, preocupada com a
saúde e a beleza. Esta héxis, ou habitus, corporal surge enquanto distinção
e emblema de excelência, demarcando, nos sistemas classificatórios das
sociedades complexas, o espaço social no qual dominantes e dominados
encontram seus lugares específicos (BOURDIEU, 1976).
Ter sucesso, ser bem sucedido economicamente, honrado, saudável,
másculo e belo, está subsumido às práticas e aos estilos de vida relacionados
ao cuidado do corpo e de si. Essa ética muscular protestante radica-se em um
sistema simbólico no qual a muscularidade e a ausência de gordura aparecem
72
DROGAS DE APOLO

como signos de perfectibilidade e status elevado. Nesse processo de busca


pela excelência inscrita nos músculos e na pele – processo respaldado pela
autoridade científica –, os indivíduos alimentam um sistema de produção
de bens simbólicos de consumo que os atrela a um processo de reprodução
de valores radicados na aparência. Nunca na história, os indivíduos estive-
ram, em tão grande quantidade, submetidos a uma dominação estética de
tamanha proporção. Se, por um lado, a ciência médica desenvolveu técnicas
e tecnologias para curar e preservar vidas; por outro, ela viabilizou a criação
de uma nova dimensão da dominação construída pelas representações de
juventude, beleza e saúde. Conceitos e ideais que devem ser perseguidos de
forma incansável por todos aqueles que querem ser aceitos como símbolos
de superioridade, sucesso e excelência. Luta inglória, já que os próprios
itens constitutivos dessa estética são voláteis e efêmeros, dissolvendo-se
rapidamente. Sem embargo, a saga dos herói do bodybuilding é aquela do
self-mademan ou supersujeito livre e racional, arguto que sai do nada e faz,
por meio de sua disciplina e força de vontade muito acima da média, do
seu corpo a empresa transnacional com a qual conquista a fama e a riqueza
mundial – se ele pode, qualquer um pode. Seu sucesso advém de seus méri-
tos pessoais. Sua imagem hipermáscula, milionária, autorreferida, reflete
autoridade, força, independência e dominação, como ícone conservador
dos valores, das práticas e representações dos mitos neoliberais.

73
CAPÍTULO II

No mundo contemporâneo em que o Ser se tornou de uma leveza


insustentável, pois não impõe nenhuma autoridade que possa
prescrever e na qual se possa crer, nem natureza, nem Deus, nem
tradição, nem imperativo kantiano, apenas o eu pode conferir-se leis e
apresentar-se como único ponto de apoio; tudo desapareceu, mas restou
o eu [...] eu cara a cara com o que me nega, a morte, que não é nada se o
eu decide que, para ele, não é nada.
(Paul Veyne)

2 O SURGIMENTO DOS ESTEROIDES

Por intermédio do avanço tecnológico e da expansão das telecomu-


nicações, a imagem da perfeição corpórea expande-se para o cotidiano
de várias culturas. A suposta imperfeição física dos indivíduos comuns
passa a defrontar-se, a cada instante, com imagens de “corpos perfeitos”
(musculosos, magros, bronzeados, sempre expressando felicidade) em telas
de cinemas, redes sociais, computadores e outdoors. Imagens de modelos,
minuciosamente selecionados, retocadas e aperfeiçoadas por técnicas de
computação gráfica tendem a induzir à perseguição desse tipo de corpo
sob a égide do consumo e do hedonismo autoilusivo (WEST, 2000). Essa
exaltação das imagens produz culturas que investem na construção física
levando milhões a consumirem cotidianamente todos os tipos de produtos
materiais e simbólicos: remédios, filmes, revistas, exercícios, dietas e suple-
mentos alimentares, movimentando a gigantesca e crescente Indústria da
Saúde. As academias de musculação surgem como usinas de produção da
forma, fabricando corpos para serem consumidos pela lógica do mercado.
Essas formas musculosas apresentar-se-iam como espécie de totens midiá-
ticos, visto que a publicidade exalta esses modelos contribuindo, assim,
para a construção da identidade das tribos urbanas que se identificam com
o paradigma apresentado.
Seguindo a lógica similar a do totemismo, a publicidade, surge como
um operador totêmico (ROCHA, 1995) dando sentido ao processo de
produção física direcionado para o mundo do consumo. Assim como um
“selvagem” saberia identificar o comportamento de uma pessoa do clã do
75
CÉSAR SABINO

Urso ou da Águia, podemos identificar, por meio da aparência ou da conduta,


alguém que é fisiculturista ou “marombeiro”, a partir dos signos que porta.
Com efeito, “os estilos de vida atuais, hierarquias de valores e modelos de
comportamento possuem na publicidade um dos mais lúcidos espaços de
divulgação didática” (CANEVACCI, 2001, p. 154). Como produto do pro-
cesso de aprimoramento dos saberes e práticas sobre a saúde e a fisiologia
humana, os esteroides anabolizantes sintéticos apresentam-se como fárma-
cos25 (drogas) específicos que hoje têm sido consumidos de forma crescente
com o objetivo de modificar a morfologia individual. Essas substâncias
surgiram de pesquisas farmacêuticas realizadas no final do século XIX e
primeira metade do século XX, tornando-se itens de consumo daqueles
que procuravam rejuvenescimento, vigor, ganho de força e massa muscular.
No dia 1 de junho de 1889, Charles Edouard Brown-Séquard, um
proeminente médico e cientista francês, anunciou à Sociedade de Biologia
de Paris que estava descobrindo uma terapia rejuvenescedora do corpo e
da mente. O professor de 72 anos estava experimentando, em si mesmo,
injeções de líquidos tirados dos testículos de cachorros e porcos da guiné.
Essas injeções, segundo seu próprio relato, haviam aumentado sua força
física e sua energia intelectual, fazendo recrudescer suas constipações e
“aumentando o esguicho de sua urina” (HOBERMAN; YESALIS, 1995, p.
76). Mediante suas experiências, Brown-Séquard percebeu a existência e a
importância de substâncias liberadas por determinadas glândulas (no caso
específico os testículos) e de sua atuação como reguladores fisiológicos.
Tornou-se, portanto, um dos fundadores da moderna Endocrinologia.
Após os experimentos de Brown-Séquard, uma verdadeira corrida
em busca do isolamento dos hormônios (nome dado a tais substâncias em
1905) tomou conta do cenário científico. Em 1896, dois químicos austríacos,
Oskar Zoth e Fritz Pregl, perceberam que as injeções de extratos testiculares
de touros produziam um significativo ganho de força em seres humanos.
Eles injetavam tais substâncias em si mesmos e mediam, por meio de um
instrumento denominado ergógrafo de Mosso, a força de seus dedos médios.
Diante de tais resultados, esses cientistas passaram a realizar palestras
nas quais afirmavam que essas substâncias poderiam ser consumidas por

25
É conhecida a ambiguidade da palavra fármaco: phamakón em grego significa, ao mesmo tempo, remédio
e veneno. Droga, expressa tanto a ideia de medicamento quanto de substância entorpecente, como ainda de
coisa desagradável e de pouco valor. Outro termo, tóxico, origina-se do grego toxon, que representa uma tigela
ou recipiente ondese colocava veneno para banhar a ponta das flechas. Venenum, em sua origem latina, significa
beberagem, tintura, corante, algo que modifica aquele que o usa (NASCIMENTO, 2003).

76
DROGAS DE APOLO

atletas para melhorar seu desempenho em competições. Rapidamente, os


extratos testiculares apresentaram-se como uma espécie de elixir da força e
da juventude, e equipes de pesquisa, na Europa e nos EUA, foram formadas
para aprimorar as investigações sobre como produzi-los em laboratório.
Antes de se conseguir esse objetivo, várias experiências sobre o uso dos hor-
mônios masculinos foram realizadas. Em 1913 o médico norte-americano
Victor Lespinassse, de Chicago, transplantou um testículo humano para
um paciente que havia perdido os seus e sofria de disfunção sexual. Quatro
dias após a cirurgia, a capacidade sexual do paciente havia sido, segundo o
médico, recuperada. Tais experimentos tiveram continuidade e, em 1920,
outro médico, Leo Stanley, residente da prisão de S. Quentin na Califórnia,
passou a transplantar testículos de animais em presos com problemas de
impotência, diabetes, asma, senilidade, paranoia e gangrena, afirmando que
as operações causavam considerável melhora em seus pacientes. Também,
durante a década de 1920, o médico russo Serge Voronoff realizou trans-
plantes de testículos de macacos em seres humanos. De forma paralela a
tais procedimentos, que logo caíram em desuso; outros pesquisadores
procuravam isolar, de forma sintética, o hormônio testicular. Em 1911
Albert Pezard descobriu que as características sexuais masculinas cresciam
proporcionalmente à aplicação de substâncias testiculares em animais,
percebendo os efeitos androgênicos – masculinizantes – desses extratos.
Durante as duas décadas posteriores, inúmeros cientistas procuraram
aprimorar os estudos sobre efeitos de substâncias androgênicas tentando
isolar o componente químico presente nos testículos de animais e urina
humana. Em 1931, o cientista alemão Adolf Butenandt conseguiu isolar
15 miligramas do hormônio não testicular, que ele denominou Androste-
rona, retirando-os de 15.000 litros de urina de homens que trabalhavam
como policiais. Contudo, a Testosterona, hormônio natural masculino mais
poderoso que a Androsterona, só foi isolada em laboratório por meio da
ação de três grupos de pesquisadores subsidiados pelas grandes companhias
farmacêuticas multinacionais. Em 27 de maio de 1935, Karoly Gyula David
e Ernst Laqueur, financiados pela Organon Company da Holanda, apre-
sentaram o artigo “Sobre o Hormônio Cristalino Masculino Proveniente
dos Testículos – Testosterona”, como resultado de suas pesquisas no isola-
mento da Testosterona. Em 24 de agosto do mesmo ano, os pesquisadores
alemães Butenandt e Hanisch, financiados pela Schering Corporation de
Berlim, apresentaram os resultado de suas pesquisas denominado: “Um
Método de Preparação de Testosterona a partir do Colesterol”; e em 31 de
77
CÉSAR SABINO

Agosto de 1935, os pesquisadores da companhia farmacêutica Ciba, Leopold


Ruizicka e Alfred Wettstein, anunciaram sua descoberta no artigo “Sobre
a Preparação do hormônio Testicular Testosterona (Androsten-3one-17-
ol)”. A testosterona sintética estava inventada, e a patente dessas drogas em
posse das indústrias que financiaram suas descobertas. Ruizicka e Butenandt
receberam, em 1939, o Prêmio Nobel de Química (HOBERMAN; YESALIS,
1995). A partir de então, o mercado do uso de testosterona sintética e seus
derivados cresceu tanto para usos medicinais quanto estéticos; ainda mais
após 1940, ano em que Charles Kochakian descobriu as características
anabólicas da testosterona, ou seja, a facilidade de crescimento muscular
possibilitado pelo uso dela. Após essa descoberta, os fisiculturistas amadores
e profissionais da costa oeste americana, no início dos anos 50 do século
XX, passaram gradativamente a utilizar testosterona para aumentar massa
muscular e força26. Esse uso espalhou-se, a partir da década de 1960, entre
os atletas profissionais e amadores de outros esportes, já sendo comum, à
época, a sua utilização entre alunos de colégios secundários e universidades
americanas. Nos esportes olímpicos, durante o mesmo período, essas subs-
tâncias passaram a fazer sucesso entre atletas do leste europeu comunista
e China, certamente auxiliando-os na conquista de muitas medalhas27. A
partir de 1970, o Comitê Olímpico implementou métodos de testagem
para detectar o uso das substâncias, além de outras similares, por atletas,
banindo dos jogos aqueles descobertos como sendo usuários destas drogas.
Contudo, desde então, um número significativo de atletas de elite e técnicos
tem encontrado meios de burlar esses testes. O que deve ser ressaltado em
todo esse processo é a expansão do uso dessas drogas. A princípio dire-

26
Não é possível afirmar a universalidade do uso de esteroides anabolizantes por parte de todos os fisiculturistas. De
fato, há um movimento do chamado “culturismo natural”, no qual atletas dizem não utilizar qualquer tipo de droga
ou fármaco na construção da forma física. Inclusive, alguns afirmam-se vegetarianos ou mesmo veganos. Contudo,
durante minha pesquisa, não encontrei ninguém nas academias do Rio de Janeiro que procedesse dessa maneira.
27
O uso de esteroides (Dianabol) foi detectado de fato, em 1956, nos jogos de Moscou (POPE; PHILLIPS; OLIVAR-
DIA, 2000). Desde então, o uso ilegal dessas substâncias tem crescido entre muitos atletas, não apenas fazendo parte
dos rituais de treinamento e competições, mas contribuindo também para a formação de uma espécie de indústria
de subversão de testes antidoping. Essa indústria, formada por técnicos, médicos, laboratórios e pesquisadores e
nutricionistas, busca subverter os testes criando substâncias esteroides que não podem ser detectadas, a princípio,
em exames de sangue e urina. O último caso, divulgado em outubro de 2003 na mídia, foi a da tetrahidrogestinona,
ou THG; essa nova molécula reúne os esteroides Gestrinona e Trembolona. Em seu núcleo, há quatro anéis de
benzeno aos quais o methyl e o hidroxyl estão ligados. Grupos adicionais de methyl ou ethyl – átomos de três car-
bonos e seis de hidrogênio foram somados para criar esse novo esteroide. A combinação possibilitou que o novo
esteroide sintético não fosse detectado nos exames tradicionais antidoping. O uso da substância foi descoberto
devido ao fato de um técnico, não identificado, ter feito a denúncia à Agência Americana Antidoping de que atletas
americanos e estrangeiros estavam utilizando uma substância que não era detectada. O técnico enviou uma seringa
com resquícios da substância que foi analisada pelas autoridades que detectaram a nova droga.

78
DROGAS DE APOLO

cionadas para a terapêutica, elas acabaram incrementando ilegalmente os


esportes profissionais e amadores e, atualmente, têm se tornado objeto de
consumo cotidiano de pessoas comuns que buscam otimizar sua aparência.
Esse movimento de pesquisas e descobertas científicas sobre a testoste-
rona está ligado ao desenvolvimento de saberes e práticas relacionados ao
gerenciamento do corpo individualizado, do envelhecimento populacional
e da saúde, concepções surgidas no século XVIII, e que construíram o sen-
timento da necessidade de preservação do corpo, considerado, a partir de
então, pelas culturas ocidentais, local de morada da substancia individual,
mônada isolada do todo social (RODRIGUES, 1999).
Esse saberes e essas práticas aprimoraram-se desde então: enquanto
a proposta racionalista dos religiosos dos séculos XVI e XVII era disci-
plinar o corpo para libertá-lo das paixões, promovendo uma estética da
alma; a proposta racionalizante do saber leigo que se desenvolve – embora
radicado nas premissas lógicas de origem religiosa – é a de administrar
paixões (eventualmente a controlando) com o objetivo de otimizá-las.
Em outras palavras, investir em paixões, poupando-as, em determinados
momentos, com o objetivo de aplicá-las, em outros momentos, nos quais as
mesmas paixões maximizadas poderão vir a se concretizar de forma mais
ampla; multiplicando e efetivando, assim, uma espécie de lucro na satisfação
dos desejos. Nova economia libidinal que potencializa as paixões e que é
estabelecida pela lógica do consumo. Nesse movimento, o anabolizante
apresenta-se como um meio, dentre outros, concretizador das estratégias
instrumentais de manutenção desse corpo considerado veículo do prazer
e da autoexpressão, corpo produzido por, e produtor de, uma sociedade
individualista e racionalizante.
A estética da alma tornou-se circunscrita apenas ao corpo, ressal-
tando a disciplina não como elemento oposto ao hedonismo, mas como
auxiliar desse. Assim, a época atual não apresenta potencialmente apenas
a dimensão de um paroxismo dionisíaco ou período de expansão da refle-
xividade e da razão comunicativa (MAFESOLLI, 1995; GIDDENS, 1991;
HABERMAS,1985), mas as atuais sociedades globalizadas podem, também,
encontrar-se em um processo de acirramento sutil do poder disciplinar
que possivelmente vem sendo aprimorado por intermédio do exercício do
controle intra e extra muros institucionais – mediante novas tecnologias
da comunicação – e agenciamento dos sistemas simbólicos (valores, nor-
mas e percepções) radicados, de certa forma, na lógica da troca comercial
e do consumo (GUTTARI; ROLNIK, 1996; BOURDIEU, 2001a). O novo
79
CÉSAR SABINO

racionalismo e suas técnicas de criação de corpos e expansão de desejos


consumistas caracterizam-se por submeter e subjugar, em determinadas
circunstâncias, o corpo e suas afecções28 aos ditames do ascetismo disciplinar,
porém normalizando-o com o objetivo de potencializar sua capacidade de
diversão e consumo (FEATHERSTONE, 1995; COURTINE,1995).
Ascetismo e hedonismo caminham, agora, de mãos dadas. Esse aspecto
pode ser percebido nos supermercados de imagens em expansão em que os
heróis-produtos são atores, cantores, modelos e atrizes, pessoas produzidas
e que reproduzem os padrões de beleza hegemônicos e que professam a ética
do consumo e de um suposto savoir vivre, conquistado, porém, com esforço
ascético, segundo os discursos de tais ícones. Em tal sistema de economia
imagética, indivíduos comuns são impulsionados ao consumo e à submissão
calculada a dietas, exercícios, anabolizantes, clínicas estéticas e academias,
enquadrando-se em uma espécie de controle disciplinar ímpar na história,
com o objetivo de conquistarem a admiração e o respeito. Há o esforço
de se chegar ao paraíso das imagens e formas tendo o mercado da saúde
como coadjuvante no processo de busca de ascensão social. Passaporte que
permite aproveitar aquilo que o mundo do consumo oferece àqueles que
são considerados vencedores. Hedonismo racionalista. O saber e a prática
relacionados ao uso dos esteroides anabolizantes fazem parte inerente
desse processo, constituindo-se como um dos instrumentos manejados por
determinados indivíduos e grupos na busca desse paraíso na terra onde os
corpos e suas imagens são intercambiáveis à maneira de uma simples moeda.
Simmel (1983; 1989; 1991; 1993) apontou o domínio do dinheiro como
instituição fundamental do mundo moderno, ou, mais de acordo com suas
palavras, o advento da economia monetária significou uma redefinição da
consciência subjetiva individual. Com a troca monetária nos parâmetros
modernos, as noções básicas de tempo e espaço se modificaram, e, com a
modificação de tais noções, modificaram-se também as economias emocio-
nais dos indivíduos. A vida afetiva individual e as relações sociais em geral
passaram a ser regidas pela necessidade de distanciamento interno e externo
28
Aqui é adotado o conceito de afecção elaborado por Espinosa: “Por afecções entendo as afecções do corpo,
pelas quais a potência de agir desse corpo é aumentada ou diminuída, favorecida ou entravada, assim como as
idéias dessas afecções”. As afecções podem ser ativas se “agimos quando se produz em nós, ou fora de nós qual-
quer coisa que somos causa adequada [...] mas, ao contrário, digo que somos passivos (sofremos) quando em nós
se produz qualquer coisa ou qualquer coisa se segue da nossa natureza, de que não somos senão causa parcial”.
Esclarecendo: “o corpo humano pode ser afetado de numerosas maneiras pelas quais a sua potência de agir é
aumentada ou diminuída [...]” (ESPINOSA, 1979, p. 178). O Marketing talvez seja um dispositivo moderno para
a soma, ou subtração, de determinadas afecções, administrando-as ou, de acordo com Deleuze e Guattari, pode
ser um mecanismo produtor de agenciamentos de subjetivações ou de modulações de subjetividades (2010).

80
DROGAS DE APOLO

– relacionado às exigências dos contatos interpessoais nas metrópoles – e


pela instauração da calculabilidade como fenômeno da personalidade dos
indivíduos. Relacionada a esse processo, a atitude “blasé” passou a afigurar-
-se como uma característica típica da indiferenciação qualitativa operada
pelo dinheiro transformado em meio universal de troca. Assim, a crescente
velocidade das trocas, nas grandes metrópoles, provocaria nos indivíduos
a também crescente indiferença devido ao estímulo permanente do meio
urbano (STECHER, 1995). Para Simmel, as trocas monetárias com objetivo
primordial do lucro não apenas produziam indiferença nos indivíduos
em relação aos seus próximos como caracterizariam um movimento de
dissolução das instituições tradicionais e relações sociais produzindo, por
sua vez, um grande movimento de indivíduos no espaço. Nesse contexto,
a relação monetária conectaria estreitamente o indivíduo com o grupo
como um todo abstrato, mas colocando-o na mesma dimensão dos objetos,
dissolvendo-o como personalidade própria. O dinheiro separaria o lado
econômico da personalidade integral.
Em sentido parecido ao fetichismo da mercadoria trabalhado por
Marx, no primeiro volume de O Capital (1983), Simmel destaca que a frieza
e a impessoalidade das trocas econômicas, que visam primordialmente ao
lucro, transformariam os próprios indivíduos em coisas, objetos. As asso-
ciações tornar-se-iam, nas sociedades modernas, calcadas nessa economia
monetária, meras associações instrumentais motivadas pelo interesse do
lucro. O dinheiro criaria, entre sujeitos e objetos, uma “desconexão objetiva”
e na relação intersubjetiva, uma “desconexão pessoal”. Em ambos os casos,
uma nova relação estaria sendo reconstruída a partir do uso do dinheiro
na modernidade (STECHER, 1995, p. 184). Essa nova relação se caracteri-
zaria pelo fato de que a personalidade individual seria afetada pelo próprio
processo social calcado na troca objetiva e objetivante fazendo o indivíduo
ver o outro como meio para alcançar seus fins:
[...] o importante, entretanto, é que o dinheiro é percebido
em toda a parte como fim e, com isso, muitas coisas que têm
o seu fim em si mesmas são rebaixadas a simples meios. Ao
mesmo tempo que o dinheiro, por definição, é o meio, os
conteúdos da existência se colocam num profundo contexto
teleológico sem começo e sem fim. (SIMMEL, 1989, p. 593
apud STECHER, 1995, p. 185).
O estudo da coisificação do outro, presente na obra de Simmel, remete
e ressalta o fato do surgimento de uma ética que concebe o mundo e o pró-
81
CÉSAR SABINO

ximo como objetos a serem consumidos. A epifania da forma realizada pela


publicidade e atualizada nas instituições de práticas de exercício ressalta o
fato – como sugeriu Foucault (1997) – de que, em contraposição a outros tipos
de liberalismo, a marca singular do liberalismo de origem norte-americana,
enquanto teoria e prática econômica, é “a busca de estender a racionalidade
do mercado a domínios não exclusivamente ou não prioritariamente econô-
micos” (1997, p. 96). A lógica solidária das trocas simbólicas não fundadas
em uma economia que visa ao lucro, a todo custo, encontra-se afrontada pela
mercado-lógica midiática que tem se estendido com sucesso para a maioria
das relações sociais, inscrevendo-se no corpo e na pele de cada indivíduo das
sociedades de consumo. Portanto, se no início o processo de racionalização e
disciplinarização corporal estava relacionado a práticas e saberes religiosos,
passando, logo após, para a administração estatal; hoje são o marketing e o
mercado os novos senhores dessa administração. O puritanismo traveste-
-se de hedonismo produzindo uma espécie de repuritanização das práticas
corporais (CAMPBELL, 1995; CASTRO, 2003).
A repuritanização hedonística expressa um paradoxo que é o de asso-
ciar a construção da saúde ao consumo de substâncias químicas – fármacos.
Lutando para alcançar um ideal inalcançável, os indivíduos, cada vez mais,
consomem produtos “mágicos” lançados no mercado com o suposto aval da
ciência para aprimorar a saúde e a estética. Essa medicalização da sociedade
tende a eleger o fármaco como fetiche, fórmula milagrosa que pode trazer a
felicidade àqueles que não se enquadram nos padrões estéticos culturalmente
estabelecidos. Além de sacralizar a ciência e a tecnologia, tal processo pode
criar o mito da saúde perfeita (1995) e radica, no consumo dos produtos,
a busca da felicidade. O problema está no fato de que, em uma sociedade
causadora de doenças – e causadora justamente porque radica apenas na
dimensão da economia econômica do lucro suas relações constitutivas –, as
chances de saúde individual deparam-se, cada vez mais, com possibilidades
mínimas (ILLICH, 1975). A crise de valores, sustentada no individualismo
hedonista, consumismo, na competição acirrada e nos mecanismos de hie-
rarquização e exclusão social, ameaça os elos de solidariedade social, gerando
isolamento e sofrimento. Portanto, a noção de que a felicidade e/ou a saúde
possam ser encontradas e compradas em consultórios, drogarias ou contra-
bandeadas em academias de fitness ressalta o paradoxo de uma época singular
que busca a felicidade na própria ameaça da sua destruição. Junto ao fato da
intensificação da mercantilização da vida no neoliberalismo, ocorrendo, por
isso mesmo, o desmonte crescente da saúde pública em nome de interesses
82
DROGAS DE APOLO

empresariais sem compromisso com a solidariedade ou com o bem-estar


coletivo (CORDEIRO, 1980; 1984; BRAGA, 2018).

2.1 NO REINO DE DIONÍSOS

De forma oposta a drogas como maconha, cocaína, heroína, entre


outras, consideradas substâncias causadoras da perda de autocontrole,
ocasionando suposta irresponsabilidade e violação de imperativos morais
básicos, responsáveis pela concepção, por parte da sociedade e das insti-
tuições em geral, de que seus usuários são pessoas com conduta sem freios
beirando à marginalidade, ou a um tipo de conduta que poderíamos deno-
minar dionisíaca, o uso de esteroides anabolizantes apresenta, a princípio,
processo inverso. Seus consumidores tentam construir, por intermédio do
uso ritual e associando-o a pesados exercícios físicos, uma imagem de auto-
domínio, disciplina e racionalidade. Imagem que podemos denominar, de
forma provisória, apolínea, na conduta e na forma musculosa (considerada
saudável por muitos), já que as representações de saúde nesses grupos têm
sido atualmente relacionadas à ausência de adiposidade e à musculatura
rígida e aparente.
Vale ressaltar que consumo de drogas quase sempre foi associado à
transgressão das normas e à busca de supressão de estados percebidos como
opressores de indivíduos e grupos, à contracultura e à busca de potencializa-
ção do prazer e reencantamento de um mundo desencantado, além de estar
também associado à expansão triunfante da realidade psíquica (VELHO,
1998; PERLONGER,1994; BIRMAN, 1993; MORGADO, 1985; BECKER,
1971). Na Antropologia, mais especificamente, o uso das drogas poderia
estar associado à teoria dos ritos e rituais, relacionando-se a experiências
místicas, no caso da etnologia, ou de desvio perpetradas por determinados
grupos que, de uma forma ou outra, tendem a promover uma espécie de
suspensão momentânea da estrutura social dominante, seja para reafirmá-
-la ou para antever sua modificação, além de constituírem itens que podem
estar presentes em ritos de passagem nos quais um indivíduo transita de
um determinado status para outro (TURNER, 1974; DA MATTA, 1983;
BOURDIEU, 1996). Em geral, essas abordagens tendem a ressaltar o aspecto
dionisíaco desse costume, com a tendência de os estudos se deterem sobre a
dimensão eufórica acionada pelo uso de substâncias psicotrópicas, referin-
do-se – no caso das sociedades complexas ocidentais – ao início dos anos 60
do século XX como período no qual houve significativa transição nos hábitos

83
CÉSAR SABINO

de utilização de entorpecentes, na medida em que, por intermédio do que


se constituiu como o movimento da contracultura, um novo ethos29 surgiu
entre os jovens principalmente, no qual as drogas ilícitas passaram a ocupar
posição estratégica de subversão da cultura dominante (SALEM, 1991). Elas
representariam o acesso a um “outro mundo” causado pelas transformações
perceptivas provocadas. Espécie de “fuga” do Sistema, e por vezes, resistência
a ele, mesmo momentânea. Diversos grupos sociais iniciam o consumo de
tóxicos regularmente, utilizando-os como parte de códigos éticos e estéti-
cos precisos, inscrevendo esse uso em uma cultura na qual se supõe que a
crítica e a negação de determinados valores tradicionais se realizariam ou,
no mínimo, inscrever-se-ia em um comportamento hedonista contraposto a
qualquer laivo de ascetismo (VELHO, 1998). As drogas tornar-se-iam “signo
emblemático de uma visão de mundo underground” (BIRMAN, 1993, p. 5). Uma
imagem da rebeldia e do descontentamento. Velho (1994), ao escrever sobre
esse “mundo das drogas”, indica a necessidade de ressaltar a heterogeneidade
desse mundo nas sociedades complexas. Segundo ele, não há como pressu-
por comportamentos e atitudes homogêneos sobre a utilização substâncias
ilícitas, visto que existem categorias sociais e indivíduos que as consomem
de modo diferenciado havendo “n maneiras de utilizar as substâncias, em
função de variáveis culturais e sociológicas” (VELHO, 1980, p. 355). Múlti-
plos significados são atribuídos à utilização de diferentes tipos de drogas, e,
de fato, às mesmas drogas. É possível afirmar que o uso contemporâneo de
esteroides anabolizantes surgiu, principalmente, a partir da década de 70 do
século XX, como uma nova forma de consumo de novas drogas apresentando
a configuração de um novo objetivo e sentido no ato coletivo de consumi-las,
portanto significando uma nova forma de ver o mundo e as relações sociais
no meio urbano. Esse “mundo”, ou campo da musculação e do bodybuilding, da
cultura física e boa forma, em geral, cada vez mais se afirma criando espaços
próprios, com imaginário e rituais específicos, representando também a
progressiva mudança de atitude e comportamento em relação ao corpo e ao
que se considera nesses grupos como saúde. Como essas drogas são produtos
diretos das indústrias farmacêuticas (remédios), e seu uso associa-se a uma
dimensão institucional (a área da Saúde) e organizacional (as academias e
espaços de práticas de exercícios), ligada ao saber médico ocidental, ocorre
a tendência do senso comum, e dos meios de comunicação em geral, à gene-

29
Ethos, de acordo com Bateson, é “a padronização culturalmente sistematizada de organização de emoções
e instintos dos indivíduos”. Essa padronização está inseparavelmente associada à “padronização dos aspectos
cognitivos da personalidade dos indivíduos”. Essa, por sua vez, ele denomina eidos. (2006, p. 70, 89, 93, 170-173).

84
DROGAS DE APOLO

ralização de explicações baseadas em premissas biologizantes, ignorando o


aspecto cultural da utilização dessas substâncias.
O surgimento do novo uso de novos produtos que assumem signi-
ficado muito específico para um determinado grupo social – grupo que é
construído e constrói, simultaneamente, esses significados – aponta para
um processo de constante mudança que caracteriza as culturas e sociedades,
ou sistemas sociais instáveis como os nossos (LEACH, 2014). Mudança,
porém, que atualiza no novo a plenitude do antigo, ao concretizar, por
meio das constantes estruturas socioculturais, novas configurações coleti-
vas variáveis. Sendo assim, o consumo de esteroides anabolizantes vem se
enquadrando, de forma específica, nos mesmos parâmetros que configuram
o consumo e o tráfico tradicional de drogas. Com a crescente estigmatização,
as substâncias anabolizantes e androgênicas, em geral, tendem a se articu-
lar a atividades ilegais misturando-se a atividades oficiais de exportação e
importação, apresentando-se como negócio promissor para “aplicadores
de capitais [supostamente] menos éticos” (VELHO, 1994, p. 88). Também
as tradicionais premissas culturais aplicadas ao uso de drogas dionisíacas
têm sido atualizadas, apresentadas e reapresentadas pelo consumo coletivo
de anabolizantes. Para esclarecer esse processo, faz-se necessário examinar
melhor o que se denomina aqui uso dionisíaco de drogas, ou o que aqui se
denomina drogas dionisíacas.
Segundo Nietzsche (1992), a exaltação dionisíaca arrasta o indiví-
duo, e sua subjetividade, em direção ao esquecimento de si. Em sociedades
primitivas, a droga, conjugada à dança e a rituais de cunho religioso, tem
sido a via para a concretização da dimensão extática na qual o indivíduo,
principium individuationis, dissolve-se momentaneamente na coletividade30.
Esse aspecto, presente na primeira fase da obra de Nietzsche, foi aprofun-
dado pelos estudos de Durkheim, que postularam a hipótese de um começo
efervescente-extático das religiões. Os estados modificados de consciência,
causados pelos usos de drogas, relacionados ao êxtase religioso e à procura de
libertação momentânea da condição individual, sempre estiveram presentes

30
Em seu clássico Patterns of Culture, publicado em 1934, Ruth Benedict utiliza as categorias nietzscheanas de
apolíneo e dionisíaco para analisar a variação dos tipos culturais. Benedict ilustrará seu método estudando de modo
comparativo dois modelos culturais contrastados, o dos índios Pueblo do Novo México, sobretudo os Zuñi (confor-
mistas, tranquilos, profundamente solidários, respeitadores, comedidos nas expressões dos sentimentos) e o modelo
dos seus vizinhos, os Índios das Planícies entre os quais os Kwakiutl (ambiciosos, individualistas, agressivos e até
violentos, manifestando uma tendência para o exagero afetivo). Ela chamará o primeiro tipo de “tipo apolíneo” e o
segundo de “tipo dionisíaco” considerando que esses dois tipos extremos, em maior ou em menor grau, ligavam-se a
outras culturas e que entre as duas existiam tipos intermediários (BENEDICT, 2013, p. 85-107; CUCHE, 1999, p. 78).

85
CÉSAR SABINO

em sociedades simples. Porém, nessas sociedades, especificamente, o uso


de drogas está inserido em contextos institucionais nos quais a tradição do
uso ritual reitera a afirmação das estruturas sociais objetivas e subjetivas.
Já nas sociedades complexas ocidentais e ocidentalizadas, o uso de drogas
representa, não raro, a busca de ruptura com tais estruturas, invertendo-as.
Enquanto nas primitivas o uso ritualizado tende a reafirmar os valores e
práticas culturais, nas complexas esse uso opera como linha de fuga e de
rompimento desafiando normas e valores tradicionais e configurando uso
marginal destas substâncias (PERLONGER, 1994).
Pode-se detectar, no caso específico das sociedades ocidentais,
durante os anos 60 e 70 do século XX, a existência dessas duas vias ante-
riormente mencionadas. É possível perceber o surgimento, nesse período,
de movimentos contraculturais libertários que exaltavam a dimensão de
uma mística dionisíaca representativa de uma certa “nostalgia do infinito”
(PERLONGER, 1994, p. 18) ao buscar dissolver determinados aspectos do
individualismo ocidental em movimentos e aspirações de cunho coletivista.
Por outro lado, no cerne desse mesmo processo, surge simultaneamente
uma espécie de “individualismo psicologizante-libertário” (SALEM, 1991,
p. 62) apresentando a impossibilidade da ética moderna se livrar da radical
oposição indivíduo/sociedade que a caracteriza. Os dois tipos de dionisismo,
portanto, encaravam as estruturas sociais tradicionais como se cerceassem
a possibilidade de um horizonte melhor para a humanidade. No entanto,
suas propostas se diferenciavam, já que, enquanto um propunha a formação
de novas estruturas mais coletivistas em contraposição ao individualismo
consumista, o outro concebia como libertação a supressão, mediante o
esforço individual, das estruturas que oprimiam os desejos individuais mais
profundos. Para essa corrente, o mal-estar presente na sociedade capitalista
estaria representado por qualquer tipo de coerção exterior.
No campo intelectual, a tendência foi representada pelas teorias
de Wilhelm Reich, Alexander Sutherland Neill, Herbert Marcuse, entre
outros. Percebe-se, então, que é possível destacar dois tipos de compor-
tamentos dionisíacos que se apresentavam, naquele período da história,
um dionisismo coletivista e outro de cunho individualizante. O uso das
drogas que nesse momento se propaga e se concretiza assume significado
relacionado a tais posturas. Para os dionisíacos coletivistas, elas represen-
tariam a busca por uma socialidade mística, psicodélica, que dissolveria os
ditames individualistas na busca por uma coletividade superior (hippies).
Para os dionisíacos individualistas (junkies) a droga teria o fim de abrir as
86
DROGAS DE APOLO

percepções individuais ampliando a busca pela atualização dos desejos,


reiterando-os, ampliando-os e otimizando-os. Nessa última concepção,
acabar-se-ia por fabricar “linhas de fuga ativas [...] que se embaralham,
se põem a dar voltas em buracos negros, cada viciado em seu buraco”
(DELEUZE, 1992, p. 68). Ao contrário do xamanismo, por exemplo, esse
uso caracteriza, mediante a busca hedonista e narcísica da ampliação do
desejo, a solidão drogada. Dessa vertente individualizante, outra corrente
se concretizou e tem crescido a partir do final da década de 1970 e início
dos anos 1980.
Com o fim das utopias coletivistas e individualistas e a consolidação
do império do mercado no neoliberalismo, que principia a partir dos anos
80 do século XX, surge o uso generalizado de novas drogas – não apenas
dionisíacas, como maconha, crack, e as sintéticas, como o ecstasy (metanfe-
taminas) e o ácido LSD –, mas drogas apolíneas (esteroides anabolizantes)31
que, em um contexto totalmente diverso, passam a simbolizar posturas,
visões de mundo e práticas sociais distintas e, algumas vezes, opostas às
representações coletivas presentes nas sociedades das décadas de 60 e 70
do século XX. É o princípio da consolidação do corpo-vitrine, corpo-empresa,
corpo-capital a ser trocado no crescente mercado de imagens a se consolidar
com a quarta revolução tecnológica ou revolução informática. O fim das
utopias coletivistas dá início a um individualismo radical que vê, na ins-
trumentalização do corpo e da forma, a via de afirmação do instante e tem
na representação social da saúde a chave para uma nova utopia do agora. A
concepção de saúde-mercadoria, muitas vezes reiterada pelos usos e abusos
da medicina estética, acaba por corroborar com a transformação do corpo
em objeto descartável, pois implantes de órgãos e próteses diversas cada
vez confundirão mais a fronteira do que é mineral e máquina do que é vida
biologicamente organizada (LÉVI, 1996). Também o uso do conhecimento
científico, no caso específico o das ciências biológicas e médicas, traduzido,
dentre outras coisas, em remédios, suplementos alimentares e vitamínicos
por ele produzidos, serve à composição da poderosa e crescente indústria

31
Também são sintéticas, posto serem na verdade remédios vendidos sob prescrição médica. Necessário se
faz ressaltar que o uso das substâncias apolíneas não exclui, por parte de indivíduos e grupos, a utilização das
dionisíacas. Ao que indicam as observações, competidores de fisiculturismo, ou culturismo, vêm realizando,
cada vez mais, a mistura das duas. Seria preciso sugerir também uma pesquisa profunda que analisasse o uso
de drogas sintéticas (dionisíacas) pelas “tribos eletrônicas”, produtoras de raves e festas (rituais), nas quais essas
substâncias, de forma similar aos marombeiros, apresentar-se-iam como elemento crucial de construção de
identidade volátil dessa outra tribo urbana. Entretanto, esse estudo daria outro livro.

87
CÉSAR SABINO

da saúde32, fornecendo os itens para a construção de um sistema simbólico


no qual dogmas, crenças e substâncias produzem (e são produzidas por)
um crescente comércio-adoração de imagens, formas e juventude. Em uma
cultura na qual o entretenimento, o consumismo e a publicidade tornam-
-se pilares existenciais, a espetacularização passa a constituir o cotidiano
dos indivíduos preocupados com seu marketing pessoal. O corpo, além de
representar a verdade deste indivíduo, é também sua vitrine. A imagem por
ele exposta pode apresentar-se como suposta via para o sucesso ou fracasso.
Diante do imperativo de permanecer sempre jovem, forte, magro, bonito e
com aparência saudável, muitas vezes não há hesitação em consumir dro-
gas, exercícios e produtos com o objetivo de otimizar essa vitrine-máquina
que sustenta a esperança individual da vitória na guerra intermitente pela
conquista da felicidade prometida pelo consumo cotidiano.

2.2 DROGA HIERARQUIZANTE

A pesquisa sobre os praticantes assíduos de musculação (marom-


beiros, fisiculturistas ou bodybuilders) pode servir como amostra desse
processo mais amplo de construção do corpo e uso de fármacos visando
a construir a imagem de si como capital de troca em um mercado de bens
da forma cada vez mais presente na cultura hodierna. Esse grupo, posso
dizer, é a síntese desse movimento de paroxismo imagético realizando em
si uma espécie de síntese das práticas relacionais de construção da forma
enquanto signo de saúde.
Em uma época em que a velocidade predomina entre as multidões
anônimas, o corpo musculoso do fisiculturista marca presença, destacando-o
do anonimato por sua forma, seu tamanho e peso, promovendo o espetá-
culo da suposta força e hipervirilização radicada na estética. O bodybuilder
32
Essa indústria é composta por grandes impérios multinacionais de medicina, academias de ginástica, e
musculação e indústrias farmacêuticas, formando um novo maquinário do lucro capitalista que fabrica itens
não apenas concretos de consumo, mas também simbólicos, por intermédio da propaganda e do marketing,
alimentando o mercado internacional da adoração à saúde, medicamentalização e domínio das instituições de
saúde (SFEZ, 1995; ILLICH, 1975; 1992; LUZ, 1986). Um exemplo claro é, como já o citamos, o do grupo Weider.
Fundado, no final da década de 30 do século XX, por um rapaz de entregas aficionado por músculos, Joe Weider.
Empregou, em 2003, mais de 2000 funcionários, entre eles cientistas, e é atualmente a mais poderosa multina-
cional de bodybuilding do mundo, produzindo máquinas de musculação e pesos, produtos nutricionais, filmes,
revistas especializadas (Flex, Muscle e Fitness, Shape etc.) e o maior e mais respeitado campeonato de bodybuilding
do mundo, o Mister Olympia, criado pelo próprio Weider, além de ser ele também o fundador da Federação
Internacional de Bodybuilding presente em 136 países (COURTINE, 1995). De certa forma, os irmãos Weider
foram os principais agentes de consolidação da profissão e da formação do campo – no sentido conferido por
Bourdieu – das práticas de musculação e bodybuilding.

88
DROGAS DE APOLO

pode ser considerado a exemplificação exacerbada das representações e


práticas do corpo presentes em nossas sociedades. Ele se apresenta não
apenas como um laboratório ambulante para os testes de uso de esteroides
e seus efeitos, como representa o paroxismo de uma cultura que tem tido
obsessão pelos invólucros corporais. Mas como é produzido socialmente
esse ícone da massa muscular?
A construção da pessoa ou da identidade de marombeiro, ou fisi-
culturista, realiza-se por intermédio de um processo de aprendizagem de
socialização no que denomino campo da musculação. Utilizo a categoria
campo em conformidade com a teoria de Bourdieu. Para o autor, campo se
refere aos espaços sociais nos quais se manifestam e se reproduzem relações
de poder simbólico e material. O campo se organiza a partir da distribuição
desigual de capitais, e a quantidade de capitais33 que um indivíduo detém
determina sua posição (influência, status e poder), na hierarquia desse espaço
de relações em geral profissionais, mas não apenas. A sociedade é formada
por inúmeros campos que, por sua vez, apresentam-se como sistemas nos
quais as estruturas simbólicas e práticas se coadunam produzindo e sendo
produzidas pelas práticas, disputas e ambições dos agentes sociais em busca
de aquisição de capitais e ascensão social ocupando os papéis de destaque
e liderança. É justamente a luta produzida por essa busca que produz, por
sua vez, a dinâmica do sistema, ou dos campos, (BOURDIEU, 1986).
É possível afirmar que o campo da musculação se insere nos espaços
das academias e é hierarquizado tendo como base determinados papéis que
os indivíduos ocupam na estrutura desse campo. Esses papéis, tendo em vista
a volatilidade das relações sociais contemporâneas, podem ser considerados
também tipos ideais. Tipos ideais, ou tipos puros, são modelos abstratos criados
pelo pesquisador a partir de elementos observados como os mais impor-
tantes e frequentes na realidade estudada. O pesquisador abstrai e exagera
esses elementos, ou características, separando-os mentalmente de outros e
construindo com eles um tipo puro; ou seja, um tipo que não existe com todas
suas características na realidade empírica, mas serve como ferramenta teó-
rico-metodológica auxiliar para sua compreensão. Por exemplo, no que diz
respeito às relações de poder e dominação, Weber reitera que, nas sociedades
complexas, pode-se, a partir da observação histórica, destacar elementos do
contexto observado, criando três tipos puros ou modelos de lideranças políticas
relacionadas ao exercício da autoridade: 1) o modelo da dominação tradicional,
33
O material e monetário (bens imóveis ou móveis), o social (influência ou conhecimento pessoal), o cultural (edu-
cação), ou de competência, (capacidade de realização de algo singular em um determinado contexto ou situação) etc.

89
CÉSAR SABINO

ou patrimonialista, no qual o líder ocupa cargo por hereditariedade e comanda


por sacralidade, inexistindo “a coisa pública”, pois o aparato administrativo
é percebido como pertencendo ao líder, seus familiares e pessoas próximas;
2) o modelo carismático, ou da liderança messiânica, na qual o líder devido
à sua personalidade agregadora e mesmo mágica adquire autoridade acima
das leis, até mesmo transformando-as. Sobre esse modelo se sustenta com
frequência a esperança da redenção popular, posto que o líder apresenta a
autoridade de modificar estruturas administrativas enquanto mantém o apoio
popular como um “salvador” ou libertador guiando-os à uma idílica terra ou
condição da redenção; 3) o modelo racional-legal, no qual o líder político é um
cidadão, em geral eleito, servidor público temporário, exercendo mandato, o
qual está submetido às leis de um sistema jurídico científico, portanto racio-
nalizado. A máquina pública e a estrutura do Estado devem ser independentes
dos governos, assim como em relação a todos os outros líderes, existindo
por conta própria e sendo regida por leis universais que a todos submetem.
Esses tipos puros ou ideais são abstrações metodológicas, não ocorrendo na
história nenhum momento no qual apenas um tipo sozinho tenha existido
independente dos outros, visto que na realidade os três tipos em geral estão
misturados. Em alguns momentos histórico-sociológicos, um tipo demonstra
destaque ou presença mais acentuada no contexto social do que outro tipo
(WEBER, 1992; 1997). De forma similar, nas academias de musculação, os
três tipos ideais aqui brevemente descritos (fisiculturista, veterano e comum)
são tipos puros, já que constantemente variam em condição e situação nas
relações sociais que podem apresentar a maior ou menor presença de um
ou outro tipo.
Resumo em três os tipos ideais relacionados aos papéis sociais referidos
aos comportamentos e à forma física de homens e mulheres. Classifiquei-os
seguindo sua ordem hierárquica, tendo em vista que, para o grupo, a auto-
ridade está diretamente associada à forma física e a todo o saber e prática
envolvidos em sua construção: 1) os fisiculturistas: senhores do campo, são
atletas semiprofissionais ou profissionais que exibem musculatura exercitada
ao limite máximo, durante anos, até a distorção, ou quase, para quem não
pertence ao cotidiano do grupo. Possuem um conhecimento efetivo (capital
de competência) de como produzir um corpo musculoso e, não raro, são
os que sabem onde se adquire esteroides anabolizantes e outra substâncias
importantes, além de um vasto conhecimento de dietas e exercícios. Muitas
vezes disputam a legitimidade de seu discurso com aquele dos professores
de Educação Física graduados universidades, não reconhecendo sua auto-
90
DROGAS DE APOLO

ridade em relação às práticas bodybuilders. Os fisiculturistas, por sua vez,


também, não costumam reconhecer a autoridade dos professores dizendo
que “o conhecimento deles se resume à teoria”. Representam, em sua forma
física, o modelo de masculinidade hegemônica ampliada, isto é, são os
maiores em dimensão corporal nas academias. Exercitam-se pelo prazer de
se exercitar. Seu objetivo é o cultivo de músculos cada vez maiores. São os
que mais consomem drogas masculinizantes e constituem o menor grupo
de status (WEBER, 1995) nas academias; 2) os veteranos: são indivíduos
com massa muscular considerável, porém distante daquela exibida pelos
anteriores. É o grupo mediano, constituído por indivíduos que já têm alguns
anos de prática de musculação. Consomem esteroides esporadicamente e
têm como objetivo “manter o corpo bonito”, o que indica uma espécie de
instrumentalização corpórea diferente daquela comum entre os fisicul-
turistas que desejam, acima de tudo, crescer cada vez mais. Os veteranos
seriam o exemplo mais claro da masculinidade hegemônica, pois não são
homens comuns, como a maioria, nem ostentam musculatura ampliada ao
máximo possível, como os fisiculturistas. Segundo as mulheres ouvidas,
são os que possuem o corpo mais bonito, o que lhes confere, ao menos no
mercado sexual, um considerável capital corporal; 3) os comuns: esse é
o grupo maior; constituído por todas aquelas pessoas sem físico atlético.
Nesse grupo podem ser enquadrados os magros, muito magros, os esbeltos,
os gordos, gordinhos, muito gordos, e assim por diante. São a maioria no
campo e não desfrutam de capital de competência nem capital corporal. Em
geral, são novatos que entram nas academias quando o verão se aproxima
ou têm pouco tempo de prática de musculação (SABINO, 2000b).
Em relação aos papéis femininos, a hierarquia é parecida. Os papéis
são os seguintes: 1) as fisiculturistas: seguem o mesmo processo que os
homens na construção de um corpo musculoso. Chamam atenção, mesmo nas
academias, pelo seu tipo físico que, em alguns aspectos, pode se aproximar
da forma do fisiculturista masculino. Embora muito admiradas, consultadas
e seguidas em suas proposições pelos bodybuilders – homens e outros alunos
e alunas –, pode-se dizer que, fora do contexto das práticas corporais e da
musculação, são estigmatizadas, fato eloquente que sugere questões rela-
cionadas à construção de gênero e aos preconceitos relacionados a elas em
nossa sociedade, que sustenta e impõe padrões estéticos que configuram a
binaridade dominante. Aquelas que fogem ao modelo situam-se à margem
da categorização popular representando o inclassificável, e mesmo temeroso
(DOUGLAS, 1976; GRIVET, 2019).
91
CÉSAR SABINO

Para conseguirem sua musculosidade, podem vir a utilizar esteroides


e, não raro, têm anos a mais de musculação que os fisiculturistas masculi-
nos. Escutei relatos nos quais diziam que por vezes eram confundidas em
estabelecimentos públicos com as travestis, devido a sua aparência muscu-
losa. Necessário se faz ressaltar que, apesar dessa aparência masculina, não
percebi, durante as entrevistas ou observações participantes no contexto
estudado, qualquer fisiculturista feminina alegadamente homossexual ou
bissexual – talvez por já sofrerem preconceito em relação à forma física
preferem não aprofundar particularidades pessoais. Aquelas com as quais
travei contato eram casadas com fisiculturistas homens ou mantinham algum
tipo de relacionamento com esses. Essas mulheres não desempenham, como
os homens bodybuilders, um papel ativo no domínio do campo. Em número
muito inferior que os fisiculturistas, limitam-se a acompanhá-los ou aju-
dar outras mulheres desempenhando a função de treinadoras particulares
eventuais. Retirando a opinião dos fisiculturistas e outros aficionados, além
de algumas mulheres, os outros homens pesquisados disseram não admirar
muito o padrão estético dessas mulheres, da mesma forma que as mulheres,
em sua maioria, – excetuando-se as fisiculturistas – disseram não gostar do
excesso de músculos dos fisiculturistas homens; 2) as veteranas: são deno-
minadas “gostosas” nas academias, segundo os pesquisados. São aquelas que
têm “o corpo sarado”, como dizem. Deve ser ressaltado que essas mulheres
são as que “mandam” no campo. Exercem o poder de dominação na economia
das trocas imagéticas, já que ostentam o padrão estético tido como exemplar
pela cultura dominante e veiculado por toda a indústria cultural. Seu poder,
contudo, diferentemente do masculino, reside totalmente em sua estética,
em sua forma corporal. São invejadas e tidas como modelo por aquelas que
desejam construir forma física ao menos parecida à delas, e desejadas pelos
homens das academias, que não perdem oportunidade de lhes dedicar toda
atenção, quando solicitados ou não. O tipo veterana pode ser dividido em
dois subtipos: a) a magra, que cultiva músculos com menor intensidade; e
b) a forte, mais musculosa. As veteranas constroem o papel de mulheres
ativas e independentes que desejam reconhecimento pela sua capacidade
profissional, liderando empreendimentos. A beleza entra nesse processo
como um item de auxílio à ascensão quando necessário e como um processo
de autoconstrução de identidade. O “sentir-se bem consigo mesma, com
seu corpo” é um estado mental muito valorizado que dá sensação de poder
calcado na autonomia. Dentre os inúmeros relatos de veteranas, este pode
indicar o que foi dito anteriormente:

92
DROGAS DE APOLO

Meu namorado me deu um ultimato: ou eu, ele disse, ou a acade-


mia. Não pensei duas vezes; terminei o namoro de seis anos. Foi
difícil, porque seis anos não são seis dias. Mas a minha liberdade
não tem preço. Eu venho pra academia seis vezes por semana,
deixo de comer uma porção de coisas pra ficar com o percentual
de gordura baixo e faço isso já tem quatro anos. [...] Não vou
parar por causa de homem que no fundo quer aquela mulher
que ninguém olha (porque ele tem medo de perder) e que vai ter
filhos e ficar engordando em casa enquanto ele tem amantes na
rua. (Patrícia. 24 anos. Advogada).
O terceiro tipo da hierarquia feminina nas academias de musculação
é o comum que segue, mutatis mutandis, o mesmo processo masculino: são
gordas, gordinhas querendo emagrecer, magras, magérrimas querendo “ganhar
massa muscular” ou mesmo – e aqui já há uma diferenciação em relação aos
homens – mulheres com o corpo em forma apenas querendo manter seu
estado físico. Outro aspecto deve ser ressaltado em relação às fisiculturistas
mais especificamente. São o exemplo mais radical de masculinização estética,
posto consumirem anabolizantes androgênicos a ponto de, algumas vezes,
necessitarem mesmo fazer barba ou depilação frequente dos pelos faciais. Essa
busca por construir uma identidade viril provoca com frequência processo
inverso, causando-lhes deterioração da identidade já que passam a ser vistas
como homossexuais ou mesmo confundidas com as travestis:
[…] eu tava muito grande, igual um homem, tava tomando bomba
direto... Hemogenin todo dia, Durateston e Testex toda semana,
e malhava feito louca, ficava na academia no mínimo três horas
por dia de domingo a domingo. Me enchia de clara de ovo, tomava
280 claras toda semana, 40 por dia [...] estava enlouquecendo, só
queria malhar, malhar e malhar, não me preocupava mais com
nada a não ser crescer. Só pensava no meu corpo... Nenhum cara
queria nada comigo, e eu não sou ‘sapatão’ [...] todos me olhavam,
porque eu chamava atenção, mas era porque eu tava estranha [...]
parecendo um macho. A gota d’água foi quando entrei no banheiro
d’um shopping e as garotas que tavam lá dentro disseram que ali
não era banheiro de homem [...] acabaram chamando o segurança.
Ele veio e disse que era ‘um absurdo travesti [...] querendo ir ao
banheiro [feminino]’. Depois disso, entrei em depressão. Já tava
percebendo que alguma coisa não tava certa nessa história. [...]
Comecei a fazer terapia, análise, a me cuidar, a tentar organizar
meu corpo [que] tava totalmente doido [...] não menstruava, sentia
enjoo, não dormia, tive que tomar hormônio, só que agora femi-
nino. Quase morri, porque me dei conta do como eu tava estranha

93
CÉSAR SABINO

e comecei também a passar mal do fígado [...] só conseguia me


relacionar com algumas pessoas da academia, meu mundo se
resumia a essas paredes aqui, mais nada. (Roberta. 38 anos.
Instrutora de musculação).
Esse impacto, causado pelo surgimento de uma espécie de identi-
dade dissolvida pode ser percebido no discurso de algumas fisiculturistas
que, ao construírem seu corpo, subvertem os códigos de classificação da
sociedade hegemônica. Apresentando-se, fora do contexto dos bodybuilders,
como signo da duplicidade, da ambiguidade, do estranho, elas acabam cer-
ceadas pela maioria das pessoas, ficando sem papel social reconhecido, ou
melhor, são enquadradas em papéis sociais ambíguos. Esse processo acaba
por confiná-las ao grupo de amantes dos pesos e da forma, fazendo-as, em
determinadas circunstâncias, perder a identidade e, consequentemente, a
aceitação social plena (GOFFMAN, 1982). Se esse papel pode se apresentar,
por um lado, como uma afirmação da mudança social e da independência
da mulher, por outro, ele também pode significar a afirmação do modelo
hegemônico masculino como superior e único, portanto como negação da
diferença e afirmação autoritária do modelo androcêntrico. Nesse aspecto,
as fisiculturistas deparam-se com um paradoxo que pode levar à afirmação
do Mesmo posto que a possível busca pela emancipação, nesse caso, remete
a um mundo comum onde a masculinidade hegemônica é o centro domi-
nante. Em vez de negá-la, ao menos parte desse movimento pode querê-la
para si, o que acaba reproduzindo as mesmas relações de poder em termos
trocados. As fisiculturistas que assim o fazem correm o risco de não se
emanciparem de fato, visto que ela não pode se constituir imitando aquele
que a impede. Como processo de subjetivação, ela deve ser um movimento
de produção de singularidades, uma linha de fuga para fora da binaridade
homem padrão/mulher padrão. Nesse caso, talvez fosse preciso desenvolver
práticas de multiplicação de “identidades” que são o oposto da afirmação
do modelo dominante absorvido pelo dominado como padrão ético-esté-
tico. Esse movimento desenvolver-se-ia como processos de subjetivação
heterogêneos, identidades nômades que se abririam a um devir múltiplo ou
atualização dos mil sexos moleculares que alma humana encobre: lésbicas,
transexuais, transgêneros, gays etc. (LAZZARATO, 2006, p. 210; BALCONI,
2018; DELEUZE; GUATTARI, 2012). Sem embargo, nesse caso,
[...] a constituição do sujeito político é uma ‘desidentificação’
que não pode desenvolver-se a não ser como proliferação
de mundos possíveis que escapem deste ‘mundo comum e

94
DROGAS DE APOLO

partilhado’ que está no fundamento da política ocidental.


Para recolocar em xeque as designações identitárias, deve-se
deixar de acreditar na ideia de que só há um mundo possível
[e um Universal ou uma Identidade absoluta] (BALCONI,
2018, p. 142).
Isso não equivale dizer que manter um corpo musculoso sendo mulher
necessariamente leva à afirmação do androcentrismo ou da masculinidade
hegemônica; de forma alguma. Não é a estética corporal em si mesma que
afirma o Mesmo, ou a identidade dominante, mas subjetividade, ética, valo-
res. Construir corpo musculoso mantendo a visão de mundo dominante
é reproduzir as relações de dominação, porém o mesmo provavelmente
não ocorre se representações sociais, ou processos de subjetivação, forem
modificadas.

2.3 APOLO - REI

Já foi dito que considero o consumo de esteroides anabolizantes um


novo tipo de consumo de drogas. Consumo esse que aponta para um ethos
ascético com profunda preocupação de integração aos valores constitutivos
da cultura dominante combatidos anteriormente pelos grupos da contra-
cultura. Nesse processo, parece ocorrer também, tanto por parte de homens
quanto de mulheres, a busca reforçada de uma ética masculinizante que se
rebate, não apenas nas atitudes, nas práticas, mas também no plano sim-
bólico, inscrevendo-se em uma estética corporal que valoriza a prática do
cultivo muscular e hierarquiza a realidade a partir de valores relacionados
a esse cultivo. Esses valores, radicados na afirmação daquilo que Connel
(1995) e Vale de Almeida (1995) denominam masculinidade hegemônica,
relacionam-se frequentemente ao consumo de drogas específicas associado
à prática de exercícios físicos e ao culto ao corpo, destacando o surgimento
de “novas” representações sociais relacionadas às concepções de saúde,
beleza, sucesso e aceitação social. O uso dessas substâncias (que no Brasil só
devem ser adquiridas com a apresentação da receita médica, como mandam
as autoridades legais), as quais denomino drogas apolíneas, coloca a princípio
seus usuários na categoria de desviantes (BECKER, 1971). Apesar disso, o
processo de utilização de tais drogas se realiza em contextos e visões de
mundo diferentes daquelas comumente associadas aos usuários tradicionais
de tóxicos. Os indivíduos que “tomam bombas”, como eles mesmos dizem,
têm, em geral, o desejo de integração à cultura dominante. Seu “desvio” se

95
CÉSAR SABINO

realiza por intermédio de um processo que se constitui como tentativa de


enquadramento no sistema social dominante. Processo de construção do
corpo em que a forma física apresenta-se como atitude de não desvio. A
utilização dessas drogas proibidas para a construção de um corpo musculoso
se faz não com o objetivo de subversão sistêmica, mas sim como tentativa
de se harmonizar com os padrões estéticos vigentes na cultura dominante;
sintonia que possibilite aquisição de status, não apenas no interior do
grupo, mas na sociedade geral. Assim, os marombeiros fogem, ao menos
momentaneamente, ao estigma, enquanto incapacidade de aceitação social.
Estigma que ameaça os usuários tradicionais de drogas dionisíacas. Isso se
realiza porque a estética que os usuários de drogas apolíneas constroem por
intermédio do uso dessas não está associada ao desvio e à marginalidade,
embora seu produto de consumo para manutenção da forma física, de certa
forma, esteja. O bodybuilder então é um “desviante” peculiar, pois não é
alguém “visivelmente estigmatizado que prova uma situação de interação
social angustiada” (GOFFMAN, 1982, p. 27). Ele desvia para se integrar,
como, de certa forma, atesta o discurso de um informante fisiculturista:
[...] os marombeiros de verdade [os fisiculturistas] não vão contra a
ordem, contra a natureza. A sua natureza. Eles apenas fortalecem
ela, ajudam ela aumentar seu potencial para se tornarem seres
maiores e mais fortes. Vencedores. E isso é natural[...]É isso que
a natureza quer[...] não se sentem envergonhados com seu corpo
masculino, têm orgulho dele, isso é normal! Por isso é que querem
manter e aperfeiçoar esse corpo. Então, é a maior hipocrisia esse
negócio de proibir anabolizante. A maconha, a cocaína, a heroína,
vá lá [...] elas acabam com o cara [...] a gente só quer é manter
a saúde [...] e, se o cara souber usar, ele não vai ter problema
nenhum. Eu uso “bomba” há 12 anos e nunca tive nada, porque
eu me cuido, sei usar... ilegal, então, deveria ser o implante de
silicone, dessas porcarias que essas patricinhas e dondocas tão
fazendo... também o cara que corta, que opera o pinto pra virar
mulher, isso sim é ilegal porque é antinatural [...]” (Bruno. 29
anos. Atleta e segurança).
Esse discurso da normalidade, negacionista dos males provocados
pelos esteroides, homofóbico, heterocentrado e normativo, naturaliza o
que é social, indicando que o fisiculturista – ao menos parte significativa
deles – não deseja “fugir do sistema, lutar contra ele”, “viajar” para outra
dimensão ou “encontrar uma verdade dentro de si”, como fazem alguns
dos usuários de drogas dionisíacas. Construir um mundo igualitário e

96
DROGAS DE APOLO

mais justo também não faz parte de suas concepções de relações sociais. O
bodybuilder pretende tornar-se vencedor, ícone de sucesso, representante
de homem tradicional, bem-sucedido, colocando-se dentro dos parâmetros
estabelecidos pela ordem entendida por ele como natural ou normal. Suas
representações de saúde e harmonia naturalizam a construção social que ele
faz de seu corpo, de sua visão política e de relação social. Sua viagem – se
é que assim pode ser chamada – é a do esforço para reforçar e conservar
as normas e os valores da cultura dominante. Ele, para ser o que é, tem
que estar em conformidade com os padrões estéticos dominantes e buscar
otimizá-los, preservando-os, ou aprimorando-os, sistematicamente. Suas
novas representações e práticas só são novas se comparadas ao ethos mais
acentuadamente hedonista e desviante peculiar aos usuários das drogas
dionisíacas (VELHO, 1998). O fisiculturismo, ao menos a partir de sua con-
solidação nas décadas de 70 e 80 do século XX, pode ser considerado uma
prática esportiva eivada de valores conservadores e mesmo neoliberais. O
autoempreedimento de si, o corpo como vitrine, a imagem como negócio,
o consumo conspícuo da própria vida em um trabalho incessante e, muitas
vezes, sem amparo, o empreendedorismo individualista, a competição acir-
rada, o sucesso a qualquer custo e a total despreocupação com o próximo
são elementos comuns do discurso e das práticas desse grupo. Tudo isso,
porém, não impede que esporadicamente, ou mesmo frequentemente, alguns
dentre esses indivíduos utilizem drogas dionisíacas, embora raramente de
forma recreativa, com o objetivo estético.
Até o ano de 1998, as “bombas” podiam ser compradas sem qualquer
tipo de impedimento em farmácias por qualquer pessoa. Com o gradativo
aumento de casos de morte de usuários, além de câncer, falência hepá-
tica, entre outros problemas noticiados pela imprensa, afora distúrbios
de personalidade, o governo federal proibiu a venda dessas drogas para
pessoas sem autorização médica e impôs, mesmo aos médicos, um limite
de prescrição aos pacientes e passou também a combater a entrada no país
de anabolizantes importados (art. 28 port. 344/98), por reembolso postal
e tráfego aéreo, meios utilizados pelo narcotráfico para burlar a legislação.
Já que o consumo encontra-se, cada vez mais, limitado por leis que fazem
da posse e do uso, ou venda, dessas drogas um delito sancionável penal-
mente, o consumo frequente dessas substâncias tem ficado, cada vez mais,
restrito, limitando a distribuição a fontes ilícitas dificilmente acessíveis
às pessoas comuns, além de promover o fortalecimento de um mercado
negro que envolve desde o tráfico internacional até donos de farmácias que
97
CÉSAR SABINO

vendem essas substâncias. Com efeito, para que alguém possa começar a
utilizar “bombas”, deve também iniciar sua participação em um grupo que
“se encontra organizado ao redor de uma série de valores e atividades”
(BECKER, 1971, p. 65), compartilhando o ethos desse grupo. Fora que os
esteroides não são utilizados sozinhos, mas sempre acompanhados de
outros fármacos, de dietas e suplementos alimentares. Fato é que quanto
mais profissionalizado o campo se torna, mais o uso de substâncias ilícitas
aumenta, causando muitas vezes mortes.
Em 1995, por exemplo, foi veiculada a notícia da morte do alemão
Andreas Münzer, 30 anos, campeão mundial de fisiculturismo, devido à
falência hepática pelo uso de anabolizantes. Em 1998, o fisiculturista brasileiro
Enzo Perondini, 35 anos, foi à imprensa denunciar o tráfico de drogas nas
academias dizendo que estava com câncer de fígado devido ao uso contínuo
dessas substâncias. Em 1999, a imprensa anunciou a morte da tricampeã
brasileira de fisiculturismo Lúcia Helena Gomes, 33 anos, também por falên-
cia hepática devido ao uso de esteroides anabolizantes. Do ano de 2003 em
diante, as mortes de fisiculturistas têm aumentado – apenas os mais famosos
são noticiados, em geral profissionais. No dia 2 de julho de 2005, morreu,
aos 37 anos, o competidor Paul de Mayo, por uso de esteroides com heroína.
Em 25 de agosto de 2017, foi a vez do bodybuilder estadunidense Rich Piana,
resgatado em casa após sofrer um colapso cardíaco. Foram encontrados 20
frascos de esteroides anabolizantes em sua residência, e sua namorada rela-
tou que ele havia sido viciado em ópio e cocaína. A fisiculturista australiana
Meegan Hefford, de 25 anos, também morreu em 2017 por problemas renais
relacionados não apenas ao uso de esteroides, mas também ao uso excessivo
de suplementos proteicos. Em 17 de agosto de 2014, morreu Mike Matara-
zzo, que já havia passado por operação cardíaca devido ao uso de esteroides
e outras substâncias. Em 19 de setembro de 2019, o fisiculturista inglês, Ben
Harnett, 37 anos, morreu por uso contínuo de esteroides e cocaína. No Brasil,
o fisiculturista Mateus Ferraz, 23 anos, campeão paulista e brasileiro, também
morreu pelo mesmo motivo, em 27 de setembro de 2016. Em 22 de agosto de
2017, o estadunidense Dallas McCarver, 26 anos, morreu de ataque cardíaco
enquanto se alimentava. A princípio não relacionaram sua morte ao uso de
esteroides, porém sua autópsia acusou problemas renais, hepáticos, câncer de
tireoide e parada cardíaca por uso excessivo de esteroides. Em 2013, morreu
Nasser El Sombaty, 47 anos, conhecido mundialmente como um dos maiores
fisiculturistas profissionais, por falência renal devido ao uso prolongado de
esteroides. Nascido na Alemanha, filho de um egípcio, Sombaty era fluente
98
DROGAS DE APOLO

em cinco idiomas e formado em História, Sociologia e Ciência Política,


conhecido, por isso, como “o professor”. A lista é grande e não para de crescer,
mas são noticiados, como disse, apenas os mais destacados e famosos e quase
nunca os amadores. Assim, ainda há: Daniele Secarecci, 2013, 33 anos; Luke
Wood, 2011, 35 anos; Art Atwood, 2011, 37 anos; Mat Duval, 2013, 40 anos;
Ed Kavac, 2016, 51 anos; Ed Van Amsterdan, 2014, 40 anos. Alex Azarian,
2015, 45 anos. É preciso reiterar que esses são fisiculturistas famosos, a
maioria no mundo todo; a quantidade mortes certamente é muito maior se
for levado em conta os fisiculturistas amadores espalhados pelo mundo. Eu
mesmo, durante o período que frequentei as academias, presenciei a morte
de dois fisiculturistas do sexo masculino e uma fisiculturista. Enfim, morrer
de overdose, por esteroides anabolizantes misturados com outros fármacos e
drogas recreativas ou dionisíacas, coadjuvantes, é acontecimento comum que
faz parte da existência do grupo. Sacrifícios humanos necessários para manter
a tradição e a ordem do ritual suicidário característico dessa tribo urbana.
A ética ascética dos marombeiros se configura como atitude peculiar
da “geração saúde” fisicalista em que a instrumentalização de substâncias
tóxicas não passa apenas pela busca efetiva do entorpecimento. A contra-
dição é que a busca pela saúde como ideal pode levar ao adoecimento e à
morte. Nem todos os praticantes de academias de fisiculturismo podem ser
considerados, devido a sua idade, membros exemplares da “geração yuppie”
(young urban professionals) ou “geração fim do milênio”, mas compartilham,
em geral, valores radicados na construção de uma aparência muscularmente
“saudável” com todas as suas consequências. Esses indivíduos sustentam um
ethos no qual há ausência de utopias sociais, aceitam a sociedade “tal como
ela é”, demonstrando, não raro, visões politicamente conservadoras, não
objetivando construir nada de diferente do que já existe. Não se posicionam
à esquerda do espectro político como o grupo dos fumantes de maconha
e consumidores de cocaína, “vanguardistas-aristocratizantes”, estudados
por Velho (1998, p. 186), nem hedonistas ao modo do grupo de surfistas
consumidores de marijuana, também por ele estudados. São indivíduos
que apenas “querem subir na vida”, ascender economicamente e conseguir
sucesso no que fazem, olhando com total desconfiança atitudes que não
sejam compatíveis com sua ética individualista da disciplina. São pessoas
pragmáticas, que não dão muito valor à erudição e sim ao conhecimento
prático que possa trazer retorno financeiro rápido. De fato, há mesmo, entre
eles, um anti-intelectualismo. Em geral, são profissionais liberais (advogados,
administradores, engenheiros, entre outros), estudantes universitários e
99
CÉSAR SABINO

alguns secundaristas. Enfim, tais pessoas são representantes de uma classe


média carioca que tem como utopia única a utopia urbana – segundo Velho
(1978) – de “morar na Barra da Tijuca”34, ostentando o status de “emergente”
ou novo rico; em geral apresentando propensões políticas à direita. Talvez
seja possível afirmar que transitamos da chamada “geração cabeça”, da década
de 60 do século XX, para a “geração saúde” do início de milênio. Geração
que busca, na ostentação da forma, a demarcação das intensas diferenças
sociais presentes na sociedade brasileira, inscrevendo, em seus corpos, as
visões e divisões de mundo que remetem às relações de poder e dominação
constitutivas da sociedade a qual pertencem.

2.4 ENTRE APOLO E DIONISOS

Seria exemplo de ingenuidade acreditar na separação estrita entre os


usuários de drogas dionisíacas e apolíneas incorrendo no erro de confundir
o modelo da realidade com a realidade do modelo. Essas categorias são
tipos ideais e não passam de uma acentuação, um exagero, de determinadas
características que não estão presentes, de forma pura, na realidade social
(WEBER, 1997). Portanto, se parecem expressar um binômio estático, isso
é um engano. Tal ilusão é proveniente de serem categorias com limitações
peculiares inerentes à linguagem científica que busca, ao menos nesse caso,
uma aproximação compreensiva de uma realidade sempre dinâmica e, por
vezes, fugidia. Sendo assim, é necessário ressaltar, por exemplo, que o grupo
de indivíduos classificado como apolíneo não apresenta sempre a conduta
aqui relatada como constituindo um tipo de socialização. Ocorre, muitas
vezes, trânsito entre o consumo de drogas, o que ressalta o fato de que a
divisão proposta não pode, e não deve, ser estática. Alguns bodybuilders
transitam do uso do Deposteron e da Deca Durabolin, por exemplo, para a
maconha, não apenas com o objetivo de inverter as estruturas, em um ritual
esporádico de contestação estrutural, mas pelo fato de descobrirem que essas
drogas, apesar de suas características entorpecentes, podem, em alguns casos,
ter efeitos associados, segundo os usuários, aos fármacos da forma. Sendo
assim, o uso excessivo de esteroides pode surtir efeitos contrários, como

34
De acordo com Velho (1978), Copacabana foi o bairro escolhido pela classe média em ascensão na década de
1970, à época, o status ambicionado, era morar no bairo que passou a ser chamado de ‘princesinha do mar, o que
provocou uma especulação imobiliária com apartamentos ínfimos em espaço e prédios colados uns aos outros –
prática de construção que mais tarde foi proibida. Atualmente, o bairro da Barra da Tijuca exerce esse papel na
geografia carioca, como o espaço geográfico dos novos ricos, ainda desprezados pela aristocracia carioca. Não
é por acaso que nesse bairro existe o maior número de academias de musculação da cidade (JB, 16/05/99. p. 3).

100
DROGAS DE APOLO

euforia, estado de alerta e, até mesmo, surtos psicóticos – embora eu jamais


tenha visto. Esses sintomas são denominados na literatura internacional
como “steroid rage” ou, de forma abreviada, “roid rage” (FUSSEL, 1991). Os
relatos seguintes, colhidos durante o trabalho de campo em uma academia
renomada de Copacabana, atestam tal interpretação:
Eu sempre quis ter um corpo perfeito. Malho35 há muitos anos.
Em 1996 conheci uns caras que me deram várias dicas sobre como
tomar bombas. Fui tomando tudo que me diziam que era bom
para crescer; fiz tudo quanto é ciclo, tomei todos os esteroides [...].
Comecei a tomar 1ml por semana. Alguns meses depois comecei
a fazer ciclos completos porque eu queria competir, aí eu usava
quatro tipos de esteroides ao mesmo tempo. Às vezes eu injetava,
às vezes tomava comprimidos. Depois, como eu queria emagrecer,
passei a cheirar; passei a usar [...] porque ela inibe minha fome.
(Mário. 28 anos. Fisiculturista).
Este outro relato é ainda mais esclarecedor:
Para conquistar [esse corpo] usei muita coisa mesmo. [Sou um] um
laboratório [risos]. Experimentei de tudo. Usei todos os esteroides,
insulina e até pó e maconha. Como eu queria ser um grande
fisiculturista achava que esse era o caminho certo para conseguir
competir com o máximo possível de definição. Aprendi a tomar
‘bomba’, a fazer os ciclos, a usar todos os remédios e vitaminas
para diminuir os efeitos colaterais. Tomei de tudo; tive hepatite
medicamentosa e fiquei careca, [risos]. Mas o pior foi quando
descobri que a cocaína fazia a fome passar... porque quando a
gente está em período de pre-constest [época de preparação para
as competições] a gente faz de tudo para emagrecer, come peixe
cru, passa fome, usa laxante, bebe água de bateria de carro ao
invés de água normal [...] Porque a água de bateria é destilada e
então ela não fica retida no organismo como a água normal que
tem sais minerais. Quando a água fica retida – e é por isso que
a gente não come sal, porque o sal retém água no organismo – a
gente fica sem definição muscular, a aparência fica meio gorda,
só inchada, percebe? [...] (Daniel. 34 anos. Fisiculturista).
Há, nesses casos de uso de entorpecentes por parte de fisiculturistas
e usuários assíduos de academias de musculação, a ausência do aspecto
específico de sociabilidade que os estudos de Velho (1998) destacaram sobre
o consumo de tóxicos por camadas médias urbanas da Zona Sul carioca.
O que ocorre é um individualismo que instrumentaliza as drogas – tanto
35
Significa treinar e, segundo Silva (2014), um termo cada vez menos utilizado pelos usuários das academias.

101
CÉSAR SABINO

apolíneas quanto dionisíacas – como meio de otimizar a forma física, por


sua vez, instrumentalizando essa última como veículo de afirmação de status,
conquista de parceiros sexuais em mesmo nível estético e inserção social.
Essas práticas insinuam o surgimento de uma nova dimensão comporta-
mental fisicalista, do final dos anos 90 do século XX e início de milênio,
diretamente associada à classe média em ascensão e precedida pela “geração
dos yuppies” dos anos 80, os quais, assim como essa geração, desejavam a
integração plena ao sistema social como bem-sucedidos e abastados pro-
fissionais liberais, como sugeri anteriormente.
Não é possível descartar o aspecto de que os fisiculturistas atuais,
com seu tamanho e muscularidades singulares, apresentem-se (apesar de
uma primeira volição de se integrarem ao sistema dominante, uma carac-
terística física que beira à marginalidade) de forma ambígua em relação ao
uso de fármacos e drogas em geral. Como Mary Douglas (1976) ressaltou,
tudo o que é profano e marginal é portador de um certo quantum de poder
e, portanto, de fascínio. Se as drogas dionisíacas são itens profanos para
aqueles que fazem da forma física uma de suas razões de existência, elas,
dependendo da situação, podem ser utilizadas. O álcool, os alimentos gor-
durosos e pesados, os refrigerantes e os doces de todos os tipos (comidas
proibidas) podem ser considerados alimentos tabus durante a maior parte
do ano para os fisiculturistas e marombeiros.
Porém, durante festas (aniversários da academia, de algum instrutor
ou professor etc.) que poderiam ser consideradas exemplos de rituais de
inversão, tais alimentos podem ser consumidos como uma demonstração de
subversão das regras e relaxamento das imposições estruturais. Contudo o
que marca a singularidade em relação ao uso de novas e antigas drogas – ao
menos no caso específico dos fisiculturistas – é justamente a instrumen-
talização das drogas dionisíacas direcionadas para a construção da forma.
Se, por alguns grupos, as drogas dionisíacas são utilizadas para inverter as
estruturas sociais, ou afirmar uma individualidade libertária, ou mesmo um
paroxismo coletivo de contato com o sagrado (Santo Daime, p. ex.), não é
esse o sentido para grupo estudado. Nesse caso, ocorre a manifestação de
uma prática instrumental que radica, na forma corporal, seu objetivo para
aprimorá-la, como marca de distinção social, superioridade física, estética e
prática de dominação imagética. Corpo subsumido a sua imagem, ícone de
uma biopolítica que agencia e comanda a vida cotidiana regida pela busca
da juventude, do vigor, musculosidade e beleza, resumindo: busca pelo que
é considerado saudável.
102
CAPÍTULO III

Eu sou corpo e nada mais; a alma é apenas uma palavra que


designa uma parte do corpo [...] o corpo é uma grande razão, uma
multiplicidade unânime, um estado de guerra e de paz, um rebanho e
seu pastor.
(Nietzsche)

3 ÉTICA CONSUMISTA E ESTÉTICA DO ESTEROIDE

Como disse anteriormente, fisiculturistas utilizam com regulari-


dade fármacos (esteroides anabolizantes) que poderiam ser denominados
drogas masculinizantes, ao menos em culturas patriarcais, já que são drogas
constituídas, em geral, por hormônios masculinos sintéticos e, portanto,
virilizantes (androgênicos), que proporcionam não apenas a aquisição de
massa muscular acima da média, mas também aquisição das características
sexuais masculinas (surgimento de pelos por todo corpo, voz grave etc.)36.
Faz-se necessário compreender como o uso dessas substâncias está rela-
cionado à própria visão de mundo desse grupo que apresenta a tendência
para classificar indivíduos em função de sua relação com exercícios físicos
e sua aparência. O uso dessas drogas também está relacionado diretamente
à construção ritual da pessoa, além de indicar uma tendência à hipervirili-
zação da ética e da estética (androlatria) nas instituições de cultivo à forma
física, remetendo, ainda, ao surgimento de um novo tipo de consumo de
novas drogas. Consumo relacionado a representações e práticas opostas,
mas, por vezes, também complementares àquelas comumente associadas aos

36
Alguns praticantes utilizam hormônios fabricados para cavalos e para uso veterinário, como o Equifort e o
Androgenol, (como será tratado adiante), em geral, por acharem mais potentes que as substâncias direcionadas
para humanos. Na primeira semana de agosto do ano de 2000, a imprensa brasileira noticiou a morte do estudante
Jean Mendonça de Mesquita, de 23 anos, lutador de jiu-jitsu que participava de um campeonato no bairro da
Tijuca no Rio de Janeiro, devido ao uso de Potenay uma substância indicada para cavalos anêmicos. O atleta teve
infarto quando se preparava para lutar. Essa substância (Potenay) não é anabolizante, mas indica a tendência, entre
os marombeiros, de usar remédios para cavalos pensando alcançar maior eficácia. O Potenay é uma substância
vitamínica injetável com alto teor de anfetamina podendo causar arritmia cardíaca. O consumo de produtos para
cavalos e animais de grande porte tem aumentado entre os frequentadores assíduos das academias de musculação
e fitness. Xampus, pomadas, vitaminas, esteroides anabolizantes e, até mesmo, rações têm sido consumidos por
tais pessoas devido à representação social de força que tais substâncias portam.

103
CÉSAR SABINO

consumidores tradicionais de tóxicos37. Pretendo não apenas aprofundar


a compreensão de como o uso dessas drogas pode indicar uma tendência
de adesão a uma ética individualista, competitiva e masculinizante, inscrita
em uma estética corporal, mas também tentar elaborar uma melhor com-
preensão da importância que esses fármacos têm para a construção ritual
da identidade deste grupo, além de destacar as implicações teóricas que
esse fato social representa para a análise das atuais sociedades de consumo.
Por intermédio da observação participante, ou “participação obser-
vante” conforme Waquant (2002), foi possível compreender determinados
aspectos do cotidiano do grupo, como o uso e a venda das drogas citadas,
por exemplo, que seriam impossíveis de serem percebidos apenas com
entrevistas, conversas ou observações etnográficas superficiais. Na obser-
vação participante, apresentou-se a nítida percepção da diferença entre o
que é dito pelos informantes e o que é praticado, de fato, por eles (BECKER,
1971; 1994). Em relação ao consumo de esteroides, por exemplo, raramente
os usuários, quando perguntados por alguém estranho ao contexto, admi-
tem o uso.
Sem embargo, os dados recolhidos durante o trabalho de campo
sugerem haver, em relação a outros trabalhos que utilizaram surveys, uma
quantidade de usuários que supera os números apresentados em tais sur-
veys (ARAUJO; ANDREOLO; SILVA, 2002; IRIART; ANDRADE, 2002). A
pesquisa de Araújo, Andreolo e Silva, por exemplo, baseou-se em entrevis-
tas com 183 frequentadores de 14 academias de musculação da cidade de
Goiânia. De acordo com o resultado, tais praticantes de musculação con-
somem esteroides e suplementos; a creatina é o suplemento mais utilizado
(24%), e o fármaco denominado Deca Durabolin, o esteroide de maior uso
(21%) vindo logo em seguida o Hemogenin (16%). O consumo maior des-
ses produtos ocorreu em indivíduos com idade entre 18 e 26 anos (74%) e
nível médio de escolaridade (66%). Mais de 70% usaram tais componentes
químicos com o objetivo de ganhar massa muscular. Os consumidores de
esteroides relataram euforia (81%) e aumento de cravos e espinhas (94%);
e os consumidores de suplementos, aumento de sono (17%). As pesquisas,
em sua maioria, apontam para a ignorância dos pesquisados sobre os efeitos
dessas drogas como o principal fator propiciador do uso.

37
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), tóxicos são substâncias que “acarretam dependência
física e psicológica, tolerância e síndrome da abstinência”. Já droga é definida como “qualquer substância que,
introduzida no organismo, é capaz de alterar seu metabolismo” (BARBOSA, 1986, p. 1244). Os esteroides anabo-
lizantes acarretam dependência psicológica e tolerância, além de, obviamente, alterar o metabolismo orgânico.

104
DROGAS DE APOLO

Em quatro anos e meio de trabalho de campo realizado em 12 aca-


demias em bairros de classe média do Rio de Janeiro – da Zona Norte à
Zona Sul –, foi possível perceber que a ignorância seria, se não o último, ao
menos um dos últimos elementos que poderia ser considerado causador, ou
mesmo sustentáculo do uso de tais produtos químicos. Foram entrevistadas
310 pessoas (200 homens e 110 mulheres), e todas as pessoas entrevistadas
demonstraram conhecer os riscos que correm os usuários de tais compo-
nentes químicos. De fato, o conhecimento de tais riscos, ao contrário do
que supõem muitos pesquisadores, é um dos principais fatores que reitera o
uso, posto que o risco surge, entre o grupo, como algo positivo que reforça
a coragem individual e as estruturas hierárquicas do próprio grupo, já que
usar esteroides é parte da ritualística contínua de construção identitária
e arriscar a vida é fator crucial de valorização da experiência e reconhe-
cimento social. Reconhecimento ligado ao status nessa “tribo urbana”. O
devir suicidário38 presente no ritual é o elemento que o sustenta e o destaca.
Não foram utilizados questionários na pesquisa porque, conforme
dito, o pesquisador tornou-se quase parte do meio pesquisado. Como
dito anteriormente, as entrevistas foram realizadas de maneira informal
durante os anos de trabalho de campo. Logo após a saída do recinto, as
principais questões surgidas durantes as conversas eram anotadas em um
caderno de campo. Dentre os 200 homens entrevistados, 81% (162 pessoas)
disseram já ter utilizado esteroides anabolizantes. Dos que disseram utilizar
esteroides (muitos dos quais o uso foi observado nas academias), 70% (140
pessoas) possuíam idade entre 18 e 30 anos, 2% (4 pessoas), idade entre 15
e 18 anos e 9% (18 pessoas), idade entre 30 e 56 anos. 79% (128 pessoas)
disseram utilizar com frequência aumentando as doses no verão, época
de maior exposição dos corpos. Dentre os 81% que disseram utilizar tais
drogas, 58% (94 pessoas) disseram estar, à época, cursando ou ter cursado
universidade. Das 110 mulheres entrevistadas, 69% (76 pessoas) disseram já
ter utilizado, pelo menos uma vez, esteroides anabolizantes. Dessas, 30,2%
(23 pessoas) disseram utilizar com frequência, 58% (44 pessoas), apenas no
verão. A idade de 90% das usuárias (99 pessoas) situa-se entre os 16 e 24
anos, e 10% (11 pessoas) entre 25 e 36 anos. Do total de usuárias, 61% (67
pessoas) disseram frequentar ou ter frequentado cursos universitários. É
38
Trato como suicidário todo e qualquer comportamento que necessita do risco de morte ou arriscar constan-
temente sua existência para se manter. Todo amor ao risco intenso, toda propensão à diversão com a morte pode
ser considerada suicidária. Embora, a princípio, nada tenha a ver com sociedade de risco descrita por Ulrich
Beck (1996), a categoria suicidária remete a uma condição sistêmica que faz do perigo constante uma variável
fundamental para a compreensão das sociedades e grupos atuais.

105
CÉSAR SABINO

preciso ter em mente que, além de todos esses esteroides utilizados, não
raro em combinações de quatro tipo ou mais, existem inúmeros outros
fármacos consumidos em consonância, visando à melhoria do que consi-
deram “boa forma”.
Os principais esteroides anabolizantes – ou “bombas” como são cha-
mados pelos consumidores – utilizados nas academias pesquisadas são apre-
sentados a seguir, com suas funções, de acordo com os relatos – é importante
ressaltar que os efeitos descritos aqui são aqueles relatados pelos fisiculturistas
e não exatamente os que constam nas bulas dos medicamentos que não foram
criados para os propósitos desses atletas. Também é preciso frisar uma sazo-
nalidade no uso desses remédios nas academias. No período entre primavera
e verão, aumenta significativamente o uso e toda uma intensificação das
relações sociais em torno desse consumo ritual em uma variação que de longe
(apenas) lembra as variações sazoneiras das sociedades esquimós estudadas
por Mauss (1974a). As marcas que pude constatar no momento como as mais
utilizadas foram as seguintes:
Decadurabolin: (Decanoato de Nandrolona) a mais conhecida e
ingerida pelos bodybuilders nas academias cariocas. É moderadamente
androgênica (capacidade de produzir características masculinas), usada para
ganho de músculos (massa muscular) e pré-competição. Alguns fisicultu-
ristas disseram reter líquidos (ficam com aparência inchada o que provoca
o desaparecimento da definição muscular) o uso dessa droga. O que pode
ser percebido é que a Deca é utilizada como um esteroide “de base”, pois
é misturada com outras drogas naquilo que os fisiculturistas denominam
ciclos; ou seja: a mistura e o uso crescente ou decrescente de drogas com
objetivos específicos. De todos os esteroides, é o que apresenta o menor
efeito colateral, contudo pode ser detectado em exames antidoping até um
ano após o uso. É encontrado em ampolas de 25 mg ou 50 mg. Produzido
no Brasil pela AkzoNobel Ltda.
Durateston: (Decanoato de Testosterona; Fenilpropionato de Tes-
tosterona; Isocaproato de Testosterona e Propionato de Testosterona). Esse
esteroide é a soma de quatro compostos de testosterona. A intenção dessa
combinação é produzir uma ação imediata após a aplicação e mantê-la por
um período prolongado. É usada para ganho de massa e aumento de força
e peso e quase não retém liquido. Ampolas de 250 mg. Também fabricado
no Brasil, pela Organon.

106
DROGAS DE APOLO

Winstrol: (Stanozolol) esteroide de pouca retenção hídrica, mas com


pequenas taxas anabólicas (“faz crescer pouco”, como dizem os frequentado-
res das academias). Por ser considerado fraco pelos usuários, foi percebido,
durante o tempo decorrido da pesquisa, grande uso por parte das mulheres,
principalmente mulheres jovens querendo “definir” musculatura, ou seja,
baixar o nível de adiposidade. Esta lógica, fraco = feminino, de certa forma,
reitera as diferenças estruturais contidas nas classificações do grupo. Essa
droga é importada da Espanha e produzida pelo laboratório Zambon.
Hemogenin: (Oximetolona). Tida como a mais perigosa de todas as
drogas conhecidas entre os fisiculturistas. Mesmo assim, é muito usada, pois
ocasiona um rápido ganho de força e volume muscular, porém apresenta a
tendência de produzir rápida toxidade hepática, hipertensão e câncer.
Deposteron: (Cipionato de Testosterona) droga com alto potencial
androgênico, promove ganho rápido de força e volume muscular, porém
com perda rápida desses mesmos itens assim que passam os efeitos de seu
uso. De acordo com os relatos, é a maior responsável pelo surgimento de
ginecomastia entre os bodybuilders. Também apresenta alta retenção hídrica
e provoca aumento da pressão arterial, além de atrofiar os testículos dos
usuários. É produzido no Brasil pela Organon.
Equipoise: (Undecilenato de Baldenona) é de uso exclusivo veteriná-
rio, porém os fisiculturistas utilizam com frequência para o aumento rápido
da massa muscular e força. Em geral, os fisiculturistas utilizam essa droga
misturada à Deca Durabolin, ou ao Durateston, para aumentar o efeito
anabolizante. A apresentação é em caixas com seis ampolas de 2 ml cada. É
uma droga produzida na Itália pela LPB Pharmaceuticals.
Equifort: (Undecilenato de Baldenona) tem a mesma composição do
Equipoise e é para o uso exclusivo de equinos com problemas de distrofia
muscular, osteoporose, anemia aplástica, coquexia e anorexia. Dizem os
usuários que tal droga apresenta baixa probabilidade de causar ginecomastia.
É produzida pela Bayer.
Androgenol: (Propionato de Testosterona) outro esteroide para o uso
de equinos com deficiência de hormônio sexual masculino. Há, entre mui-
tos fisiculturistas, a concepção de que tais drogas, sendo veterinárias, (para
cavalos), têm uma ação “mais forte” que a das drogas para humanos; o que
parece ser uma concepção equivocada, pois os hormônios são os mesmos.
O uso dessas substâncias, além de causar acne, calvície, problemas cardíacos
(infarto do miocárdio), hipertensão arterial, complicações hepáticas, câncer,

107
CÉSAR SABINO

aumento de mamas nos homens, atrofia testicular, diminuição da produção


de espermatozoides e diminuição dos hormônios sexuais – e consequente-
mente da libido – também provoca distúrbios psicológicos (roid rages, como
denominam os pesquisadores americanos), como agressividade e paranoia.
Nas mulheres, provoca também atrofia do útero e das mamas, virilização,
como alteração na voz (voz grave), crescimento do clitóris, suspensão dos
ciclos menstruais e crescimento excessivo de pelos. Como foi dito, a maioria
dos usuários tem pleno conhecimento das consequências do uso de esteroides
anabolizantes – ao contrário do que supõem muitos pesquisadores planeja-
dores de políticas de saúde. O fato é que a maior parte dos sintomas descritos
demoram alguns anos a aparecer. O que leva a maioria dos jovens a pensar
que vale a pena arriscar um suposto futuro para ter um corpo socialmente
aceito e símbolo de status e sucesso agora ou no presente:
Ah, cara, tenho 20 anos, se quando eu tiver trinta, trinta e dois,
eu tiver doente, f**** [...] isso é um risco. A vida é isso: temos que
correr riscos, certo? Se quisermos conseguir as coisas [...] eu não
vou é ficar feio, gordo, sem pegar ninguém, apanhando dos outros,
sem conseguir emprego, sem ser respeitado agora, esperando chegar
aos 30, 40 com saúde... e se eu não chegar lá, e se eu morrer de
tiro na rua, com tanto assalto e briga que tem por aí [...] se eu for
atropelado? Entendeu? Então eu uso bomba mesmo e que se dane
o mundo!” (Pedro. 20 anos. Estudante).
Ou:
[...] de que adianta viver muito e ser um fracassado? Um infeliz
que não pega mulher, não consegue ser respeitado, não consegue
se olhar no espelho? É melhor viver pouco e feliz do que muito e
desgraçado. Se o diabo aparecesse para mim e dissesse: ‘cara, vou
te dar tudo que você quiser, mas vou deixar você viver só mais dez
anos’ eu ia topar na hora! (Mario. 27 anos. Personal Trainer).
Também:
Bom, no verão eu malho muito mais e tomo uns ‘produtos’ aí...
tenho que ficar gostosa! A mulher não pode se descuidar, a con-
corrência é muito grande. Tem que tá gostosona, sarada, com tudo
em cima, sem celulite, com a barriga sequinha se quiser arrumar
alguém, se quiser ficar com alguém ... homem está escasso no
mercado [risos]. Se a mulher não tiver legal ela fica até deprimida,
não dá nem pra botar um biquíni. Cê já foi à praia do Pepê? Só
tem mulherão lá, então não dá, né? Se quiser concorrer, se quiser
frequentar os locais legais com gente bonita, a mulher também
tem que tá bonita, no esquema. (Angela. 18 anos. Estudante).

108
DROGAS DE APOLO

Ainda:
Comecei a tomar bomba quando tinha 17 anos, porque entrei na
academia e um marombeiro disse que eu tinha uma estrutura
excelente para o fisiculturismo, que eu ia ficar enorme e definido
muito rápido e que se eu quisesse ele podia me treinar, então
comecei a treinar com ele todo dia a partir das 9 da manhã, já
na terceira semana ele me trouxe Deca e Durateston. Tomei e
comecei a crescer, em dois meses consegui ganhar quase 10 quilos
de massa seca! Logo comecei a competir, então não tem jeito. É
impossível alguém ser atleta hoje sem tomar bomba, e não é só
no culturismo não, isso é em tudo quanto é esporte. É impossível!
Não existe um atleta profissional que não tome bomba de vez em
quando. (Mário. 29 anos. Instrutor de musculação).
Fussel (1998) escreveu que os bodybuilders não nascem, são fabricados.
Essa fabricação demora anos. No caso de atletas, de oito a 10 anos. Quando
se trata de amadores, dois ou três anos já bastam para um corpo recoberto
por couraça muscular aparecer. São quatro horas diárias de exercícios, duas
horas pela manhã, duas à noite; seis dias por semana – entre amadores três
horas diárias já produz o efeito desejado. Nesse processo surgem lesões
por esforço repetitivo levando a cirurgias nos ombros, joelhos; bursites,
tendinites, artrites, hepatite medicamentosa, hipertensão, ginecomastia,
dores de cabeça e outros problemas associados ao uso prolongado de drogas.
No esforço de fabricação da forma, as drogas exercem papel crucial. Para
melhorar o desempenho nas academias, não só as substâncias descritas são
utilizadas, mas também todos outros tipos de hormônios: HGH (hormônio
do crescimento humano), hormônios para a tireoide, hormônios femininos,
além de anfetaminas, remédios para asma, com o objetivo de acelerar o
metabolismo e fazer o indivíduo emagrecer (Clenbuterol), diuréticos e, até
mesmo, cocaína e maconha. A primeira – cocaína – para conferir ânimo e
“ajudar a emagrecer”, a segunda – maconha – para “relaxar após o treino”.
Embora seja raríssimo acontecer.
Após meses de treino pesado, quando o verão está próximo e, não raro,
as competições, os fisiculturistas começam dietas radicais com o objetivo de
alcançar maior definição muscular. Por meio do uso de diuréticos, esteroides,
aceleradores de metabolismo (Clenbuterol e Efedrina) e consumo de água
destilada, associado à suspensão da ingestão de sal, carboidratos e todo tipo
de gorduras, a pele dos bodybuilders torna-se fina como o papel-bíblia, dei-
xando transparecer cada fibra muscular rodeada pelas veias. Nesse período,

109
CÉSAR SABINO

é muito comum ocorrerem desmaios nas academias. Também, durante as


competições, não é raro perceber nos bastidores indivíduos com o nariz
sangrando, com ânsias de vômito e desmaiando. A dimensão simbólica
desse fato não pode ser desprezada. A dor e o sofrimento aparecem nesse
contexto, como dito anteriormente, para reiterar as estruturas do grupo
conferindo autoridade e destaque àqueles que revivem sempre o calvário
da adoração muscular. Os riscos são recompensas a serem colecionadas e
guardadas; representam barreiras superadas, ascensão, ao menos simbólica,
no crescente mundo do fisiculturismo e das academias. Significa aquisição
de respeito entre os neófitos e entre os pares. Corpo e alma são, assim,
indissociáveis; produzidos pela prática e na prática social, forjados pelas
ações e aspirações de uma nova época. O esteroide anabolizante está para
os marombeiros e fisiculturistas como a maconha – chamada de Kaia – está
para os rastafaris, ou o chá de ayuasca para os fiéis do Santo Daime39, e os
hormônios femininos para as travestis. A própria construção identitária
do indivíduo no grupo está associada ao uso contínuo, ou esporádico, de
esteroides; e mesmo o risco de morte que eles apresentam contribui para
a valorização do ritual de construção identitária. De fato, muito mais do
que cultivar músculos, sobre-humanos, os fisiculturistas cultivam uma
ética representativa da nossa era: o indivíduo deve estar disposto a pagar
o máximo para atingir seus objetivos; o indivíduo deve ser livre para se
projetar e construir seu destino; o indivíduo deve possuir autonomia para
construir seu corpo, subjugando-o a sua mente; o indivíduo deve submeter
e enquadrar a matéria aos ditames da razão instrumental. A liberdade indi-
vidual é um valor incontestável, o crescimento econômico depende dessa
liberdade, a qual permite empreender; cada um deve cuidar do seu corpo
como sua primeira propriedade ou mesmo empresa – o que lembra em
parte John Locke e bastante Robert Nozik. Em suma, os valores presentes
no bodybuilding estão muito próximos dos valores neoliberais.
39
Como vem indicando a mídia esportiva, esse processo tem se estendido para outros esportes, principalmente
os profissionais. Assim, por exemplo, a matéria publicada na revista Carta Capital, de 18 de fevereiro de 2004,
sugere (talvez de forma um pouco exagerada) que o futuro dos esportes está no interior dos tubos de ensaio e nas
cobaias transgênicas. Há que se destacar que testes antidoping não são realizados, ao menos até o momento, em
campeonatos de fisiculturismo, entre os jogadores de rugby nem entre os atletas do basquete norte-americano
(NBA). Justamente esses esportes têm sido apontados como exemplo de mutação muscular sofrida por seus
atletas nos últimos 20 anos. Segundo a matéria da revista (p. 36): “qualquer um que tenha visto alguns minutos
de jogos antigos – de cerca de 20 anos atrás – do basquete profissional americano, ficaria impressionado com a
evolução do físico dos jogadores. Hoje, os jogadores da NBA são mais pesados e notavelmente mais musculosos.
O jogo é jogado de acordo com a estética do esteroide. O que antes era um esporte gracioso e geométrico- atletas
procurando espaços abertos, pensando em termos de ângulos de passes – é agora primariamente dominado pela
agressão; os jogadores gravitam no mesmo espaço e tentam passar por cima um do outro”.

110
DROGAS DE APOLO

Além dos aspectos relacionados aos preceitos subjetivos e objetivos do


campo das academias de musculação e fisiculturismo, talvez existam outros
fatores sociais que contribuam para o crescente consumo de fármacos entre
os frequentadores dessas instituições. Um deles está no hábito comum, em
nossas sociedades, de ingerir substâncias farmacológicas como meio de
resolver, ou ao menos minorar, as dificuldades da vida. Haveria, conforme
Nascimento (2003), um condicionamento das pessoas aos medicamentos
fazendo com que os indivíduos, ainda bebês, sejam tratados com xaropes,
sedativos e gotinhas neurolépticas. As frustações experimentadas tendem
a ter uma contrapartida nos fármacos consumidos. A pessoa cresceria,
de acordo com esse ponto de vista, condicionada a buscar resolver seus
problemas e angústias com substâncias farmacológicas, bebidas alcóolicas
ou outros tipos de drogas. O modelo estaria, portanto, na própria família
condicionando a vida dos indivíduos desde a sua tenra infância. De acordo
com a autora: “as pessoas tendem a procurar na medicina as soluções para
grande parte de seus problemas e limitações. Buscam em medicamentos e
drogas mudar o seu temperamento, a sua personalidade, o seu estado de
espírito” (NASCIMENTO, 2003, p. 137; também ILLICH, 1975). Essa bana-
lização do consumo de drogas, farmacêuticas ou não, teria como argumento
central o período turbulento pelo qual as sociedades globalizadas estariam
passando e a correlata diminuição da resistência das pessoas em tolerar o
acirramento de pressões. Haveria um mal-estar coletivo que afetaria prin-
cipalmente as populações dos grandes centros urbanos
Produto, em grande parte, do capitalismo globalizado, essa espécie
de síndrome coletiva apresentaria também raízes culturais. Luz (1997, p.
18) argumenta que transformações recentes observadas na cultura estariam
propiciando a
[...] perda de valores humanos milenares nos planos da ética,
da política, da convivência social e mesmo da sexualidade,
em proveito da valorização do indivíduo, do consumismo, da
busca de poder sobre outro e do prazer imediato a qualquer
preço como fontes de consideração e status social.
Radicada nos meios de comunicação de massa, essa mudança de
valores se traduz em “incertezas e apreensão quanto ao como se conduzir
e ao que pensar e sentir em relação a temas básicos como sexualidade,
família, nação, trabalho, futuro como fruto de uma vida planejada etc.”
Nessa sociedade de risco e de desencaixes (BECK, 1996; GIDDENS, 1991),

111
CÉSAR SABINO

a busca por uma válvula de escape, que possa estar inserida no consumo,
reproduzindo-o, toma vulto como parte significativa da existência de um
número significativo de indivíduos. Assim, o uso de drogas e fármacos em
geral – que Duarte (1999, p. 22), seguindo Illich, denomina “medicamen-
talização” – seria uma das respostas a esse mal-estar generalizado. Para os
consumidores, elas agiriam como uma defesa frente às agressões impostas
pelo estilo de vida contemporâneo.
A decisão de consumi-las seria o resultado de uma fatalística e ilusória
escolha entre droga e tensão, formando um trágico círculo vicioso. Nesse
movimento de consumo, as pessoas tenderiam a procurar nas drogas as “solu-
ções” para grande parte de seus problemas e limitações. Buscariam mudar
sua inserção social, seu comportamento, sua forma física, personalidade
e estado de espírito. Na esteira dessa tendência, a indústria farmacêutica
– afora a das drogas efetivamente ilegais e a indústria de suplementos ali-
mentares que funciona com a mesma lógica do lucro crescente – amplia seu
mercado gradativamente, recorrendo à forte difusão de informações, com
argumentos sedutores para vender a ideia de que seus produtos promovem
a alegria de viver e a saúde. A cada novo lançamento de produto, estratégias
de marketing são direcionadas aos profissionais da saúde e da estética que
exploram a insegurança e os desejos dos consumidores. Esse fato provoca
o aumento gradativo do uso dessas substâncias entre os frequentadores
de academias e consultórios (NASCIMENTO, 2003). O já clássico estudo
de Dupuy e Karsenty sobre o poder dos fármacos esclarece tal processo:
[...] o medicamento aparece verdadeiramente como um objeto
mágico. A magia consiste, na realidade, em atuar sobre alguma
coisa, dominá-la, atuando sobre um sinal desta coisa. É, de
fato, o que se observa com o medicamento: o sujeito que toma
um produto na intenção de atuar sobre seus sintomas, sinais
de sua fragilidade e de sua condição mortal, tem a ilusão de
agir sobre estas últimas e de dominá-las. Pode, assim, encon-
trar um sentimento de segurança sempre que ameaçado.
Em nossas sociedades, onde a técnica é considerada como
suscetível de resolver todos os problemas, os instrumen-
tos de dominação mágica do mundo que encontramos nas
sociedades ditas ‘primitivas’ foram substituídos por objetos
técnicos. O medicamento é um deles (1979, p. 191).
Com efeito, a fragilidade e a condição mortal refletida, de imediato,
no processo inexorável de envelhecimento abrem uma possível via de
atuação dos empreendimentos consumistas exacerbados e reproduzidos
112
DROGAS DE APOLO

pela publicidade que exerce papel efetivo, não apenas na construção da


identidade dos frequentadores assíduos de academias de ginástica e mus-
culação, mas também no cotidiano de milhões de pessoas que são levadas,
pelos discursos especializados, a procurarem um produto que lhes garanta
a saúde, entendida, não raro, como boa forma e juventude.
Os meios de comunicação, ao mesmo tempo que veiculam e fazem
propagandas dos últimos padrões estéticos em voga, vêm anunciando a gra-
dativa transformação dos corpos nas últimas décadas. Periódicos não apenas
estampam fotos das mulheres consideradas as atuais beldades paradigmáticas,
mas trazem também matérias que acusam algumas dessas mulheres – prin-
cipalmente entre as famosas formadoras de opinião: atrizes e modelos – de
estarem perdendo uma das principais características do que tem sido consi-
derado feminilidade em nossa cultura: a cintura; retratando uma tendência
estética fisicalista presente na sociedade atual perpassada pelos ideais da
prática diária de musculação e exercícios para emagrecer conjugados com
dietas, consumo de suplementos alimentares e esteroides. Esforço indivi-
dual e coletivo justificado pela propaganda da forma, realizada pelos ícones
da indústria cultural que (re)produzem e são produzidos por conjuntos de
representações sociais sobre estética, saúde e boa forma. Nesse aspecto, repito
com Guattari e Rolnik, não se pode contrapor a produção subjetiva, produção
de subjetivações, à produção econômica, pois simultaneamente a sociedade
capitalista desenvolve um trabalho material e semiótico por intermédio das
relações sociais constitutivas das organizações e instituições. A produção de
subjetividades – valores, desejos, formas de sentir, classificações etc. – cons-
titui mesmo a matéria-prima de toda a produção capitalista, posto que, sem
esse aspecto simbólico, as relações de poder não são possíveis da forma que
se realizam (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p. 27-28).
Essa “imposição” sociocultural da forma física tem levado ao surgi-
mento de um novo tipo de consumo de novas drogas e ao fortalecimento da
indústria da manutenção da aparência física. Inúmeros estudos científicos
vêm apontando as influências culturais produtoras de variações morfoló-
gicas em determinados grupos sociais. McCreary e Sasse (2000) ressaltam
que modelos de revistas, comerciais de TV, atrizes e personalidades em
geral veiculam, implícita e explicitamente, a concepção de que as mulheres
de sucesso devem ser mais magras, musculosas, exercitadas e submetidas
constantemente a dietas. Ao escreverem sobre a crescente obsessão entre
mulheres pela aquisição de um corpo ideal, os autores indicam que até mesmo
bonecas têm reforçado a adoção de um padrão estético fora da realidade.
113
CÉSAR SABINO

Ao estudarem essa influência, demonstraram que o perfil corporal


da Barbie atual, sua constituição física, apresenta significativa distorção,
pois, se tal modelo fosse transposto para a realidade, a probabilidade de
uma mulher real apresentar tal corpo seria de 1 em 100.000. Ressaltam que
o mesmo ocorre com os chamados bonecos de ação direcionados para os
meninos. Esses brinquedos ostentam musculatura hipertrofiada conjugada,
supostamente, a um percentual de gordura baixíssimo, impossível, ainda, de
ser adquirido até mesmo pelos mais destacados campeões de fisiculturismo
profissional do mundo atual, em épocas de competições (POPE; OLIVAR-
DIA; PHILLIPS, 2000). Essa muscularidade e magreza (baixo percentual
de adiposidade, alto percentual de massa muscular) acaba significando,
em nossa cultura, sinais de positividade, levando número significativo de
homens e mulheres adultos e adolescentes ao consumo de esteroides ana-
bolizantes, outros hormônios e produtos em busca da forma física ideal,
concebida como a chave para a aceitação e ascensão social, enfim para o
sucesso (DEL PRIORI, 2000).
No dia 18 de Fevereiro de 2001, um dos jornais de maior circulação
do país (O Globo) veiculou matéria apontando o fato de que a modelagem das
grifes nacionais está diminuindo cada vez mais, tentando obrigar mulheres
mais roliças ou “com corpo violão” a se enquadrarem nos padrões mor-
fológicos atuais que primam pela aparência magra ou musculosa da atual
ditadura da beleza e da moda. Perguntados sobre essa tendência, os donos
de grifes e costureiros alegam que é uma onda mundial e que “a mulher
magra e longilínea fica sempre mais elegante”. Em outra matéria, no mesmo
periódico, sobre o carnaval carioca e sua tradicional exposição de corpos nus
na mídia, foi abordado tema parecido: algumas mulheres-ícones na mídia
brasileira (consideradas padrões de beleza) estão, cada vez mais, musculosas
devido ao constante uso de hormônios androgênicos e próteses de silicone:
[...] [algumas] mulheres conseguiram finalmente perder a
feminilidade. Estão com pernas de jogador de futebol, braços
de estivadores, barrigas de tanque de lavar roupa e, de tanto
tomar ‘bomba’ para secar a gordura [e aumentar a massa
muscular], estão parecendo uma drags. É a vitória das tra-
vestis [...]. (O Globo. Caderno Ela. Sábado 03/03/2001. p. 4).
Não se trata aqui de tomar a doxa midiática como padrão de conhe-
cimento sociológico, mas de levar em conta o surgimento de novas ten-
dências e posturas sociais que a mídia expressa de forma preconceituosa
ou não. No caso específico, tais matérias são sugestivas, pois esboçam uma
114
DROGAS DE APOLO

tendência ética (também estética) presente na atualidade que denominei


anteriormente androlatria: adoração, tanto por parte de homens quanto
de mulheres, dos princípios morais e éticos constitutivos da masculinidade
hegemônica40, considerados símbolos de superioridade e sucesso econômico
e social (SABINO, 2000a; 2000b; 2002; 2003). O esforço para transformar o
corpo em uma espécie de display que ostenta a volição da eterna juventude,
saúde, força e beleza – leia-se tais itens como músculos e/ou baixa por-
centagem de adiposidade – pode ser o indício do surgimento de uma nova
forma de dominação radicada em novos dispositivos de poder atuantes na
sociedade atual. Além de representar também a efetivação de tendências
racionalistas e disciplinares (LUZ, 1988; FOUCAULT, 1993; WEBER,1995;
RABINOW,1999), que parecem espalhar-se pelo mundo globalizado. Nesse
movimento de apologia ao músculo, o fisiculturismo representaria a síntese
perfeita das tendências somatófilas vigentes. Some-se a isso, a peculiaridade
sociocultural brasileira, na qual a beleza corporal condensa seculares relações
de dominação calcadas na raça, gênero e classe; e a estética é a marca de
excelência moral que confere ou não direito à cidadania, abrindo oportu-
nidades que vão de empregos até ascensão social via trocas matrimoniais,
reiterando o que um dos mais famosos compositores brasileiros, Vinicius
de Morais, cantou: As feias que me perdoem, mas beleza é fundamental
(JARRIN, 2017). Se o padrão europeu dominante tem se tornado menos
intenso em relação à textura capilar e cor de pele a beleza está relacionada,
ainda e agora, à simetria de traços faciais, proporcionalidade corporal,
ausência de adiposidade e musculosidade ressaltada ou definida

3.1 DO ASCETISMO AO HEDONISMO

A utilização de esteroides anabolizantes e androgênicos, como via de


mudança corporal e construção de identidade em academias de fisicultu-
rismo, é um exemplo de racionalização prática ligada à disciplina corporal.
Segundo Foucault, o crescimento do saber organizado coincide com a
ampliação da extensão das relações de poder, especialmente com a prática
do controle sobre os corpos no espaço social. Desenvolvendo estudos sobre o
surgimento do conhecimento criminológico e seu controle sobre o corpo do
40
De acordo com Kimmel (1998), não existe apenas um tipo de masculinidade, mas várias e subordinadas à
representação do que é ser homem bem-sucedido (portanto “homem”, de fato e verdade) nas sociedades de culturas
patriarcais: vencedor, forte, competitivo, destacado, rico, resistente à dor física e emocional, viril e que jamais foge
dos desafios. Aqueles homens que não se enquadram nesse modelo, que sob inspiração do conceito gramsciano, o
autor diz ser o modelo hegemônico, fariam parte de masculinidades representadas como periféricas e inferiores.

115
CÉSAR SABINO

delinquente no espaço social da penitenciária, o autor apresenta o esquema


do panóptico de Bentham como o modelo ideal posteriormente adotado
pelas instituições disciplinares (escolas, exércitos, hospitais e fábricas) para a
elaboração funcional de “corpos dóceis”, adaptados a então nova conformação
institucional das sociedades europeias. Nesse processo, o surgimento da
medicina clínica e da psiquiatria científica coincidiu com o desenvolvimento
da arquitetura dos hospitais, das fábricas e dos manicômios, nos quais os
corpos desregrados foram submetidos a uma crescente disciplinarização.
Seguindo esse raciocínio, torna-se possível perceber que a organização de
determinadas disciplinas, como a demografia, a geografia, a saúde pública,
a sociologia e outras, pode ter representado um possível fortalecimento
do controle social dos corpos no espaço urbano (FOUCAULT, 1988; 1993;
TURNER, 1990; DELEUZE, 1995; RABINOW,1999; MAIA, 2003). Os
estudos de Foucault sugerem – ao contrário da tradição platônica, para a
qual o conhecimento seria o caminho para a supressão da suposta condição
cativa do ser humano aos ditames da natureza (PLATÃO, 1996) – que os
avanços do conhecimento não levam necessariamente à libertação irreme-
diável dos indivíduos e de seus corpos do controle e da coerção externos,
mas podem significar a intensificação de novas tecnologias de regulação
social (DELEUZE, 1995). Porém não se deve pensar esse saber-poder como
algo nefasto e coercitivo, sempre negativo e opressor, mas também como
força produtora da realidade social e individual. É possível perceber o pro-
cesso de gradativa administração corporal que se afigura a partir do século
XVIII e que retrata a utilização das tecnologias disciplinares (dos saberes
administrativos aplicados aos corpos), como empenhadas em aprimorar
tais corpos para o uso e adequação à ética religiosa.
Como exemplo de trabalho sobre esse processo de racionalização,
Bryan Turner (1990) escreve sobre o discurso da dieta indicando que essa
era um componente básico referido tanto à medicina quanto à religião –
como forma de, por um lado, evitar doenças relacionadas ao consumo de
alimentos considerados prejudiciais e, por outro, evitar aqueles alimentos
que também eram considerados estimuladores da libido e perturbadores
do bom funcionamento espiritual geral. Medicina e ética religiosa estavam,
portanto, diretamente associadas. O tratamento do corpo era uma via para
o aprimoramento religioso do espírito. Assim, o ascetismo que, gradativa-
mente, toma conta das instituições seculares, escolas, fábricas, hospital e
prisão é antecipado pelo ascetismo dos monastérios, nos quais os corpos,
durante séculos, foram subordinados à disciplina cotidiana. Os tratados
116
DROGAS DE APOLO

sobre administração dietética combinados com a exortação religiosa tor-


naram-se populares nos séculos XVII e XVIII. Os “regimes” associados à
dieta médica conformaram um perfil específico de administração do corpo.
A dieta conjugada com exercícios ao ar livre apresenta-se no cenário das
sociedades europeias como uma solução proposta pelos médicos às desor-
dens físicas e espirituais (WEBER, 1981; SYNNOT, 1993).
A sobriedade à mesa, relacionada à dietética, refletir-se-ia sobre uma
vida regrada e ascética como meio de alcançar a bem-aventurança. Segundo
Cornaro, um médico religioso do século XVIII, a dieta produzia benefícios,
como: estabilidade mental e controle das paixões, levando à temperança e à
sobriedade, visto que as paixões violentas eram consideradas as principais
produtoras das doenças, tanto orgânicas como sociais. A dieta, portanto,
era percebida como uma defesa contra as tentações da carne e uma arma
para o aprimoramento espiritual (CORNARO, 1776 apud TURNER, 1990).
Esse discurso médico, perpassado de religiosidade ascética, estenderá
seus domínios para a então nascente Saúde Pública, que se consolidará no
século XIX e que terá nas disciplinas Nutrição e Demografia seus pilares
principais41. O adoecimento passa a ser entendido como consequência do
abuso individual e do desregramento sanitário e as classes baixas, a região,
par excellence, da doença. Tais classes, segundo a concepção em voga na
época, seriam incapazes de compreenderem e se adequarem plenamente aos
avanços do verdadeiro conhecimento científico proveniente das insurgentes
instituições disciplinares e, por isso, necessitariam da intervenção efetiva do
Estado em seu cotidiano. Com a passagem do capitalismo mercantil para o
industrial, o corpo apresentar-se-á como corpo trabalhador; em sua forma,
estará inscrita o conteúdo de uma nova administração da vida social. Os
discursos dietético e dos exercícios, embora ainda com conotações morais,
tomarão perfil científico, modulando o aspecto religioso direcionando-se
ao laico. O corpo será chamado a expressar novas demandas surgidas em
41
É importante notar como essa postura ascética já se encontrava presente nos monastérios medievais. O
consumo de carne em grande quantidade pela nobreza guerreira é atestado pelos historiadores que ressaltam o
fato desse consumo para simbolizar força, poder e proximidade com a natureza : “a carne vermelha [...] tem [...]
um papel importante na alimentação dos poderosos [...] a força é identificada à carne [e] também à quantidade
de alimento que se come [...] a habilidade para comer mais rápido do que os outros é um sinal de nobreza”. Pelo
fato de a carne representar a secularidade, os monges buscavam, ao contrário dos nobres, comer moderadamente
evitando a presença da mesma em suas refeições: “a renúncia à carne – sinal de violência e morte, símbolo da
natureza física e da sexualidade – é uma constante na espiritualidade monástica desde a origem da experiência
cristã” (MONTANARI, 1998, p. 294, 298). Mas também é necessário destacar que, na maioria das sociedades
complexas, há tradicionalmente maior consumo de vegetais do que de carne. Segundo o historiador Henrique
Carneiro (2003, p. 63), “à exceção da Europa, praticamente todas as civilizações foram essencialmente alimentadas
por vegetais”. Porém o autor destaca que, mesmo nessas, ocorria maior consumo de carne vermelha restrito às elites.

117
CÉSAR SABINO

novos contextos sociais, econômicos, políticos, culturais e eróticos. A bio-


logia, e toda ciência em geral, fornecerá a base necessária para a construção
do corpo calcado na sexualidade (LAQUEUR, 1994). A ciência da nutrição,
amparada nos estudos sobre a entropia relativos à termodinâmica42, passa a
elaborar a mensuração dos efeitos das perdas e aquisições de calorias aplica-
das ao aprimoramento da força dos soldados e da administração carcerária.
Busca-se a combinação de uma dieta mínima com a máxima produção
de energia, e isso será largamente aplicado à administração da força de
trabalho, provedora de força muscular para o então capitalismo industrial
emergente (TURNER, 1990; FEATHERSTONE, 1990; SANT’ANNA, 1994;
1995; RODRIGUES, 1999; DEL PRIORE, 2000).
O corpo, nessa sociedade industrial, passa agora a ser informado não
mais pela sobriedade religiosa, mas pelas tabelas de calorias e proteínas e
pelas regras dos exercícios de otimização da força. A moral passa a radicar-se
empiricamente na mensuração da aquisição e perda das energias e da apli-
cação dessas em instituições disciplinares. Ocorre, portanto, uma espécie
de domesticação física, na qual a racionalização progressiva das práticas e
dos discursos passa a atuar sobre o corpo relacionando-o às necessidades
sociais que se apresentam a esse mesmo corpo e à força que ele porta e
suporta (ELIAS, 1990; ELIAS; DUNNING, 1994).
A partir do início do século XIX, as tecnologias simbólicas utilizadas
pelos religiosos passam a ser articuladas com o objetivo laico de produzir
bens para o consumo. Essa insurgente sociedade de consumo preocupa-se,
agora, em preservar o corpo enquanto instrumento não apenas de trabalho,
mas também de lazer. O corpo passa a ser visto como uma ferramenta a ser
preservada, otimizada, administrada; e o indivíduo torna-se o responsável
perante essa sociedade pela manutenção dessa ferramenta. Ele deve coor-
denar sua saúde, aparência, higiene; e deve divertir-se. A moral individual
transforma-se em reflexo desse corpo, medida pela forma como o indivíduo

42
Os estudos da termodinâmica, iniciados no século XIX, introduziram nova abordagem na Física que até
então se baseava na concepção newtoniana de que qualquer estado de um sistema mecânico poderia, ao menos
teoricamente, ser bidirecionalmente reversível desde que se soubesse as trajetórias e as velocidades dos corpos
constituintes do mesmo. Nesse sentido, o tempo seria reversível, pois qualquer trajetória de qualquer corpo
poderia ser retraçada em uma ou em outra direção. Com a entropia, grosso modo, perda de energia no sistema,
introduz-se uma diferença irreversível entre os estados desse mesmo sistema – esse passa a ter princípio e fim,
que não são intercambiáveis e indiferentes entre si. Com tal irreversibilidade dos sistemas, introduz-se na ciência
a noção de “flecha do tempo”; o que inviabiliza, portanto, uma série de explicações de fenômenos mediante a
ótica da simples causalidade mecânica, necessitando-se da adoção de modelos probabilísticos para sua descrição
científica, que passa a perceber os sistemas como instáveis. A medicina e as disciplinas ligadas à saúde vão adotar
essa descoberta em sua forma de representar o corpo humano (CAMARGO JR., 1993).

118
DROGAS DE APOLO

cuida de si, de tal instrumento que passa a retratar sua índole e que se torna,
gradativamente, uma espécie de vitrine de seu ser. Longe de apresentar-se
apenas como um empecilho a ser domado para o bem-estar da alma, o corpo,
com a criação do lazer, torna-se veículo do prazer (SANT’ANNA, 1994; 1995;
ONFRAY, 1999). E, se é necessário, ainda, e cada vez mais, administrá-lo, por
vezes asceticamente, para a potencialização da produção; essa administração
apresenta-se pari passu como meio de aprimoramento circunstancial das
técnicas de aquisição do prazer, portanto para o direcionamento da maxi-
mização deste nas denominadas “horas de folga” do trabalho. Lazer que se
torna direito e necessidade de todos, em uma ética romântica do consumo
complementar à ética protestante (CAMPBELL, 2001).
Cria-se, portanto, uma espécie de racionalidade administrativa para
o gerenciamento do devir individual com o objetivo de direcioná-lo para
potencialidades dionisíacas que devem ser liberadas em determinados dias da
semana ou momentos de quebra da rotina de trabalho. A mesma racionalidade
que cria o ascetismo laborioso passa também a ser utilizada para concretizar
a diversão hedonista, permitindo uma espécie de folga na conjuntura do
mundo da produção; mas impondo-se, ao mesmo tempo, aos indivíduos
enquanto dever. Dever de se divertir. No caso da alimentação, por exemplo,
conforme ressaltou Jean-Louis Flandrin (1998), vai-se da dietética – retirada
dos monastérios e espalhada para a sociedade – à gastronomia (ciência do
comer bem), libertando-se a gula. Apolo e Dioniso entrelaçam-se na dança das
tecnologias da dominação e do agenciamento populacional. A administração
da diversão e a diversão administrativa refletir-se-á na disciplinarização do
corpo ao tempo do trabalho, à velocidade social e às demandas do sistema.
O tempo livre de lazer deverá, segundo os requisitos dos especia-
listas, ser utilizado para promover a saúde; passando essa, então, a ser
traduzida pela forma de um corpo jovem, belo, ágil e forte, por intermédio
das técnicas dos exercícios e dietas. Aparece conjugada ao lazer, a lógica
da produção do corpo exemplar. Uma lógica da produção laboriosa nos
espaços de trabalho que transforma-se em uma lógica da produção do corpo
saudável nos espaços de diversão: controle de funções cardíacas, enrijeci-
mento muscular, enquadramento de peso em tabelas padronizadas, dietas,
equilíbrio emocional, e assim por diante. A saúde, radicada na excelência
da forma, torna-se um bem valioso a ser conquistado e, simultaneamente,
um diferencial, uma valoração distintiva entre vitoriosos (bonitos, fortes
e saudáveis) e fracassados (fracos, feios, portanto doentes ou propensos ao
adoecimento). No entanto, apesar de todo esse processo, o mesmo sistema
119
CÉSAR SABINO

que cria tal construção da saúde, por intermédio dos exercícios e dietas,
tende a ameaçar a vida, poluindo, congestionando, exaurindo corpos e
músculos pelo excesso de trabalho e exploração de recursos naturais. E o
“lazer terapêutico” (SANT’ANNA, 1995, p. 83), que reitera a necessidade
de um corpo saudável e belo (confundindo sempre um aspecto com outro),
não passa de um dos efeitos do poder inerente ao sistema social, criando
atividades de cunho lúdico para a otimização das forças que constituem
esse corpo enquanto consumidor e objeto a ser consumido na produção de
uma nova organização social. O corpo-objeto será formado com “o desejo
de si”, desejo que se debruça sobre o corpo concebido como conjunto de
feixes de músculos e nervos, instrumento de trabalho e de prazer, máquina
que deve se apresentar limpa, com bons aromas e reluzente. Ao indivíduo
se impõem o dever e a necessidade de manter as peças dessa máquina nas
melhores condições possíveis, por intermédio da articulação do conjunto de
saberes relacionados às, e aprimorados pelas, emergentes ciências da saúde;
quais sejam: exercícios com peso, ginástica, dietas e caminhadas ao ar livre.
Todo esse processo leva parte significativa da sociedade ocidental
a criar uma espécie de cultivo à forma, de somatofilia, “de desejo de seu
próprio corpo através de um trabalho insistente, obstinado e meticuloso
que [fruto daquilo que] o poder exerceu sobre o corpo sadio” (FOUCAULT,
1993, p. 146). Todo esse discurso que fundamenta nossa atualidade é sutil
por se apresentar sempre como uma liberação do corpo (LE BRETON,
1990; CAMPBELL, 2001; DEL PRIORE, 2000). Essa liberação, hoje, não é
mais do que o elogio do corpo jovem, higiênico, sadio, esbelto, bronzeado
e com definições musculares. Percebe-se que, por meio de todo o conjunto
simbólico midiático-publicitário, impõe-se como liberação de uma espécie
de obrigação de cuidado do corpo: obrigação de se manter belo que pode
levar à estigmatização daqueles que não enquadram sua forma nos modelos
e valores cardeais da cultura contemporânea.
Autoridade difusa que, em face da concepção de indivíduo peculiar
às culturas ocidentais, talvez sustente a eficácia de uma administração
coletiva. Talvez essa seja uma possível forma de tentar explicar o crescente
sucesso das cirurgias plásticas “reparadoras”, implantes de silicone, dietas de
emagrecimento, academias de musculação e ginástica, enfim da indústria
farmacêutica da estética e de complementos alimentares e cosméticos. Essa
racionalização instrumental tende a elaborar, mutatis mutandis, uma cultura
hedonista, consumista, respaldada na exaltação da satisfação dos anseios
individuais mais profundos levados ao paroxismo; hiperexaltação de desejos,
120
DROGAS DE APOLO

como aquisição de beleza, vitalidade e dominação. Esses signos acabam por


se transformar em espécies de imagens-objetos, representações sociais ali-
mentadas por intermédio das técnicas de marketing, apresentando-se como
convite a uma suposta satisfação plena (felicidade) e levando os indivíduos,
muitas vezes, a buscarem, a qualquer custo, a realização sempre adiada de
seus desejos insuflados pela máquina da produção de bens simbólicos. Esse
processo de autossatisfação suprema, que segundo Christopher Lasch (1979)
fundamenta uma espécie de cultura do narcisismo, torna, por vezes, difícil
a prática da reciprocidade solidária devido ao hedonismo que comporta e
conforma. Desejo de si que parece ter se fortalecido, tendendo a tornar-se
uma espécie de mandamento das compulsões consumistas radicadas no corpo
transformado em imagem-valor, novo instrumento do lucro a ser investido
não apenas em competições rituais, mas nas crescentes redes sociais. Uma
economia das trocas imagéticas se consolidando e produzindo um novo tipo
de mais-valia a ser extraída 24 horas por dia, sete dias da semana mediante
novas tecnologias da informação (CRARY, 2016).
Sobre esse processo paradoxalmente simultâneo de ascese e consumo
inerente à cultura ocidental, o trabalho de Campbell apresenta enfoque sin-
gular. O autor investe contra as teorias economicistas que tentaram expli-
car as origens da compulsão pelo consumismo típico do capitalismo atual.
Corrigindo um desvio teórico que desprezou a importância do movimento
romântico na história, ele avalia suas consequências relacionando-as às
mudanças provocadas pela Revolução Industrial. Campbell argumenta que o
hedonismo autoilusivo43 e o binômio sentimento/intuição – em detrimento
da autoridade/razão – foram determinantes para a constituição da ânsia
pela novidade, típica do consumidor moderno. Assim, a burguesia além de
abraçar uma ética protestante, abraçou, pari passu, uma ética do consumo;
produto da corrente romântica que se queria antagônica ao ascetismo, mas
que acabou por celebrar com ele núpcias, formando um sistema regulado de
contenção e liberação dos desejos, consolidando “uma ética do consumidor”
(CAMPBELL, 2001, p. 18). Essa ética, longe de ser apenas produto do racio-
nalismo puro – em geral apontado pelos weberianos como fator primordial
para o fortalecimento do capitalismo –, foi produto contínuo da interação
desse com os fatores presentes e expressos no movimento romântico:

43
“Anseio de experimentar na realidade os prazeres criados e desfrutados na imaginação, um anseio que resulta
no incessante consumo de novidade. Tal perspectiva, em sua peculiar insatisfação com a vida real e uma avidez
de novas experiências, se acha no cerne de muita conduta extremamente típica da vida moderna e reforça as
bases de instituições fundamentais como a moda e o amor romântico” (CAMPBELL, 2001, p. 288).

121
CÉSAR SABINO

A lógica cultural da modernidade não é meramente a da


racionalidade, como se expressa nas atividades de cálculo e
experimentação: é também a da paixão e do sonhar criativo
que nasce do anseio. Todavia, mais crucial do que uma e
outra é a tensão gerada entre elas, pois é disso que... depende
o dinamismo do Ocidente. A fonte principal de sua inquieta
energia não provém apenas da ciência e da tecnologia, nem
tampouco da moda, da vanguarda e da boemia, mas da tensão
entre o sonho e a realidade, o prazer e a utilidade (CAM-
PBELL, 2001, p. 318, grifo do autor).
Longe de ser asceticamente reprimido, o desejo que impele ao con-
sumo é administrado, sendo, por exemplo – em um processo que Foucault
(1990) percebeu ocorrer com a sexualidade – incitado a se mostrar, regis-
trar-se, fazer-se presente, tornar-se objeto de verdade. Afinal, se há poder
há sempre contrapoder. Sem o consumo de mercadorias, que transforma
até mesmo os corpos dos consumidores em objeto de consumo, a razão
econômica do capitalismo não se sustentaria. Paradoxalmente, a jaula de
ferro da burocracia extrema (com sua tendência ao desencantamento do
mundo), para a qual Weber disse caminhar a vida do homem moderno, só
se sustenta porque esse mesmo homem remitifica seu caminho tentando
conciliar duas figuras ou tipos ideais que existem nele: o boêmio romântico
com o protestante asceta. A prática do fisiculturismo pode ser considerada
um exemplo dessa postura paradoxal.
Luís Fernando Dias Duarte destaca ainda outros itens referentes à
consolidação da cultura ocidental hodierna que são bastante úteis para a
compreensão sociológica desse processo hedonista de construção da forma.
Segundo o autor, a modernidade conferiu um caráter singular à sensibilidade
fazendo com que essa tenha uma história e, portanto, um sentido específico,
rebatendo-se na formação ideológica e institucional das práticas nas socie-
dades ocidentais. A ideologia e, consequentemente, a prática, nas sociedades
complexas atuais, sustentar-se-iam sobre três características importantes:
a perfectibilidade, a experiência e o fisicalismo. A primeira estaria radicada na
concepção – presente de forma clara, desde a obra de Rousseau – de que a
espécie humana tem a capacidade indefinida de se aperfeiçoar, de entrar na
senda disso que nós chamamos de progresso, o desenvolvimento, a trans-
formação ilimitada, a vanguarda, palavras essas fundamentais para a nossa
cultura (DUARTE, 1999). A segunda característica, a experiência, estaria
diretamente relacionada à primeira, posto que a perfectibilidade implicaria o
uso sistemático da razão, considerada um “mecanismo de verdade” encon-
122
DROGAS DE APOLO

trado impresso no interior de cada ser humano e que deveria sustentar sua
responsabilidade ativa em relação à divindade, a si mesmo e a outrem. Tais
perspectivas poderiam ser encontradas, mutatis mutandis, nas filosofias de
Descartes e Kant e sustentariam que o uso sistemático da razão permite o
avanço do ser humano em suas condições de relação com o meio. Nesse
processo, a experiência seria crucial, visto que a razão só viceja por meio
dela – da experiência – colocada em prática por intermédio dos sentidos.
A razão, portanto, a perfectibilidade, só funciona quando os seres humanos
articulam, via sentidos, sua percepção e relação com o mundo que os cerca.
Nesse movimento consolida-se a concepção de que as novas formas (racio-
nais) de relação com o mundo permitem a esses tornarem-se, eventualmente,
mais aperfeiçoados, mais capazes e senhores de seu futuro. Essa exaltação da
experiência, presente na cultura ocidental moderna, estaria, de acordo com
Duarte, na raiz de movimentos filosóficos e artísticos tão díspares quanto
o empirismo e o romantismo. O autor, inspirado na já citada obra de Cam-
pbell (2001) e em Schivelbusch (1993), escreve que o sentimentalismo inglês,
movimento histórico do século XVIII, influenciou o romantismo conferindo:
[...] a mediação gnosiológica, epistemológica, analítica nos
‘sentidos’ como veículo de instrução das atividades da mente
e a ênfase vivencial, ‘sentimental’, nos ‘sentidos’ como veículo
de articulação das relações humanas. Os sentidos estão tanto
na raiz da razão como na da ‘imaginação’ ou das ‘emoções’
e ‘paixões’. O fato cognitivo da ‘experiência’ se reduplica em
fato emocional (DUARTE, 1999, p. 25).
Nesse processo, a terceira característica é o fisicalismo, que completa o
quadro sumário de aproximação entre as formas modernas da sensibilidade.
O fisicalismo “é uma revolução” visto que instaura uma “separação radical
entre o corpo e o espírito (expressa, por exemplo, na filosofia de Descartes)”,
permitindo a concepção da corporalidade humana como dotada de lógica
própria, “que deve ser descoberta e que tem implicações imediatas sobre a
condição humana”. O fisicalismo, então, “é a consideração da corporalidade
em si, como dimensão autoexplicativa do humano” (1999, p. 25). Está aberta
a via para a concepção do corpo como um valor e o surgimento da cultura
das formas (GOLDENBERG; RAMOS, 2002). Os trabalhos referidos ao
bodybuilding, em geral, ressaltam apenas a dimensão do racionalismo ligado
à construção do corpo musculoso.
Sem embargo, Courtine (1995), em sua análise dos fisiculturistas
californianos, destaca apenas o aspecto puritano do que ele considera um
123
CÉSAR SABINO

narcisismo ostentatório. Abordagem que não enfoca, ao menos de forma


clara, essa outra dimensão radicada na exaltação dos sentidos presente no
cotidiano daqueles que constroem a forma musculosa como um dos obje-
tivos de sua existência. A dimensão festiva, os períodos de desregramento
social, as orgias alimentares e, mesmo, os sonhos sustentados pela atuais
mitologias das sociedades de consumo – repletas de heróis individualistas
que buscam realizar o mito de uma vida sem doenças, viabilizadora do
estrelato, ou de um suposto corpo imortal –, conforme ressaltou Lucien
Sfez (1996), ao diagnosticar o surgimento da nova utopia da saúde perfeita,
tendem a se contrapor à falência das grandes narrativas, mitificando os
próprios avanços científicos representados, por exemplo, pelos projetos
Genoma e Biosfera II.
O uso de componentes químicos para construir a saúde aparente
parece fazer parte desse processo de busca mítica que tende a ficcionalizar
os avanços tecnológicos e científicos na busca de uma realidade ideal agora
radicada no corpo e suas potencialidades. Processo cultural sustentado
pela prática específica de agenciamento corporal que hoje pode significar
nova modulação nas tecnologias de poder e dominação em uma sociedade
de controle (DELEUZE, 1995; RABINOW, 1999), na qual não apenas os
muros institucionais administram a vida dos indivíduos, mas também os
dispositivos de biopoder radicados e potencializados pelas novas tecnolo-
gias cibernéticas. Dispositivos abertos e contínuos que, baseados, dentre
outros aspectos, na busca do controle genético e biotecnológico, podem
estar traçando o esboço de uma nova conformação social.

3.2 DROGAS MASCULINIZANTES E INDIVIDUALISMO

É possível perceber, nas academias de musculação, como o indiví-


duo é considerado responsável pelo controle de seu corpo. Controle que é
desenvolvido gradativamente em um crescendo que acaba por se tornar uma
espécie de conversão por ele reconhecida mediante a análise comparativa
que realiza da sua vida antes de se tornar marombeiro e depois:
[...] antes de começar a malhar eu era magrelo e envergonhado.
Não tinha coragem de chegar numa mulher. Ficava só na minha,
desanimado... Aí, entrei pra academia, porque tinha um cara na
minha rua que tinha entrado e tava ficando grande e todo mundo,
as garotas, falavam:’ fulano tá ficando bonito, tá ficando com o
corpo legal...’ Eu fui e entrei, comecei a malhar em um ano já tava

124
DROGAS DE APOLO

pegando pesado e tinha aumentado dez quilos de massa magra


[...] minha vida mudou completamente. Passei a me respeitar, a
ter coragem de olhar no espelho e de olhar o mundo nos olhos e
a conseguir o que eu queria na vida. Hoje eu sei que posso, eu
mesmo, traçar meu próprio destino (Pedro. 23 anos. Estudante
universitário).
Essa concepção individualista que confere à pessoa a capacidade de
fabricar seu próprio destino perpassa o discurso tanto de homens quanto de
mulheres. A ela se soma o dualismo cartesiano entre corpo e mente, matéria
e espírito. O corpo aparece como objeto sobre o qual atua o poder da mente;
mero instrumento que deve ser aprimorado para que o espírito atinja seus
objetivos44. Esse aprimoramento deve contar com o imprescindível auxílio
da ciência, e é nesse ponto que as drogas apolíneas entram em cena:
Quando alguém faz exercícios deve concentrar a força da mente
sobre o corpo. Sobre aquele músculo que quer desenvolver. O
corpo obedece ... faz aquilo que a mente manda [...] você pode
construir o corpo que você quer, que você deseja; cada vez mais
a ciência vai desenvolvendo instrumentos que fazem as pessoas
superarem os limites genéticos. Os anabolizantes servem pra isso,
né?! Agora tem o GH [hormônio do crescimento] que faz o cara
crescer absurdamente e pelo que parece não tem efeito colateral
[...] só não fica bonito e forte quem não quer ou quem não tem
dinheiro. (João. 29 anos. Professor).
Ou,
[...] o corpo [é] fabricado, produzido, se o cara tem disciplina, força
de vontade. É claro, tem um preço [...] sem ‘bomba’ não cresce,
tem que tomar ‘bomba’. Cê vê, todo mundo tá tomando anaboli-
zante agora, essas atrizes [...] os atletas então, nem se fala. Então
tem que tomar, sem bomba não cresce. Já ouviu aquela frase dos
americanos: “no pain, no gain”; “sem dor não há ganho”. É isso
aí. (Carlos. 46 anos. Pequeno empresário).
Os pares de oposições binárias, anteriormente mencionados – fortes/
fracos, saudáveis/doentios, bonitos/feios – estão diretamente relacionados
com uma cultura, ou Weltanschauung, específica; não se deve desprezar o fato
44
O “poder da mente”, presente no discurso dos agentes sociais, mereceria um capítulo à parte no estudo do
fisiculturismo, devido às representações que permeiam a prática dos treinamentos. Em sua enciclopédia do
fisiculturismo, Arnold Schwarzenegger dedica um longo capítulo ao que ele denomina “o dínamo, a fonte de
energia vital” que conduz, de forma boa ou má, o corpo: “aonde a mente vai o corpo vai atrás” escreve, dando
conselhos como “a chave para o sucesso nas sessões de treinamento é transpor a mente para dentro do músculo”
(SCHWARZENEGGER; DOBBINS, 2001, p. 229, 232).

125
CÉSAR SABINO

de que a maioria dos marombeiros são indivíduos pertencentes às camadas


médias urbanas em busca de ascensão – radicada em disposições duradouras
como gostos de classe. Esses gostos, que reiteram a distinção social, tra-
duzem-se em signos exteriores, sendo a forma física o signo de distinção
por excelência do grupo estudado. A musculatura rígida e evidente surge
como sinal de distinção e poder; mas ter o corpo trabalhado, por máquinas e
fármacos, é diferente de ter um corpo de trabalhador (BOLTANSKI, 1979).
Destarte, o aspecto mais intrigante desse processo de construção cor-
poral da distinção é a adesão de algumas mulheres ao culto e cultivo de uma
estética, e mesmo de uma aparente ética, masculinizante. O modelo da mas-
culinidade hegemônica – o homem forte, destemido, independente e durão
– parece ser adotado por número significativo de mulheres das academias
que buscam conquistar posição de respeito no campo, construindo corpo
próximo ao modelo hipermusculoso. Fato presente não apenas nas academias
de fisiculturismo, mas também em algumas dimensões da sociedade atual,
como empresas, não no aspecto físico, mas ético – poderia ser denominado
Complexo de Piegan. Para a melhor compreensão desse aspecto, será utilizado
um exemplo etnográfico: entre os índios piegan do Canadá, existem mulheres
denominadas “coração de homem” (LEWIS, 1941 apud HÉRRITIER, 1989).
Nessa sociedade patriarcal, o comportamento feminino ideal é feito
de submissão, reserva, doçura, pudor e humildade. No entanto, entre eles,
existe esse tipo de mulher que se comporta sem reserva e modéstia, com
agressividade, arrogância e audácia. Os piegan homens aceitam essas mulhe-
res porque elas são poderosas. De fato, para ser uma “coração de homem”,
é preciso ter uma posição social elevada e uma excelente condição econô-
mica. Essas mulheres, todas casadas, conseguem orientar seus próprios
assuntos sem o apoio dos homens e, por vezes, nem deixam que os maridos
empreendam, seja o que for, sem seu consentimento. Algumas chegam a
se comportar como homens urinando publicamente, cantando músicas
masculinas e participando das conversas dos homens. O exemplo dessa
sociedade é sugestivo. Nela, essas mulheres conseguiram impor aos homens
sua aceitação. Eles, por sua vez, como indica o próprio termo que utilizam
para denominá-las, classificam-nas como tendo âmago masculino; ou seja,
elas estariam entre a masculinidade e a feminilidade pendendo muito mais
para a primeira.
Ousando seguir uma sugestão feita por uma frase de Dumont: “aquele
que se volta com humildade para a particularidade mais ínfima é que man-

126
DROGAS DE APOLO

tém aberta a rota do universal” (1993, p. 52), é possível propor uma breve
comparação da sociedade piegan, nesses aspectos específicos, com a nossa
ou ao menos com o grupo estudado. Entre eles, como entre nós, apenas as
mulheres com respaldo socioeconômico parecem conseguir realizar alguns
atos que são considerados privilégio masculino, e essa independência é
possível devido a esse poder que as torna independentes dos homens – ao
menos até o momento. Entre eles, também, como entre nós, essas mulheres
independentes tendem a adotar o ethos masculino. Por fim, existe a questão
semântica que classifica independência, empreendimento e audácia como
componentes da personalidade masculina radicando esses itens na própria
natureza biológica (GOLDENBERG, 1997), já que o coração de tais mulheres
é de homem; isto é, sua essência – se é que essa palavra pode ser aplicada
aos piegan – é masculina.
Na perspectiva nativa, tudo se passa como se a masculinidade domi-
nante trouxesse em si todos os atributos considerados necessários, tanto
por homens quanto por mulheres, à gerência da vida social (MUNIZ,
1992). A positividade de qualquer dimensão parece estar, portanto, asso-
ciada à tradicional condição masculina hegemônica. Promotor, imperioso
e desbravador, o sexo masculino representaria o centro irradiador das
virtudes humanas. Essas categorias inconscientes estão presentes tanto
no pensamento de homens e mulheres piegan quanto no pensamento de
nossos fisiculturistas. Talvez isso explique a crescente busca, por parte
de mulheres independentes, da adoção da ética masculina e, de certa
forma, do cultivo de corpos mais magros e musculosos tendendo à mas-
culinização, já que elas são obrigadas a reutilizar, contra os dominantes,
as suas próprias armas, tendo que aplicar e aceitar as próprias catego-
rias que pretendem demolir, integrando as mesmas categorias contra
a qual se revoltam (BOURDIEU, 1996b). Apesar de serem exemplos de
independência feminina, inconscientemente, tais mulheres – da mesma
forma que vêm fazendo os homens há milênios – semantizam a condi-
ção feminina tradicional, e tudo que a ela se relaciona, como condição
incompleta que deve ser evitada por todos aqueles que querem ser bem
sucedidos. Contra a violência simbólica, utilizam as próprias categorias
que a constituem enquanto tal. Portanto, não seria todo esse movimento
pós-revolução feminista de cultivo à forma musculosa e/ou magra – e o
uso de esteroides talvez apenas um pequeno exemplo – o prenúncio, ao
menos circunstancial, de uma androlatria que viria marcar uma parcela
das relações de gênero neste início de milênio?
127
CÉSAR SABINO

Esse processo também indica a radicalização do individualismo


presente nas culturas ocidentais, levando os seres humanos a considerarem
não apenas o corpo de outros seres humanos como objeto, mas também
o seu próprio corpo como tal. O corpo alheio (assim como o do próprio
indivíduo), e tudo aquilo que ele representa, da beleza aos órgãos trans-
plantados, é reduzido a uma espécie de mercadoria, objeto descartável
e plástico, passível de ser facilmente consumido e substituído por outro
(RODRIGUES, 1987; LUZ, 1988; DUARTE, 1999). A lógica do consumo,
o fetichismo da mercadoria, invade, dessa forma, dimensões significativas
das relações humanas, dos negócios passando pela medicina e chegando
aos relacionamentos amorosos (SIMMEL, 1993).
Ainda outra questão se apresenta em relação ao consumo de esteroi-
des anabolizantes por aquele(a)s que buscam a adesão ao modelo estético
veiculado pelos meios de comunicação atuais. Ao contrário de reduzir
sociologicamente o problema do uso dessas substâncias à escolha racional
e livre dos indivíduos, o que tende a perfilá-los como únicos e plenos res-
ponsáveis pela sua condição ilegal de usuários de drogas, torna-se neces-
sário encarar o processo como um fato social em toda sua complexidade,
reiterando a força e a plenitude da dimensão cultural na qual tais indivíduos
estão inseridos. Condição que os produz ao mesmo tempo que por eles é
inconscientemente (re) produzida.

3.3 RITUAL E CONSTRUÇÃO DE PESSOA NO FISICULTURISMO

Goldman (1985), em um trabalho sobre a construção de pessoa e


possessão no Candomblé, descreve e esclarece como o ritual tem a capa-
cidade de elaborar a identidade dos indivíduos no desenrolar de um pro-
cesso específico de interação social. Para o autor (p. 39), a fabricação da
divindade – já que o orixá ou “santo” é feito – “corresponde à gênese de
um indivíduo ‘novo’”. Essa construção processa-se gradativamente por
intermédio de ritos de passagem que fixam orixás na cabeça do indivíduo
e simultaneamente conferem-lhe novo status no grupo – já que o orixá
é também um componente da pessoa. Após 21 anos somente, quando o
sétimo orixá foi assentado, é que a pessoa está “pronta”. Nesse movimento
de ascensão na ordem simbólica, efetua-se também a ascensão na estrutura
social do terreiro. Cada santo assentado significa um patamar ascendido
na hierarquia do grupo. Quando o último assentamento se conclui, o indi-
víduo torna-se “senhor de si e de outros”. “Senhor de si” porque controla

128
DROGAS DE APOLO

seu transe, não sofrendo mais a possessão comum aos neófitos e iniciados
mais novos; “senhor de outros” porque torna-se tata, alguém que chegou ao
ápice da hierarquia social no terreiro e tornou-se uma pessoa completa. A
pessoa, nessa concepção, é considerada fragmentada, folheada, múltipla, e
todo o esforço do sistema, realizado ritualisticamente, parece voltado para
fundi-la em uma grande unidade que, enfim, nunca se realiza plenamente;
já que, segundo a cosmologia do Candomblé, os únicos seres plenamente
unitários são os orixás.
No campo da musculação, o processo é parecido. Tal afirmação não
significa que a musculação deve ser considerada uma religião, e sim que
determinados processos rituais são similares em instituições diferentes. Como
bem notou Bourdieu (1996a, p. 95), “o rito propriamente religioso é apenas
um caso particular dentre todos os rituais sociais”. A construção da pessoa no
fisiculturismo se realiza por meio da construção da forma física musculosa.
Essa construção não é tão bem delimitada como ocorre no Candomblé em
que o período de fabricação da pessoa já está mais ou menos estabelecido.
Nas academias de musculação, o processo é menos longo, levando de dois a
quatro anos – no caso de profissionais pode se estender por até 10 anos. Para
que um neófito torne-se um bodybuilder, tem que adequar seu corpo à forma
correspondente desse papel social; e, para que tal processo ocorra, de forma
considerada eficaz, ele necessita utilizar drogas. Assim, o uso da droga cons-
titui-se aqui como “um fato social total”, acontecimento de dimensões biop-
sicossociais, como escreveu Mauss (1974). Cabe ressaltar, porém, a dimensão
simbólica desse uso específico. Entre os marombeiros, há um rito de passagem
(TURNER, 1974) ou, como prefere Bourdieu, (1996a), um rito de instituição,
no qual o uso da droga surge como item crucial na transição do indivíduo de
um status para outro no campo da musculação. Esse relato, um entre muitos,
é um pequeno indício do que pode significar o uso de anabolizantes:
A primeira vez que tomei “bomba” foi o Paulão que me arranjou
e me aplicou também... eu tinha muito medo, mas sabia que
mais cedo ou mais tarde eu teria que tomar se eu quisesse chegar
aonde eu queria. Naquele dia passei a me sentir outra pessoa...
vi que começava a malhar de verdade, que participava de uma
espécie de... acho que... segredo... Fora isso o efeito foi muito bom.
Na mesma semana já tava pegando quinze quilos a mais no leg
press, todo mundo tava dizendo: Aí, hein, tá com maior pernão...
tá sarada. Diante disso só dá pra se sentir bem, né?! Cê se sente
forte, gostosa e poderosa [risos]. (Márcia. 29 anos. Economista
e Empresária).

129
CÉSAR SABINO

O início do consumo de anabolizantes pode ser considerado um


rito que consagra a diferença, instituindo-a. Esse rito ressalta a linha de
passagem entre um status – o de indivíduo comum – para a condição
de aspirante a outra posição superior. O que deve ser destacado é que a
hierarquia de papéis nas academias de musculação se inscreve no corpo
por meio da forma que esse gradativamente adota. Isto é, a mudança física
fabricada significa mudança de status, pois essa traduz a aquisição de capital
de competência – onde comprar as drogas, como utilizá-las, com quem,
quais os efeitos de cada uma, para qual objetivo cada uma delas se presta
–, além de capital corporal.
Esse rito delimita a distribuição de autoridade no interior do campo
por meio do que Lévi-Strauss (1975) denominou de eficácia simbólica; ou
seja, o poder, que é próprio do rito, de agir sobre a realidade agindo sobre a
representação que os indivíduos fazem dessa realidade. Portanto, nas acade-
mias, ao adquirir, pari passu, um corpo musculoso, o aspirante a marombeiro
vai sendo consagrado a um novo papel em conformidade com as camadas
musculares que adquire. Sua identidade fragmentada vai sendo construída
pelo processo ritual até que o indivíduo se torne um fisiculturista. Para que
isso ocorra, ele passará gradativamente por uma escala de papéis que vai do
neófito e passa pelo veterano. Contudo, diferentemente do processo ritual
estudado por Goldman no Candomblé, em que o indivíduo que se torna
chefe de terreiro não necessita mais pagar seu sacrifício que é, no caso, a
possessão; o marombeiro, mesmo que chegue a ser fisiculturista, terá sempre
que pagar o preço do sacrifício de tomar drogas e incorrer nos riscos que
o consumo dessas representa, pois sua pessoa está radicada diretamente
na forma que seu corpo apresenta. Como essa forma está sempre em risco
de se deteriorar – já que depende de drogas e exercícios –, sua identidade
como marombeiro também está constantemente ameaçada.
Esse processo de construção social da pessoa do marombeiro é similar
ao processo de construção da masculinidade, já que o “homem de verdade”
tem que estar constantemente provando a si e aos outros que é forte e macho
o bastante. O rito de investidura entre os frequentadores das academias se
realiza, primeiro, com o início do uso de esteroides e, posteriormente, por
meio de diversos tipos de festas e eventos para os quais passa a ser convidado.
Nesses, o indivíduo começa a desfrutar a sociabilidade exterior à academia,
consolidando sua posição no campo por intermédio do reforço das relações
sociais. O fato de ser convidado já significa o reconhecimento pelo grupo de
um novo status atingido pelo indivíduo devido a sua forma física. Esses ritos
130
DROGAS DE APOLO

vão demarcando as posições entre dominados e dominantes, entre aqueles


que são “fortes, saudáveis e bonitos” e os outros que são “fracos, doentios
e feios”. Nesse sentido, é possível repetir com Bourdieu (1996a, p. 100) que
as instituições são “atos de magia social”, pois “criam a diferença ex nihilo”.
Nesse processo, os esteroides parecem elixir, uma espécie de infusão
mágica que pode modificar a forma corporal do usuário. Esses fármacos
representam item fundamental nesse processo de construção estética dife-
rencial e masculinizante. Todos (as) os(as) usuários(as) sabem que seu uso
pode causar câncer, impotência sexual e até mesmo morte, por isso mesmo
representa papel importante nos ritos de instituição que compõem a cons-
trução de identidade entre os marombeiros. É a utilização do sofrimento
que faz com que esses ritos sejam o que são, pois os indivíduos aderem de
maneira tanto mais decidida a uma instituição ou organização quanto mais
severos e dolorosos tiverem sido os ritos iniciáticos a que se submeteram
(BOURDIEU, 1996a; TURNER,1974; LE BRETON, 1995).

3.4 A FORMA DA DOR

Antes de julgar ignorância ou falta de racionalidade o fato de alguns


indivíduos colocarem em risco a própria existência utilizando drogas,
é necessário focalizar o aspecto social que confere significado a tal uso.
Esse uso, frequentemente, está imerso em sistemas simbólicos com lógica
própria. Em se tratando do sistema simbólico inerente aos grupos sociais
das academias, a dor e o sacrifício aparecem como um preço a ser inevita-
velmente pago pela conquista de uma vitória presumível na construção de
uma identidade inerente à aceitação em um grupo restrito.
A demanda de significação face à dor experimentada ultrapassa o
sofrimento imediato: “Compreender o sentido de sua pena é uma outra
maneira de compreender o sentido da vida” (LE BRETON, 1995, p. 107),
pois todo grupo social define implicitamente a legitimidade de suas dores.
No caso das academias de musculação, ela – a dor – não apenas está pre-
sente no risco causado pelo uso dos esteroides, mas no próprio cotidiano
dos exercícios. O fisiculturista, por meio da sua prática, aprende a construir
um vasto mapa sensorial – um saber corporal – que classifica os tipos de
dor, alocando-os em mais ou menos danosos, construtivos ou destrutivos.
A dor (e o risco de morte e de lesões) é vista de forma positiva, e sua cons-
tituição é ritualizada de forma a conferir àquele que a sente e cultiva um
determinado papel construído por intermédio das interações sociais nas
131
CÉSAR SABINO

quais o próprio sentimento da dor apresenta-se como fator fundamental da


elaboração identitária. A capacidade pessoal de resistência ao sofrimento
doloroso – relacionada aos gradativos exercícios com pesos que acabam
causando lesões por esforço repetitivo e hérnias – é uma via de aquisição
de status no grupo, visto que também a concepção de dor purificadora
está presente nesse universo. Assim, o risco de morte e a intensidade da
dor sofrida realizam um processo ritual de construção do papel social que
se institucionaliza conferindo àquele que se submete ao processo uma
aceitação crescente.
O uso ritual e o sentimento da dor consagram a diferença, instituin-
do-a. Dor e drogas, no campo da musculação ou do fisiculturismo, fazem
parte de ritos de passagem, ou de instituição, que não apenas permitem a
passagem dos indivíduos de um papel a outro no grupo (BOURDIEU, 1996),
mas também reiteram as características específicas de status, já que a eficácia
e o poder daqueles que estão em funções de dominação devem ser cons-
tantemente provados por meio de ações que constituem as representações
de poder. O rito da dor e das drogas delimita a distribuição de autoridade
no interior do campo da musculação mediante o que Lévi-Strauss (1976)
denominou eficácia simbólica; ou seja, o poder, que é próprio do rito, de
agir sobre a realidade agindo sobre a representação que os indivíduos fazem
dessa realidade. Portanto, nas academias, ao adquirir, pari passu, um corpo
musculoso, o aspirante a fisiculturista consagrado (ao menos no seu grupo
delimitado) vai sendo alçado a um novo papel. Sua identidade – mesmo
sendo volátil, visto depender da brevidade da forma – vai se construindo
continuamente, e a dor e o risco de morte inscrevem-se como emblemas
em seu corpo moldando em sua carne o perfil musculoso do status dire-
tamente radicado na fugacidade. Fugacidade que acaba tornando-se a
tragédia daqueles que da forma extraem quase todo seu poder (SABINO,
2000; 2003). Por outro lado, quanto mais difíceis são as etapas pelas quais
um indivíduo passa para pertencer a uma instituição, e desfrutar seu status,
mais valor ele confere a essa (BOURDIEU, 1996; 2001; 2004; SEGALEN,
2002). A existência de distinção das dores45 entre os fisiculturistas demonstra
um entendimento sensorial do metabolismo muscular que as organiza em
45
Até a década de 20 do século XX, a dor apresentava papel diverso daquele que passou a apresentar pos-
teriormente com a crescente apologia do conforto inerente à sociedade de consumo. Com o surgimento de
substâncias para controlar a dor, ela foi relegada a uma dimensão exígua da realidade: “A dor física pertencia
à vida cotidiana, e não era vista como uma falha da medicina. Consumia-se uma quantidade muito menor de
analgésicos do que hoje em dia, e as pessoas, bem ou mal, se acostumavam a suas insônias sem recorrer a soní-
feros […]” (VINCENT, 1992, p. 324).

132
DROGAS DE APOLO

boas dores, aquelas que apontam para “um funcionamento construtivo do


músculo”; entenda-se tal aspecto enquanto crescimento muscular, e dores
más aquelas que apontam para lesões articulares. Assim, o edema muscular
pós-treinamento é o melhor sinal de que os exercícios estão fazendo efeito.
Eu ‘malho’ há seis anos e já tô viciado nessa dorzinha aguda que
dá dentro do músculo depois de cada treino bom... não sei viver
sem isso... no carnaval, quando viajo fico maluco!!! Me penduro
em árvore pra fazer flexão de braço, fico procurando bujão de gás
pra levantar... agora abriram uma academia lá em Araruama,
tomara que funcione nesse carnaval... não consigo ficar sem
malhar... quando paro de sentir o músculo doendo depois dos
treinos ou no dia seguinte, começo a ficar doente e deprimido
(Gabriel. 22 anos. Estudante).
Ao contrário da dor positiva, que ocorre após o que chamam “exercícios
de qualidade”, acionada pelo movimento do grupo muscular treinado, dor
que não produz qualquer impedimento à movimentação; há a dor negativa,
que é definida como mais circunscrita a uma determinada região e com
intensidade diversa diretamente associada à dificuldade de movimentação
daquele grupo muscular, ou mesmo membro. Enquanto a concepção de boa
dor está ligada à execução perfeita de exercícios e séries da musculação, a má
dor, ao contrário, é resultado de excessos e execuções equivocadas. Assim,
basta o diagnóstico de uma dor de intensidade diferente em local suspeito
para que o indivíduo portador dela seja classificado pelos especialistas nas
academias – professores ou fisiculturistas mais experientes – como pro-
penso a adoecer (sofrer lesão muscular ou de articulação) devido ao fato
de ter realizado de forma errônea seus exercícios. Nesse aspecto, pode-se
repetir com Le Breton (1995, p. 108):
Todas as sociedades definem implicitamente uma legitimi-
dade da dor que antecipa as circunstâncias sociais, culturais
ou psíquicas reputadas penalizáveis. Uma experiência acu-
mulada do grupo conduz seus membros a uma expectativa
da dor costumeira imputável a esses acontecimentos [...] a
sociedade indica simbolicamente o limite do lícito, ao realizar
tal processo se esforça para dissuadir os possíveis excessos.
Há, entre os fisiculturistas, portanto, uma ritualização da dor que
organiza os sentidos musculares e transborda em sentimentos sociais de
progresso na prática ou de recesso causado pela conduta errada. Tal aspecto
estende-se também à alimentação: enjoos, mal-estar, falta de disposição

133
CÉSAR SABINO

são tidos como uma espécie de variação desta(s) dor(es) causada pela má
conduta, consciente ou não, daquele que é o sofredor desses processos de
disfunção fisiológica. Entre eles, a dor negativa e perigosa é aquela que pre-
nuncia a impossibilidade de treinar, aquela que indica bursites, tendinites
ou problemas nas articulações dos joelhos e tal impedimento de treinar é
o castigo mais doloroso, visto que sua identidade está relacionada à forma
física, a qual depende de intenso treinamento diário para ser mantida.
Perder essa forma não apenas significa retrocesso e queda de status, mas
também a perda da própria identidade pessoal e consequente exclusão do
grupo; ou seja, morte social.
A performance muscular radicada na percepção das modulações
da dor46 é, grosso modo, o cerne da busca pela diferenciação em relação a
outros grupos e identificação dentro do próprio grupo de fisiculturistas:
[...] a dor, essa dor no fundo do músculo, quer dizer que a malha-
ção tá certa, cara; e depois você sente aquela sensação de leveza
depois da adrenalina do exercício [...] e se você sente isso você tá
crescendo, cê tá se diferenciando dos inferiores, dos comuns, dos
pangarés.(Carlos. 24 anos. Estudante).
A intensidade da dor aparece também como a via de ascensão hie-
rárquica e mesmo espiritual:
[…] é demais sentir cada fibra arrebentando quando você tá
malhando pesado e depois aquela dorzinha aguda no dia seguinte...
cada movimento que você faz ela tá lá te lembrando que você tem
o dever de continuar, que você deve voltar de novo pra academia
e fazer outra série mais pesada, mais dolorida, mais radical,
cara, pra crescer mais e mais e mais e se tornar um campeão. É
disciplina, e sem disciplina não se chega a lugar nenhum. Sem
dor não se ganha nada na vida... é um vício, se eu não sinto dor
no dia seguinte após malhar é porque alguma coisa tava errada,
é porque a maromba não foi direita, a malhação foi fraca, sem
efeito [...] no pain no gain. Essa é a diferença de quem malha sério
do resto que não malha. (Pedro. 29 anos. Funcionário público).
Os outros, nesse discurso, os “frangos” ou “pangarés”, são todos aqueles
que não têm inscrito, em seus músculos, a marca da disciplina rígida tradu-
46
Durante o tempo de trabalho de campo, percebi que o treinamento deve levar a um quantum de dor muscular
residual e também uma certa dor nos músculos e tendões. Esse aspecto atesta, entre os praticantes assíduos de
musculação, um treinamento eficaz. Saber diferenciar essa dor da lesão é fundamental para o fisiculturista, e tal
saber só é adquirido com a prática, em geral após sofrer lesão grave. O que se pode dizer é que o início da lesão
grave é atestado pela intensidade da dor que chega a limitar os movimentos.

134
DROGAS DE APOLO

zida na dor dos exercícios pesados e repetidos durante anos de prática nas
academias. Esse regozijo da dor, típico de um ascetismo singular, parece
significar que, em uma era na qual a busca pelo prazer tornou-se norma, o
sentido da dor é a única maneira de afirmar a vida sem se sentir igual a todo
mundo. Porém esse processo esquece que seu próprio movimento reitera
a reprodução pela busca incessante do gozo que a sociedade do consumo
e do espetáculo engendra. Arriscar a vida tomando substâncias tóxicas,
como esteroides e estimulantes, como efedrina ou mesmo insulina,47 é outro
aspecto da apologia ao risco e à dor que sistematiza a identidade do grupo:
Cara, eu não sei como te dizer o que sinto... posso tentar, sei lá...
sabe quando tu bota um pega [corrida de carro] e a adrenalina
vai a mil? Sabe quando tu tá de moto e tira um fino entre dois
caminhões ou faz aquela curva no Alto da Boa Vista, é isso... esporte
radical, entende? Tomar bomba, insulina é isso, é um risco, mas
dá prazer […] é o risco que dá prazer, que é bom [....] tudo que é
proibido é bom e o melhor é que além disso tu fica sarado, você
toma produto, curte e ainda fica bonito, não é o máximo? (Mário.
32 anos. Personal trainer e fisiculturista).
Essa combinação, aparentemente comum à sociedade de consumo,
induz os indivíduos a desejarem extrair sempre mais prazer de seu cotidiano,
combinando a ética do trabalho protestante – com sua disciplina e asce-
tismo – ao hedonismo e narcisismo de uma ética imediatista do consumo
(CAMPBELL, 2001; VILLAÇA; GÓES, 1998).
Além de saberem claramente dos riscos que correm – o que derruba
a tese do Ministério da Saúde de que o uso ocorre devido à ignorância dos
mesmos riscos –, os marombeiros em geral vêm a dor, e o próprio risco,
nesse sistema simbólico, diretamente associada a uma espécie de purificação
que poderia ser traduzida pela categoria de “perfectibilidade” (DUARTE,
1999, p. 24). A ideia, inerente ao imaginário ocidental – provavelmente
surgida com o movimento iluminista – de que a espécie humana é dotada
de uma capacidade de se aperfeiçoar indefinidamente,
[...] de entrar na senda disso que desde então [século XVIII]
chamamos de progresso, o desenvolvimento, a transformação
ilimitada, a vanguarda – palavras estas fundamentais para
47
O uso dessas novas drogas pode ser inserido em um processo típico das sociedades complexas ocidentais
denominado, por Ivan Illich (1975) e Duarte, “medicamentalização”. De acordo com o autor, esse movimento,
com o auxílio dos meios de comunicação de massa, exalta o uso do corpo, a construção de um corpo ótimo, a
maximização da saúde etc. (DUARTE, 1999, p. 22). Paradoxalmente, essa maximização por vezes acaba matando
aqueles que a empreendem por intermédio do várias iatrogenesis.

135
CÉSAR SABINO

nossa cultura, todas elas decorrentes da ideia de que nós


somos seres providos de uma capacidade de perfectibilidade
constante e indefinida que nos distingue dos demais seres
existentes sobre a face da Terra. (DUARTE, 1999, p. 25).
Nesse caso, a dor é o elemento que passa a conferir sentido ao sofri-
mento. A dor é suportada e necessária apaziguando uma possível ausência de
sentido para a vida que geraria o sofrimento como poder solvente da alegria.
A dor, com propósito, pode conferir sentido à existência apaziguando, assim, a
ausência de sentido como doença da alma. O uso dela – e até mesmo o prazer
nela contido – está relacionado a uma etapa de aprimoramento e conquista da
intensidade da existência e maximização do gozo subsumidos em um movi-
mento de sensibilização crescente do corpo e excitação gradativa dos sentidos
de modo geral. Contudo, a dor também tem função iniciática, está presente
em todas as chamadas técnicas corporais; ela acompanha os ritos de passagem
instaurando-se nos indivíduos enquanto memória inscrita na carne e signo
de pertencimento a um grupo social específico. Um número significativo de
grupos de jovens e adultos das sociedades complexas ocidentais imitam os
ritos de passagem das chamadas sociedades simples realizando lacerações na
língua, escarificações, piercings, tatuagens, escoriações, queimaduras, suspen-
sões por ganchos cravados na pele, bungee-jump48, etc.; práticas que podem
tomar sentidos diversos das originárias, mas que, da mesma forma, carregam
a dor, ou ao menos o medo, em seu bojo.
Destarte, tanto nessas sociedades quanto naquelas, essa experiência
da dor e do medo expressa uma espécie de mutação ontológica; passagem
de um universo social a outro, o que significa a entronização do indivíduo
em um estado existencial diverso. A cicatriz, ou a experiência momentânea
da proximidade da morte, traduz o pertencimento a um novo estatuto. Em
uma época em que a virtualidade é expressão cotidiana, as relações precá-
rias e passageiras, as imagens fugazes e o cotidiano eivado de experiências
turbulentas, a necessidade de sempre atualizar uma condição radicada na
reconstrução imagética se faz necessária. No caso dos fisiculturistas, em que
a imagem do corpo musculoso é a própria via de afirmação de sua identidade,
48
A suspensão por ganchos cravados na pele era parte de rituais de iniciação de tribos da América do Norte, o
bungee-jump, saltar de alturas elevadas tendo os pés presos por uma corda elástica, era praticado pelos nativos da
Oceania que prendiam os pés com cipós, as escarificações pertenciam aos rituais de determinadas tribos africanas,
a prática do piercing está relacionada aos rituais ameríndios. Essas práticas adotadas pelos grupos das grandes
cidades remetem aos estudos de Maffesoli sobre a proxemia volátil que ocorre nos grandes centros mundiais
nos quais se formam tribos urbanas organizadas em torno da construção de identidades calcadas na articulação
de vários símbolos e práticas específicas, em geral, absorvidas de outros contextos formando bricolagens. O
processo é denominado pelo autor de neotribalismo (MAFFESOLI, 1987; 1996).

136
DROGAS DE APOLO

os rituais constantes são necessários e sempre renovados, pois o corpo, fadado


inexoravelmente à decadência, sempre foge, de uma maneira ou outra, aos
padrões impostos pela sociedade49.
A necessidade do uso constante de drogas e substâncias especiais e de
variações de intensidade e extensão dos exercícios constrói um cotidiano iden-
titário que necessita ser ritualmente refeito a cada dia e no qual a experiência
do dor se faz necessária e inevitável. Os exercícios devem ser realizados até
as últimas consequências físicas, provocando dores musculares agudas, para
que os resultados sejam atingidos. De fato, se não estiverem acompanhados
pela dor, não possuem qualquer eficácia, segundo os praticantes. Sem dor,
não há progresso; sem dor, não há nem mesmo a manutenção do que já foi
conquistado; sem dor, só há decadência. A manifestação ostensiva da dor,
portanto, é motivo de orgulho e honra para os fisiculturistas. Os mais expe-
rientes relatam com constância suas lesões por esforço repetitivo ou torções
nas quais distenderam músculos, arrebentaram ligamentos, obtiveram fraturas
por avulsão50, com necessidade de realizar cirurgias.
Como o levantamento de pesos é fundamental para a construção do
fisiculturista, uma lesão representa sério risco de dissolução identitária. Por-
tanto, desenvolver a técnica de treinar lesionado é fundamental para esses
indivíduos. Esse é um saber prático que não é possível ser aprendido em livros.
Essa pedagogia implícita é produto da prática em sua mais pura acepção. Não
há um modo específico de aprender a treinar lesionado, e, como as dores das
lesões são constantes e comuns, o aprendizado se realiza com o tempo. Tal
fato pode ser aplicado também aos próprios exercícios, que, apesar de serem
estruturalmente os mesmos infinitamente combinados, sua intensidade e
eficácia só é apreendida individualmente na coletividade orquestrada das

49
O estudo de Lopes (1995) sobre os rituais dolorosos e arriscados de transformação do corpo entre as travestis,
demonstra que elas apresentam uma lógica simetricamente invertida àquela dos fisiculturistas; enquanto um sofre
para apresentar hipermasculinidade, o outro sofre para construir hiperfeminilidade. A autora apresenta o processo de
transformação corporal de um homossexual, a “bichinha-boy Alan”, segundo ela, que se transforma na travesti Elisa
Star. Relata o sofrimento de seu informante diante das incontáveis aplicações e ingestões contínuas de hormônios
femininos, injeções de silicone com agulhas para uso veterinário, além do desafio de carregar, durante 40 dias, um
pedaço de cabo de vassoura atado ao peito com um barbante para evitar que o silicone aplicado não passasse de um
lado para o outro. Apesar de todo o sofrimento, relata Lopes, é grande a satisfação de Alan-Elisa, testemunhando
que Elisa Star teve “a coragem de levar esse sonho [de transformação corporal] a sério” (p. 254). Esses rituais de
instituição das travestis parecem simetricamente invertidos aos rituais fisiculturistas. Contudo, é preciso ressaltar
que a travesti jamais deve ser confundida com a transexual, posto que, apesar do corpo feminilizado, ela sempre
mantém o pênis, não querendo ser mulher em sua totalidade ou transformar-se em mulher, pois é a diferença e a
singularidade de ser travesti que lhe confere sua subjetividade, singularidade e prazer (cf. KULICK, 2008).
50
Quando, devido ao esforço, um pequeno pedaço de osso é arrancado e fica conectado a um tendão.

137
CÉSAR SABINO

academias; ou seja, na prática. Assim, como no boxe, não é possível aprender


a ser atleta “no papel” (WACQUANT, 2002, p. 121).
Os manuais pouco têm a ensinar de fato àquele que deseja ser um
fisiculturista. Um indivíduo pode comprar uma enciclopédia de musculação
e todos os pesos e máquinas de exercícios e instalar em sua casa, mas nunca
conseguirá tornar-se um fisiculturista sem frequentar, durante longos anos,
as academias de musculação; pois o saber do grupo se apresenta na ação e
só pode ser adquirido efetivamente de forma implícita, prática e coletiva
mediante uma manipulação regulada do corpo que somatiza, concretiza um
saber coletivo detido e exibido pelos membros dessa instituição a cada patamar
da hierarquia tácita que a perpassa. O sentido da dor e da lesão, seu simbo-
lismo e significado precípuo, além das formas e indicações de como tratá-la
e continuar cultivando a muscularidade só são aprendidos no cotidiano das
instituições dos “adoradores do ferro”. Wacquant, parafraseando Durkheim,
escreveu que “o gym está para o boxe assim como a igreja está para a religião”
(p. 120). A afirmação – as academias estão para o bodybuilding assim como a
Igreja para religião – poderia ser aplicada às academias de musculação.
A experiência da dor confere sentido à existência e ao mundo, incitando
o ser humano a organizar sua realidade ao permitir-lhe vislumbrar a dimensão
negativa que simultaneamente nega e afirma tal existência: a morte. Ela – a
dor – é inerente à vida como contraponto que confere sua plena medida ao
fervor de existir (LE BRETON, 1995). Em consonância com tal pensamento,
pode-se destacar o que escreveu Montagne:
[...] haverá na dor experimentada algo comparável ao prazer
da repentina melhora? Muito mais bela é a saúde depois da
enfermidade [...] Dizem os estóicos que os vícios são úteis
pois valorizam a virtude; com maior razão pode-se dizer que
a natureza nos deu o sofrimento a fim de realçar a excelência
do prazer e da tranquilidade. (1980, p. 490).
A lógica social presente na experiência da dor funciona de forma
similar. Assim como o ritual da tragédia grega afirmava a existência humana,
portanto social, exaltando o paradoxo e por vezes o absurdo (LESKY, 1976);
de forma parecida, a visão do efêmero, inscrita nas superfícies dos corpos
e das práticas, demonstra a profundidade desse enigma que se configura
como ser humano em sua condição de esperançoso sofredor. As palavras
de Nietzsche, da mesma forma que as de Montagne, podem sintetizar esse
processo coletivo de modulação, controle e, portanto, aplicação da dor:

138
DROGAS DE APOLO

[...] o homem, o animal mais corajoso e mais habituado ao


sofrimento, não nega em si o sofrer, ele o deseja, ele o procura
inclusive, desde que lhe seja mostrado um sentido, um para
quê no sofrimento. A falta de sentido do sofrer, não o sofrer,
era a maldição que até então se estendia sobre a humanidade
– e o ideal ascético lhe ofereceu um sentido!” (1988, p.
184, grifos do autor).

3.5 A LÓGICA DA CLASSIFICAÇÃO MUSCULAR

Dor e uso de esteroides são itens diretamente relacionados às com-


petições de fisiculturismo. Tais competições anuais podem ser comparadas
indiretamente a rituais religiosos (SEGALEN, 2002). Os cenários compe-
titivos são montados, não raro, com elementos que fazem alusão à mito-
logia dos heróis guerreiros do cinema americano e às forças da natureza,
combinando tais aspectos com músicas de ritmos marcantes que acabam
induzindo um certo êxtase no público. Esse busca ver e ter contato com
seus “ídolos”, montanhas de músculos cintilantes que se tornam famosas
no crescente campo do fisiculturismo brasileiro pelo seu tamanho e pela
originalidade de suas poses. Os apresentadores e juízes (que poderiam ser
comparados a sacerdotes), a pompa decorativa e o luxo produzem a epifania
da forma e a comunhão dos “iron worshipers” (FUSSEL, 1993, p. 89). O
corpo, transformado em síntese viva da mercadoria estética, torna-se objeto
sagrado. Um emblema de adoração, ídolo, valor supremo a ser perseguido,
cultivado, cultuado e adorado. Deuses primitivos, deuses contemporâneos.
Se o desencantamento do mundo está presente na modernidade (ou na alta
modernidade ou mesmo pós, tal discussão não vem ao caso), os grupos sociais
não se cansam de produzir objetos de adoração que conferem sentido às
suas existências. Conforme Bergson escreveu, em As Duas Fontes da Moral
e da Religião (1979, p. 220, 238): “homo homini deus [...] o universo é uma
máquina de fazer deuses”.
O Iluminismo criou valores que se tornaram pilares da cultura oci-
dental. Tais valores constituíram-se enquanto representações sociais que
conferiram atitudes a coletividades inteiras, movendo-as em direções a golpes
e revoluções políticas. Ideias, como liberdade, igualdade e democracia, entre
outras, têm história e fazem parte do imaginário de milhões de pessoas no
mundo inteiro, sendo para essas, muitas vezes, valores indiscutíveis. Na
contemporaneidade, o corpo e sua imagem surgem como mais uma ideia e
valor a ser somado ao panteão de entidades abstratas que habitam as culturas
139
CÉSAR SABINO

ocidentais. A forma corporal parece ter se transformado em uma entidade


perfeita, inatingível, perseguida de todas as maneiras possíveis. O culto
ao que se considera beleza sagrada desse corpo tem crescido, amealhando
grande número de iniciados e seguidores que diariamente se dedicam aos
exercícios, halteres e espelhos. As competições parecem representar a con-
solidação de práticas assemelhadas a uma liturgia anual que vem mostrar
ao público as últimas novidades químicas e atividades para a construção
do corpo. Apresentações que se realizam por intermédio da exposição de
ídolos (campeões de fisiculturismo) que conquistaram sucesso e patrocínio
inflando seus músculos.
É nesse momento do ciclo periódico anual que os pontífices (especia-
listas em saúde, donos de academias e produtores de suplementos e máquinas
de musculação) do culto ao corpo têm reavivada sua importância, ao mesmo
tempo que a multidão de fiéis consumidores espera impaciente o advento
de uma nova forma de salvação, contra a feiura, o tempo e o anonimato,
realizada por um novo messias hipermusculoso que venha apontar o cami-
nho da terra santa onde supostamente reinará a vida eterna e gloriosa51. O
sentido da existência entre tais pessoas é envolto pelo medo, não da morte
exatamente, mas do envelhecimento e da possível decrepitude, vista como
pior que a morte: ficar feio, depender dos outros e enfrentar a solidão é o
maior temor para aqueles que se enfronham em cultivar a juventude e a
beleza associada a ela. Envelhecer, assim, é tornar-se outro, é mudar toda
a estrutura de uma personalidade (ELIAS, 2001); mudar para pior já que,
em uma sociedade de mercadorias, subjaz a concepção de que o idoso está

51
A transformação do discurso científico, que ocorre com frequência em alguns segmentos do imaginário
popular, (mais especificamente aquele relacionado à bioquímica e genética), tende a produzir espécies de sis-
temas religiosos que prometem vida eterna (por intermédio de clones) e aperfeiçoamento estético e biológico
(por intermédio da engenharia genética) aqui mesmo na Terra - o principal é a seita ou o autodenominado
grupo, Movimento Raeliano possuidor de uma espécie de “braço científico”, liderado pela empresária bioquímica
Brigite Boisselier, diretora da empresa Clonaid, e Claude Vorilhon, cognominado Sua Santidade Raël, líder
dos raelianos - demonstra o poder de sacralização do profano e a capacidade de (re)produção incessante de
mitos que os sistemas simbólicos possuem tão bem demonstrada pelos clássicos trabalhos de Lévi-Strauss e
seus conceitos de transformação e bricolage (1964; 1973; 1975; 1991). O discurso religioso tem se reproduzido
absorvendo e ressignificando as categorias elaboradas pela narrativa científica em narrativas reencantadoras
do mundo. Com efeito, nesse caso, aplicar-se-iam as palavras do autor de O Pensamento Salvagem: “estruturas
lógicas análogas podem construir-se por meio de recursos de léxico diferentes. Os elementos não são constantes
só o são as relações” (1991, p. 85-86). O sistema mitológico raeliano, por exemplo, concebe que os primeiros
humanos foram criados em laboratório por deuses alienígenas chamados Elohim. O grupo diz já ter clonado um
ser humano (a menina Eva) pretendendo ainda gerar um clone adulto da mesma maneira como acreditam que os
deuses astronautas Elohim geraram os humanos. Dizem que, após terem clonado tal adulto, objetivam transferir
a memória do modelo original para o clone, fazendo o “download” da mesma permitindo, dessa maneira, a vida
eterna. O grupo é considerado uma das religiões ufológicas.

140
DROGAS DE APOLO

ultrapassado e deve ser descartado de determinadas relações sociais. Con-


forme escreveu Eliade (1979, p. 160) sobre o processo mítico: “é sempre a
mesma luta contra o Tempo, a mesma esperança de se libertar do peso do
Tempo morto, do Tempo que esmaga e que mata”.
Como o real é relacional (BOURDIEU, 1998), é preciso destacar que
os tipos de frequentadores das academias descritos (fisiculturistas, veteranos
e comuns) variam em conformidade com o contexto nos quais estão enqua-
drados. Nas academias são encontrados indivíduos que, em determinado
momento ou período, aproximam-se mais de um tipo ideal que de outro,
e a variedade beira o infinito, como atesta o caso do tipo comum. Apenas
esse tipo, se alguém quiser deter-se mais especificamente sobre a realidade
que ele abstrai, demandaria uma construção bem mais detalhada, devido
à ampla variedade de indivíduos que essa mesma realidade comporta. Por
outro lado, vale ressaltar que o fisiculturista é sempre aquele que tende a
cultivar o maior volume de músculos possível. O tamanho e a forma dos que
se enquadram nessa classificação variam em conformidade com o tamanho
e a forma dos outros dois tipos em determinada academia. Sendo assim,
como vimos, três tipos ideais de academias podem também ser esboçados
de acordo com o tipo dos seus frequentadores ou a predominância de um
determinado tipo em um contexto específico. Obviamente, uma academia
de fisiculturistas seria aquela que apresentaria o maior número, ou uma
quantidade considerável, de indivíduos que se enquadram nesse modelo.
Academia que – em função de seus frequentadores – teria suas especificida-
des estéticas, funcionais e técnicas diferindo dos outros tipos frequentados
por maior número de indivíduos veteranos e/ou comuns.
As academias – centros de produção da denominada boa forma e da
muscularidade – são instituições carregadas de representações e funções
que não são apreensíveis de imediato por aqueles que não se familiarizaram
com o seu cotidiano. Apesar da crescente busca pela forma que produz em
muitas pessoas uma sensação ilusória de que basta ler um manual ou uma
revista de fitness para compreender o processo de fabricação do corpo; tais
instituições – como escreveu Wacquant a respeito das academias de boxe –
são complexas e polissêmicas. Em primeiro lugar, porque suas conformações
e variações decorativas variam significativamente em conformidade com a
proposta de corpo que se deve construir naquele espaço e em conformidade
com a classe social – o poder aquisitivo – dos frequentadores do local. Uma
academia de musculação – seja em um bairro de classe média ou não – pode
apresentar-se como um enorme galpão lúgubre com regiões pouco ilumi-
141
CÉSAR SABINO

nadas expondo tubulações e fios elétricos, aspecto que lembraria oficinas


mecânicas ou fábricas clandestinas de algum produto proibido ou galpões
de carga e hangares – os quais no verão chegam a 42 graus centígrados ou
mais. Nesses locais é possível observar homens que mais parecem persona-
gens saídos de revistas em quadrinhos devido à quantidade de músculos que
cultivam e ao tipo de roupa que usam. Com enormes cinturões de couro,
botinas, tatuagens e, por vezes, calças e camisas de infantaria rasgadas
estrategicamente para mostrar musculatura, dão a impressão, àqueles que
entram em tais salões, de estarem em um mundo de ficção no qual a trilha
sonora de heavy metal, rap, hip hop e techno é entrecortada pelos ruídos da
colisão dos ferros provocada pelos exercícios intermitentes acompanha-
dos, por sua vez, dos gritos de dor e esforço emitidos no movimento de
levantar e abaixar anilhas e barras de ferro realizado pelos aficionados por
halteres em suas séries (repetições contínuas de movimentos para esculpir
a musculatura de determinada parte do corpo) compostas e recompostas.
Não raro se veem pesos enferrujados e aparelhos de exercícios com graxa.
Por outro lado, existem academias que dão a impressão de se ter che-
gado a um shopping center ou a um centro cosmetológico, ou de cuidado
com a estética: ar condicionado central, mulheres com roupas coloridas e
justas que ostentam marcas esportivas, como Adidas, Nike, Reebok etc.,
fragrância de perfume francês, pinturas de parede límpidas e impecáveis,
aparelhos de exercícios computadorizados, faxineiros (sempre negros ou
nordestinos) limpando as máquinas de musculação e colchonetes para
exercícios de solo, plantas artificiais e vários aparelhos de TV conectados
aos canais a cabo, além de bares para venda de sanduíches naturais, bebidas
energéticas e vitaminas, lojas de suplementos alimentares e roupas espor-
tivas, serviço eventual de nutricionista, som ambiente com dance, música
pop e MPB. Há também aquelas academias que buscam uma confluência
entre os dois tipos descritos anteriormente. Necessário se faz ressaltar que
dificilmente um frequentador assíduo de uma academia “rústica” aceitaria
fazer parte de uma instituição supostamente mais “refinada” e vice-versa.
Os primeiros se definem como mais profissionais, sérios e dedicados e
definem os frequentadores de academias geralmente mais caras (chamadas
por eles de “perfumarias”) como amadores. Esses últimos, por sua vez, acu-
sam os anteriores de “trogloditas”. Dessa maneira, como são três os tipos
puros de frequentadores, é possível dizer que são também três os tipos de
academias: 1) academias de fisiculturistas; 2) academias de veteranos; e 3)
academias de comuns.
142
DROGAS DE APOLO

Procurarei aqui destacar o cotidiano das atuais academias consideradas


como sendo de fisiculturistas ou bodybuilders. Suas interações sociais, suas
técnicas de construção do corpo, sua visão e divisão de mundo, o sistema
simbólico que organiza suas vidas nessas instituições e que por elas é orga-
nizado. Tal grupo, como foi sugerido anteriormente, representa uma síntese
efetiva das tendências de representações e práticas vigentes na atual sociedade
urbana carioca. Devido a esse fato seu estudo se mostra relevante e pode
contribuir para a melhor compreensão do crescente processo somatófilo
e de consumo de novas drogas (SABINO, 2002). Vale destacar que o grupo
dos veteranos se assemelha ao de fisiculturistas; a diferença está no fato de
os primeiros não competirem, portanto se dedicarem menos às atividades
de musculação. Os veteranos são quase fisiculturistas, sendo difícil, em
determinados momentos, distinguir um do outro. Assim, dependendo da
concorrência, um veterano pode ser considerado fisiculturista em uma
academia na qual não exista ninguém maior que ele. Devido a tal fato,
procuramos utilizar como parâmetro não apenas a massa muscular, mas o
fato de o indivíduo competir em campeonatos.
Os bodybuilders configurar-se-iam como líderes no campo da mus-
culação, os mais admirados por ostentarem musculatura hipertrofiada,
conseguida por meio de um contínuo saber prático sintetizado em invenções
de exercícios, uso de drogas específicas, uso de suplementos alimentares
e dietas. Devido a tais fatores, entre outros, esse grupo constitui a elite
das academias de musculação. No Rio de Janeiro, existem, em contraste
com a maioria das organizações voltadas para a prática de exercícios em
geral, determinadas academias onde grande parte dos frequentadores é
constituída por fisiculturistas. Essas academias concentram-se em alguns
bairros das zonas norte e sul da cidade. Nos quatro anos e meio de pesquisa,
sempre me deparei com o grupo dos fisiculturistas, contudo apenas em
algumas instituições esses existem em significativa quantidade, conferin-
do-as aspecto diverso das outras. Nessas, os corpos hiperinflados, em geral
pouco vestidos, pavoneiam diante das paredes espelhadas de ponta a ponta,
cercados pelas toneladas de pesos e aparelhos sempre conservados para
parecerem mal conservados em seu aspecto rústico. O espetáculo somático
realiza seu propósito invocando a epifania da forma arquitetada por uma
razão instrumental aplicada ao que parece ser o grande valor e conceito
(GOLDENBERG; RAMOS, 2002) ou ao menos a mercadoria final da alta
modernidade: o corpo.

143
CÉSAR SABINO

Apesar de algumas reações – principalmente por parte dos estilistas


de moda alternativa que expõem corpos de modelos mais magros (DUTRA,
2002) –, formas físicas que, há algumas décadas, poderiam ser consideradas
aberrações são, atualmente, eleitas por parte da indústria cultural como ícones
de sucesso e beleza. A aparência musculosa, embora convivendo no cenário
social com muitas outras formas corporais, tem estado presente na mídia
atual, deixando de ser privilégio de um sexo para se tornar propriedade de
todos. Um número considerável de mulheres exibe atualmente anatomia
muscularmente hipertrofiada. De acordo com Courtine (1995, p. 85), “não
há mais sexo frágil”, ao menos entre os praticantes do fisiculturismo. Em
uma época de apologia ao livre mercado, esculpir o corpo – utilizando todo
tipo de técnicas possíveis – vem se tornando, para alguns, um imperativo
levando, com maior ou menor intensidade, ao crescimento das práticas de
bodybuilding e do número de academias de musculação com a potenciali-
zação da anatomia inflada configurando-se como espetáculo cotidiano. A
publicidade, o espetáculo esportivo na mídia, os filmes, as revistas voltadas
para a boa forma, os cadernos de saúde dos jornais, os brinquedos de ação e
as bonecas das meninas, os heróis de quadrinhos e os filmes de Hollywood
e muitos sites e páginas da internet têm reiterado o mito da muscularidade.
Para se ter ideia da mutação ocorrida no cenário mundial do bodybuilding
da década de oitenta do século XX em diante – e que vem influenciando
gradativamente a estética popular em algumas parcelas das sociedades no
mundo globalizado –, basta comparar os corpos que Arnold Schwarzenegger
e Sylvester Stallone ostentavam no auge de suas carreiras com os atuais
heróis do fisiculturismo.
São vários os tipos de festas bodybuilders, anuais ou não, que vêm se
popularizando e sendo reproduzidas ao redor do planeta. Esses rituais são
constituídos por competições baseadas na forma nas quais os indivíduos
apresentam seus corpos inflados, depilados e artificialmente bronzeados,
perfilados à moda dos concursos femininos de beleza. Os músculos não
servem para efetivação da força, ou para a execução de atividades que
possam imprimir esforço sobre objetos de disputa física. Eles são apenas
ornamentos. Basta apenas a aparência. A competição consiste em mostrá-los
e demonstrá-los, apresentando-os – mediante toda uma técnica de poses
aprendidas durante anos – da forma mais definida e hipertrofiada possível.
Como em um teatro no qual apenas os músculos exercem papéis, os (as)
participantes desfilam orgulhosamente em cima de um palco seus corpos
esculpidos, cobertos de óleo, autobronzeadores e vestidos com micro
144
DROGAS DE APOLO

sungas ou biquínis, assistidos por juízes e uma plateia de admiradores.


Os músculos são ostentados enquanto massas decorativas, não servindo
para demonstração efetiva de força ou para a luta, apenas para dar vida à
competição da aparência.
No ano de 2001, essas festividades da forma seguiram a seguinte
organização da Federação de Culturismo e Fitness no Rio de Janeiro52:
Campeonato Carioca –1ª etapa - Fitness, Master e Juvenil Campeo-
nato Estreantes;
Campeonato Carioca – 2ª etapa- Senior’s (masculino e feminino)
Campeonato Mundial Feminino de Fisiculturismo e Fitness.
A seguir, a ordem de classificação final de um campeonato nacional
no mesmo ano:
Juvenil Masculino até 80 kg;
Juvenil Masculino acima de 80 kg;
Master II acima de 50 anos;
Master Masculino até 80 kg;
Master Masculino acima de 80 kg;
Miss Fitness até 1,60 m;
Miss Fitness até 1,67 m;
Miss Fitness acima de 1,67 m;
No ano de 2002, o calendário das competições foi o seguinte:
Calendário de Competição Nacional e Internacional – Amador 2002
Confederação Brasileira de Culturismo e Musculação/ International Fede-
ration of Body-Builders – CBC-M/IFBB:
• Abril – de 26 a 28
Copa Sul-Sudeste. Suzano/SP - Categ.: 70, 75,85, +90 e 100kg
Categ. Miss Fitness, 1,60 e 1, 67 cm;
Única: Body Fitness, Culturismo feminino, Master Masculino e Juvenil.

52
Apesar de o Rio de Janeiro apresentar “geografia excepcional [...] inúmeros parques, jardins e praias, ou seja
zonas de ‘malhação’ e de exposição de corpos” (MALYSSE, 1998, p. 13), que supostamente levariam sua população
a utilizar o corpo como vetor de interação social na cidade; é, ironicamente, a cidade de São Paulo – com toda a
mística que a constrói como avessa à malemolência estética do carioca e do baiano – que apresenta os maiores
e mais influentes campeonatos, meios de treinamento e campeões de fisiculturismo do Brasil, provavelmente
por motivos econômicos.

145
CÉSAR SABINO

• Junho – de 28 a 30
Copa Centro Oeste – Cuiabá/ MT Categ. 70, 75, 85, +90 e 100 kg;
Categ. Miss Fitness, Cult Fem., Master Masc. E Juvenil.
• Julho – de 19 a 21
Copa Norte- Nordeste- Fortaleza- CE Categ. Body Fitness;
Categ. Juvenil até 80 kg e +80 kg Categ. Master masc. 80 kg e +80 kg
Categ. 70, 75, 85, +90 e 100kg.
Setembro – 01 a 07
Grand Prix Neo- Nutri /SP Categ. 70, 80, +90 kg Sênior masculino.
• Setembro - 11 a 15
Campeonato Brasileiro – SP
Categ.52, 57 kg e +57 kg Sênior feminino
Categ. Miss Fitness 1.60, 1.67, e +1.67 cm
Categ. Body Fitness 1.60, 1.65, e +1.65 cm
Categ. Juvenil. Masc. 70, 80, e +80 kg
Categ. Master Masc. 80, +80 kg e +50 anos;
Seletiva para Mundial de Fitness Sênior e Feminino, Master/Juvenil
Íbero – Americano;
• Setembro - 27 a 29
Copa Brasil Welness Sport – Ribeirão Preto/ SP
Categ. 70, 80, 90, + 100kg.
Categ. Miss Fitness 1.60, 1.67, e + 1.67 cm;
Seletiva para Mundial Sênior Masculino;
• Outubro - 04 a 07
Copa Mundial de Fitness- Brno/ Rep. Checa
Categ. Fitness até 1.60, 1.67, + 1.67 cm;
Categ. Feminino Sênior 52, 57 e 57 kg;
A classificação internacional, de acordo com a Confederação Brasileira
de Fisiculturismo, segue as seguintes definições:
Sênior Masculina:
Bantam: até 65 Kg Peso leve: até 70 kg;
Peso meio médio: 75 kg Peso médio: até 80 kg;

146
DROGAS DE APOLO

Peso meio pesado: até 90 kg Peso pesado: acima de 90 kg.


Existem três categorias nas competições sênior femininas interna-
cionais, que são:
Peso leve: até 52 kg Peso médio até 57 kg;
Peso pesado: acima de 57 kg.
Nas competições juniores masculinas internacionais, existem mais
três classificações:
Peso leve: até 70 kg Peso médio: até 80 kg;
Peso pesado: acima de 80 kg;
Na júnior feminina, são mais três:
Peso leve: até 52 kg;
Peso médio: até 57 kg;
Peso pesado: acima de 57 kg;
Existem três categorias nas competições master masculinas: De 40
a 49 anos de idade:
Peso leve: até 80 kg;
Peso pesado: acima de 80 kg;
De 50 anos de idade e acima: Categoria aberta.
Em relação às mulheres da categoria master, existe apenas uma cate-
goria nas competições femininas internacionais.
Se seguirmos a maior parte dos estudos antropológicos, podemos
dizer que toda essa organização ritual é fruto de classificações da realidade
podendo ser considerada um sistema de classificação “nativo” que forma
um modelo consciente (LÉVI-STRAUSS, 1976) ordenando, ao menos, parte
da realidade do grupo. Diante da imensa variação muscular presente nesses
rituais, ocorre a necessidade de classificar os corpos; essa classificação é
realizada de acordo com a morfologia que esses apresentam. Assim, Fitness,
em geral, significa uma competição ou apresentação-ritual da qual parti-
cipam mulheres com considerável massa e definição muscular e extrema
elasticidade. Nesse aspecto, é importante reiterar que a flexibilidade é um
item mais importante para as fisiculturistas do que para os fisiculturistas.
Elas devem ser musculosas, porém ágeis, enquanto tal elasticidade nem
sempre é exigida, da mesma forma, por parte dos homens. Interessante
ressaltar que, ao menos nesse caso específico, a classificação das mulheres,
de forma diferente da classificação masculina, realiza-se por intermédio
147
CÉSAR SABINO

da altura. Já as categorias master, juvenil ou júnior, estreantes e sênior são


elaboradas com base no peso e idade dos participantes. Esses concursos e
festivais colocam em disputa os corpos maiores e com menor porcentagem
de gordura, além de, no caso feminino, ser acrescentada a flexibilidade
demonstrada por meio de exercícios específicos nos quais elas dão pirue-
tas e saltos mortais executando coreografias similares àquelas da ginástica
olímpica, embora sendo musculosas – ao contrário das ginastas. A apresen-
tação masculina também requer certos gestos estilizados (poses) e passos
específicos, similares para serem repetidos por cada competidor em toda
e qualquer competição, que devem, segundo os participantes, demonstrar
virilidade e harmonia simultaneamente. Há também as poses livres que
cada fisiculturista deve fazer. Esse sistema classificatório, além de premiar
os corpos considerados melhores entre todos os concorrentes, confere
prêmios para os mais destacados em diferentes categorias. Nesse processo
há sempre uma grande preocupação com a ordem não apenas do espaço,
da organização dos eventos e das classes e grupos, mas fundamentalmente
com a ordem da estética muscular que será um dos principais itens avaliados
pelo júri. É a simetria, a harmonia entre os músculos do corpo, o equilíbrio
representado em seus gestos e movimentos. É a relação com a medida dos
corpos que deve estabelecer com o contexto uma sucessão de movimentos
ordenados em seu conjunto equilibrado de fibras musculares sempre expos-
tas ao máximo. Com efeito, há toda uma taxinomia voltada para ordenar
as classes, ou melhor, para classificar a realidade muscular fornecendo um
sentido para as formas em contraposição umas às outras. Formas que, para
os membros do grupo, remetem a uma suposta continuidade biológica que
traz em si a verdade de sua condição cultural, necessitando que se estabe-
leça um quadro de classes, gêneros e espécies em uma taxinomia específica
(FOUCAULT, 2007, p. 222), que cria a hierarquia do grupo ex nihilo.
Segundo Mary Douglas (1976), todo sistema classificatório se depara
com elementos, de certa forma, inclassificáveis sendo esses elementos consi-
derados anômalos ou ambíguos. A riqueza dessas categorias está justamente
no fato de elas apresentarem dificuldades para serem enquadradas nos
sistemas cognitivos53. A rigor, o ambíguo seria o elemento que poderia ser
53
Mauss, ao analisar as dificuldades classificatórias que a sociologia insurgente enfrentava, aponta para o
mesmo problema: “Há sempre um momento em que, não estando ainda a ciência de certos fatos reduzida a
conceitos [...] implanta-se sobre essas massas de fatos a baliza da ignorância: ‘diversos’” (1974, p. 211). Latour
(1996, p. 44), porém, realiza crítica a determinadas abordagens antropológicas – principalmente a estruturalista
- que tendem a tratar a ciência apenas como sistema classificatório, obnubilando outras características que a
constituem, como o método.

148
DROGAS DE APOLO

alocado em mais de um conjunto, ou série, e o anômalo aquele que não se


enquadra em nenhum conjunto ou série. No caso específico desse sistema,
a distinção entre ambíguo e anômalo é significativa na medida em que “se
o primeiro se caracteriza como acidental no sistema, o segundo é por ele
previsto” (ROCHA, 1995, p. 85). Dessa maneira, os corpos ambíguos (muitos
poderiam ser enquadrados em mais de uma categoria) o são porque algumas
das categorias abrangem diferentes tipos de morfologia com fronteiras
pouco definidas. Devido a tal fato, os coordenadores dos festivais sempre
reformularem os sistemas classificatórios visando a impedir a manipula-
ção da ambiguidade por parte dos concorrentes (peso, altura e idade). Por
exemplo, se a classificação fosse apenas por faixa etária, alguém com 18
anos e pesando 100 Kg – algo raro para a idade no fisiculturismo – poderia
concorrer em vantagem com outros com menor massa muscular e idade
equivalente. Casos anômalos – idade e peso não compatíveis com os parâ-
metros estabelecidos – tendem a surgir com frequência, e para tais casos uma
categoria à parte é criada no sistema com o rótulo de Campeonato Aberto. As
características mais enfatizadas atualmente nas competições são: definição
muscular, desenvolvimento muscular e simetria muscular; tal aspecto leva
os jurados a centrarem seus julgamentos não apenas no tamanho e altura
dos concorrentes. Para reiterar tal fato, nas finais de campeonatos, todas as
categorias são apresentadas em conjunto, ao mesmo tempo, no palco e, não
raro, competidores não muito altos ou mesmo pouco “massudos” vencem
outros muito maiores. Esse relato de um peso-pesado é significativo:
Estava competindo no Estadual e me deparei com um cara pequeno
mas muito bem preparado [...] quando ele começou a fazer as poses
eu logo percebi que ele havia ensaiado muita coreografia... acho
que ele pagou um bom coreógrafo pra ensaiar aquilo tudo. O cara
era maleável, fluido, não posava só, dançava... quando ele começou
a se apresentar, o público explodiu, fazendo o maior barulho. Eu
e ele éramos os finalistas, só que eu tinha uma vantagem: era
muito maior. Percebi que a parada ia ser dura; porque minhas
poses tinham sido menos soltas que as dele, tava mais duro [...]
Aí fomos para a apresentação final, eu, o peso pesado leve, que
tinha pouco músculo, o peso leve que não tinha nenhum, e o meu
oponente principal, esse cara, peso médio, o único que podia me
desafiar, mesmo. Ele era todo simétrico e muito definido, o abdô-
men do cara parecia uma grande forma de cubo de gelo. Fomos
para o palco, para a apresentação, mas o meu tamanho me dava
uma certa segurança, entende? Eu era muito maior que todos eles.
Quando a música começou a tocar eu me posicionei em frente

149
CÉSAR SABINO

ao meu oponente, ‘puxei’ o dorsal e tampei o cara com o meu


tamanho... toda a visão que o público tinha dele sumiu, foi um
eclipse! Mas, ele logo saiu do buraco que eu tinha preparado pra
ele e fez uma pose de pernas com toda aquela definição e simetria
para me humilhar, eu logo ‘puxei’ uma pose de tríceps seguida
por outra de braços estendidos, o público aplaudiu, aí ele fez uma
série de poses de abdômen, com aquela maldita superdefinição que
impressionou a plateia que começou a aplaudir e gritar, na hora.
Pronto, ali eu perdi! Fiquei em segundo lugar [...] perdi p’rum
cara que tinha trinta quilos a menos do que eu. (Carlos. 28 anos.
Fisiculturista e estudante de fisioterapia).
Além de remeterem a um processo classificatório específico, esses
rituais, em um momento de imensa vivência emocional e cognitiva, ser-
vem para reforçar os laços sociais e a “adoração” aos ídolos já existentes
(SEGALEN, 2002). Heróis que apresentam todo esplendor e “magia” do
seu corpo (re)vestido da couraça de músculos reverenciada por todos. Os
festivais servem, também, para (re)criar novos mitos que conquistam seu
lugar no panteão dos heróis da musculação. Essas festividades seguem o
padrão daquelas realizadas nos EUA e que são consideradas o modelo mais
adequado a ser seguido pelos bodybuilders. Obviamente, são as festividades
internacionais (Mr. Olympia, Arnold Classics, Mr. Universe, Super Body
Natural, entre outras) as mais admiradas; e seus vencedores, considera-
dos, pelos fisiculturistas nas academias, verdadeiros semideuses. Esses
rituais mobilizam uma indústria crescente dos músculos direcionada para
o consumo de bens e serviços destinados à construção e manutenção do
corpo. Suplementos alimentares, vitaminas, pesos, anabolizantes, cursos de
musculação e máquinas de última geração baseadas no aperfeiçoamento da
microeletrônica e informática são produzidas a cada dia para alimentar a
busca da forma perfeita. Busca mítica e ritualística que transforma o mús-
culo em um modo de vida. Tais ritos somatófilos seriam formas de acesso
à consciência coletiva desse grupo, uma maneira – mediatizada pelos sím-
bolos da força e virilidade – de ele tomar consciência de si reiterando suas
estruturas (DURKHEIM, 1996; MAUSS, 1974; 1974a).
A classificação internacional para eventos amadores, elaborada pela
International Federation of Bodybuilders (IFBB), que influencia as com-
petições de fisiculturismo no mundo inteiro, é a seguinte: peso galo, peso
leve, peso médio, peso pesado leve, peso pesado, peso superpesado. Já nos
concursos profissionais filiados à IFBB, todos os competidores são colocados

150
DROGAS DE APOLO

em uma mesma categoria, e a decisão, o julgamento, é feita por meio das


poses realizadas pelos fisiculturistas no palco54.
A demonstração de poses divide a competição em duas partes de
quatro rodadas. A primeira parte é a do pré-julgamento. Esse, por sua vez,
está dividido em duas outras fases: pose relaxada e poses compulsórias.
Na primeira, os fisiculturistas ficam de pé, no palco, em frente aos juízes,
mãos ao lado do corpo, de frente, de costas e de ambos os lados. Embora
seja chamada de pose relaxada, esse tipo de pose leva os bodybuilders a con-
traírem seus músculos de forma intensa. Nessa fase, os juízes avaliam o tom
de pele, expressão facial, corte de cabelo, se o competidor está bronzeado
ou não, se a sunga veste bem, se a cor é adequada e não apenas a simetria
e os músculos do participante. A segunda rodada do pré-julgamento é a
das poses compulsórias. Como o próprio nome diz, são obrigatórias para
todos, pois têm o objetivo de permitir o julgamento de cada região mus-
cular específica do corpo de cada competidor. As poses são: bíceps duplo
frontal, abertura lateral frontal (ou dorsal), tórax lateral, bíceps duplo de
costas, abertura lateral de costas, tríceps de lado, abdominais e coxas com
mãos sobre a cabeça. As mulheres também fazem as mesmas poses, exceto
a abertura lateral. A terceira parte da apresentação é a da pose livre.
O competidor, nessa fase, pode utilizar toda sua criatividade para
impressionar os juízes. Ele procurará elaborar poses que melhor exibam as
partes que ele considera mais apresentáveis de seu corpo e escondam, ou
disfarcem, aquelas partes que ele considera deficientes. Nesse momento,
o competidor escolhe uma música e elabora uma coreografia própria, em
geral uma mistura de dança com poses que ressaltam seus músculos. A
quarta e última rodada é a da sequência de poses que é realizada pelos fina-
listas (aqueles que passaram com sucesso pelas sequências anteriores) em
conjunto no palco, cada um apresentando livremente suas poses para que
o melhor – o campeão – seja escolhido. Essas poses de comparação feitas
em conjunto parecem causar um certo stress nos competidores que dispu-
tam cada segundo e milímetro no palco para serem notados pelos juízes, o
que pode ocasionar cotoveladas e empurrões entre eles. Na realidade, esse
é o ápice do jogo, ou melhor, quando a competição vira de fato um jogo
porque, a cada pose do adversário, o fisiculturista deve demonstrar outra
ainda melhor e mais impressionante.
54
No Brasil, ao menos até 2003, apenas a CBC-M (Confederação Brasileira de Culturismo e Musculação) é
reconhecida pela International Federation of Body Builders (IFBB) e pelo Comitê Olímpico Brasileiro (COB).
As regras das competições em geral estão relacionadas às regras internacionais da IFBB, com pouca variação.

151
CÉSAR SABINO

Destarte, conhecendo suas “qualidades” e “defeitos” corporais, o com-


petidor deverá tentar esconder seus defeitos e apresentar, obviamente, suas
melhores qualidades. Portanto, quando um deles apresenta, por exemplo,
uma musculatura dorsal definida e volumosa, o outro, se não considerar sua
mesma musculatura melhor que a do seu adversário, procurará realizar uma
pose que destaque outro grupamento muscular que ele considere melhor
que o do seu oponente. O jogo articula uma verdadeira troca de poses, em
uma lógica que lembra um potlach da forma física no qual cada um procura,
por intermédio da troca de imagens em um grande festival, ostentar a maior
riqueza muscular diante de seu adversário, juízes e público em geral, muitas
vezes – ao menos no caso do Brasil – gastando muito mais bens materiais
do que recebendo para sustentar seu status.
A realização das poses é uma das partes mais difíceis da competição no
fisiculturismo, pois ela é o outro lado da moeda da apresentação do bodybuil-
der. Talvez 50% de sua apresentação em um palco dependa da eficácia com
as poses. Espécie de jogo que mistura a coreografia da dança com o ato de
posar para pintores, realizar poses de fisiculturismo demanda uma técnica
corporal, no sentido maussiano, ou habitus, de acordo com Bourdieu, que
só é adquirida por meio de contínuo esforço ao longo dos muitos anos de
prática a ponto de sua apresentação tornar-se praticamente inconsciente.
De acordo com o relato de Schwarzenegger e Dobbins (2001, p. 589):
Devido a sua enorme importância no fisiculturismo compe-
titivo, nunca é muito cedo para começar a posar. Você deve
começar desde o primeiro dia em que entra na academia.
Estude fotografias de outros fisiculturistas, vá a concursos
e observe como os competidores posam e tente imitá-los.
Comece fazendo suas poses em frente ao espelho até que você
ache que pegou o jeito de executá-las. Depois tente fazê-las
sem o espelho, com um amigo observando. Entre as séries
contraia os músculos que você está treinando, faça algumas
poses e estude-se no espelho. Isso irá condicioná-lo a fazer
contrações firmes, sustentadas e também ajudar a analisar o
estado de seu desenvolvimento. Lembre-se da necessidade
de resistência! Os juízes frequentemente irão mandar você
posar por vários minutos cada vez; você pode precisar ficar
contraído por horas durante um pré-julgamento cansativo.
Então, no seu treinamento de poses, não apenas execute
as poses por alguns segundos e relaxe. Sustente-as até que
doa, depois sustente um pouco mais – este é o momento da
falência, de ter cãibras musculares, de sofrer de modo que

152
DROGAS DE APOLO

as suas poses na competição sejam suaves, competentes e


poderosas. Mantenha-a por pelo menos uma hora a cada dia.
Posar é de extrema importância para o fisiculturista não apenas pelo
fato de fazer parte do jogo, mas, acima de tudo, porque as poses destacam
as partes do corpo que devem ser mostradas, expostas, apresentadas ao
público em um processo constante de elaboração de técnicas específicas.
Se um fisiculturista jamais está nu – pois está vestido com sua armadura
muscular –, ele também não deve estar apenas grande. A simetria e a forma
são tão ou mais importantes que o tamanho. Essa estética particular está
calcada na necessidade de mostrar o máximo possível das entranhas mus-
culares. A presença efetiva dessas (a chamada definição) significa, para eles,
a simetria e forma. Músculos “definidos” representam fibras musculares
à mostra a ponto de a pele estar tão fina que cada tira, ligamento e fibra,
apareça em uma exposição sui generis na qual a intimidade mais profunda
da carne possa ser salientada. Nesse movimento, o fisiculturismo e a atual
pornografia massificada, mudando o que deve ser mudado, parecem com-
partilhar a mesma avidez por mostrar as entranhas e o privado. Essa avidez
talvez esteja radicada naquele processo que Foucault (1990) denominou a
vontade de saber (e, no caso, de ver) que acaba apresentando a tendência
a controlar os movimentos e aspirações mais profundos dos indivíduos
preocupados com a exposição de cada fibra muscular de seu corpo. O
mesmo processo aplicado à invenção da sexualidade pode ser aplicado
para a explicação desse árduo trabalho de esculpir a carne e os músculos,
mostrando-os e demonstrando-os em público como o troféu da suposta
vitória sobre o tempo.
Segundo Foucault, assim como nos fizeram “amar o sexo”, tornando-o
“desejável [...] conhecê-lo e precioso [em relação a] tudo o que se diz a seu
respeito; pelos quais, também, incitaram-nos a desenvolver todas as nossas
habilidades para surpreendê-lo e nos vincularam ao dever de extrair dele a
verdade” (FOUCAULT, 1990, p. 49), fazendo-nos acreditar que nisso está
nossa liberação; esse dispositivo social nos faz acreditar que devemos escru-
tinar e extrair das entranhas musculares uma possível liberdade que poderá
nos levar à realização da utopia da saúde. Nesse âmbito, a adiposidade surge
como o maior inimigo da forma, já que ela se sobrepõe às fibras muscula-
res obliterando sua visão; daí a necessidade intermitente de produzir um
conhecimento, cada vez mais, efetivo sobre como aumentar os músculos
e eliminar gorduras. Conhecer o corpo e colocá-lo em discurso, mesmo
que esse discurso seja o iconográfico; esse parece ser, ao menos em parte,
153
CÉSAR SABINO

o dever da época. Dever que pode ser percebido no grupo que representa
o paroxismo desse movimento sociocultural somatófilo. A tarefa de posar
exige o domínio de uma técnica de esforço corporal aprendida durante
anos de socialização diária nas academias de musculação (MAUSS, 1974b).
Ser capaz de tensionar tecnicamente a musculatura corporal durante uma
competição, flexionando os músculos, mantendo poses de até uma hora
ou mais – com controle pleno do corpo inteiro e domínio de câimbras – é
uma tarefa atlética comparada a de um pugilista enfrentando 12 assaltos
em um ringue de boxe.
Existem dois tipos básicos de esporte: os julgados por medidas (distân-
cia, rapidez, altura, etc.) e aqueles julgados pela forma (nado sincronizado,
ginástica olímpica, mergulho, patinação no gelo). O fisiculturismo é um
esporte da forma; com a diferença de essa não estar diretamente relacio-
nada ao movimento e sim à conformação do corpo. A forma envolvida é
a do próprio corpo-tamanho, proporção, definição, simetria e “qualidade
estética” desenvolvida nas academias por meio de exercícios e dietas (SCH-
WARZNEGGER; DOBBINS, 2001). As poses são o veículo de apresentação
de todos esses itens.
Outra classificação específica utilizada no cotidiano das academias
de musculação é aquela reapropriada da somatotipologia (produzida pela
cineantropometria) pelo senso comum do campo. De acordo com os fre-
quentadores, existem três tipos de corpos, espécie de tipos ideais, que podem
ser combinados produzindo, ao final, uma tipologia dividida em um total
de oitenta e oito subcategorias. Esses três tipos seriam assim definidos:
O ectomorfo: tronco curto, braços e pernas compridos, pés e mãos
compridos e estreitos e muito pouca reserva de gordura (dificuldade para
engordar); estreiteza no peito e nos ombros, com músculos em geral longos
e finos. Em geral, esse é o indivíduo magro que possui dificuldade para
adquirir peso.
O mesomorfo: peito largo, tronco longo, estrutura muscular sólida e
grande força. Para os frequentadores das academias, o indivíduo que possui
esse tipo de corpo é um “verdadeiro abençoado pela genética”, como ouvi
inúmeras vezes durante o trabalho de campo, porque é aquele que tem
maior facilidade em adquirir massa muscular.
O endomorfo: musculatura frágil, rosto redondo, pescoço curto,
quadril largo e grande reserva de gordura. Esse é o gordo.

154
DROGAS DE APOLO

Aqui é preciso destacar que, nas relações sociais das academias, a


pessoa gorda é a mais desprezada: “Odeio gente gorda! Quem é gordo é pre-
guiçoso, desleixado, descuidado, molenga, perdedor e fedorento!” (Carla, 18 anos,
estudante de Marketing). Sobreposta à classificação científica, subjaz outra
que, utilizando as categorias da primeira, forma um sistema classificatório
nativo que não raro acaba por radicar supostamente na genética a hierarquia
da realidade social do grupo: “Negros, italianos e alemães são mesomorfos [...]
pode ver: todos os ganhadores do Mister Universo, Mister Olympia e daí por diante
são descendentes de italianos, alemães ou negros, é genético, eles têm mais massa
muscular que os outros povos” (Paulo, 22 anos, estudante de Educação Física).
Contestando essa afirmação, digo: “Mas o Arnold [Schwarzenegger] não era
mesomorfo [...]”. A resposta, em tom eugênico, vem: “Mas ele é austríaco, tem
sangue germânico, e, por isso, mais facilidade para ganhar corpo”. Essa concepção
equivocada não condiz nem mesmo com as classificações dos campeonatos
que admitem competidores de diversos tamanhos e estaturas. Já em relação
aos indivíduos gordos, Rafael Mattos (2012), em seu livro Sobrevivendo ao
Estigma da Gordura, destaca a condição social deles, seus constrangimentos,
sua administração de identidade e a tentativa de superar o preconceito e o
desprezo de uma sociedade, cada vez mais, obcecada pela baixa adiposidade.
Nesse aspecto, as representações sociais positivas de saúde como sinônimo
de beleza e essa, por sua vez, como corpo modelado – “sarado” – magro
e musculoso, contrapõe-se à representação oposta, negativa, do corpo
gordo representado como doentio e desprezível No contexto pesquisado,
esses indivíduos são considerados fora da normalidade ponderal, não raro,
sendo isolados de convívio social entre os que ostentam o padrão estético
dominante (LUZ; SABINO, 2017).
Como disse, a combinação desses três tipos chega a constituir outros
88; assim temos, em uma espécie de combinatória: o ectomesomorfo, o
ectoendomorfo, o mesoecto, o mesoendo, o endoecto, o endomeso etc. A
análise acurada dos tipos e a definição mais exata só é possível com o auxílio
de indivíduos entendidos em cineantropometria que utilizam instrumentos
adequados (adipômetros, por exemplo) para avaliar a morfologia medindo
certas regiões corporais. Grosso modo, tais avaliadores utilizam uma escala
pontuada que vai do grau 1 ao 7 (máxima ectomorfia à máxima endomor-
fia). Dessa forma, se uma pessoa possui nessa escala o grau 2 (ectomórfico),
o grau 6 (meso) e o grau 5 (endo), ela pode ser considerada uma pessoa
endomesomorfa. Ou seja, um tipo bastante musculoso, mas com tendência
a apresentar muita gordura ou grande facilidade de engordar.
155
CÉSAR SABINO

A partir dessa avaliação, todo o treino e, consequentemente, o enqua-


dramento nas práticas de musculação nas academias se estabelecerão para
o avaliado. Classificado, suas práticas terão que ser condizentes com o
modelo que a ele foi imposto a partir das medidas de seu próprio corpo
em consonância com o sistema classificatório do campo. Assim, a própria
avaliação – realizada por um professor de educação física ou um personal
trainer (em geral um fisiculturista de longa data) – já se afigura a uma espécie
de pré-ritual que instituirá o papel, durante um longo tempo, do praticante
na estrutura objetiva das academias de musculação. A ordem classificatória,
modelo presente na consciência dos indivíduos do grupo, atua também
como articulador ritualístico das práticas das diferentes instâncias desse
mesmo grupo. Junto com o rótulo que recebe, o indivíduo aceita também
seu programa de treinamento diário, que obviamente estará associado ao
seu papel, ao menos temporário, no sistema ou, para usar um termo de
Bourdieu, no campo.
Sem embargo, o tipo ectomorfo terá um treinamento voltado para
a aquisição de peso, massa muscular. Portanto seus exercícios, segundo os
fisiculturistas, deverão ser extenuantes, pois ele terá que desenvolver força
e resistência, o que o obrigará a buscar levantar o máximo de peso possível
em uma série (grupamento de exercícios) de repetições baixas (entre seis
e oito repetições), deverá descansar bastante entre um exercício e outro e
comer em grande quantidade, deve também fazer pouco esforço aeróbico,
ou seja, não deve correr, nadar ou pedalar em quantidade, já que seu objetivo
deve ser guardar energia para transformá-la em músculo. O mesomorfo,
considerado o tipo biológico privilegiado, deve trabalhar volume e defi-
nição simultaneamente. Como, de acordo com os fisiculturistas, esse tipo
tem geneticamente facilidade para aquisição de músculos, ele não deve
se preocupar com supertreinamentos ou com conservação de energia, o
que significa que ele pode fazer exercícios aeróbicos e séries de repetições
regulares de oito a 10. Sua dieta também é a mais fácil, pode ser equilibrada
sem muitas restrições e cortes drásticos de determinados alimentos. Já o
endomorfo, por ser gordo, deverá se manter sempre de dieta, com restri-
ções calóricas radicais, realizando muitos exercícios aeróbicos junto com
séries de musculação de 12 repetições em diante sem muito descanso entre
um e outro exercício. Se o mesomorfo é o privilegiado, o endomorfo é o
mais prejudicado pela genética, de acordo com o sistema classificatório
dos fisiculturistas. A gordura, muito menos que o osso – a magreza – pode
ser considerada uma espécie de anátema que denigre toda a existência do
156
DROGAS DE APOLO

indivíduo, adiando sua aceitação no grupo social da muscularidade. Sua


aceitação deverá ser conquistada por meio da mudança diligente de sua
forma física por intermédio de todo o processo de domesticação do corpo
e da forma pelo ferro das anilhas, o ascetismo das dietas e o suor das corri-
das e pedaladas. Ao final, porém, o que conta é a concepção liberal de que
qualquer indivíduo, com força de vontade e dedicação, poderá transformar
seu corpo e sua vida como um self made man. Basta, para tanto, o exercício
da vontade livre para transformar as coisas.

3.6 SÉRIES DE REPETIÇÕES: A DIVISÃO DO TRABALHO


MUSCULAR

Para que se torne viável um melhor entendimento da lógica estrutural


que compõe o sistema simbólico de construção de um corpo musculoso
entre os fisiculturistas – e mesmo entre as pessoas comuns que frequen-
tam as academias, visto que os sistemas de treinamento são decalcados das
experiências e simplificações dos primeiros –; necessário se faz esclarecer
o significado prático das séries de exercícios e sua composição. As séries
são grupos de exercícios com carga (pesos) repetidos que objetivam desen-
volver determinada região do corpo. Contudo não basta apenas levantar
pesos para se tornar um fisiculturista. Há um sistema técnico complexo
que organiza todo o processo de modelagem muscular e estética e ética
dos frequentadores de halteres. Os exercícios estão baseados na força e no
autodiagnóstico da dor.
Um Exemplo de Divisão de Treinamento (fisiculturista)

Dia Grupos Musculares


1 Peitorais, Tríceps, Abdômen, Exercícios Aeróbicos
2 Costas, Bíceps, Panturrilha
3 Ombros, Trapézio, Abdômen, Exercícios Aeróbicos
4 Coxa Anterior e Posterior
5 Repete o Ciclo, Exercícios Aeróbicos
6 Repete o Ciclo

Exemplo de Divisão de Treinamento (fisiculturista)

157
CÉSAR SABINO

Segunda-feira - peito, bíceps e tríceps


Supino Reto 4x6 (quatro séries de seis repetições)55
Crucifixo Reto 4x6/12
Supino Inclinado com Halteres 4x6/12
Supino Canadense com Barra 4x12
Cross Over 4x12
Rosca Direta 4x10/12
Tríceps Testa 4x10/12
Rosca Concentrada 4x10/12
Tríceps no Pulley 4x10/12

Terça-feira - perna, panturrilha


Extensão Perna 4x12/15
Leg Press 45O 4x12
Hack Machine 4x10/12
Flexão Horizontal 4x15
5x20 (cada angulação dos pés; o seja: reto,
Gêmeos Máquina
com as pontas dos pés para dentro e para fora)

Quarta-feira - Costas e Ombro


Barra Fixa pela Frente 4x15
Puxador Frente com Triângulo 4x10
Remada Unilateral 4x8/12
Remada Curvado com Barra 4x6/10
Puxador Costas 4x12
“Bom Dia” 4x10/12
Elevação Lateral 4x12
Desenvolvimento Costas 3x8

55
Séries e repetições são termos fundamentais na musculação e representam a quantidade de exercícios que
o indivíduo realizará nas barras com halteres e nas máquinas, portanto que tipo de corpo ele construirá por
intermédio desses mesmos exercícios com pesos. Assim, por exemplo, uma série 4 X 6 significa que ele repetirá
um bloco de seis exercícios idênticos quatro vezes descansando de 40 segundos a um minuto entre cada bloco.

158
DROGAS DE APOLO

Desenvolvimento Frontal 4x10


Encolhimento com Halteres 3x12
Elevação Posterior 4x12
Abdômen no Puxador 4x30 (3x por semana)

Quinta-feira, Sexta-feira e Sábado


Repete o treino.

A organização dos exercícios divididos em séries e repetições com-


binadas e recombinadas ao infinito e com gradativo grau de intensidade é
também a base organizacional das práticas nas academias de fisiculturistas.
Tais grupamentos abstratos devem ser concretizados na prática mediante
exercícios específicos que encarnam a domesticação corporal e a mani-
pulação das fibras musculares. As classificações subjetivas estruturam as
classificações objetivas e vice-versa (LÉVI-STRAUSS, 1975). Como o espaço
social é definido pela exclusão mútua, ou pela distinção, das posições que o
constituem, ou seja, pela estrutura de justaposições e de posições sociais –
demarcadas pelos termos na estrutura de distribuição das diferentes espécies
de capital corporal (BOURDIEU, 2001); as séries e repetições organizam e
são organizadas pelas práticas de modelagem muscular hierarquizando a
realidade das academias de musculação. O enquadramento em uma categoria
funciona simultaneamente como enquadramento na prática ou papel a ser
ocupado pelo indivíduo na estrutura objetiva do grupo:

Quadro 1 – Tipos Corporais


Organização Endomorfo
Tipo Corporal
físicos Mesomorfo (88 variações)
-Somatotipologia
dos tipos Ectomorfo
Organização 3X10/ 4x8/ 4x12/ 3x6 etc.
Série - Programa de
exercícios e físicas dos Peito, costas, braços, ombros,
treinamento
atividades pernas
Organização
Estrutura objetiva - Fisiculturistas, veteranos,
academias
relações organizacionais Comuns
Social das

Fonte: o autor

159
CÉSAR SABINO

É necessário destacar a quase inexistência de números ímpares nas


séries de exercícios – nas séries anteriormente apresentadas aparece apenas
o número 15, no caso das repetições, e 3 no caso das séries; o que significa
que quase ninguém realiza exercícios com repetições ímpares. Tais orga-
nizações da prática de exercícios enquanto modelos conscientes nítidos
apresentam uma certa dificuldade de interpretação por parte do antropó-
logo. Desde que a consciência esquece os fundamentos inconscientes que
a codificam, ela torna-se fonte de erro e deve ser vista com muita cautela
(RODRIGUES, 1980). Conforme escreveu Lévi-Strauss (1976a, p. 15): “quanto
mais nítida a estrutura aparente, tanto mais difícil se torna apreender a
estrutura profunda, por causa dos modelos conscientes e deformados que
se interpõem como obstáculo entre o observador e seu objeto”. Existem dois
fatores que devem ser destacados na tentativa de análise desses sistemas
de classificação: 1) eles têm, no discurso científico, a matriz que organiza
o seu próprio discurso, visto reinterpretarem os termos e as relações dos
discursos doutos elaborando a partir daí os seus; 2) apesar de proclamarem
a cientificidade dos próprios sistemas, e mesmo o fato de essa ordem fazer
parte das articulações cotidianas desses discursos e práticas, a presença de
elementos míticos inconscientes está presente nesses mesmos discursos e
práticas. Isso ocorre, por exemplo, no caso da quase ausência de números
ímpares nas séries de exercícios. Essas séries são respaldadas pelas e tidas
como produto das faculdades de Educação Física, Fisioterapia e das chamadas
ciências dos esportes; porém, nos discursos leigos do cotidiano das academias
de musculação e fisiculturismo um certo quantum de sentimento mágico
não deixa de estar presente em suas montagens e organizações. O número

160
DROGAS DE APOLO

ímpar, assim como a mão esquerda, ou mesmo a dissonância musical56, pode


representar, nas sociedades complexas de matriz europeias, o intersticial,
a exceção, ameaça de desordem, região obscura, o mistério, o obscuro, o
errôneo que pode colocar em risco a própria organização do sistema, visto
poder quebrar a suposta concepção de harmonia e equilíbrio inerente às
combinações pares. Essas, por sua vez, estão relacionadas inconsciente-
mente à ordem do universo nas representações nativas. Pela natureza de
seu espírito ou mente, o ser humano não pode lidar com o caos – ao menos
a maioria das pessoas –; o absurdo apresenta-se como algo inaceitável e
perigoso, daí todo o pavor ligado à ausência de sentido e a eterna tentativa
das culturas em dar um significado seguro ao mundo (LÉVI-STRAUSS,
56
O problema da ordem do universo representada pela harmonia musical está presente em todo o pensamento
ocidental desde pelo menos Pitágoras de Samos. Para os pitagóricos, a harmonia universal seria expressa pelos
números inteiros - já que para eles, os números seriam as almas das coisas e, portanto, indivisíveis. O maior
problema dessa concepção diz respeito aos números irracionais. Tanto na relação entre certos valores musicais,
expressos matematicamente, quanto na base mesma da matemática, surgem grandezas inexprimíveis naquela
concepção de número (que supõe a “harmonia” do número inteiro). Segundo Pessanha (1996, p. 19): “a relação
entre o lado e a diagonal do quadrado (que é o da hipotenusa do triângulo retângulo isósceles com o cateto)
tornava-se ‘irracional’: aquelas linhas não apresentam razão comum, o que se evidencia pelo aparecimento, na
tradução aritmética da relação entre elas, de valores sem possibilidade de determinação exaustiva, como o 2. Ou
então, quando se pressupunha que os valores correspondentes à hipotenusa e aos catetos eram números primos
entre si, acabava-se por se concluir pelo absurdo de que um deles não era nem par nem ímpar”. O problema
da suposta falta de ordem, medida e proporção dos números denominados “irracionais” e das dissonâncias
musicais atravessa toda a metafísica preocupada com a Identidade. Mesmo Schopenhauer, considerado um dos
pais do antirracionalismo moderno, e, para quem a música era o universo e a vontade corporificada, em outras
palavras, “a essência interna do mundo” (1986, p. 79). Parece não ter percebido que não são imperfeitos os sons,
mas sim nossas apreensões sensíveis que assim os denominam, classificando-os de acordo com os elementos
pré-existentes em nossas mentes. Como quaisquer outras coisas, sons são apenas sons, visto que a perfeição é uma
representação cultural caudatária de um processo lógico que hierarquiza a realidade sem, contudo, apreendê-la
na sua totalidade ou plenitude. O filósofo do pessimismo escreveu: “os próprios números, pelos quais os tons
permitem expressão, ostentam irracionalidades insolúveis; não é possível calcular uma escala, em cujo interior
toda quinta se relaciona com o tom fundamental, na proporção de 2 para 3, toda terça maior, como 4 para 5,
toda terça menor como 5 para 6, etc., pois se os tons estão corretos em relação ao tom fundamental, não o são
entre si, na medida em que por exemplo, a quinta deveria ser a terça menor da terça, etc., [...] por isso uma música
perfeitamente correta não pode sequer ser pensada, quanto mais ser executada; e por isso toda música possível se
desvia da pureza perfeita: ela consegue apenas ocultar as dissonâncias que lhe são essenciais [...]” (Idem, p. 81). De
acordo com um texto de Weber, “Os Fundamentos Racionais e Sociológicos da Música”, incluído em Economia e
Sociedade (1997), essa preocupação metafísica com a Identidade equacionada à ordem e à harmonia será um dos
fatores que levará à extrema racionalização da música ocidental devido à incessante busca de equacionar o que
a sociedade ocidental concebeu como irracionalidade musical. A preocupação com os intervalos – a música no
Ocidente vai ter por base harmônica a quinta e a terça levando à construção do chamado “acorde perfeito” e à
distinção entre boas e más medidas - levou ao desenvolvimento dos estudos sobre a tonalidade a polifonia e o
contraponto, culminando com a constituição de uma arte autônoma, praticada por motivos puramente estéticos
por profissionais especializados. A música ocidental tradicional é, ao menos até o século XX, o exemplo da ten-
tativa metafísica dos sistemas classificatórios do chamado pensamento domesticado de absorver a diferença na
Identidade, ou o devir no Mesmo (DELEUZE, 1988) supondo que a primeira (a diferença) constitui-se como o erro
e a imperfeição do mundo material. Talvez, a quase ausência de séries ímpares nos exercícios dos fisiculturistas
seja também expressão de tal espírito obcecado por aquilo que considera perfeição lógica.

161
CÉSAR SABINO

1976; NIETZSCHE, 1978a; EVANS-PRITCHARD, 1978a; SCHÖEPKE,


2004; 2009; CAMUS, 2017).
Durante o trabalho de campo, foi possível detectar alguns aspectos
discursivos que permitem a tentativa de elaboração de uma explicação para
a quase inexistência de números ímpares no sistema de exercícios do grupo
pesquisado. Perguntados sobre a causa desse fato, alguns responderam que
“ora, é porque o número par arredonda o esquema todo [...]” (Josias, 25 anos.
Funcionário público), ainda: “assim a série fica redonda, perfeita” (Carlos, 18
anos. Estudante) e “o grupamento de exercício fica completo, certinho, fechado,
redondo” (Paulo, 27 anos. Advogado). Além desse aspecto, foi dito o seguinte:
“uma série ímpar é quebrada, não é boa [...]” (Mário, 54 anos. Funcionário
público) ainda: “[...] eu acho que a ordem é harmônica [...] a gente tem dois braços,
duas pernas, dois ouvidos, dois olhos, dez dedos, então as séries têm que ser par,
ora!” (Rafael, 23 anos. Professor). Podemos aqui destacar as concepções de
perfeição, completude, circularidade e mesmo ordem no discurso nativo
sobre as séries de exercícios. Além também da identificação indireta do
número par como algo naturalmente construído, por isso correto, visto
que “naturais” são as paridades de membros e orifícios do corpo humano;
o número ímpar seria uma exceção no sistema, uma anomalia aceita em
determinados momentos com o objetivo de reiterar a ordem e a harmonia
representada pela paridade (DOUGLAS, 1976). Outro aspecto aludido
pelos informantes a respeito dos números pares e ímpares é o do medo do
azar: “ah, número ímpar demais dá azar... vê só o número 7, ninguém gosta dele,
é coisa de macumba.” (Rafael, 23 anos. Professor). Ainda: “o número 13, por
exemplo, é um número estranho, né? Tem gente que acha que dá sorte, tem gente
que acha que dá azar [...] não sei, é estranho” (Mariana, 22 anos. Comerciária).
Em Medo do Feitiço (1992), Yvonne Maggie buscou compreender,
mediante a pesquisa de processos judiciais sobre feitiçaria, a característica
pervasiva dessa na sociedade brasileira. A autora destaca o fato de que não
apenas os denunciantes e acusados da classe baixa, mas também os letrados
(juízes e advogados) acreditavam na magia e consideravam um dever coibir
o seu abuso. Esses guardiões do Direito acreditavam simultaneamente na
ciência e na feitiçaria, articulando uma lógica ou outra quando lhes convinha:
“se os colonizadores ingleses visaram suprimir a crença na feitiçaria, a elite
brasileira, nela emaranhada, procurava administrá-la satisfatoriamente”
(2001, p. 63). Nas academias de fisiculturismo, não é diferente. A crença
na ciência do esporte, na ciência da nutrição, nos resultados de equações
cineantropométricas convive tranquilamente com a crença no feitiço, no
162
DROGAS DE APOLO

mau-olhado, na magia, como atestam os relatos sobre os números ímpares.


Se representam, num primeiro momento, ambiguidade e imponderabilidade;
num segundo instante, são equacionados rapidamente a forças mágicas que
suprimem desse pensamento o acaso e a falha. Não apenas o número ímpar
é motivo de alusão ao feitiço, mas a gripe, o exercício que não dá resultado,
o acidente etc. Se um peso cai no pé de alguém que está com o corpo em
forma, isso pode ser motivo de burburinho a respeito de “trabalho feito”,
“macumba” ou “olho-grande”. Da mesma maneira, se um fisiculturista fica
gripado e perde massa muscular ou, por outro lado, se, apesar de toda a
técnica e ciência utilizada, ele continua “sem crescer”, ou seja, sem aumentar
sua massa muscular; isso pode ser resultado da inveja. Essa tem o poder
mágico de fazer mal por si mesma. Nada precisa ser feito a não ser o invejoso
olhar com inveja para o invejado e assim prejudicá-lo. Esse processo Zande
de crença está de forma similar presente no cotidiano das academias. Um
dos relatos do meu caderno de campo reitera tal afirmação:
Janeiro de 2001.
[Chego à academia e vejo Micharia coberto com casacos [...] fazendo
um agachamento com quase 250 quilos e sendo auxiliado por Jair.
A princípio penso que ele acredita – como muitos - que fazendo
esforço agasalhado pode perder mais peso e definir musculatura.
Mas logo percebo que não pode ser isso, posto já estar com baixo
percentual de adiposidade. Me aproximo vagarosamente buscando
usar a máquina para exercícios das pernas chamada Leg press
(exercita o músculo chamado de vasto medial) e após perceber
que Micharia terminou sua série de agachamento, começo a
conversar com ele]:
-E aí Micharia ?! Como tão as coisas?
-Tudo certo.
-Esse agachamento aí tá meio pesado, né?
-Mais ou menos...
-Hum, mais ou menos... mais ou menos, se eu fosse fazer um
agachamento desses eu morria esmagado na primeira repetição.
-Nada... [demonstrando pouco interesse por conversa].
-Cê não tá com calor não, cara? Tá todo agasalhado...
-Tô morrendo de calor, mas agora eu só vou malhar de casaco. Essa
academia só tem olho-grande. Ano passado perdi a competição
porque era tanto olho-grande que eu fiquei gripado na semana

163
CÉSAR SABINO

de competir... os caras chegavam pra mim [com voz melosa e em


falsete]: Nossa, como você tá grande! Puxa como você tá definido! E
ficavam me secando com aquele olhar de seca pimenteira enquanto
eu malhava. Agora não, cara. Não vão secar p**** nenhuma,
porque eles não vão ver nada!
Para meu informante, assim como para os Azande estudados por
Evans-Pritchard (1978a), o absurdo, ou o acaso, não teria lugar no pensa-
mento; seria necessária uma racionalização, a explicação causal precisa, para
ser resignadamente aceito. Com efeito, para Micharia não fazia qualquer
sentido estar em um processo de construção da forma seguindo à risca todas
as normas e regras e, repentinamente adoecer, perdendo uma competição.
Nenhum outro fator poderia explicar melhor seu adoecimento, perda de
parte da excelência estética e a derrota, apenas o “mau-olhado”. Le Breton
(2009, p. 235), em seu estudo sobre o olhar em culturas diversas, aponta para
uma espécie de lugar comum em todas elas no qual o olhar de um pretenso
bruxo, ou suposta pessoa com energias negativas, emite uma força que faz
esvaecer as energias do seu alvo. Essa é uma das formas de explicar o que
no fundo não tem explicação. Destarte, como todo absurdo ou catástrofe,
entre os Zande, era visto como produzido pelo feitiço; da mesma forma,
para alguns fisiculturistas e marombeiros, o mau-olhado é a causa eficiente
de perderem a forma, adoecerem, ou serem desclassificados ou em lugares
secundários em uma competição.

164
CAPÍTULO IV

La cuisine d’une société est un langage dans lequel elle traduit


inconsciemment sa struture.
(Lévi-Strauss)

4 COMENDO COMO BICHO: PUBLICIDADE, MITO E GASTRO(A)


NOMIA

As práticas alimentares não devem ser apenas vistas como hábitos


inadequados ou não como muitas vezes reiteram as ciências da saúde, mas
como acontecimentos culturais, com racionalidades diversas. A princípio,
para a medicina e a nutrição, o ser humano é nutrido por lipídios, glicídios
e protídeos, todavia, também é certo que os alimentos além de nutrir, sig-
nificam e comunicam estando envolvidos e envolvendo uma vasta teia de
simbolismos, rituais e práticas diferentes daquelas relacionadas às análises
biomédicas (CONTRERAS; GRACIA, 2011).
Perseguindo o padrão estético dominante, número significativo de
pessoas não mede esforços para se adequar aos parâmetros sugeridos pelas
imagens midiáticas. Dietas e plásticas, de todos os tipos, implantes de próteses
de silicone e exercícios variados são realizados com o intuito de aprimorar
a forma física. Os heróis do fisiculturismo aparecem em publicidades de
dietas, de máquinas de musculação, de roupas para esporte e de métodos de
exercícios que, a cada ano, surgem de maneira diversificada no mercado da
boa forma. Como o músculo, nesse sistema simbólico específico, é o signo
e a síntese do sucesso, a busca incessante pela sua expansão remete a uma
dimensão classificatória também peculiar. No sistema classificatório dos
bodybuilders, algumas imagens ordenam e reiteram a diferença inerente às
relações sociais; assim, suplementos alimentares, dietas, tatuagens e emble-
mas de academias não apenas buscam sustentar ideias de força, destemor,
bravura, imponência, mas também organizar grupos reiterando suas espe-
cificidades identitárias (LÉVI-STRAUSS, 1975; 1976b).
Assim, por exemplo, alimentos para tornarem-se comida são pri-
meiro “pensados”, classificados, comparados, justapostos e opostos para
depois serem consumidos, posto que as sociedades ou as culturas ordenam
165
CÉSAR SABINO

os mesmos como próprios ou impróprios. Nesse movimento, a culinária


ou a cozinha representam ou traduzem, como uma linguagem, as relações
sociais com todas as suas peculiaridades, sendo um objeto de análise não
apenas nutricional, mas antropológica e sociológica (LÉVI-STRAUSS, 1975;
1976b; 2004). O mesmo processo ocorre para as outras dimensões citadas .
Leach (1983, p. 186), em seu estudo sobre categorias animais, elabora
uma breve classificação que indica o sentido da distância e da proximidade
de determinados animais em relação aos indivíduos de algumas culturas.
Demonstrando que os animais, em algumas sociedades, situados a distân-
cia intermediária do homem podem servir de alimento, se forem seguidas
determinadas regras, enquanto os animais remotos não são comestíveis;
o autor destaca a ambiguidade classificatória como viés de compreensão
da realidade que não deve ser vista totalmente dicotomizada em perto/
longe, eu/isto, nós/eles, mas também como escala graduada, modulada e
moduladora que atua articulando sentidos e aspectos como “mais como eu,
menos como eu” (1983, p. 198).Esse caráter ambíguo afeta, por exemplo,
cães e cavalos, animais que, segundo Leach, devido a sua proximidade com
os seres humanos nas sociedades complexas ocidentais, em geral, não lhes
servem de alimento, salvo exceções, como a do cavalo na Bélgica. Marshall
Sahlins (1979, p. 191), de maneira similar, destaca que “a América é a terra
do cão sagrado”, ressaltando o tabu que ronda esse animal doméstico no
imaginário norte-americano. Longe de ter respaldo biológico, ecológico ou
genético, a proibição do consumo de carne de cachorro e cavalo por oci-
dentais estaria, de acordo com o autor, radicada no sistema simbólico que
classifica tais animais como “sagrados”, impróprios para alimentação, salvo
raríssimas exceções, como a que ocorreu durante uma crise da alimentação
de 1973, na qual Sahlins diz que a carne de cavalo foi colocada à venda
em substituição à bovina, causando, porém, protesto. Seguindo esquema
parecido ao de Leach, Sahlins alude ao fato de que animais próximos ao ser
humano são objeto tabu; em geral, seu consumo é impedido por motivos
culturais. Não sei se essas interpretações anglo-americanas procedem ou se
apenas tentam utilizar lógica similar ao do parentesco para compreender
o motivo de alguns animais servirem de alimento e outros não. De qual-
quer forma, tecem uma compreensão sobre as classificações e proibições
alimentares e comensais. Mary Douglas (1976; 1979), um pouco na esteira
dos autores estruturalistas, busca traduzir a gramática das comidas como
se fossem textos codificados, ou seja, sistemas passíveis de serem inter-
pretados em consonância com os sentidos, significados e principalmente
166
DROGAS DE APOLO

práticas circunstanciais. Com efeito, sua singularidade reside no fato de


destacar diversas formas ritualísticas de comer, que vão das mais densas
àquelas mais relaxadas, ressaltando que a época contemporânea tende a
produzir um crescente afrouxamento das situações alimentares estrutu-
radas (com locais, rituais e relações sociais específicas), como as refeições
em família ou entre convivas, a favor do consumo de aperitivos (snacks),
lanches e fast-foods sem as características anteriores. Essa leitura do sistema
culinário, sob meu ponto de vista, enfatiza o crescente distanciamento da
comensalidade (a forma estruturada na qual é necessária a reciprocidade
e a troca solidárias) em relação à alimentação, o ato solitário, desgarrado,
veloz ou desestruturado de simplesmente “matar a fome”.
Todavia parece que também, nas classificações alimentares dos fisi-
culturistas, alguns animais surgem semanticamente como ambíguos. De
maneira alguma queremos dizer que a mesma lógica do perspectivismo
ameríndio encontra-se de forma integral ou em partes no pensamento
ocidental racionalista, mecanicista, transcendente e depredatório – e não
predatório como entre ameríndios. Contudo, por aproximação, podemos
demarcar a oposição entre essas duas formas de apreender a realidade.
Com efeito, na classificação dos fisiculturistas, cavalos, podem signifi-
car grosseria, estupidez e burrice, por um lado, ou garbo, força e imponência,
por outro, dependendo da circunstância. Em geral, entre bodybuilders pes-
quisados, esse animal é emblema de força e resistência – assim como o cão
pitbull é da mesma forma sinônimo de força, bravura e destemor. Ocorre,
então, um processo de identificação com a força representada pela figura
desses animais, assim como outros. Tal aspecto remete indiretamente à
questão da consubstancialidade presente na comensalidade de alguns povos
ameríndios, mas de forma oposta. Entre os Pakaa-Nova, por exemplo,
autodenominados Wari, estudados por Vilaça (1992, p. 68), “a devoração
produz uma consubstancialidade entre os termos”; ou seja, “todos aqueles
que são devorados por um jaguar tornam-se jaguar por terem seus jam
incorporados a esta espécie”. Jam poderia ser provisoriamente aqui traduzido
como essência, mas não no sentido da metafísica ocidental. Ele “é um traço,
marca, representação ou imagem de um corpo. A sombra de um objeto ou
pessoa projetada pela luz é o jam do objeto ou da pessoa” (VILAÇA, 1992,
p. 55, grifos da autora). Assim, se um Wari sonha que comeu um animal, ele
sabe, ao acordar, que não comeu o corpo do animal, mas o jam do animal.
Entre eles, os animais com jam são considerados pessoas e não devem ser
devorados. Se isso acontecer, aquele que comeu o animal adoece. Entre os
167
CÉSAR SABINO

Tupinambá, comer um guerreiro inimigo, por sua vez, fazia parte de um


ritual expiatório (GIRARD, 1997; VIVEIROS DE CASTRO, 2002f), no qual
a força e o poder por aquele representados eram incorporados por aqueles
que o devoravam. Nessa forma de olhar o universo, os ameríndios conferem
agência e humanidade aos animais, colocando-os na mesma dimensão ou
horizontalidade de condição de pessoas em sociedades. Simplificando de
forma muito canhestra: para eles não existiria uma dimensão singularmente
humana representada pela sociedade e cultura, separadas de uma instân-
cia objetificada denominada natureza, objeto sistêmico e mecânico, com
leis imutáveis (CAMARGO JR., 1993), mas todos os seres apresentariam
humanidade potencial vivendo em suas sociedades e culturas. Assim, por
exemplo, ser morto e devorado por um jaguar é ter seu jam misturado ao
dos jaguares “renascendo” na sociedade e cultura dos jaguares, passando
a conviver naquela sociedade como agente e pessoa. Enquanto essa forma
de pensamento humaniza os seres e aquilo que chamamos de natureza –
animais, vegetais e mesmo fenômenos –, a forma ocidental desumaniza e
coisifica todos os outros seres colocando-os como objetos descartáveis ou
de comércio e exaltando o ser humano como único agente legítimo (de)
predador do seu entorno. Assim, a efêmera consubstancialidade do fisi-
culturista se resume ao fetichismo da mercadoria transformando em coisa
elementos físicos (moléculas) considerados predicados universais (naturais)
a serem utilizados e absorvidos.
Se não consomem cães e cavalos, animais próximos e mais “sagrados”
e “proibidos”, quase subparentes, às vezes consomem substâncias das indús-
trias farmacêuticas e cosmética produzidas para maximizar a saúde desses
animais, mas apenas por analogia. Ocorreria, por um lado, uma espécie
de identificação “totêmica” com esses animais e, por outro, uma espécie
de anticonsubstancialidade posto que o animal, ao contrário das sociedades
citadas, é visto, em geral pelo grupo, como coisa, mercadoria, objeto a ser
decomposto para que seus elementos químicos passem a compor com a
fisiologia do usuário uma condição de força biomecânica melhor para
esse último. O uso de elementos direcionados para alimentação de animais
que, por sua vez, servem de alimento aos seres humanos, transfere algumas
características químicas positivas, mesmo que temporariamente, para os
corpos daqueles que consomem estas substâncias. Processo que coincide com
o uso de produtos veterinários, por parte de alguns, destinados a equinos,
por exemplo. Assim, se não comem diretamente cavalos para adquirir sua
força, parece que associam o uso de vitaminas, anabolizantes, pomadas e
168
DROGAS DE APOLO

mesmo xampus para tais animais como um meio de conquistar um pouco


da força inerente a eles devido a intensidade química desses produtos: “Eu
tomo aminoácido pra cavalo... já tomei também Equifort [anabolizante para
equinos] e fez efeito [...] é muito mais forte que o de gente, te dá muito mais força
[...]” (Carlos, 24 anos. Fisiculturista).
Com efeito, a natureza selvagem com sua força incontornável e cons-
tante, representada por alguns animais considerados fortes, resistentes e
impetuosos, supostamente poderia ser capturada, mercantilizada, comprada
e absorvida, não pela consubstancialidade, mas pela transferência dos ele-
mentos químicos, ao menos em parcelas e partes, via cápsulas farmacêuticas,
ou mesmo injeções em uma transposição de características consideradas
positivas para o consumidor.
De vez em quando eu arranjo Androgenol com um cara lá do
Jockey, é pra cavalo, né?! Tu usa o efeito é violento... também
tomei vitamina pra cavalo o Potenay, dá o maior gás, porque
tem anfetamina também [...] Então, não é psicológico, é porrada,
é pra valer, porque é mais forte, a quantidade é mais concentrada,
entende? (João. 27 anos. Fisiculturista e lutador de jiu-jitsu).
[...] o remédio pra cavalo [...] é muito mais forte, pô tu toma uma
ampola de Equifort nem se compara... porque vem mais que as
de gente... as vitaminas, os aminoácidos também...são muito mais
fortes que os comuns, cê fica com uma força de animal, cara. É
isso por isso muita gente toma essas coisas [...] o que a gente não
faz pra melhorar, né? (Pedro. 22 anos. Fisiculturista e lutador
de jiu-jitsu).
Eu uso produtos veterinários às vezes, mas faço isso porque acho
que são mais fortes e funcionam melhor, mas não uso apenas eles.
Também tomo os normais [...] e alguns remédios para emagrecer
quando eu preciso [...] pra ficar cortado [com baixo percentual
de adiposidade] sibutramina e suplemento pra acelerar o meu
metabolismo, porque eu tenho facilidade pra engordar[...] não fio
com corpo bom só treinando, fora que curto comer, então...é uma
luta. (Fábio. 32 anos. Advogado).
Cara, eu já tomei tudo. Clembuterol, efedrina, tudo que é bomba,
Ritalina pra ficar agitado e treinar mais, Sibutramina [...], mas
tem mesmo o lance do cavalo [...] Potenay, Equifort , se der mole
a gente toma até querosene, [risos] tudo maluco. Se você não for
doido não faz [...] tem que amar muito isso aqui [...] agora, a gente
toma coisa de bicho porque é mais forte. Então o efeito é melhor.
É o que eu acho. (Tiago. 22 anos. Estudante).

169
CÉSAR SABINO

[...] eu fico com mais disposição. Agitado, é bom não só pra treinar,
mas pra se sentir bem. Fico com muito gás [disposição], muito
animal [...] treino peitoral, perna, bíceps, tríceps... tudo pesado,
porque fico muito bem disposto quando injeto essas paradas todas.
E como é mais forte a gente consegue ficar sarado mais rápido, a
massa cresce logo [...]. (Pedro. 23 anos. Estudante).
Nas academias, além de ser comum o uso desses produtos para equi-
nos57, ainda ocorre o uso de outros por parte das mulheres e dos homens,
como xampus e pomadas para dor, pois dizem que o efeito é mais rápido,
forte e faz a dor, conforme o relato de uma praticante de musculação:
“passar logo e o cabelo ficar mais forte e brilhante como a crina de um cavalo”. A
diferença entre esses produtos e aqueles direcionados para seres humanos
é, como dizem, dosagem maior e menor cuidado higiênico relacionado à
produção e às embalagens, o que ressalta o aspecto simbólico da utilização
desses medicamentos e produtos. Há, sem dúvida, uma dimensão repre-
sentacional atuando nesse consumo. O que faz lembrar o texto de Dupuy
e Karsenty (1979, p. 191-192):
Os medicamentos [ou fármacos] asseguram [...] certo con-
forto oral, diminuem o sentimento de insegurança, acalmam
a angústia, preenchem os vazios [...] em resumo, ajudam a
viver. Mas se o medicamento torna possível o acesso aos
benefícios da doença é também, e sobretudo, o seu artesão
principal. O consumo de medicamentos [...] é um meio de
encobrir determinadas faltas. A variedade de posologias,
que instituem uma parte do universo temporal do doente
[...] preenche o vazio e a angústia das horas cinzentas que se
escoam em direção a uma morte cuja própria existência dos
sintomas recorda a vida inexorável. Ao tomar o medicamento
o sujeito supera um sentimento de impotência em relação a
sua fragilidade constitucional.
Como os fisiculturistas costumam usar uma quantidade significativa
de esteroides anabolizantes, os produtos voltados para equinos trazem
maiores porções provocando certeza de maior eficácia, devido a dosagens
literalmente cavalares. Em relação aos aminoácidos e vitaminas para animais,
algumas vezes, compram substâncias para quadrúpedes em lojas veterinárias,
alegando o mesmo motivo: são mais potentes do que as voltadas para seres

57
Em 9 de agosto de 2000, a imprensa carioca noticiou a morte, em um campeonato, de um atleta de 23 anos,
Jean Mendonça de Mesquita, lutador de jiu-jitsu, devido à parada cardíaca por causa do uso da vitamina para
cavalos denominada Potenay, além de anabolizantes.

170
DROGAS DE APOLO

humanos, conferindo mais força àqueles que as utilizam. Se não comem


diretamente cavalos ou cães pitbull, esses indivíduos parecem ter uma relação
de anticonsubstancialidade mercantilizada com esses animais via consumo
de produtos a eles direcionados. É justamente porque, nessa cosmologia, os
animais são radicalmente não humanos que se torna necessário decompô-los
em coisas, como em geral são tratados, para que seus elementos químicos
possam auxiliar humanos em seu crescimento. Nessa visão, oposta àquela
do perspectivismo ameríndio, animais são objetos moventes, similares aos
próprios produtos para eles direcionados, que podem ser usados, consu-
midos, decompostos e exterminados (depredados e não apenas predados)
para a suposta perfectibilidade ou progresso do “ser superior” humano.

4.1 DIETA FORTE

A alimentação, além de ser necessidade biológica, é um complexo


sistema de significados sociais, sexuais, políticos, religiosos, éticos, estéti-
cos etc. Pode-se dizer que nenhum aspecto do comportamento humano, à
exceção talvez do sexo, é tão sobrecarregado de ideias. Conforme Carneiro
(2003), a fome biológica distingue-se dos apetites, esses seriam expressões
dos variáveis desejos humanos e cuja satisfação não obedece apenas ao curto
trajeto que vai do prato à boca, mas se materializa em hábitos, costumes,
rituais, etiquetas. Esses hábitos possuem uma intrínseca relação com o poder.
A distinção social pelo gosto, a construção dos papéis sexuais, as restrições
e imposições dietéticas religiosas, as identidades étnicas, nacionais e regio-
nais são todas perpassadas por regulamentações alimentares (BOURDIEU,
1979; FRY, 1982; 2001).
Sem embargo, a cozinha ou culinária de um grupo ou cultura cons-
titui uma forma de linguagem sendo item universal, o que equivale dizer:
presente em todas as sociedades. Assim sendo, a comensalidade é configu-
rada por um conjunto de elementos culinários contrastantes e relacionados
entre si, formando, uma lógica sistêmica de normas e convenções que
organizam os modos como e quando os alimentos são preparados, orde-
nados, combinados e consumidos, o que, por sua vez, reflete nas relações
classificatórias (e, portanto, a lógica inconsciente) do grupo ou cultura,
visto ser a organização culinária um tipo de classificação e, portanto, de
hierarquia relacionada a parte da realidade coletiva. Esse processo tem
por base formas mentais e, portanto, a priori de percepção de sabores:
forte/suave; marcado/não marcado; endógeno/exógeno; exótico/local;

171
CÉSAR SABINO

central/periférico; prato principal/acompanhamento, ou seja, no sistema


classificatório constituem aquilo que Lévi-Strauss denominou “gustemas”,
elementos similares aos fonemas que são os itens estruturais na linguística
(LÉVI-STRAUSS, 2004; CONTRERAS; GRACIA, 2011). Esse sistema
reflete uma lógica que não é, contudo, simétrica em seus movimentos, mas
assimétrica – assim como as relações sociais. Ao hierarquizar os agentes
sociais formam-se papéis, lugares e status de quem come, onde come,
quando come, o que come ou o que pode ou não comer. Por intermédio
desse processo, o sistema social reproduz as relações de poder que o
constituem via ações e comportamento individuais, ocorre que mesmo
neste aspecto existe toda a ritualização de produção de reciprocidade que
envolve a preparação e o compartilhar da comida como símbolo de troca,
mesmo que assimétrica. O que eu gostaria de destacar neste capítulo é
justamente a diminuição no contexto das academias desta dimensão de
reciprocidade solidária alimentar, posto que a ciência da nutrição, (e não
a gastronomia), com suas cápsulas, shakes e suplementos em geral, além
de dietas customizadas e solitárias, termina por enfraquecer as trocas
estruturais que permitem a existência da comensalidade.
Um pequeno exemplo desse processo se apresenta no seguinte relato:
No primeiro dia de aula em uma das academias do bairro de Copa-
cabana, após ser apresentado ao professor e ter enfrentado uma bateria de
perguntas a respeito das minhas práticas nas academias anteriores, meus
objetivos com relação à forma física e exercícios que havia realizado até
então, foi me indicada uma dieta, feita ali na hora, escrita à mão pelo próprio
professor que consistia nos seguintes itens:
Café da manhã (desjejum): 10 claras de ovos cruas, 10 colheres de aveia
(flocos finos), 2 bananas, ½ copo de leite desnatado c/ 10 gotas de adoçante.
Lanche: 100 g de batata cozida na água e sal (pouco).
Almoço: 150 g de macarrão na água e sal, 150 g de peito de frango
(grelhado).
Lanche: gelatina diet (à vontade).
Jantar: salada de brócolis, agrião, cebola, tomate e alface, 1 lata de
atum na água e sal.
Lanche: gelatina diet (à vontade).
A seguir o professor indicou as seguintes substâncias ou “pirâmide”
(ou ciclo):

172
DROGAS DE APOLO

Quadro 2 – Pirâmide ou ciclo de esteroides anabolizantes


seg ter qua qui sex sab Dom
1ª 1 ampola
semana Dura58
2ª 1 ampola 1 ampola
semana Dura Deca59
3ª 1 ampola 1 ampola 1 ampola
semana Dura Deca Dura
4ª 1 ampola 1 ampola 1 ampola
semana Dura Deca Dura
5ª 1 ampola 1 ampola
semana Dura Deca
6ª 1 ampola
semana Dura

Fonte: o autor

Além desses esteroides, foram indicadas as seguintes vitaminas:


Supradin, Cewin, complexo B. Um comprimido de cada, após o desjejum
e um comprimido após o jantar. O “professor” me entregou o papel com
a dieta e o ciclo de “bombas” dizendo que, se eu seguisse suas instruções,
ficaria com o corpo do Schwarzenegger – um óbvio exagero. Peguei a
“receita” e, um pouco assustado, tentei dizer-lhe que não era meu objetivo
virar um fisiculturista, mas apenas fazer exercícios e pesquisar, pois era
antropólogo e queria entender aquele grupo. Demonstrando um pouco de
decepção, mandou-me, então, guardar a dieta porque eu poderia “mudar de
ideia”. Disse que, se eu não queria usar os anabolizantes – que ele vendia –,
podia ao menos fazer a dieta que era para “secar”, e começou a me indicar os
exercícios dizendo que não era costume na academia escrever séries desse
tipo para “não viciar o aluno”, já que cada dia seria um exercício novo que
ele passaria na hora.
Essa indicação de dieta e esteroides anabolizantes para iniciantes é um
breve indício das regras alimentares que regem o cotidiano dos bodybuilders,
em rituais de autossacrifício e autoimolação que exaltam a sacralidade da
58
Durateston.
59
Decadurabolin.

173
CÉSAR SABINO

forma (MAUSS; HUBERT, 2005). Interessante se faz observar o papel dos


alimentos “brancos” considerados muito ricos em proteínas e carboidratos:
peito de frango, peixe, macarrão, batata, banana, clara de ovo. Esses alimentos
são consumidos em grande quantidade pelos fisiculturistas. São “sagrados”, e
sua presença é indispensável já que, conforme dizem, as proteínas, presentes
em carnes junto aos carboidratos, retirados de massas, banana e batata, “são
fundamentais para fazer crescer o músculo”. Como essa dieta era para um
iniciante, e tinha o objetivo de emagrecer rapidamente o usuário, a carne
vermelha estava ausente. Porém, em dietas de crescimento muscular, as quais
denominam off season, o consumo de carnes e massas de todos os tipos é
incentivado levando alguns a comerem alguns quilos de carne e macarrão
por dia, além das dúzias de claras de ovo. Sabendo disso, a indústria dos
suplementos alimentares criou substitutos em pó – praticamente sem
gosto – para substituir quimicamente tais alimentos. Entre os mais usados,
estão suplementos denominados Creatina e a Albumina, nomes científicos,
vendidos com nome fantasia por várias marcas da indústria nutricional.
Quando se trata de perder gordura, quase todo carboidrato é retirado
da alimentação, fazendo o corpo do bodybuilder fica com muitos detalhes
musculares à vista, pois a ausência da adiposidade permite que músculos
sejam ressaltados sob a pele diretamente sem nenhum intermediário que
impeça sua visualização.
Para a antropologia, a comida , e, por conseguinte, a comensalidade,
tem caráter social, de agregação, é coletiva, solidária e supõe, em geral, rituais
nos quais pessoas se comunicam, conhecem-se e reconhecem e reiteram
tradições socioculturais por intermédio da culinária. Sendo assim, a comida
seria o oposto do alimento, o qual não passa de um conjunto de elementos
necessários para a manutenção do corpo e que dispensa qualquer ritual ou
elaboração rebuscada (CONTRERAS; GRACIA, 2011). O alimento por ele
mesmo não representa nenhuma coesão social, mas o contrário, em socie-
dades aceleradas nas quais o gosto se embrutece pela rapidez em deglutir
como ato solitário, ele pode significar mesmo uma distorção das relações
sociais. A quase substituição de comida por alimentos e suplementos reali-
zadas por fisiculturistas, ao menos em grande parte de suas vidas cotidianas,
pode representar esse aspecto anômico de uma sociedade, ou grupo, com
tendências, cada vez menos, solidárias e mais individualistas. Se olhada da
perspectiva de Lévi-Strauss (2004), para quem a fundação e a separação
da cultura em relação à natureza são representadas pelo cozimento da
carne e, então, toda a socialização que passa a envolver a organização da
174
DROGAS DE APOLO

comensalidade; posso dizer que há um retrocesso na percepção da comida,


percebida como algo a ser superado – ao menos momentaneamente – em
prol dos elementos químicos do alimento. Ato que faz cessar as alianças, a
reciprocidade e a solidariedade envolvida na culinária e tudo que ela mobi-
liza. Certamente Norbert Elias (1993) sugeriria que essa solidão alimentar
envolta em contagens de calorias, pesagens intermitentes, em quantidades
de carboidratos e proteínas, insinua, ou mesmo já demonstra, um processo
descivilizatório. Contudo não posso deixar de lado a observação de que, em
momentos raros, esses atletas renunciam sua obsessão pelo alimento em
troca de verdadeiras orgias comensais quando, após campeonatos ou em
comemorações festivas, reúnem-se em restaurantes para longas horas de
associação à mesa sem preocupação com os resultado químicos que possam
prejudicar sua forma corporal.
Percebi, durante os anos de trabalho de campo, que a solitária e tec-
nológica dieta fisiculturista tem importância fundamental em seu sistema
simbólico, portanto ocupa um lugar ímpar no dia-a-dia não apenas extensiva-
mente (durante o tempo que ele adota), mas intensivamente (a radicalidade).
O fisiculturista convive com dietas radicais que comporta a ingestão de inú-
meros suplementos – cada vez mais “aprimorados” pela indústria alimentar
– e proteínas em grande quantidade. Chegam a consumir até 9000 calorias
por dia – três a quatro vezes mais que uma pessoa comum, quando em fase
de construção da muscularidade. Por outro lado, reduzem drasticamente a
alimentação quando necessitam emagrecer – principalmente carboidratos.
Em “fase de crescimento”, realizam, de três em três horas, refeições que
chegam a somar uma dúzia de clara de ovos (ou albumina, clara de ovo em
pó desenvolvida pelos laboratórios de suplementação) e um quilo de carne
ao dia (em geral peito de frango), além dos carboidratos – macarrão na água
e sal. Alguns dias antes dos campeonatos, deixam de comer sal e tomam
laxantes e diuréticos com o objetivo de reduzir a quantidade de água no
tecido subcutâneo para que a musculatura seja ainda mais ressaltada. Não
raro, sofrem vertigens e desmaiam devido à falta de água e sais minerais
que produz quedas na pressão arterial e arritmia cardíaca. Para reforçar
o cardápio, utilizam, como foi dito, vários produtos para suplementação,
como farelos e comprimidos – em geral maiores do que o tamanho de um
comprimido comum – derivados de alimentos, que geralmente são batidos
com leite desnatado ou adicionados à água.
Esse tipo de dieta, além de produzir uma grande massa muscular,
reduz sensivelmente a porcentagem de gordura corporal. As taxas chegam
175
CÉSAR SABINO

a se estabilizar entre 2% e 5%, contra 18% de um indivíduo comum do


sexo masculino. Entretanto, para que isso aconteça, a dedicação total aos
exercícios deve ser praticada; esses envolvem séries de musculação com
aeróbica que implicam levantamentos contínuos de pesos de até meia
tonelada, exercícios para as pernas. Para trabalhar essa parte do corpo, os
fisiculturistas chegam a fazer agachamentos – exercícios de abaixar e levan-
tar com pesos nos ombros – com até 300 quilos. Com um braço, chegam a
fazer 40 repetições com pesos de 45 quilos. Tudo isso, aliado ao consumo
frequente de esteroides, permite a esses homens adquirirem até sete quilos
de músculos ao fim de um mês. Esses excessos levam alguns à morte. No
ano de 2003, a Confederação Nacional de Culturismo registrou cinco casos
graves envolvendo usos de drogas. Dois desses culminaram em morte60.
Referindo-se à dimensão cultural dos hábitos alimentares, Sahlins
(1979) aponta para a centralidade das carnes na dieta norte-americana e
seu aspecto simbólico relacionado à força e à virilidade. Segundo o autor,
utilizando as pesquisas de Benveniste, a associação simbólica entre a carne e
a força indica a ampla difusão social que tem tido esse código da comida, que
parece originar-se da identificação indo-europeia do boi com a virilidade.
Fischler (1979) denomina esse processo, presente em diversas culturas,
“contaminação analógica”. Ou seja, a concepção de que a ingestão de deter-
minados alimentos transpõe as propriedades e virtudes desses alimentos
para aqueles que os ingerem. Essa apologia da carne remete, em contraste,
aos seguidores da alimentação natural, os chamados, pelos bodybuilders, de
“naturebas” que não ingerem carne e buscam uma dieta da leveza, com a
presença de muito verde e frutas61. A análise dessa dicotomia tem levado
alguns a associarem a alimentação natural à série natural-feminino-leveza,
em contraposição à série carne-masculinidade-força-virilidade, opondo o
corpo feminino à força e associando a alimentação natural estritamente à
apresentação do corpo como objeto de gozo para o outro, sujeito de sedução,
e não como produtor de energia (LIFSCHITZ, 1997). Se essa classificação,
a princípio, faz sentido, não resiste, porém, quando confrontada com a
realidade dos fisiculturistas; pois, se a feminilidade está também entre eles
60
Revista Veja. 22 de outubro, 2003, p. 103.
61
Vale ressaltar que os gregos, considerados, não raro, modelos maiores de perfeição física e criadores das
competições olímpicas, quase não consumiam carne vermelha, centrando, assim como os romanos, mais tarde,
sua alimentação na tríade: pão, azeite de oliva, vinho. A carne consumida era a de peixe. O elevado consumo
de carne vermelha era visto, pela cultura greco-romana, como um hábito dos chamados povos bárbaros – em
Roma, germânicos e eslavos eram os que mais se alimentavam de fato da carne suína e bovina e em quantidade
significativa (FLANDRIN; MONTANARI, 1998; CARNEIRO, 2003).

176
DROGAS DE APOLO

associada à fraqueza – da mesma forma que o alimento muito leve –, não é


apenas ela que se apresenta como sujeito de sedução. Ao contrário, toda a
construção da força, da virilidade e da muscularidade está centrada nesse
processo, antes julgado como pertencente ao mundo da feminilidade que
dava muita importância à aparência do corpo em contraposição à força
inerente ao mundo masculino. Se isso foi verdade antes, atualmente a
aparência deve estar revestida de músculos para fazer o corpo atuar como
objeto de sedução.
Se a carne, e tudo que dela é derivado, é vista como uma espécie de
alimento sagrado na dieta dos bodybuilders, a gordura é tida como a maior
vilã, símbolo máximo do mal e do profano. Carnes são bem-vindas, mas
carnes pesadas e viscosas, não. A carne de porco – e todos os derivados de
suínos – é, portanto, evitada ao máximo, como símbolo maior de impureza.
Em seguida vem o álcool. Se não adotam a extrema leveza dos “naturebas”,
por sua vez, não absorvem, de forma alguma, qualquer tipo de alimento
junkie – ao menos não durante grande parte do tempo. As carnes não devem
ser gordurosas, nem fritas. A fritura deve ser banida do cardápio. Peso e
leveza devem estar equilibrados referindo-se a uma racionalidade na qual
impera tabelas nutricionais. Nesse critério classificatório, a tradicional
compreensão antropológica elaborada por Mary Douglas (1976) – que
ressalta a proibição do consumo de carne de porco entre os hebreus porque
no sistema classificatório desse povo o porco, apesar de ter patas fendidas,
não é ruminante – deve ser acrescentada à “descoberta” pela medicina dos
supostos problemas de saúde causados pelo consumo de gordura, fato que
produziu uma demonização da adiposidade. É preciso, todavia, ressaltar que
todas as regras apresentam exceções; é o caso de alguns atletas que fazem
dietas chamadas cetônicas, nas quais ficam um tempo comendo apenas
carnes, inclusive de porco, para perderem adiposidade. Além do aspecto
considerado “sujo” da carne suína, para os nativos, é preciso também ressaltar
que a teoria dos micróbios presente na ciência contemporânea classifica
claramente o que é limpo e sujo, dando feição à higiene das sociedades de
matriz ocidental e ao higienismo, por conseguinte.
Ocorre, nesse movimento tipicamente ocidental, uma verdadeira
revolução classificatória e dos sentidos que vai relacionar a sujeira às classes
baixas. A partir do século XVIII, a palavra “limpo” começa a adquirir cono-
tações morais, passando a significar também distinção, nobreza, elegância e
ordem. A limpeza das coisas passa a indicar limpeza de alma. A partir dessas
novas representações sociais, as autoridades resolvem empreender uma
177
CÉSAR SABINO

espécie de cruzada de desodorização e de limpeza com o objetivo de banir


as imundícies que uma sociedade cada vez mais hierarquizada tolerava cada
vez menos62. A alimentação não vai escapar a essa fúria higienizante que
surge na época moderna conformando uma nova Weltanschauung dietética
(RODRIGUES, 1980; 1995; 1999). A carne de porco passará a ser vista com
suspeita devido ao habitat no qual se cria, em geral, o animal. Soma-se a
isso o desenvolvimento dos estudos nutricionais e de fisiologia que conde-
narão a ingestão excessiva de gordura – ao menos durante certos períodos
históricos. As culturas ocidentais, no século XX, passaram a demonizar a
gordura, e assim o status do gordo muda:
Há um século, nos países ocidentais [...] os gordos eram ama-
dos; hoje, nos mesmo países, amam-se os magros. No tempo
em que os ricos eram gordos, uma rotundidade razoável
era muito bem vista. Ela era associada à saúde, a prosperi-
dade, à respeitabilidade plausível, mas também ao capricho
satisfeito... a magreza não sugeria mais do que a doença (o
definhamento), a maldade ou a ambição desenfreada” (FIS-
CHELER, 1995, p. 78).
Se, no passado, o gordo era símbolo de positividade no sistema clas-
sificatório das culturas ocidentais, desnecessário dizer que atualmente “as
silhuetas obesas atraem apreciações bem negativas” como as de “preguiçoso,
trapaceiro, sujo, mau, feio, besta, etc.” (FISCHLER, 1995, p. 70). O repertório
discursivo médico, mutatis mutandis, dá sua contribuição para a manutenção
dessa condição simbólica lipofóbica. Nesse processo, como indicou o trabalho
de Boltanski (1979) sobre o discurso dos operários a respeito da doença e do
corpo; o discurso dos fisiculturistas e frequentadores assíduos das academias
de musculação é construído a partir de categorias advindas dos discursos
médico-científicos. Esses discursos de especialistas não são, na maioria das

62
De acordo com o trabalho de Jacques Attali, a percepção dos odores e da limpeza, até o século XVIII, diferia
muito do que a cultura atual considera saudável (1979 apud RODRIGUES, 1999, p. 112): “o ambiente urbano do
século XVIII ainda era predominantemente o da cultura medieval: o da carniça, do estrume de animais que circula-
vam dentro do perímetro urbano, dos restos de alimentos, do sangue que escorria pelos cantos ou que permanecia
estagnado nas poças, dos cadáveres de grandes e pequenos animais, dos fedores dos sebos sendo derretidos, dos
matadouros dentro das cidades, provocando febres pútridas, dos hospitais desencadeando gangrenas úmidas cujas
feridas não cicatrizavam, dos cemitérios empilhando dejetos e corpos, dos açougues, dos costumes, das cozinhas
coladas umas às outras, dos excrementos lançados às vias públicas [...]” Ainda, citando a obra literária O Perfume, de
Patrick Süsskind, sobre a população urbana no Século das Luzes (Idem): “reinava nas cidades um fedor dificilmente
concebível por nós, hoje [...] os homens [e mulheres] fediam a suor e a roupas não lavadas; sua boca fedia a dentes
estragados, seu estômago fedia a cebola e, o corpo, quando já não era mais bem novo, a queijo velho, a leite azedo
e a doenças infecciosas [...] fediam o camponês e o padre, o aprendiz e a mulher do mestre, fedia a nobreza toda [...]
pois à ação das bactérias, no século XVIII, não havia sido colocado ainda nenhum limite”.

178
DROGAS DE APOLO

vezes, claramente compreendidos pelos praticantes de atividades físicas das


instituições de bodybuilding que articulam seu próprio discurso à maneira de
uma bricolage, com conceitos e categorias médico-nutricionais. Confrontados
sobre a clareza dos significados dos discursos científicos, muitos demonstra-
ram ter uma interpretação bem própria das categorias científicas:
Bom, eu sei que a proteína ‘tá mais na carne branca e faz a gente
crescer massa muscular, é limpa, não engorda... o carboidrato tá
na massa do macarrão e do pão, que tem que ser integral... tudo
isso faz crescer massa... já a carne vermelha é mais pesada, não é
muito legal. Comer carne vermelha de vez em quando até vai, mas
não é legal comer sempre, porque ela tem gordura e, por isso, não é
tão limpa quanto a carne de peixe. (Carina. 18 anos. Estudante).
Também:
[...] a carne de porco é suja, tem gordura, porco é [...] sujo, come [...]
sujeira, é um urubu sem asa... vive na lama, na sujeira, tá cheio
de coisa impura. Já a carne branca, não, é mais leve. [...] frango
é limpo, não tem sujeira, o bicho é tratado só com milho e ração,
é limpinho, que nem o peixe que vive na água, não tem gordura,
não come porcaria, é pura proteína, sem impureza. Já a carne
de vaca não é tão suja que nem a carne de porco, dá pra comer
se você selecionar as partes, tirar as partes gordas, a vaca não é
muito suja, nem é muito limpa, né?! De vez em quando não tem
problema comer um bife grelhado. (Paulo. 27 anos. Fisiculturista)
Ainda:
[...] a proteína é seca, forte, pura e faz crescer... a carne branca
tá cheia de proteína e não faz mal, não engorda [...] a gordura é
a pior coisa que tem. Mata. E além de matar é feio, sacou? Tu vê
aquele cara barrigudo com aquelas banhas moles [...] é horrível! E
aquela mulher cheia de pneu e culote, banha pura [...] é o retrato
da morte! [risos] O cara assim só come porcaria, lixo! Bacon,
hambúrguer, fritura, tudo que é dejeto alimentar... Olha, vou te
dizer uma coisa, cara, não adianta malhar que nem um maluco,
o dia inteirinho e comer gordura, porcaria, sujeira... a maior parte
dos resultados está na alimentação. A gente é o que a gente come.
(Edson. 30 anos. Advogado).
Nas classificações alimentares dos bodybuilders, o aspecto gorduroso
dos alimentos toma forma, por vezes, de mal supremo, que deve ser comba-
tido e evitado por aquele que quer ser considerado belo e saudável. Nessa
concepção, os animais que comem coisas consideradas impuras tendem a

179
CÉSAR SABINO

transmitir essa impureza em forma de gordura para aqueles que os comem.


O porco é, sem dúvida, o maior vilão, tendo ao seu lado todo tipo de fri-
tura. Já a carne bovina aparece como meio termo, nem muito impura, nem
muito limpa, dependendo da parte do animal que é consumida. O frango,
ou a galinha, também, apenas o peito é apreciado por ser considerado
“seco”, branco e sem gordura, outras partes sem ser o peito não são muito
apreciadas. Já o peixe é símbolo de pureza e limpeza, por viver na água e,
de acordo com os informantes, “não comer porcaria”.
Dessa forma, é possível perceber que, paralela à toda categorização
científica presente no discurso sobre a alimentação, existe outra catego-
rização que retira da primeira determinados termos para organizar um
sistema discursivo com uma lógica que associa a sujeira e a impureza da
carne à umidade, ao peso no estômago e à lama (o porco), sendo a gordura
e sua “moleza” ligada diretamente aos estados e condições execráveis de
saúde expressos nessa lógica pela própria sujeira. Já a condição de pureza
do animal, que serve para o alimento excelente, é aquela, segundo os infor-
mantes, relacionada à água, à leveza e às cores claras (carnes brancas) e à
ausência de gordura (peixe), sendo o meio termo representado pela carne
do frango e da vaca (algumas partes do corpo), animais que vivem em terra
seca, um mediador nesses dois polos.63

Quadro 3 – Alimentos e impureza


Porco (-) Vaca e frango Peixe (+)

Impuro Partes puras/impuras Puro

Gordo Magro
Nem gordo/nem magro
Carne “pesada” Carne “leve”
Carne de peso médio (dependendo
Lama Água
das partes)

Profano Terra seca Sagrado

Partes sagradas e partes profanas

Fonte: o autor

63
Embora a Nutrição se veja como uma ciência “dura”, é bastante sugestivo para o olhar socioantropológico
a forma como suas “verdades” rapidamente mudam ao longo de alguns anos. Essas dietas do início dos anos 10
do século atual já foram modificadas e mesmo a carne de porco e a gordura passaram a fazer parte positiva de
muitas dietas de atletas do fisiculturismo, perdendo todo seu aspecto negativo.

180
DROGAS DE APOLO

Camporesi (1996), ao escrever sobre as mudanças culinárias na Europa,


mostra que quanto mais a cultura se racionalizou no Ocidente, mais horror
a “carnes viscosas e pesadas” ela passou a ter. A culinária leve, frugal, com
legumes, verduras e carnes brancas tomou o lugar dos pratos assados e dos
banquetes pantagruélicos que passaram a representar os vícios da alma. A
leveza à mesa e a ausência da gordura passaram a ser sinal de bom gosto
e inteligência entre as classes superiores. Talvez processo parecido ocorra
entre os bodybuilders que buscam a amplitude da forma e a limpidez da ima-
gem como símbolo de excelência e status social. Contudo, como foi visto,
a tese da ascese não basta para explicar a formação da cultura ocidental
capitalista, já que essa convive com significativo e crescente consumismo
que leva à obesidade grande parte das populações de diversas regiões do
mundo atual. A tese da ética romântica do consumismo, muito bem sus-
tentada por Campbell, parece de fato estar presente naqueles momentos
festivos em que os bodybuilders, após meses de dietas rígidas, entregam-se
a verdadeiras orgias alimentares, consumindo, em um dia ou uma noite,
a maior quantidade possível dos alimentos que lhes é proibido durante a
maior parte de seu tempo.
No entanto, o que deve ser destacado, na alimentação bodybuilder,
é sua estrutura simbólica que pode sugerir alguns aspectos sobre a época
que estamos vivendo. Se a dietética medieval tornou-se, por um lado, com
o gradativo processo de racionalização que a cultura ocidental produziu,
gastronomia, uma ciência do gosto e do preparo dos alimentos na qual estaria
imbricada as relações de status e gostos de classe, por outro lado, o aspecto
hedonístico da ética romântica levou à oficialização da gula (FLANDRIN,
1998). Porém, o simplismo não deve ser aceito: a organização das chamadas
boas maneiras à mesa na Europa (que está relacionada à gastronomia, mas
não necessariamente) representou, por outro lado, a tentativa de consolidar
o processo civilizatório (ELIAS, 1990), ou seja, um processo que envolveu
ética e etiqueta “valor interno, moral, aspecto externo, formal, da conduta
do homem em suas relações com seus semelhantes” (ROMAGNOLI, 1998,
p. 496). A comensalidade é, par excellence, o lugar da sociabilidade; assim
como o espaço, no qual se encontram o corpo e a alma, a matéria e o espírito,
a exterioridade da etiqueta e a interioridade da ética. Em várias culturas, o
comportamento comensal é regido por uma dupla preocupação; trata-se
de controlar e conter os gestos, os movimentos do corpo e de zelar pelos
movimentos do espírito e guiá-los, com o objetivo ético e social que as
circunstâncias exigem para que a solidariedade seja mantida (LIMA, 1986;
181
CÉSAR SABINO

1996; LÉVI-STRAUSS, 1991). Tal perspectiva, no Ocidente do século XX,


mais especificamente depois da Segunda Grande Guerra, sofre uma mudança
radical relacionada ao sistema culinário e às chamadas maneiras à mesa,
consolidadas a partir do século XVII. A industrialização da alimentação e
sua massificação consumista produziram o que Fischler (1998) denominou
MacDonaldização dos costumes alimentares; o surgimento dos fast-foods que
inovaram, dentre outras coisas, pela aplicação do taylorismo à alimentação.
Esse processo, que não se limitou apenas à produção de sanduíches, mas se
estendeu para as pizzas e comidas orientais, caracteriza-se pela produção
mundializada e o consumo em série, homogeneizante e padronizante que
não apenas retira a arte da culinária como também enfraquece o aspecto
solidário dos ritos comensais. A partir da década de 80, a esse processo,
marcadamente no Brasil, associa-se o surgimento dos restaurante a quilo
seguidores do mesmo processo e que têm como característica justamente a
descaracterização dos pratos e das identidades culinárias pela mistura rápida
e sem cerimônia de alimentos por vezes considerados tradicionalmente
antagônicos formando uma espécie de “pastiche culinário” (CARNEIRO,
2003, p. 109). A haute cuisine não se furta, também, ao processo de expansão
do atual capitalismo globalizado padronizando, por meio da propaganda
e do marketing, as marcas dos chefs mais conhecidos que caracterizam a
distinção social mediante a prática artística da produção de suas cozinhas
empresas. Esse processo específico, presente na atual conformação alimentar
das sociedades globalizadas, foi denominado por Fischler, (inspirado em
Émile Durkheim), de “gastro-anomia” (FISCHLER, 1995, p. 851).
Embora os fisiculturistas não sejam adeptos de cozinhas, ou fast- foods,
devido ao regime alimentar que seguem na maior parte do ano; ocorre
entre esse grupo social algo similar, que talvez represente o agravamento
dessa anomia culinária, posto que, como escrevi acima, sua preocupação
fundamental é com as moléculas do alimento e suas características químicas
e não com a comida e suas dimensões de compartilhamento e socialização.
Se a industrialização dos alimentos e sua produção em série representa um
processo de racionalização do gosto e descaracterização da comensalidade,
o surgimento dos suplementos alimentares – quase alimentos –remédios
– representa o acirramento desse processo. Pílulas e variedades de pó de
todos os tipos, creatina, albumina, L-carnitina, BCCA, representam mais
que o taylorismo aplicado à alimentação. Representam o desmembramento
científico das cadeias de proteínas e a ultrapassagem do gosto, e do seu cul-
tivo, pela sua mecanização industrial, além da diminuição da socialização à
182
DROGAS DE APOLO

mesa. Assim, está estabelecida a aceleração radical do consumo alimentar


que não passa mais nem mesmo pela mastigação. É o reforço da falta de
tempo, do louvor à rapidez e ao individualismo que descarta qualquer
sociabilidade para comer. De fato, são os olhos que comem, pois, se tais
“alimentos” nem mesmo gosto possuem, é a propaganda e o marketing que
sustentam a crescente venda de tais substâncias produzidas em laborató-
rios visando ao emagrecimento e o crescimento muscular. Sustentam tal
expansão mercadológica por intermédio de poderosas fotos e linguagem
tecnicamente convincente. Discurso publicitário mitológico-científico que
promete milagres da forma física àqueles que se alimentam com produtos da
indústria de suplementos sugerindo que a busca pela otimização da forma
associada a exaltação da saúde talvez represente uma espécie de reforço do
alimento em contraposição à comida, reforço, portanto, da anomia gastro-
nômica ou a desordem alimentar referida como gastro-anomia.

4.2 PUBLICIDADE E FORMA

A publicidade tem exercido importante papel na configuração das


práticas corporais presentes nas academias de fisiculturismo. Ela deve ser
compreendida aqui enquanto sistema de ideias que circulam, de forma
intermitente, no interior de um outro sistema: um grupo social específico.
Seu estudo pode ser o caminho para o entendimento de modelos de relações
e comportamentos, além de expressão ideológica referida a determinadas
práticas coletivas. Tal estudo, do consumo e da “indústria cultural”, pode
apresentar certas características fundamentais inerentes às sociedades
industriais modernas e capitalistas, servindo também para levantar algumas
formas pelas quais um determinado grupo social retrata, ao menos em parte,
a si próprio por intermédio dos anúncios.
Estudada enquanto sistema simbólico que pode produzir e reproduzir
determinado grupo e é por ele produzida e reproduzida, a publicidade, ou
a propaganda, pode ser analisada antropologicamente enquanto mito. As
valiosas referências construídas e organizadas no trabalho de Rocha (1995),
inspirado em Sahlins (1979), podem servir de demarcações teóricas para a
elaboração de novas análises sobre o papel da propaganda e do marketing
na construção do corpo entre os frequentadores assíduos de academias de
ginástica e musculação. Espelhando uma série de representações sociais
por intermédio dos símbolos que articula, a publicidade, ao realizar tal
processo, produz uma espécie de sacralização de determinadas dimensões

183
CÉSAR SABINO

do cotidiano, introduzindo “magia” em um dia a dia burocratizado. Parece


ser quase impossível escapar da força que ela exerce sobre o mundo atual.
Não seria incomum a cena de um indivíduo fatigado, após uma longa rotina
de trabalho desgastante (muitas vezes retido em um trânsito lento de uma
grande metrópole), deparando-se com estampas reluzentes de corpos per-
feitos e produtos que prometem, nos outdoors, a realização de seus sonhos e
desejos mais profundos de lazer, liberdade e sucesso pessoal. Nessa situa-
ção corriqueira, que se realiza a cada instante da vida nos grandes centros
urbanos, configura-se uma espécie de reencantamento do mundo, em que
os sonhos podem ser realizados, de acordo com os anúncios, por meio da
simples utilização do cartão de crédito (ROCHA,1995). Paradoxalmente,
essa espécie de pensamento mágico64 (LÉVI-STRAUSS, 1975a) concretiza-se
em um contexto social específico no qual o raciocínio científico suposta-
mente é soberano. Como ressalta Rocha, “nesse jogo de representações o
cotidiano se faz vivo, se faz sensação, emoção, mágica” (ROCHA, 1995, p.
26). Longe de ser uma instância afastada do pensamento peculiar às socie-
dades complexas, tal pensamento mágico parece estar presente até mesmo
nas instâncias mais particulares delas.
Enquanto sistema simbólico que (re)introduz a dimensão mágica no
contexto burocratizado do capitalismo, a publicidade passa a organizar essa
realidade, classificando-a por meio dos valores presentes nos produtos que
vende, hierarquizando os grupos sociais, dividindo-os em consumidores de
vários tipos e níveis. Consumir torna-se, não raro, projeto de vida, e o status
adquirido pelo indivíduo apresenta-se como proporcional a sua capacidade
de comprar produtos e tudo aquilo que a eles estiver equacionado. Esse
apelo do consumo, envolto nas brumas mágicas do marketing, dimensão
fabulatória burguesa, forma um sistema no qual a própria dimensão de
desencantamento do mundo – a qual Weber tão bem conceituou – com-
pactua, permitindo o reencantar do mundo desencantado naquele processo
destacado por Campbell (2001) sobre a importância do surgimento da ética
64
O uso vulgar, por parte de alguns, desse conceito clássico elaborado por Lévi-Strauss mereceria um estudo
mais aprofundado. É comum sua utilização indiscriminada sem que se destaque, ou discuta, o que filosoficamente
é considerado pensamento e raciocínio. Nesse contexto específico, utilizo o conceito do autor como sinônimo de
raciocínio e não como pensamento no sentido tradicional filosófico do termo que confere a esse uma forte carga
crítica ou criadora de conceitos, constituindo-o como visão ontológica, ética, estética, metafísica e antropológica
e não apenas como raciocínio ou funcionamento lógico do espírito humano, já que o pensamento subsume a
lógica, mas a lógica não subsume o pensamento. Porém, estamos falando de um grupo pertencente à sociedade
brasileira complexa, portanto não significa que sociedades de matrizes ameríndias, asiáticas e africanas não
tenham suas formas de pensamento filosófico (JULLIEN, 1996; 1997; APPIAH, 2007; LÉVI-STRAUSS, 2012;
2012a; VIVEIROS DE CASTRO, 2018; MBEMBE, 2017).

184
DROGAS DE APOLO

romântica para a consolidação do capitalismo. Estes dois polos – ascetismo


e hedonismo –, longe de se excluírem na conformação social capitalista,
complementam-se. A via do rencantamento está associada diretamente ao
consumo, à promesse de bonnheur equacionada à capacidade de compra e à
maximização material (SAHLINS, 1979). A lógica do lucro e da expansão
consumista, retratada no apelo dos produtos, configura ética pragmática
e utilitarista que perpassa o cotidiano e as relações sociais transformando
em produtos os próprios seres humanos e seus sentimentos, e vice-versa.
Tudo é passível de ser vendido e comprado num processo de imersão em
desejos, sonhos e mitos que reencantam o que seriam relações frias de troca
comercial, conferindo ao processo de venda e compra um estatuto ilibado
de avanço nas práticas sociais.
Essa mercado-lógica presente na cultura ocidental tende a criar uma
“mediana e comum sabedoria sociológica” (SAHLINS, 1979, p. 187), que
toma como pressupostos verdadeiros de análise categorias que são mais
produtos de ficções coletivas do que de crítica científica. A concepção de
busca pela maximização material transborda das práticas cotidianas para o
fazer sociológico que adquire categorias do senso comum como instrumento
de análise social. A economia e as relações sociais em geral apresentam-se
nessas análises como uma arena de ação pragmática na qual as necessidades
biológicas dos indivíduos se digladiam em um processo de produção material
da sobrevivência dos melhores. A sociedade, sob esse ponto de vista, seria
o resultado formal desses embates. O indivíduo, tomado como autônomo
em seus julgamentos e escolhas racionais, visaria sempre à maximização
dos lucros e de seus interesses pessoais (ELSTER, 1994). Tais abordagens
dificilmente se detêm na gênese e, consequentemente, na imposição cultural
do que é considerado necessário por tais indivíduos; ou seja, na produção
social das sensibilidades, necessidades e sentidos individuais, pois “nenhum
objeto, nenhuma coisa é ou tem movimento na sociedade humana, exceto
pela significação que os homens lhe atribuem” (SAHLINS, 1979, p. 189).
Essa significação, tida como lucro em última instância, é produto de um
contexto que a constrói como tal e que, ao construí-la, reproduz a sua
dimensão social na própria prática dos indivíduos que a articulam. A ação
se realiza, portanto, dentro de um determinado contexto cultural, mediante
sistemas simbólicos que viabilizam os itens com os quais o indivíduo confere
o sentido a tais ações. Sentido que é (re)produzido de forma inconsciente
por tais indivíduos, já que os itens constitutivos da cultura são apreendidos
também de forma inconsciente por meio da socialização (BOURDIEU,
185
CÉSAR SABINO

1989). Dizer que todos os indivíduos possuem reflexividade em seus atos


(GIDDENS, 1991), ou escolha racional, é uma espécie de meia verdade,
pois a existência desta escolha sempre se realiza dentro de uma margem
de liberdade conferida estruturalmente, sendo realizada com itens desse
sistema simbólico (estrutura), portanto coletivo. Itens que se apresentam
como inconscientes e atuam produzindo desejos e agenciamentos indivi-
duais e coletivos. Essa escolha racional e reflexiva é sempre circunstancial
e variável e, na maioria das vezes, superficial, já que de fato se baseia na
lógica da maximização dos processos imposta pela estrutura, mas não se
detém na gênese desta lógica. Utilizar apenas a lógica da panreflexividade e
da escolha racional para explicar a realidade social é aplicar um raciocínio
escolástico a ela (BOURDIEU, 2001).
Esse pensamento escolástico, inspirado nas tentativas de Aristóteles
explicar a existência do movimento no Universo, pode ser exemplificado,
grosso modo, da seguinte forma: buscando compreender o que faz uma
folha ficar amarela, diz-se que essa tem a capacidade de amarelecer, ou a
potencialidade de tal ato; ou seja, esse ato (tornar-se amarela) já existe em
potência (formalmente) na própria folha verde. Nota-se que esse racio-
cínio não se detém na explicação da produção, na gênese do processo de
organização das propriedades e substâncias que compõem uma folha. Da
mesma forma, explicar a sociedade apenas pelas superficiais intenções dos
indivíduos sem perceber a gênese, a construção social dessas intenções
(que, por sua vez, produzem as próprias individuações), é conceber uma
explicação assintótica que, portanto, quase nada explica. Por outro lado,
conceber todos os indivíduos, indiscriminadamente, como autômatos,
títeres de articulações formais que existem fora deles e os produzem em
sua plenitude é recair no mesmo erro escolástico por não explicar, dessa
vez, a gênese dessas estruturas formais que passam a ser concebidas como
substâncias que pairam acima da ações sociais. O estudo da publicidade,
como foi dito, concebida como um sistema simbólico, além de contribuir
para a compreensão do grupo social específico dos fisiculturistas, mediante
a tentativa de esclarecimento dos vetores culturais que incidem sobre esse
grupo ao mesmo tempo que por eles é produzido, pode contribuir também
para o aprofundamento de algumas outras questões referentes à teoria social.

186
DROGAS DE APOLO

4.3 MITO E MÍDIA

Pelo avanço das pesquisas antropológicas, o mito deixou de ser tra-


tado como a dimensão exótica, atrasada, fabulação do “outro” que viveria
fantasiando o mundo por não ter o raciocínio elaborado. Com a antropo-
logia, o mito passou a ser compreendido, não apenas como característica
das sociedades ditas “primitivas”, mas também como parte integrante do
tecido das sociedades contemporâneas industrializadas e, como tal, meio
para o entendimento de suas dinâmicas. O método de análise estrutural
aplicado aos mitos permitiria extrair deles a forma lógica invariante, a
estrutura permanente relacionada simultaneamente ao presente, ao passado
e ao futuro (LÉVI-STRAUSS, 1975; BARTHES, 1993; CARVALHO, 1995).
A chamada, por Adorno e Horkheimer, “indústria cultural”, surgida no
século XX, vem intermediando o acesso dos seres humanos a um universo
sem limites de acontecimentos e plasticidade mítica, esmaecendo as fronteiras
que demarcam o real e a fantasia. Por vias singulares, a percepção de Marx
(1983) sobre o reencantamento do mundo, por meio do caráter fetichista
da mercadoria, parece se efetivar. Imagens, sonhos e desejos povoam os
interstícios da coisificação da vida cotidiana conferindo a essa produção
um caráter metafísico que encobre essa própria coisificação. “[Os] produtos
do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas,
que mantêm relações entre si e com os homens. Assim, no mundo das
mercadorias, acontece com os produtos da mão humana.” (MARX, 1983,
p. 71). Os objetos materiais no capitalismo possuem certas características,
obviamente conferidas pelas relações sociais, que parecem lhes pertencer
naturalmente. Nesse processo, as próprias relações sociais passam a ser
vivenciadas sob a forma de relações entre mercadorias ou coisas.
Sem embargo, parece que, na atual conformação capitalista hegemô-
nica, poucas barreiras se contrapõem à venalidade que invadiu as próprias
fronteiras do corpo humano. Se atualmente há uma espécie de sacralidade na
manutenção desse corpo em instituições da forma, corpo envolto e tocado
pela utopia da beleza e da saúde, há, simultaneamente, a dessacralização de
suas partes entendidas como peças de um sistema mecânico, mercadoria ou
mesmo moeda de troca. Se, em inúmeras sociedades “primitivas” – e mesmo
no passado das sociedades complexas de modelo europeu –, o comércio
dos corpos inexistia devido ao fato de esses serem identificados à pessoa e,
portanto, excluídos da circulação mercantil, situados na economia dos bens
simbólicos, que supõe ou produz as relações duráveis e totais entre as pessoas
187
CÉSAR SABINO

(portanto totalmente opostas àquelas relações temporárias e estritamente


técnicas entre os agentes indiferentes e intercambiáveis que são constituídos
pela lógica do mercado); nas atuais sociedades de mercado, tal sacralidade, em
geral, apresenta a tendência à diluição devido ao próprio processo de busca
da maximização do lucro (SIMMEL, 1983; 1989). Nessas, o corpo é tratado
como coisa intercambiável à maneira de uma moeda (BOURDIEU, 1994),
proporcionando mais que o comércio de suas partes, ou de sua imagem,
ou estética.
Sem embargo, a linguagem do marketing articula narrativas míticas
reencantando a realidade com o objetivo de dela extrair a maior possibilidade
de lucro. Tais narrativas possuem caráter estrutural que lhes confere uma
espécie de atemporalidade relacionada à especificidade de acontecimentos
na narrativa. Constituindo-se como metalinguagem, as unidades elemen-
tares do sistema mítico não se identificam plenamente com as unidades do
sistema que forma a língua – os fonemas –; no caso da narrativa mítica, tais
unidades – os mitemas – definem-se como frases, que traduzem a suces-
são de acontecimentos da narrativa. O jogo das relações entre os mitemas
constrói o sentido destas narrativas. Múltiplas versões possibilitadas pela
combinação infinita de unidades determinadas e formais. O papel do analista
é fazer emergir tal estrutura coletiva – enigma simbólico inconsciente para
aqueles que a vivenciam (LEAL, 1996).
Barthes (1993) analisou as expressões míticas contemporâneas pre-
sentes em capas de revistas, anúncios e reportagens, ressaltando a impor-
tância do entendimento de tais narrativas para a compreensão da produção
simbólica das sociedades capitalistas. De acordo com o autor, tudo pode se
constituir como um mito desde que suscetível de ser julgado como discurso.
Tanto o discurso escrito, como a fotografia, o cinema, a TV, a publicidade e
o esporte podem servir de suporte para a narrativa mítica, portanto como
objeto de análise do imaginário pelo antropólogo ou filósofo. O imaginário,
no caso, teria a capacidade de semantizar o mundo, simbolizando-o e atuando
tanto como arquivo quanto usina (GIRARDET, 1987; CARVALHO, 1995).
Enquanto arquivo poderia ser uma espécie de depositário das imagens,
espécie de herança cultural “perene” e profunda, e como usina atuaria como
produtor de significados, semantizador do mundo utilizando as imagens
invariantes e finitas do arquivo, reciclando-as e produzindo narrativas
variantes, ajustadas a contextos e conjunturas históricas específicas.

188
DROGAS DE APOLO

O mito, segundo Carvalho e Girardet, poderia, provisória e suma-


riamente, ser caracterizado como: 1) narrativa sagrada que se refere ao
passado e tem valor explicativo; 2) ilusão, mistificação; 3) conjunto de
imagens motrizes que acionam energias de excepcional potência. Essa
última característica é a que deve aqui ser ressaltada. Segundo Deleuze e
Guattari (1995, p. 17-18):
[...] um enunciado realiza um ato [...] e o ato se realiza no enun-
ciado, as palavras de ordem produzem a, e são produzidas
pela coletividade; neste movimento, os interstícios de todas
as informações veiculam ‘palavras de ordem’ que organizam
a objetividade e a subjetividade social reiterando o caráter
eminentemente social da enunciação. A mídia, neste contexto
teórico, assume um caráter singular histórico de expansão
da efetividade destas palavras de ordem, constituindo-se
como veículo dos ‘agenciamentos coletivos de enunciação.
Não existe, portanto, nesse processo, um sujeito da enunciação ou
enunciação individual, mas o efeito-indivíduo é dado pela própria articulação
dos enunciados coletivos – as palavras de ordem – que modulam, fazem
variar as intensidades desejantes das pessoas constituindo-as enquanto
indivíduos que se percebem como tal. Os atos efetuam os enunciados e vice-
-versa. É o sistema simbólico, com suas imposições e incitações aos desejos
e prazeres individuais e coletivos, que administra o socius, constituindo-o e
sendo por ele constituído. Ações e paixões afetam corpos constituindo-os
enquanto singularidades – efeito-indivíduo. As forças que constituem a
sociedade, ou a sociabilização, Vergesellschaftung65, segundo Simmel, têm
sempre caráter ambíguo e tenso, pois efetuam-se enquanto incitações às
paixões e suas intensidades. As palavras de ordem, os sistemas simbólicos,
enfim, os enunciados realizam-se enquanto forças dinâmicas atuantes nas
subjetividades individuadas e coletivas. A produção do prazer e da alegria
pode, dessa maneira, estar, paradoxalmente, repleta de possibilidades de dor

65
Esse conceito que, em uma tradução forçada para o português, ficaria sociabilização, ou sociação, tem a vantagem
de indicar o caráter dinâmico da sociedade, composta pelas relações entre indivíduos e grupos e pelos sistemas
simbólicos (subjetivos) que os constituem e por eles são constituídos, compondo-os como tal. Simmel (1983),
dessa forma, indica o aspecto abstrato e estático que a palavra sociedade carrega e que lhe confere a impressão
de entidade metafísica existente fora das relações objetivas. Para o autor, conteúdo e forma social seriam duas
dimensões de uma mesma condição relacionando-se de maneira dinâmica. A tradução de Vergesellschaftung,
feita por Bendix (1986, p. 363), talvez contribua ainda mais para esclarecer o caráter dinâmico do conceito:
“tendências societárias de ação”. Também a questão da mudança, dinâmica, transformação ou manutenção dos
sistemas sociais, tidos como retratos da realidade ou ilusões do observador é discutida nas obras de Gluckman
(1987), Leach (1996) e Tarde (2002).

189
CÉSAR SABINO

e tristeza. As regras, normas, os valores e costumes são forças que atuam e


constituem, em um feedback incessante, o contexto coletivo. A capacidade
repressora dessas forças – caráter necessário delas – não se apresenta como
tal, mas como aquilo que deve ser feito “por que é bom e traz felicidade”.
Os desejos e as paixões não são apenas julgados e condenados, mas também
são administrados, modulados, incitados (FOUCAULT, 1990). Justamente
aí se constitui a singularidade dessas forças enunciadoras. Não há, como
se pode supor, por parte dessas representações coletivas, um caráter de
contínua repressão à expressão, ao prazer ou à alegria. Ao contrário, os
enunciados produzidos pela sociedade capitalista obrigam, forçam a falar,
a realizar gozos, obrigam a apresentação do indivíduo como alegre e eterno
consumidor. Um consumo, obviamente, que nunca é alcançado na plenitude.
Há o imperativo de se mostrar realizado e feliz. A mídia, que poderia se
constituir como forte instrumento de reflexividade e democratização, com a
publicidade e o marketing, tem, não raro, se apresentado como instrumento
de propagação desse processo, produzindo os agenciamentos coletivos que
constituem o perfil de nossa época.
A definição de Girardet e Carvalho, de que o sistema mítico acionaria
forças de excepcional potência, coaduna-se com a concepção anterior-
mente descrita que percebe a narrativa mítica, veiculada pelos instrumentos
midiáticos, como agenciadora de (dis)posições coletivas, articulando um
processo não apenas macro, mas também micropolítico. Naturalmente
não se pode conceber a mídia como uma máquina que cria a realidade
social unilateralmente. Mídia e sociedade não podem ser percebidas como
instâncias autônomas. A sociedade moderna é uma sociedade midiatizada,
portanto há uma interdependência entre as duas instâncias. Essa mídia, ao
dirigir-se para uma massa de consumidores, apresenta-lhes imagens que
sintetizam anseios e desejos em uma interatividade constante, traduzida
em intenções de consumo (CARVALHO, 1995). Dessa forma, ela atua como
máquina de enunciação que aponta o que deve ser objeto do “olhar” – ou
como se deve olhar esse objeto – dando o tom da hierarquização, por meio
de uma linguagem espetáculo, a uma dimensão significativa da realidade por
intermédio de matérias e anúncios. Muitas vezes, a mídia oculta, sob a capa
de neutralidade axiológica da linguagem pseudocientífica e da objetividade
informativa, a intenção agenciadora, “recortando” a realidade de forma
descritiva de uma maneira que consiga prescrevê-la (BOURDIEU, 1998).
Por outro lado, ocorre atualmente a tendência de substituir a descrição
objetiva dos fatos e acontecimentos por uma narrativa mais emocional, na
190
DROGAS DE APOLO

qual a opinião do veículo (mídia) fica claramente expressa. Essa tendência


gradativa de espetacularização do jornalismo não passa do transbordamento
da fabulação que sempre constituiu novelas, filmes e publicidade em geral,
em que o despertar de emoções, interesses e avaliações é fundamental para
o funcionamento do processo de mitificação.
Se a tecnologia apresenta a viabilização da novidade, ela, muitas vezes,
não veicula o novo. Se uma análise mais detida desse processo de fabulação
do mundo realizado pela mídia atual for posta em voga, será possível perceber
que, estruturalmente, o tráfico de imagens e símbolos sempre se articulou
enquanto efetivação do poder (GEERTZ, 1991; BURKE, 1994). O que há de
singular é que a contemporaneidade, por intermédio da mídia, exacerba o
tráfico dos indivíduos e coletividades com o simbólico, potencializando tal
poder (CARVALHO, 1995). Por meio da técnica e da tecnologia publicitária,
os instrumentos de agenciamento se aprimoram em uma gerência científica
das afecções coletivas. As pesquisas qualitativas e quantitativas sondam o
imaginário coletivo recolhendo desse arquivo os elementos simbólicos
mais efetivos, investindo-os em seus propósitos de consumo específicos.
Esse processo opera uma modulação da subjetividade que se singulariza
pela eficaz velocidade dos instrumentos de agenciamento da época atual.

4.4 MITOS DA FORMA

O objetivo aqui é enfocar o consumo de mensagens midiáticas refe-


rentes ao universo das academias de musculação, mais especificamente dos
fisiculturistas. A maioria daqueles com os quais convivi consome revistas
nacionais e importadas sobre musculação e boa forma (Muscle and Fitness,
Muscle Form, Musclemag, Flex, Health and Fitness, entre outras). Há também
disseminação de vídeos sobre a história de vida e os métodos de treinamento
dos maiores ídolos do bodybuilder, como Arnold Schwarzenegger, Dorian
Yates, Nasser El Sombaty e Ronie Coleman, além de outros bodybuilders.
Analisei conteúdo brasileiro e internacional; em geral presente nas aca-
demias para que os usuários e alunos, enquanto se exercitam em esteiras
ou bicicletas ergométricas, possam assistir ou ler. Em algumas academias,
elas (as revistas) podem ser emprestadas para o aluno. Foram analisados
seis números da publicação brasileira (Muscle in Form) e seis números da
americana Muscle and Fitness. Seguindo a via aberta pelo trabalho de Rocha
(1995), foram confrontados anúncios das revistas e as histórias de vida dos

191
CÉSAR SABINO

ídolos nelas veiculadas com a opinião dos receptores, tentando analisar como
funciona a mito-lógica presente no pensamento marombeiro e bodybuilder.
Com frequência o que menos se consome em um anúncio é o produto.
Nele são vendidos estilos de vida, sensações, emoções, relações humanas,
visões de mundo, hierarquia e sistemas de classificação. O consumo constitui
um mundo ou universo de significação que modela as práticas cotidianas,
fazendo pessoas se reconhecerem construindo identidades por intermédio
das imagens trocadas e reconfirmadas nas relações sociais (ORTIZ, 2000;
CASTRO, 2003). Um exemplo desse aspecto é o seguinte discurso colhido
em uma propaganda de suplementos alimentares na revista brasileira Muscle
in Form n.º 25, de 2001 e outro retirado da revista americana Muscle and
Fitness, de setembro de 1998, respectivamente:
Deseja Aumentar Seus Músculos? A Perfeição através dos Aminos.
Experimente as Fórmulas da SATURN. Maior crescimento exige
maior provisão de aminoácidos. Antes e depois dos exercícios, e
durante o dia, seu corpo precisa estar abastecido com aminoácidos
de alta qualidade. Pode ser difícil obter as proteínas necessá-
rias somente pela ingestão de alimento regular. É por isso que a
SATURN criou várias fórmulas para sua conveniência de forma
fácil de digerir, para você escolher. Campeões de Musculação usam
e confiam nas fórmulas dos Aminoácidos da SATURN mais do
que qualquer outra marca.
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o mais refinado processamento tecnológico. A nano-filtragem
captura e concentra os peptídeos específicos da proteína que
podem ser incorporados e concentrados no produto proteico
final. Esse específico processo permite MET-Rx incorporar
o pleno espectrum do fator ativo de crescimento (estímulo
imunológico, reposição de tecidos e antioxidação) sem os
efeitos negativos experimentados por qualquer consumo de
suplementos proteicos, com ou sem troca de íon! PROTEIN
PLUS. Após ter a ciência adequada, MET-Rx se concen-
tra no sabor. Morango e Baunilha. A partir de agora você
não precisa perder peso procurando suplemento proteico.
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192
DROGAS DE APOLO

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O primeiro anúncio parece apresentar o seguinte raciocínio: ser
musculoso é ser perfeito; para ser perfeito, é necessário realizar um ritual de
consumo de determinados produtos criados cientificamente e respaldados
na pesquisa de laboratório empreendida por uma determinada empresa.
A manipulação das narrativas de caráter científico aparece como solução
para os problemas e via para a realização dos desejos; o processo de con-
sumo da substância-mercadoria é realizado, respaldado, por campeões
(ídolos) que se tornaram famosos e vencedores supostamente devido ao
fato de utilizarem os produtos propagandeados. O anúncio tem a foto de
um torso hipertrofiado de fisiculturista, com os braços contraídos, com as
primeiras duas frases escritas em amarelo destoando do resto do texto em
letras menores, ressaltando alguns aspectos constitutivos do imaginário e
da mentalidade dos praticantes das academias de musculação. Dois itens são
ressaltados e estão sempre presentes em seus discursos: crescer (aumentar
músculos) e ter respaldo científico nesse processo. Como o motivo central
da existência do grupo está radicado, obviamente, no culto à, e no cultivo
da, musculatura, quanto maior e mais definido são os grupamentos mus-
culares mais próximo do corpo perfeito está o indivíduo no imaginário
nativo. Nesse processo de busca e de transformação da massa corporal, o
discurso científico, sempre utilizado nos anúncios para reiterar a idoneidade
das empresas que produzem e vendem a substância “mágica”, surge como
o vetor que confere autoridade, não apenas aos produtos, mas também às
práticas relacionadas ao seu consumo.
Esse discurso busca convencer o consumidor da eficácia das subs-
tâncias (“aminoácido”, “metamiosina proteica” e o que mais for possível) a
serem utilizadas, referindo-se sempre àqueles que são campeões e habitam
o panteão dos heróis. E a contradição que parece também surgir daí é que
o discurso radicado em categorias científicas, discurso que é produto do
racionalismo ocidental, apresenta-se como o meio no qual o reencantamento
do mundo se reintroduz no cotidiano, oferecendo, mediante a articulação
de temas sobre experimentos e descobertas, a possibilidade da realização
dos sonhos do consumidor. Essa eficácia simbólica tem grande parte de seu
respaldo no aspecto discursivo hermético que proporciona à atuação de tais

193
CÉSAR SABINO

discursos um caráter de sistema de encantamento conferindo àqueles que


os proferem uma espécie de “mana ou carisma inefável”. Magia subsumida
na marca e na potência discursiva relacionada à suposta autoridade de espe-
cialistas (iniciados) em uma profissão; perfil quase xamânico (BOURDIEU,
2004, p. 29) já que a maioria dos praticantes das academias desconhece os
meandros obscuros dessa linguagem específica. Justamente esse hermetismo,
repleto de categorias advindas da química orgânica e da biologia, confere a
esse discurso autoridade e eficácia. É possível perceber essa característica
nos seguintes depoimentos:
Eu não entendi nada, nem quero, do que tá escrito aí... só sei que
proteína tem na carne e faz o cara crescer [...] aminoácido também
[...] mas os caras entendem do que fazem! São formados[...] em
química, em educação física [...] sei lá, numa porção de coisa [...]
são cientistas [...] estas empresas têm laboratórios de pesquisa, não
iam colocar esses anúncios se o que tá escrito aí não fosse verdade
[...] eu já usei esse produto e acho que funcionou [...] agora é claro
que você não vai crescer usando só isso de vez em quando[...] Eles
botam as fotos desses caras grandões aí, mas esses fisiculturistas
profissionais que posam aí pra propaganda não tomam só isso, e
só de vez em quando. (Thales. 28 anos. Estudante).
Repara só no braço desse sujeito aí [da foto do primeiro anúncio]
é um campeão... deve ser o Dorian Yeats, um vencedor! Um atleta
desses só consegue chegar ao auge com muita tecnologia, muita
ciência do esporte [...] é suplemento, é anabolizante de todo tipo
[...] Mas é diferente dos caras que são “duros” [...] esses caras aí
tomam de tudo que é produto, mas com acompanhamento médico,
exame [...] tem dinheiro pra gastar não é que nem a gente não, que
sai tomando as coisas sem saber no que vai dar [...] eles têm todo
um conhecimento que tá relacionado à qualidade mesmo do que
eles fazem. (João. 27 anos. Instrutor de academia).
O segundo anúncio, destacando a foto colorida em vermelho e ama-
relo de um grande pote de suplemento alimentar, apresenta forma mais
nítida de articulação de categorias científicas (nano filtragem, troca de íon,
metamiosina proteica e assim por diante) reiterando que a empresa que
fabrica o produto é de engenharia de nutrição e que “os melhores bodybuil-
ders usam”. Para arrematar em grande estilo, em linguagem dúbia peculiar
ao marketing e à propaganda, ressalta que as substâncias apresentadas são
para “a melhor forma de sua vida”.

194
DROGAS DE APOLO

Relacionado ao aspecto de exaltação do desenvolvimento científico e


tecnológico entre os marombeiros, esses discursos são indícios da existência
de “tribos alimentares” detentoras de classificações peculiares da realidade.
Enquanto a tribo dos “naturebas”, como denominam os marombeiros, segui-
dores do consumo dos alimentos naturais, tratados e desenvolvidos sem
aditivos químicos e não industrializados, sacraliza tudo que é considerado
“natural”, conferindo maior eficácia e poder a tudo que não foi “maculado”
pelas mãos do homem e pela sociedade de consumo (LIFSCHITZ, 1997);
a tribo dos fisiculturistas, ou bodybuilders, opera processo classificatório
inverso. Entre esses, a industrialização, a tecnologia e o desenvolvimento
científico conferem poder e eficácia aos alimentos consumidos e àqueles
que os consomem. Mais um modelo simetricamente invertido de olhar a
realidade. Enquanto um sacraliza o não industrial e mais próximo possível do
natural, distante de quaisquer aditivos que “maculam” a pureza alimentar, o
outro faz o oposto: quanto mais cientificizado, industrializado, tecnicizado,
melhor, mais puro, verdadeiro e eficaz.
Em todos os níveis de socialização dentro das academias, a represen-
tação de ciência aparece com sensível eficácia. Produtos tecnológicos de
última geração e importados dos EUA, Japão ou Europa são amplamente
ambicionados. Das máquinas de fazer exercícios aos tênis Nike e Reebok
importados, passando pelos métodos de treinamento surgidos no último
verão da Califórnia e pelas últimas novidades em suplementos alimentares
e anabolizantes saídos dos laboratórios de pesquisa das multinacionais
de nutrição e farmácia; a tecnologia é exaltada, e o discurso das ciências
biomédicas extremamente respeitado, sendo considerado palavra final
na decisão, ou resolução, sobre qualquer problema ou dúvida. Da mesma
forma, ocorre exaltação dos termos em língua inglesa que são utilizados
como nomes de academias, rótulos de suplementos e nomes de exercícios
de musculação e ginástica (leg press, body pump, pulley). Esses últimos, que
poderiam ser traduzidos para o português, não o são. Os portadores, tanto
de objetos tecnológicos de última geração, quanto de capital cultural e de
competência no campo do fisiculturismo, carregam, simultaneamente,
uma espécie de poder mágico que faz com que suas descrições da realidade
também sejam seguidas como prescrições da mesma (BOURDIEU, 1996a).
O discurso da autoridade não precisa ser compreendido para executar seu
poder (socialmente conferido). Ao contrário, o mistério que encerra sua
incompreensão pode ser o vetor que mais eficácia lhe proporciona.

195
CÉSAR SABINO

4.5 MERCADORIAS CLASSIFICATÓRIAS

Lévi-Strauss destacou dois tipos de sistemas de pensamento consti-


tutivos de qualquer grupo social em qualquer época da história. De acordo
com o autor, o espírito humano operaria sobre o mundo por meio de duas
espécies de abordagens classificatórias; uma realizaria suas operações por
“intermédio de signos”, e a outra “por meio de conceitos” (1975a, p. 40),
tendo, porém, os dois sistemas, o mesmo substrato lógico e a mesma função
de ordenar o mundo em classes, gêneros, números, graus, hierarquizando
o universo e introduzindo, na homogeneidade caótica, a heterogeneidade
da diferença. Eixo articulador de relações, o pensamento que mais operaria
por signos seria o pensamento selvagem ou mágico. Nesse, os signos estariam
como que “colados” à realidade sem ter a pretensão de serem transparentes
a ela, como quer o conceito, relativo ao chamado pensamento científico. O
pensamento mágico seria inaprisionável nas mesmas regras do pensamento
científico surgido nas sociedades complexas ocidentais. Exemplificando a
posição, o autor considera o totemismo um exemplo clássico de pensamento
mágico. Longe de ser uma forma atrasada e inferior de organizar o mundo,
ele seria apenas um sistema singular de classificação, paralelo ao sistema
científico, conferindo, da mesma forma que esse, sentido ao universo e à
existência. Por não deixar transparecer, de forma racionalista, suas operações
lógicas, o pensamento mágico procuraria manter uma complementaridade
entre cultura e natureza.
Portanto, nos sistemas tribais, por exemplo, a sociedade seria orga-
nizada por uma lógica que diferenciaria os seres humanos, identifican-
do-os com determinados elementos da natureza. No sistema científico,
ao contrário, haveria a busca de classificar a realidade segregando a
natureza nessa classificação. Nos sistemas mágicos ou totêmicos, ao con-
trário, existiria uma junção entre a natureza e a cultura; pois, quando um
determinado grupo social, um clã, é identificado a uma planta, animal ou
fenômeno natural, mantém com eles relações metafóricas de identidade
ao mesmo tempo que se distingue de outros grupos sociais que mantém
as mesmas relações com outros animais, plantas e fenômenos. Como cada
grupo é equacionado a uma espécie, ou fenômeno natural distinto, há a
possibilidade de se obter, em um conjunto no qual todos são a princípio
indistintamente seres humanos, uma distinção social nítida (ROCHA, 1995;
LÉVI-STRAUSS, 1976). Segundo um exemplo de Da Matta (1986), se A=
ao clã peixe; B= ao clã da onça e C= ao clã do buriti; sendo o peixe animal

196
DROGAS DE APOLO

aquático, a onça terrestre e o buriti um vegetal, então, é pela identificação


com esses elementos distintos na natureza que se pode estabelecer a dife-
renciação dos clãs A, B e C, ou seja, distingui-los socialmente. “A diferença
entre os clãs é obtida graças à sua identificação totêmica (metafórica)
com elementos que estão muito diferenciados no mundo da natureza.”
(DA MATTA, 1986, p. 1242). Foi esse processo lógico que acabou por ser
denominado totemismo. Porém, longe de existir apenas em sociedades
simples, tal pensamento selvagem coexiste com o pensamento científico
nas sociedades complexas. Quando se diz que fulano é um burro e ciclano
é uma cobra em matemática, tal lógica totêmica está sendo articulada.
Rocha ressalta que Lévi-Strauss, ao elucidar o problema do totemismo,
delimita-o como um sistema pouco comum às sociedades de pensamento
científico, fazendo-se pouco presente nelas. Ao ressaltar, de certa forma,
que o natural é também uma construção social e que, em nossa sociedade,
ele toma uma dimensão anti-humana ou anticultural, par excellence; Rocha
indica que o pensamento mágico, ou totêmico, está bastante presente no
cotidiano das sociedades complexas industrializadas, e isso por meio da
publicidade que introduz a dimensão mágica e fabulatória nesse cotidiano
supostamente dessacralizado. Equacionando produção à natureza e con-
sumo à cultura, o autor constrói a concepção da publicidade enquanto
“operador totêmico”. Ou seja, assim como o totemismo classificaria o
mundo social no pensamento selvagem, hierarquizando-o, a publicidade
faria o mesmo com o mundo da produção no que Sahlins denominou pen-
samento burguês66. Aquilo que seria indistintamente produto sem valor
específico no mundo da produção se transformaria em valor específico,
no mundo do consumo, por meio do operador totêmico publicitário que
classificaria simultaneamente os indivíduos que consomem tais produtos
em hierarquias específicas dentro do mundo capitalista. Consumir, por
exemplo, um caro uísque escocês conferiria um determinado status ao
indivíduo, associando-o a uma posição de prestígio na hierarquia social,

66
Lévi-Strauss demonstrou como o totemismo na verdade é uma ilusão criada pelos antropólogos fazendo-os
não atingir o cerne do problema classificatório que é transversal aos dois tipos de pensamento, o científico e o
selvagem. Vemos como a mídia articula esse pensamento selvagem “mitificando” elementos científicos em uma
bricolagem marketeira. Com efeito, “enquanto o pensamento científico raciocina formulando e encadeando
conceitos, o pensamento mítico funciona com o auxílio de imagens emprestadas ao mundo sensível [...] elabora
assim, uma lógica das qualidades sensíveis: cores, texturas, sabores, odores, ruídos e sons. Combina ou opõe
essas qualidades para transmitir uma mensagem de certa forma codificada” (LÉVI-STRAUSS, 2012a, p. 63). O
marketing utiliza, como descrito, essa lógica que contrapõe homens e mulheres, fortes e fracos, belos e feios etc.,
investindo nos sentidos e sentimentos mais recônditos e míticos visando a mobilizar o consumidor afetado em
sua subjetividade e desejo, reproduzindo, assim, as desigualdades sociais inerentes à estrutura social.

197
CÉSAR SABINO

enquanto consumir uma aguardente barata operaria processo inverso. Da


mesma forma, por exemplo, usar uma bolsa Louis Vuitton, um terno ou
tailleur Armani ou Versace conferiria, por intermédio da “magia” contida na
etiqueta, uma espécie de mana (MAUSS, 1974) ao usuário, distinguindo-o
e singularizando-o como alguém pertencente às camadas “superiores” da
sociedade. Nessa ordenação, seria possível comparar a relação natureza/
cultura no pensamento selvagem com produção/consumo no pensamento
burguês: O que possibilita a transição entre natureza e cultura nesse racio-
cínio é o “totemismo” (processo lógico), que se apresenta como “operador”
do mesmo processo. Esse operador articula os termos enquanto diferença
interna a cada um, o que produz a complementaridade do sistema. Por-
tanto, todo raciocínio e pensamento classificam, ordenam e hierarquizam,
conferindo status às pessoas e às coisas no mundo, a elementos simbólicos
que tem seu poder ligados diretamente às práticas de autoridade econô-
micas e institucionais cotidianas, perpetrando dominação, exploração e
poder. Nenhum sistema social – uns mais outros menos – escapa a essa
micropolítica constitutiva das relações sociais perpassadas por valorações
e distinções entre seres humanos e o que consideram as coisas. Com efeito,
essa é uma microfísica do poder do qual ninguém escapa, nem mesmo
pela atuação da macropolítica do Estado.
Estudando o reencantamento do mundo mediante a publicidade,
Rocha (1995) analisa os anúncios de bebida nas sociedades industrializadas
atuais utilizando o esquema totêmico para compreender melhor a lógica
do capitalismo. Essa análise poderia ser aplicada a qualquer outro tipo de
anúncio publicitário. A lógica desse pensamento mágico se apresentaria
da seguinte forma:

Quadro 4 – Raciocínio burguês e marcas ou grifes


Consumo (humano)
(cultura)
Produção (não humano) o mundo dos anúncios:
(natureza) vodka Publicidade Smirnoff Ice
vinho uísque [operador totêmico] O mundo dos anúncios:
etc. Liebfraumilch
O mundo dos anúncios Bell’s
etc.

Fonte: adaptado de Rocha (1995)

198
DROGAS DE APOLO

A publicidade, atuando enquanto operador totêmico, conferiria,


dentro dos anúncios, a distinção aos produtos, antes indiferenciados e gene-
ralizados, tornando-os singulares, portanto singularizando também seus
consumidores. A dimensão mágica que tais produtos porta seria transmitida
àquelas pessoas capazes de os consumirem e de perpetuarem essa magia
(BOURDIEU, 1976; ROCHA, 1995; SAHLINS, 1979). O que era bebida em
geral, portanto mais próximo ao âmbito da natureza, e vodka em particular,
vai tornando-se, por meio da publicidade, uma substância específica, mais
próxima da cultura, Smirnoff, por exemplo, marca que confere distinção
aos seus usuários, o mesmo ocorrendo com outras bebidas67.
Processo similar efetiva-se com o repertório simbólico dos fre-
quentadores das academias de musculação. Sua construção de corpo está
relacionada à organização da realidade mediante mitos veiculados pela
publicidade e a mídia em geral. Tais mitos reiteram o sentido e a eficácia
dos sistemas simbólicos daqueles que primam pela adoração da forma e
que, ao adorarem-na, construindo na prática seus corpos, fazem sobreviver
tais sistemas e seu encantamento. Há que se ressaltar, mais uma vez, o tom
científico que os itens discursivos desse sistema mágico articula, ressacra-
lizando o dessacralizado e criando o que se poderia denominar discurso de
magia cientificizada que, por sua vez, se sustentaria por meio do discurso
de otimização da saúde.
O Ocidente ainda alimenta mitos e lendas sobre sua superioridade
utilizando a capa do raciocínio científico para esconder seus preconceitos
contra culturas e povos que, por não se enquadrarem nos parâmetros de sua
racionalidade, considera irracionais. A análise antropológica das sociedades
complexas ocidentais vem reiterando o aspecto falacioso de tal premissa.
Com a abordagem estrutural, a antropologia percebeu que todos, primitivos
e civilizados, com ou sem escrita, com mais ou menos tecnologia, são todos
racionais, psiquicamente unos em um raciocínio que se opera em termos
binários e que perpassa igualmente a magia, a ciência e a religião que todas
as sociedades, complexas ou não, possuem. Magia, arte e ciência são formas
paralelas de conhecimento. Se os chamados primitivos, por um lado, têm
a magia; por outro, possuem uma ciência do concreto que lhes é peculiar,
e os “modernos”, por sua vez, se têm a ciência do abstrato, vivem também
sua magia e seu totemismo. Dessa forma, “primitivos” e modernos estão
lado a lado (LÉVI-STRAUSS, 1975a, 1985; PEIRANO, 2000).
67
No atual estágio do capitalismo, necessário se faz destacar que a marca, a etiqueta, tornou-se mais significativa
que o produto (BOURDIEU, 2004).

199
CÉSAR SABINO

A análise dos anúncios de suplementos alimentares pode ser um dos


aspectos que exemplifica tal aspecto.

Quadro 5 – Raciocínio burguês-fisiculturista e marcas de produtos de boa forma


Produção (natureza) Consumo (cultura)
Suplementos para Mundo dos anúncios:
aumentar músculos Myoplex
Máquinas para Publicidade Mundo dos anúncios:
exercício (operador totêmico) Aparelhos Vitally
Mundo dos anúncios:
Suplementos para
Levocarnin.
emagrecer
L-Carnitinina

Fonte: o autor

O processo também poderia ser equacionado da seguinte forma


seguindo o mesmo raciocínio:

Quadro 6 – Raciocínio burguês-fisiculturista e publicidade


Publicidade do corpo e da
boa forma

Suplementos e exercícios (em


máquinas e halteres)
Corpos (natureza)
Formas (cultura)
O mundo dos anúncios:
Gordos Magros Levocarnin (emagrecer)
Fisiculturistas e veteranos
Comuns ou “normais”
O mundo dos anúncios:
(saudáveis)
(não saudáveis) Myoplex (aumentar
músculos)

O mundo dos anúncios:


Aparelhos Vitally
(Máquinas de Musculação)

Fonte: o autor

200
DROGAS DE APOLO

4.6 IMAGENS E PALAVRAS

Para que possa ser aprofundada a análise estrutural da publicidade,


faz-se necessário escolher uma espécie de anúncio que atue como mito de
referência; ou seja, um anúncio que apresente uma espécie de síntese de
significados presentes em outros anúncios da mesma categoria. Eleger tal
item como ponto de partida para a análise é uma atitude arbitrária. Qualquer
outro anúncio poderia ser utilizado e nada mudaria no processo. A rigor
qualquer anúncio sobre suplementos serviria como ponto de partida (LÉVI-
-STRAUSS, 1984; ROCHA, 1995). Foi escolhido o anúncio do suplemento
para aumento da massa muscular, o Myoplex. Esse suplemento é bastante
utilizado pelos fisiculturistas, faz parte das suas dietas.
O anúncio que serve de referência faz parte de uma campanha
empreendida pela multinacional de suplementos alimentares denominada
EAS (Experimental and Applied Scienses) e, antes de aparecer em revistas
brasileiras de fisiculturismo, havia surgido em revistas americanas, com
a diferença de nessas últimas ocupar duas páginas em vez de apenas uma.
Esse anúncio leva ao paroxismo a concepção cientificista presente no
imaginário bodybuilder. Nele, alude-se à ideia de progresso – retirada da
interpretação empobrecedora que o senso comum faz da teoria da evolução
(INGOLD, 2003) – por meio da montagem de fotografias, sobrepostas
lado a lado, de um mesmo homem de bermudas que, de portador de um
considerável nível de gordura corporal, passa a ostentar musculatura
hipertrofiada e um baixo índice de gordura. Ele transforma-se de homem
comum em fisiculturista em apenas 12 semanas (como diz o anúncio)
usando o produto (Myoplex) anunciado. A foto é completada por uma
frase que serve como uma espécie de título: “Teoria da Evolução”. Ao lado,
o emblema da empresa – a imagem de uma espiral de código genético e as
letras EAS tendo abaixo a legenda: “Construindo corpos melhores através
da ciência”. Também abaixo do título da foto, em inglês, está escrito: “The
Word’s Leading Supplier of Sports Nutritional Suplements for the Envolving
Man”. O quadro se completa com a foto de três caixas de suplemento
Myoplex tendo à frente uma tulipa cheia da substância e rodeada de
morangos – o que alude ao fato de que, apesar de toda ciência aplicada
ao desenvolvimento do produto, o sabor natural não foi esquecido. Ao
fundo do quadro, apenas a sombra do homem. Essa base inteiramente
branca e asséptica – que remete às representações sobre os laboratórios
científicos – circunda toda a exposição publicitária.

201
CÉSAR SABINO

A mudança da imagem do homem parece relacionar-se ao processo


de conquista da plenitude individual inscrita na forma. Ele parece caminhar
em direção ao progresso, e a sua sombra projetada no chão, com ligeira
inclinação para a horizontal, indica que a sua frente está a presença do brilho
e da claridade, da luz do sucesso e da felicidade, que ele persegue mediante
seu esforço e com respaldo da razão científica. Como se tivesse saído da
escuridão primitiva da caverna – para utilizar a metáfora platônica – para a
luz da ciência e da evolução. Afinal, no mundo dos mitos publicitários, só há
felicidade e satisfação. Como se todos os problemas pudessem ser resolvidos
magicamente – mesmo sendo utilizada linguagem científica – pelo produto
exposto. A figura desse homem, antes tristonha, vai se tornando reluzente e
alegre, sua postura cabisbaixa passa a erguer-se, e suas mãos frouxas e pen-
dentes crispam-se gradativamente demonstrando a força e a determinação
conquistadas. Sua pele, ao fim do processo, está mais corada e brilhante de
suor, reluzente; pois, como escreve Barthes (1993), o suor pode ser também
um signo de moralidade do trabalho sacralizado. Quem transpira trava uma
luta interior, um trabalho fisiológico que pode operar o que é considerado
virtude por determinado grupo em uma determinada época. Nos parâmetros
desse raciocínio, quem não sua representa a moleza e a falta de movimento
para a sociedade burguesa. Exercício e suor, esforço e conquista, empreendi-
mento e realização, são faces de uma mesma moeda que circula na sociedade
do self made man. Confrontados com a propaganda frequentadores disseram:
Esse anúncio do Myoplex [...] de todos os que tô acostumado a ver
é o mais legal, porque mostra o cara antes e depois... a gente vê
a diferença... é claro que não foi só tomando isso que o cara ficou
assim, eu já tomei myoplex e sei como é [...] mas, olha só, o cara tá
definidão, sequinho e sarado [...]se eu conseguir ficar assim nesse
verão vou ficar feliz! Tô investindo... já comprei doze ampolas de
Winstrol e comecei a malhar pesado[...] quero pegar muita mulher
nesse verão (Carlos. 32 anos. Comerciante).
Bom, eu acho que o Myoplex ajuda a secar se a pessoa fizer dieta,
ele sozinho não adianta, como o nome diz é um complemento. Se
o cara tiver a fim de ficar [...] como esse cara da foto aí, ele vai ter
que tomar uns produtos [...], um winstrol, um durateston... fechar
a boca e malhar pesado [...] tem que ter um pouco de dinheiro e
tempo [...] você vê pelo abdômen do cara, sequinho, todo cortado,
tanque. (João. 23 anos. Estagiário de educação física).
Pô, esse anúncio é o máximo, é uma parada muito maneira [...]
Porque parece que o sujeito tava na pior, tava na m**** e olha só

202
DROGAS DE APOLO

como ele ficou [...] perfeito [...] saradaço, cortadão [...] é claro que
um cara duro, ferrado [...]não consegue [...] pra ficar assim, ele tem
que ter uma grana pra investir na ‘carcaça’. Tem que ter tempo pra
malhar, dinheiro pra suplemento e bomba, dieta [...] pra manter
essa barriga assim, igual a um tobogã tem que ter muita dieta,
eu que de vez em quando trabalho como modelo sei como é difícil,
mas é investimento [...] (Paulo. 23 anos. Estudante e modelo).
O sistema publicitário, assim como o mítico, opera classificações da
realidade social. Esse sistema, quando se direciona para o corpo, apresenta
um certo paroxismo classificatório, já que suas estruturas, em geral, fazem
homologia com as estruturas sociais, como é o caso da sociedade hindu na
qual cada casta faz analogia a partes do corpo de Bhrama, e partes superio-
res (estratos sociais) e puras não devem misturar-se a inferiores e impuras
(DOUGLAS, 1976). Embora o fisiculturismo não seja uma prática esportiva
de classe alta, mediante as entrevistas e o trabalho de campo, foi possível
perceber que, no Brasil, ele fica nos liames da classe média. Para “malhar”,
é preciso ter tempo e uma quantia razoável de dinheiro a ser investido
na aparência. Essa surge como uma espécie de vitrine na qual as supostas
virtudes individuais são apresentadas para um “público consumidor” even-
tual que possa trazer lucro tanto econômico quanto simbólico. A lógica de
gerenciamento empresarial toma conta do cotidiano individual, gerenciando
suas vidas em um processo de marketing pessoal que acaba por coisificar
a existência em uma nova forma de tratar o corpo e a vida. Corpo-objeto,
corpo-espetáculo, corpo-capital a ser investido, “corpo-brasão, símbolo de
um pertencimento, efígie feita signo” (VIGARELLO, 1995, p. 33) de uma
classe, de um estilo de vida, de um ethos. Esse processo, que consiste na
tentativa de transformação do mundo em uma grande classe média, um
grande meio termo, é o corolário de americanização – ou ao menos da
interpretação local da cultura e dos símbolos postos sob a égide norte-a-
mericana do modus vivendi de grande parte do Ocidente atual e peculiar à
classe média em ascensão do litoral brasileiro que sonha em transformar-se
em réplica de Miami ou Los Angeles.
Em uma época em que classes, ou “sociedades superavitárias” (RODRI-
GUES, 1998, p. 44), tendem a apresentar um número considerável de indiví-
duos com abundante tecido adiposo, devido ao consumo e ao sedentarismo;
paradoxalmente, a imagem do gordo barrigudo passa a ser abominada. A
pessoa gorda passa, não raro, a ser tolhida do convívio social pleno, sendo
considerada doente, portadora de distúrbios psíquicos e fisiológicos. A

203
CÉSAR SABINO

silhueta gorda atrai apreciações bastante negativas (FISCHLER, 1995).


Entre os fisiculturistas, é a barriga, o abdômen – além do diâmetro mus-
cular –, o ponto de prova da excelência individual; é como se toda areté
estivesse concentrada no centro do corpo, na região do umbigo. Uma
“barriga tobogã” ou “tanque de lavar roupa”, repleta de ondulações, dobras
e redobras musculosas, devido à ausência de gordura e presença constante
de exercícios, é o símbolo supremo da saúde, da excelência e da beleza.
Quanto mais barroca ou mesmo rococó for a arquitetura abdominal, mais
virtuoso será o indivíduo.

4.7 RAIOS E LEÕES

Outro anúncio escolhido para a análise é o do suplemento que auxi-


lia o emagrecimento e a suposta transformação da gordura em músculos,
apresentado a seguir. Nesse anúncio o corpo de um fisiculturista aparece
recebendo uma descarga de raios como se a energia deles servisse para
recompor e aumentar sua força. Se o discurso científico, acompanhado pela
concepção sempre positiva de progresso nesse imaginário, algumas vezes, é
articulado em contraposição a tudo que é natural; outras vezes sugere que é
a força dos elementos naturais, em composição com o trabalho da ciência,
que confere potência à construção do corpo, pensado como objeto natural
que deve ser aprimorado pelo trabalho da técnica. No anúncio aparece,
abaixo do logotipo do produto (Levocarnin), apresentado com letras em
gradações da cor abóbora, a frase “mais fôlego para os seus músculos” e, ainda
um pouco mais abaixo à direita da figura, também as frases: “facilita a utili-
zação das gorduras na geração da força muscular” e “máximo desempenho
energético muscular”. Esse anúncio lembra aspectos míticos, como aqueles
relacionados à força concedida pelos deuses a um determinado herói, pois
o raio direcionado ao fisiculturista parece ser uma carga renovadora que
lhe unge para uma tarefa hercúlea. Confrontados com tal quadro alguns
informantes disseram:
Parece que o cara recebe força do raio, que o Levocarnin produz
uma força igual ao raio... não sei...pode ser também que eles
queiram dizer que o cara ficou ‘cortado’ usando o produto como
se um raio tivesse queimado a gordura dele. (Carlos. 28 anos.
Professor de Educação Física).
Ah, esse anúncio me lembra os desenhos do Thor, lembra? Aquele
super-herói do martelo, deus do trovão. Eu acho que eles querem

204
DROGAS DE APOLO

dizer que o produto é tão bom que deixa o cara que usa com corpo
de super-herói, que nem o Thor [...] seco, definidão e grande.
(Mário. 32 anos. Professor de Educação Física)
A alusão do informante ao deus nórdico Thor, filho de Wotan (Odin),
que se tornou super-herói dos quadrinhos e dos desenhos animados na
TV, foi sugestiva, remetendo diretamente ao pensamento mágico e mítico
presente na publicidade. Thor retirava seus poderes do martelo sagrado que
carregava. Martelo que as forças do mal sempre cobiçavam com o intuito
de enfraquecê-lo. Como o mito “modelo exemplar de todas as atividades
humanas significativas” (ELIADE, 1979, p. 13), apresenta estruturas que
podem ser encontradas em diversas dimensões da sociedade, inclusive nos
anúncios publicitários. Por exemplo, se o herói é aquele que recebe sua
força de algum objeto que lhe é conferido ou conquistado, como o martelo
de Thor ou o cabelo de Sansão, esse anúncio sugere a venda de um objeto
(produto) que pode conferir poderes heroicos àqueles que o utilizam. Ele
parece prometer a transformação do mal (a gordura) em bem (músculos), por
meio do uso dos poderes “divinizados” contidos na L-carnitina, a substância
“mágica” criada em laboratórios farmacêuticos. Ao classificar seu usuário
como um herói, o anúncio reitera a distinção entre melhores, superiores
(musculosos, vencedores, bonitos e divinizados) e piores, inferiores (gor-
dos, sedentários, acomodados e feios) reiterando a dimensão totêmica da
publicidade nas sociedades capitalistas (SAHLINS, 1979).
Outro anúncio do mesmo teor é aquele do suplemento para aqui-
sição de massa muscular denominado Mighty One 3000. Por trás da foto
do produto, em relevo e com rótulo em inglês, aparece a figura de um
leão e a frase em amarelo escrita com letras que lembram raios: “atleta
por instinto”. Ao lado da figura do produto, os tradicionais termos cien-
tíficos (fórmula anticatabólica, complexos de carboidratos, Whey protein,
aminoácidos de cadeia ramificada), que quase nenhum frequentador de
academia conhece em seu funcionamento prático – a não ser alguns pro-
fessores de educação física – conferindo a eficácia simbólica ao objeto
anunciado e que, aparentemente, tem seu consumo associado à doação
de um poder e força leoninos àqueles que o adquirirem. O próprio nome
do produto Mighty (forte, poderoso, importante) remete a uma dimensão
mágica na qual os poderes nele contidos passariam para o sujeito que o
consumisse.
O suplemento não seria apenas forte, poderoso e importante, mas
passaria tais qualidades àqueles que o utilizam. Essas qualidades, no sistema
205
CÉSAR SABINO

classificatório dos fisiculturistas, estão relacionadas a certos animais. O


leão, além do tubarão e mais especificamente o cão pitbull, serve, muitas
vezes, como símbolo de fisiculturistas e lutadores em tatuagens e logotipos
de academias. Tais animais, considerados feras perigosas, servem como
sinônimos de bons atletas e homens destemidos. Dizer que alguém “é
fera” significa conferir a ele a excelência naquilo que faz. Equivale dizer
que está entre os melhores fisiculturistas daquela região ou contexto.
Leach (1983), em seu trabalho sobre categorias animais e insulto verbal,
diz que não xingamos alguém de “filho de uma cadela” ou de “porco” por
que assim está estabelecido por convenções arbitrárias, mas sim porque
existe algo no comportamento daquela pessoa e do animal a ela relacio-
nado, tal como o vemos e classificamos, que permite a relação entre um e
outro. Provavelmente o mesmo ocorre com esses fisiculturistas que não
têm as mesmas características dos animais que escolhem como “totens”
e que, portanto, têm um lugar privilegiado no seu sistema classificatório,
gostariam de ter.

4.8 FÁBRICA E MECÂNICA DE CORPOS

O processo de produção do corpo saudável pode ser classificado em


uma gradação que vai da matéria-prima, o corpo em seu estado natural,
passando pelo investimento de produtos químicos e adaptações às máquinas
de exercícios, até o produto final, um corpo reluzente, musculoso e “sau-
dável”, investido de magia e poder conferido pelas classificações totêmicas
do mundo bodybuilder. Um corpo de fisiculturista. As academias, com suas
indicações de substâncias químicas – suplementos alimentares e esteroides
anabolizantes –, seu conjunto de máquinas, cada vez mais, desenvolvidas
e informatizadas, opera como uma espécie de fábrica do corpo. Há nessas
instituições disciplinares uma verdadeira linha de montagem da forma, na
qual o indivíduo é acoplado às máquinas e levado a experimentar todo tipo
de inovações químicas para moldar sua massa muscular.
O termo massa, muito usado pelos fisiculturistas, remete diretamente
a essa dimensão reificante do mundo do trabalho. Algo informe sobre o
qual a razão científica se debruça executando seus objetivos de conforma-
ção estética, massa é categoria recorrente no cotidiano dos fisiculturistas.
Sua aquisição equivale à aquisição de um bem, de um capital biológico que
deve ser investido, revestido de significado por intermédio de um processo
classificatório que confere valor e sentido àquele conteúdo muscular ini-

206
DROGAS DE APOLO

cialmente indistinto. Esse sentido é produzido por meio da articulação de


um sistema de representações coletivas que pode ser compreendido pela
análise da publicidade voltada para este público específico. O corpo não
saudável, na concepção dos fisiculturistas, seria aquele que, de certa maneira,
estaria mais próximo do estado natural, o corpo menos trabalhado, o corpo
que não consumiu produtos químicos (suplementos alimentares e drogas) e
exercícios específicos elaborados por especialistas com o auxílio constante
de técnicas científicas e máquinas adequadas, além de pesos.
Ao contrário dos consumidores de produtos naturais, o sentido de
natureza entre marombeiros apresenta-se como algo que deve ser aprimo-
rado, aperfeiçoado, ou espécie de estoque no qual o cientista e o fisicultu-
rista vai buscar matérias-primas para elaborar suas fórmulas. Estoque de
forças que deve ser gradativamente domesticado pela razão. Nesse sistema
subjetivo e objetivo é possível perceber que a mesma lógica capitalista
da produção de bens de consumo aplica-se à produção da forma física.
Portanto, a categoria natureza, para esse grupo, não está carregada com
o significado de excelência como para os chamados pelos fisiculturistas
de “naturebas”; mas, ao contrário, porta o sentido de atraso no processo
evolutivo ou na condição humana perfectível. O corpo deixado “ao natural”
tende a se degradar (quando já não é degradado), já que não pode contar
com os avanços da evolução da ciência da beleza e da arquitetura da forma.
Os suplementos criados em laboratórios, produtos de intensas pesquisas
científicas, representam a síntese dos avanços científicos para a elabora-
ção do corpo saudável e forte. Corpo que, se não contar com a tecnologia
aplicada aos exercícios, à nutrição, e avanços da indústria farmacêutica,
não pode tornar-se o portador do sentido de saúde relacionado à ausência
de gordura e presença de músculos. Para eles antinatural, contrariando o
processo natural de evolução, é deixar o corpo apartado das máquinas de
exercícios e das químicas da ciência da nutrição.
Nesse raciocínio, os corpos humanos seriam iguais em sua indis-
tinção geral, principiando a distinção por intermédio da sua relação com
a muscularidade. Gordos, magros e comuns, posicionar-se-iam do lado
oposto dos musculosos, e a publicidade da forma seria o eixo articulador
da transição (operador totêmico), organizando, por intermédio dos pro-
dutos (suplementos alimentares e máquinas de musculação), a realidade
e instaurando a diferença. Apresentando-se como fábricas de corpos,
as academias de musculação podem ser encaradas como locais onde se
encena o drama da montagem física. O corpo chega a essas instituições
207
CÉSAR SABINO

como uma espécie de matéria-prima, passando por todo um movimento


de produção e recauchutagem, e saindo, no final de um processo fordista
de somato-produção, como mercadoria específica para ser apresentado e
consumido na economia de bens simbólicos. Ao chegar, enquanto matéria-
-prima, esse corpo é conteúdo indiferenciado (pertence ainda ao mundo
indistinto da natureza). Essa matéria é trabalhada durante meses e anos,
durante horas diárias de exercícios intensos, direcionados e realizados
em máquinas, halteres, esteiras e ergométricas em consonância com o
consumo de fármacos e substâncias químicas diversas. Toda a lógica
mecanicista de grande parte da racionalidade ocidental dominante e que
funda o pensamento capitalista ocidental concretiza-se nessas institui-
ções de preparação da forma. O corpo humano, nessa fábrica repleta de
espelhos, carrega, a princípio, certo sentido de mecanização objetificada.
Acoplado às máquinas, ele é apenas uma peça em um sistema de polias,
molas, pedais e alavancas. O ritmo, a ordem, o caráter e o movimento do
processo de trabalho muscular é dado pelo conjunto de maquinarias e
não pelo trabalhador que o serve.
A fábrica de corpos retira a marca vital do produto (o corpo) e trans-
forma o trabalhador em força motriz que é dobrada sobre si mesma. Esse
processo reificante volta-se diretamente para o próprio corpo e para a
forma daquele que trabalha sobre si mesmo transformando-se, de maneira
consentida, grosso modo, em uma mercadoria de carne-forma; peça no
vasto mundo de imagens das economias globalizadas e microinformati-
zadas. Porém, se no mundo da produção os produtos estão naturalizados
para se constituírem como objeto estético (isso no pensamento do grupo
estudado); no mundo do consumo, eles devem ser culturalizados, revestidos
de características singulares que estabeleçam sua inserção num sistema de
significação que deve lhes conferir face, nome e identidade. Dessa forma, o
corpo trabalhado, musculoso e bem enquadrado nos parâmetros estéticos
dominantes “humaniza-se” para o fisiculturista por tornar-se bodybuilder
na prática, na forma e na maneira de pensar. Essa humanização está dire-

208
DROGAS DE APOLO

tamente radicada na separação natureza/sociedade, animal/humano típica


do pensamento dominante de nossa cultura68.
Para construir essa pessoa, é necessário um instrumental técnico
específico que tem sua história demarcada no campo da biomedicina, ou do
chamado sistema de medicina ocidental. Esse sistema é composto por uma
classificação peculiar composta por cinco itens: doutrina médica, morfologia,
dinâmica vital, diagnose e terapêutica. Essas, por sua vez, dividem o corpo
humano em nove sistemas: sistema nervoso (cérebro, tronco cerebral, medula
espinhal, nervos periféricos); sistema cardiovascular (coração, artérias e veias);
sistema respiratório (pulmões, traqueia, laringe); sistema digestivo (esôfago,
estômago, intestinos delgado e grosso, pâncreas exócrino e fígado); sistema
endócrino (glândulas hipófise, pineal, tireoide, paratireoides, suprarrenais,
pâncreas endócrino, ovários, testículos); sistema reticuloendotelial (baço,
medula óssea); sistema imunológico (linfonodos, timo); sistema gênito
urinário (rins, bexiga, uretra, aparelho reprodutor masculino e feminino)
e sistema musculoesquelético (ossos, músculos, tendões e articulações)69.
A prática da musculação está diretamente radicada na concepção
sistêmica da biomedicina, principalmente no sistema musculoesquelético.
Por trás de toda concepção de universo, inclusive a científica, existe uma
68
Para uma discussão aprofundada e crítica sobre esse tema, há a incontornável obra de Tim Ingold (1990;
1994; 2002; 2004). O autor busca superar as dicotomias presentes na teoria por intermédio de uma obra que
reitera o engajamento simétrico entre todos os seres que habitam o mundo. Nesse aspecto, produz também
grande impacto na tradição humanista e cientificista ocidental, posto que sua visão da realidade impossibilita
a separação entre sujeito/objeto. Para Ingold, a ideologia antropocêntrica cientificista nega o devir ou fluxo
da vida, negando o respeito à diferença pertencente a todos os seres que habitam o mundo como ambiente no
qual o ser humano é apenas mais um dos elementos. O autor estabelece uma equivalência entre todas as formas
materiais de vida que habitam, interagem, interconectam-se e se modificam constantemente na atmosfera,
independentemente de sua forma ou qualidade de consciência. Ingold faz uma antropologia que aproxima seres
humanos não apenas de animais, mas também de marés, rochas, mares, céu, vento etc.; tudo que está no mundo
e compartilha (interagindo na atmosfera) o ambiente e que é vida, de acordo com seu pensamento. Contudo,
não é possível esquecer que a cultura do grupo aqui discutida é ocidental, cartesiana e mecanicista. O que torna
um contrassenso buscar nela elementos de racionalidades nada aparentadas a ela.
69
Outros sistemas médicos, diversos do ocidental, como o desenvolvido na Índia há mais ou menos sete mil
anos, o sistema médico ayurveda, ou medicina Ayurvédica, por exemplo, organizam a realidade do corpo como
uma totalidade única sem separação entre espiritual e material. Essa realidade estaria demarcada por gradações
que iriam da substância densa (o corpo, no Ocidente) à substância sutil (espírito). Para esse sistema médico, assim
como para o chinês, o adoecimento é um acontecimento singular pertencente a cada pessoa e ocorre devido a
desequilíbrios nos fluxos de energia e humores individuais combinados com toda a realidade que o cerca, não
havendo uma ontologização da doença. Nessa visão, portanto, o corpo não é percebido separado do universo
e muito menos da dimensão espiritual-mental que influi diretamente no adoecimento. O ser humano é conce-
bido como parte de uma ordem cósmica com a qual deve estar em harmonia; a saúde é a relação equilibrada do
microcosmo (ser humano) como o macrocosmo. Essa harmonia seria realizada por meio do balanceamento de
três humores (tridosha) vatta, pitta, kapa, simbolizados pelos elementos fogo, vento e água estruturantes do ser
humano (MARQUES, 1993).

209
CÉSAR SABINO

cosmologia implícita ou explícita. No caso das concepções do senso comum


e daquelas científicas surgidas no Ocidente, essa cosmologia é marcadamente
mecanicista. A base dessa visão está presente nas hegemônicas concepções
filosóficas de Descartes e físicas de Newton. Essas concepções mecanicistas
representam o universo e o corpo humano como um relógio; máquinas que
funcionariam segundo leis matemáticas e que seriam compostas por peças
específicas. O cosmos, então, estaria apartado do poder e da pessoa divina,
sendo uma espécie de máquina-palco, da mesma forma que o corpo humano
seria um mecanismo com leis estabelecidas pelo grande relojoeiro (Deus) e
do qual o espírito – esse sim a verdadeira personalidade do homem – faria
uso. Durante três séculos, esse raciocínio expandiu-se, e até hoje faz parte
das representações coletivas das sociedades complexas ocidentais. Apesar
de a física quântica ter sugerido o equívoco desse raciocínio, ele continua
presente tanto em práticas e representações eruditas (senso comum douto)
quanto populares (senso comum). Esse é o caso da medicina e da fisiote-
rapia e, consequentemente, da educação física e de parte dela dedicada à
musculação.
Segundo essa concepção, que transforma o corpo em uma máquina
sobre a qual o espírito pode atuar, os exercícios devem obedecer às leis da
mecânica newtoniana atuando especificamente nas “peças” que compõem
a máquina humana. Basta observar o cenário das academias de musculação
para perceber a força dessas ideias e práticas. Os recintos utilizados para os
exercícios estão repletos de máquinas elaboradas para a prática da muscu-
lação e, quando as academias estão repletas de indivíduos realizando seus
trabalhos de escultura muscular, todo o cenário parece uma grande máquina
ritmada na qual cada um surge como peça ou engrenagem. Enquanto alguns
fazem exercícios ritmados para determinadas partes das pernas, outros o
fazem para os braços, costas e ainda outros para ombros e peitos; cada um
movimentando-se segundo uma quantidade determinada de repetições
acopladas às máquinas. O corpo não é nada mais que uma máquina entre
tantas máquinas (DUARTE, 1999).
O anúncio que visualizei na revista da época era eloquente a esse
respeito. Além de aludir ao tradicional espírito evolucionista presente no
ponto de vista do senso comum, o qual confunde evolução e progresso
(concebendo a primeira como inexorável e linear) ao trazer como chamada
a frase: “A evolução não para [...]”, evoca o progresso no próprio nome da
linha: “Millenium 2001”. Porém o que deve ser destacado nesse anúncio é
a postura das modelos. Elas não possuem a forma física comum entre as
210
DROGAS DE APOLO

fisiculturistas, e isso indica que tais aparelhos não são direcionados apenas
para tais pessoas. O sorriso que elas estampam também não condiz com
a prática dos exercícios nessas máquinas. Em geral, quem se exercita faz
caretas e não dá sorrisos. Sem embargo, as imagens indicam a plena inte-
gração, sem sofrimento, do ser humano à máquina, o que não ficaria tão
claro se elas estivessem fazendo expressões de esforço em uma alusão à luta
para conseguir um corpo em forma. Nesse quadro parece que isso já foi
conquistado e que apenas a felicidade como produto do uso das máquinas
existe. Exercícios pesados e rostos sorridentes são contraditórios. Porém,
no mundo dos anúncios, não existe o trágico nem a contradição, apenas a
promesse de bonheur capitalista.
Evolucionismo, crença no progresso e mecanicismo desaguam na
concepção do ser humano como produto industrial, assim como as máqui-
nas com as quais interage – não se quer dizer com isso que qualquer e toda
interação com máquinas produza tais representações. Essa concepção de
homem-máquina é parte de uma compreensão mecanicista de universo,
como foi dito. Weltanschauung, que produz a ilusão do poder aos seus por-
tadores, pois se a realidade – seja ela o corpo humano ou o universo – é uma
máquina, basta saber apertar os botões certos ou articular as engrenagens
adequadas para se obter os resultados desejados. Esse mito científico decal-
cado da física newtoniana está na base de todo o paroxismo reducionista
que imperou nas grandes teorias sociais e impera, de forma mais sutil, em
várias ciências do corpo e da saúde até o presente momento; pois máquinas
podem ser recauchutadas com produtos para crescer, silicones e silícios,
implantes e plásticas com o objetivo de “aprimorar”, fazer progredir, tor-
nar perfectível, aquilo que a natureza concebeu. Não se percebe que esse
“melhorar” é um juízo de valor condicionado por todo sistema simbólico
de uma determinada época e cultura, não representando superioridade em
relação aos outros sistemas que concebem corpo e estética de forma diversa.
A estabilidade milenar de tantas culturas primitivas, que não apresen-
tavam como sustentáculo cultural o pensamento racionalista, realizou-se,
devido à adequação entre seus esquemas imaginativos e a realidade. Envoltos
em mitos e lendas específicos, esses “selvagens” podiam nada saber a respeito
de refração ótica ou mecânica quântica, porém pressentiam com grande
precisão o lugar da existência humana no cosmos. Muitas vezes parece ao
antropólogo que é menos absurdo falar com os animais e as plantas, como
faziam e fazem os primitivos (VIVEIROS DE CASTRO, 2002d), do que
se imaginar como uma engrenagem de relógio. Nesse raciocínio, se o ser
211
CÉSAR SABINO

humano não passa de um produto industrial, portanto descartável, não é um


erro se desfazer ou jogar fora aqueles que não têm mais utilidade, ou não
passam no controle estético de qualidade, profissional, enfim, social. São
perdedores, feios, fracos, inúteis e fracassados, que devem ser descartados
pelo processo evolutivo “natural” do mercado na “luta pela sobrevivência
do mais apto.” Essa é a lógica presente no imaginário e representações do
cotidiano das academias de musculação aqui estudadas, assim como nos
anúncios brevemente analisados.

212
CAPÍTULO V

Ser homem significa, para cada um de nós, pertencer a uma classe, a


uma sociedade, a um país, a um continente e a uma civilização.
(Lévi-Strauss)

5 TATUAGENS: A HIERARQUIA DA EPIDERME

Alguns trabalhos da chamada antropologia urbana e da psicologia


social têm se dedicado quase que exclusivamente a análises de entrevis-
tas e depoimentos, não raro, desprezando a importância da observação
participante prolongada e minuciosa que constitui o tradicional trabalho
de campo. Essa monomania de cátedra (BOURDIEU, 1989) tem levado à
construção de abordagens que se, por um lado, podem ser formalmente
belas, por outro, chegam a conclusões que vão contra a própria tradição
disciplinar. Assim, por exemplo, sobre a prática de tatuagens entre determi-
nados grupos cariocas, Almeida (2000, p. 103) afirma - após uma pesquisa
ampla sobre o imaginário do universo jovem da classe média brasileira,
[pesquisa com] jovens ligados ao universo da tatuagem – que o discurso
dos tatuados apresenta
[...] uma fusão desordenada e heteróclita de elementos da
imaginação [...] imensa constelação de imagens e simbolismos
[que] não parece[m] estruturar-se de modo contínuo, coeso e
duradouro na fala dos informantes. Os sujeitos acionam ao
bel-prazer de seus ímpetos momentâneos, suas contingên-
cias [...] paroxismo da performance (VALE DE ALMEIDA,
2000, p. 104).
A autora, apesar de falar sobre uma “gramática subjetiva” (ALMEIDA,
2000, p. 104), contraditoriamente sustenta a hipótese da não existência
de nenhum sistema ou racionalidade que organize a visão subjetiva do
grupo estudado. A tatuagem representaria uma prática fugaz e paroxista
reduzida à efemeridade do instante (sem qualquer organização de fato)
ao modo de algumas interpretações pós-modernas em antropologia.
Detendo-se apenas na fala dos informantes, chega a essa conclusão
dizendo que os tatuados dizem que “não pensam nas suas tatuagens” (p.

213
CÉSAR SABINO

105), portanto (no que se refere aos desenhos presentes na epiderme a


tais jovens pertencentes aos grupos urbanos) nada existiria além da pele a
não ser a volição imediata e neorromântica que, segundo a própria autora,
pulverizaria os sentidos dos conteúdos simbólicos. A afirmação parece
desprezar o fato de que a ordem social se inscreve no inconsciente – e
não na dimensão consciente presente nas palavras dos nativos apenas –
e que é nesse inconsciente que o antropólogo deve buscar entender as
estruturas subjetivas que organizam as estruturas objetivas da vida em
sociedade (BOURDIEU, 1983).
Devido a essa espécie de esquecimento da tradição teórico-metodo-
lógica da antropologia, a autora conclui que as ciências sociais e humanas
encontram-se (ao encararem o que ela constata como ausência de estrutura-
ção do seu objeto), diante de “uma imensa perplexidade tanto analítica quanto
empírica” (ALMEIDA, 2000, p, 121). Bom, encontra-se para quem assim o
deseja. A tentativa de analisar o uso de tatuagens entre os marombeiros ou
fisiculturistas do Rio de Janeiro – já que essa prática é muito comum entre
eles e vem crescendo nas academias e também fora delas – sugere que não
apenas há uma sentido inconsciente que estrutura a organização social, mas que
também essa organização estrutura o sistema simbólico daqueles que dela
fazem parte e a constituem.
Embora fisiculturistas de competição não as exibam em profusão
(pois se os desenhos forem grandes demais poderão atrapalhar a visão
de seus músculos ou desviar deles a atenção), as tatuagens estão presen-
tes em inúmeros corpos nas academias de bodybuilders70. Nessa pequena
amostra da sociedade da performance e da aparência que constitui as
academias, a superfície da pele realça o que ela reveste e que constitui o
objeto e propósito de todo o trabalho nessas instituições: o músculo. As
tatuagens surgem como acabamento artístico de um contínuo processo
de busca pelo ideal estético envolvendo a encenação pública e a encar-

70
Entre os 310 indivíduos com os quais foram estabelecidos diálogos e convivência no trabalho de campo nas
academias as quais frequentei, 101 possuíam tatuagens.

214
DROGAS DE APOLO

nação dos papéis inerentes à dinâmica social71. Se corpos musculosos


“pavoneiam” (FOUCAULT, 1990, p. 9) pelos cenários repletos de espelhos,
halteres e máquinas de exercícios, as tatuagens conferem a esses corpos
o paroxismo de visibilidade que lhes são inerentes. Ela mobiliza olhares,
reflete sentimentos, classifica, hierarquiza e ordena subjetivamente o fluxo
intermitente de indivíduos que lhe servem de tela e que nela buscam dis-
tinção. Formando uma espécie de linguagem bodybuilder, os desenhos da
epiderme apresentam uma gramática que possibilita organizar o regime da
visibilidade institucional. Portanto, a tatuagem, do ponto de vista socioló-
gico, é uma linguagem que “está intimamente ligada à organização social:
[apresentando] motivos e temas [que] servem para exprimir diferenças de
posição, privilégios de nobreza e graus de prestígio [...]” (LÉVI-STRAUSS, 1975,
p. 292, grifo meu). Ou, para lembrar a incontornável obra Arte e Agência
de Alfred Gell – na qual ele estuda, além da arte acadêmica ocidental, as
tatuagens dos nativos do pacífico –, “é preciso perceber que as imagens
artísticas têm a capacidade de ativar relações sociais que são marcadas por
posições assimétricas, ou seja, diferenças de classe e poder” (GELL, 1998, p.
321-372, grifo meu). Vale, portanto, frisar que imagens sejam de quadros,
fotografias ou tatuagens, não apenas atuam sobre os seres humanos que
as produzem, mas representam as relações de poder e dominação que os
constituem via classificação e hierarquização social.
Essa “gramática” epidérmica apresenta-se por intermédio de uma
contradição. A maioria dos(as) tatuados(as) das academias pesquisadas
71
A possível análise da escritura, seja ela qual for, realizada pela tatuagem, remete ao aspecto ordenador que a
gramática social instaura mediante a lei inscrita na pele, conforme escreveu Michel De Certeau: “não há direito
que não se escreva sobre corpos [...] sempre é verdade que a lei se inscreve sobre os corpos. Ela se grava nos
pergaminhos feitos com a pele de seus súditos [assim] os seres vivos são ‘postos num texto’ transformados em
significantes das regras (é uma contextualização) e, por outro lado, a razão ou o Logos de uma sociedade se ‘faz
carne’ (trata-se de uma encarnação). Todo poder se traça em cima das costas de seus sujeitos [...] os livros são
apenas as metáforas do corpo. Mas nos tempos de crise, o papel não basta para a lei, e ela se escreve de novo
nos corpos. O texto [...] remete a tudo aquilo que se imprime sobre nosso corpo, marca-o [....] enfim, com dor
e/ou prazer para fazer dele um símbolo do Outro, um dito, um chamado, um nomeado” (CERTEAU, 2002,
p. 231-232, grifos do autor). Feitas para representar por toda vida uma ordem estética, essa prática, em uma
sociedade em que a moda passageira e o impulso momentâneo do consumo está cada vez mais presente, por
vezes engendra um paradoxo epidérmico naqueles que, após um certo tempo, “se cansam” ou simplesmente
“enjoam” de seus desenhos. Essas pessoas, por terem realizado as tatuagens apenas incitados pela moda ou pela
influência circunstancial, chegam a despender 20 vezes mais o valor gasto com a elaboração do desenho, para
eliminá-lo da pele, além da dor de cada sessão. De acordo com a revista Época (n.º 264. 9 junho 2003, p. 90-91),
o Hospital Albert Einstein, de São Paulo, desde 2000, vem duplicando, ano a ano, o número de pacientes que
desejam remover suas tatuagens. No Leblon Laser Center, no Rio de Janeiro, uma das principais clínicas do país,
há fila de espera para retirar tatuagens. O fato nos lembra a conhecida frase de Marx sobre uma época em que
tudo que é sólido desmancha no ar. Contudo, os tatuadores têm dito que tatuagens podem ser “cobertas” por
outras, escondendo-as quando perdem seu sentido.

215
CÉSAR SABINO

escolheram seus desenhos após uma decisão pessoal que expressa a vontade
de distinção. Ao se tatuarem, buscam singularizar suas figuras, sempre
conferindo- lhes uma característica diferencial, um detalhe específico;
alguns até mesmo “inventam” seus desenhos ou carregam no estilo deles
ao se dirigirem ao tatuador. Toda essa atitude é engendrada na busca
de uma individualidade relacionada à concepção de livre arbítrio e da
distinção daquele que faz suas escolhas e que por elas é plenamente res-
ponsável. Destarte, de acordo com Sanders (1989), a tatuagem é um meio
de individuação que tem a tarefa de demarcar a diferença em relação ao
outro, tatuado ou não. Essa demarcação é sempre uma divisória e, como
tal, hierarquiza impondo relações de poder. Também pode constituir
delimitação de inconformismo expressando uma estética totalmente
pessoal. Por outro lado, a grafia epidérmica permite reivindicar o perten-
cimento a uma categoria social, servindo como uma espécie de “etiqueta
coletiva” (DURKHEIM, 1996, p. 113) simbolizando a filiação privilegiada
a um grupo social específico que busca demarcar sua identidade coletiva
em um processo de emblematismo. A prática da tatuagem, portanto, é
a expressão da superação do paradoxo teórico existente entre agência e
estrutura. Assim, podemos pensar na teoria de Bourdieu indicando que
há uma margem de liberdade para o agente; porém suas escolhas ocorrem
sempre dentro dos sistemas simbólicos e sociais dos quais ele retira os
recursos para suas ações (BOURDIEU, 1989).
Associada, no Ocidente, à marginalidade até a década de 60 do século
XX, quando, em geral, estigmatizados como presidiários, motoqueiros dos
Hell’s Angels e marinheiros sem nenhuma patente desenhavam, por vezes de
forma canhestra, imagens, palavras ou frases em seus corpos; as tatuagens
atualmente se tornaram gradativamente parte do cotidiano das classes mais
altas decorando o corpo de indivíduos de idades variadas e demonstrando
a existência de um processo de circularidade cultural no qual o poder de

216
DROGAS DE APOLO

um item estigmatizado torna-se emblema de status e domínio, invertendo


o jogo social pela disputa de hegemonia simbólica das classes72.
Como os costumes de um povo, grupo social ou classe formam um
sistema que apresenta um estilo, ocorre, por vezes, uma espécie de trans-
posição cultural – reinterpretação de significados que fazem parte da pró-
pria dinâmica coletiva. Esse movimento se realiza porque, dentre outros
aspectos, os sistemas não formam um número ilimitado, sugerindo que “as
sociedades humanas, assim como os indivíduos – em seus jogos, seus sonhos
e seus delírios -, jamais criam de modo absoluto, mas se limitam a escolher
certas combinações num repertório ideal” (LÉVI-STRAUSS, 2000, p. 167).
Nos locais estudados, foi possível perceber a produção coletiva – e
inconsciente – de uma gramática imagética composta por inúmeros itens
retirados e reinterpretados de outras culturas e/ou classes sociais. Assim,
tatuagens inspiradas em figuras sagradas e mitológicas pertencentes às culturas
da polinésia francesa, celtas, japonesas, chinesas, hindus, balinesas, medieval,
nórdicas, além de ideogramas e personagens de quadrinhos e de desenhos
animados que vão de super heróis a anti-heróis, (além de toda uma classifica-
ção “totêmica” inspirada em animais e fenômenos naturais como cães, tigres,
panteras, beija-flores, raios, estrelas), decoram os corpos dos praticantes,
não necessariamente fisiculturistas. Há também o que é bem mais raro, uma
formação simbólica organizada em torno de objetos pertencentes à atual
cultura que sacraliza o mercado, a cyberculture, com a inexorável presença da
informática, como marcas famosas de roupas e tênis (Nike, Adidas, Mizuno) e
símbolos da computação tais como @, além de códigos de barra – esses mais
comuns que os anteriores –, em geral estampados em locais estratégicos do
corpo como nuca, pulso ou cóccix. Há, portanto, uma ligação entre indiví-
duo, seus desejos, o agenciamento ou constrangimento social inconsciente e
sagrado e as imagens da pele como sugeriu Foucault:
72
Sobre a tatuagem (assim como sobre o músculo cultivado e hiperinflado), parafraseando Lévi-Strauss, em
seus estudos sobre pinturas corporais ameríndias (1975), pode-se dizer que é feita para o corpo, mas num outro
sentido; o corpo, nesse caso específico, é predestinado à decoração por figuras e músculos, posto que é somente por
meio da decoração que ele recebe sua dignidade social e sua significação. A decoração é concebida para o corpo,
mas o próprio corpo não existe senão por ela. A dualidade é, em definitivo, a do ator e de seu papel, e é a noção
de máscara que nos traz sua chave. A alusão à máscara é significativa posto que pessoa em latim tem esse mesmo
sentido: “é clássica a noção de persona latina: máscara, máscara trágica, máscara ritual, máscara de antepassados”
(MAUSS, 1974, p. 225). Essa etimologia evoca o quanto o indivíduo é composto pelos itens e forças sociais que
são inscritos no seu corpo conferindo-lhe identidade; mas também sugere que há uma margem de liberdade na
qual ele transita escolhendo dentre o conjunto social que se lhe apresenta os itens que melhor se conformam a
seus objetivos e propósitos. A persona, enquanto produção social, vive e repete os instintos criadores coletivos.
Enquanto máscara, ela coloca em cena ou participa da encenação dos tipos sociais, assim como a máscara pode
vir a ser articulada, agenciada, administrada e manipulada por aquele que a usa.

217
CÉSAR SABINO

[...] tatuar-se não é, exatamente, como se poderia imaginar,


adquirir outro corpo, simplesmente um pouco mais belo,
melhor decorado, mais facilmente reconhecível: tatuar-se [...] é
sem dúvida algo muito diferente, fazer com que o corpo entre
em comunicação com poderes secretos e forças invisíveis.
[...] [O] signo tatuado, [a] pintura, deposita [...] no corpo toda
uma linguagem [...] enigmática, toda uma linguagem cifrada,
secreta, sagrada, que evoca para este mesmo corpo a violên-
cia do deus, a potência surda do sagrado ou a vivacidade do
desejo (FOUCAULT, 2013, p. 12).
Canevacci (1993) ressalta que, nas grandes megalópoles, a linguagem
visual assume um papel efetivo pela sua instantaneidade. Propõe que o
antropólogo das sociedades complexas preste detida atenção à linguagem
dos signos visuais, pois essa linguagem ressalta o hibridismo, ou sincretismo
cultural, que vem imperando nos centros urbanos. Esse hibridismo consolida
o corpo como mapa social expressando narrativas individuais e coletivas
simultaneamente. Essas narrativas – da mesma forma que a bricolage – são
(re)construídas por diversos itens, termos ou elementos, pertencentes a
culturas diversas tanto no tempo quanto no espaço. Dessa maneira, por
exemplo, uma mulher de ascendência germânica pode estampar tatuagem
“tribal”, marca ancestral de homens taitianos com um entrelaçado celta
recriando da mitologia à concepção de forças do infinito. Tudo isso com o
objetivo, consciente, de não apenas tornar-se singular, mas de se identifi-
car – muitas vezes inconscientemente – com um determinado grupo que
frequenta locais (os, por eles chamados, “points”), organizações e institui-
ções consumindo produtos específicos, ouvindo determinados tipos de
música, e assim por diante. Essa construção identitária, ao mesmo tempo
concêntrica e excêntrica, está diretamente relacionada à dimensão visual das
interações sociais. Nesse aspecto, há a necessidade de expor signos, sejam
eles músculos ou desenhos, corte e cor de cabelo, roupas ou ideogramas
inscritos na pele. Esse apelo visual das sociedades complexas se faz presente
delimitando espaços, demarcando diferenças fazendo com que – no caso
específico - os componentes das academias entrem no cenário iluminado
da vida urbana com sua mise-en-scène singular inerente aos fluxos culturais
preponderantes na cultura globalizada (HANNERZ, 1997; DIÓGENES,
1998), superexpondo-se em um jogo que pode ser exemplificado pela
produção do corpo-imagem nos campeonatos de fisiculturismo, nos quais
cada fibra muscular deve ser mostrada e demonstrada em uma espécie de

218
DROGAS DE APOLO

dissecação em vida do competidor73. Mostrar, expor as entranhas, exibir,


alardear, ser notado; não apenas ostentando os adereços que compõem a
sociedade de consumo, mas sendo o próprio adereço: “o corpo humano
se torna um corpo panoramático que reflete, retroage e projeta infinitas
combinações de sinais ventríloquos” (CANEVACCI, 1993, p. 23).

5.1 PELE DE HOMEM. PELE DE MULHER

A princípio, as tatuagens nas academias de musculação, apesar de todo


o atual debate de gênero, dividem-se entre femininas, masculinas e unissex.
Mulheres tendem a tatuar determinado grupo de figuras, tais como rosas e
flores em geral, estrelas, borboletas, lua, sol, personagens femininas de HQ’S
e mangás, beija-flores, gatos e fadas. Já ideogramas, figuras tribais, palavras e
frases em letra gótica, símbolos da computação, códigos de barra, corações,
duendes, deuses ou deusas mitológicos são símbolos inscritos tanto na pele
de homens quanto de mulheres. Em geral (para tudo isso existem sempre
exceções), águias, cruzes, panteras, tigres, dragões, demônios, caveiras, armas,
arame farpado, sereias, mulheres nuas, tubarões, figura da morte com foice
e capuz e cães de guarda são tatuagens eminentemente masculinas. Os locais
do corpo também definem o gênero: mulheres tatuam na nuca, no cóccix
(principalmente as chamadas tribais), nos seios, nas nádegas e nas virilhas,
às vezes na omoplata, nos pés e calcanhares. Já entre os homens, os desenhos
situam-se principalmente no bíceps (em geral na parte exterior, mas também
há na interior), nas costas, nas panturrilhas e no antebraço, mais raramente,
embora de forma crescente, na barriga e peito. Essas divisões estabelecidas
pelos desenhos inscritos na pele dos indivíduos que pertencem ao grupo
estudado configuram a manutenção, diga-se a reprodução, da gramática das
diferenças inerentes às relações de gênero – mas não só –, já que a própria
escolha do desenho está inserida em um sistema (adquirido pelo indivíduo

73
Esse movimento de estetização de exibição das entranhas tem seu maior expoente artístico atual no médico
alemão Gunther von Haggens criador da escola chamada body work. O médico-artista inventou um processo de
plastificar cadáveres chamado plastination. Essa técnica conserva os corpos mortos como se fossem seres vivos,
transformando-os em uma espécie de bonecos hiperealistas que são expostos em galerias de arte. Em 2002 von
Haggens realizou uma exposição na Atlantis Gallery de vários cadáveres recolhidos em países diversos. Havia, por
exemplo, entre eles, uma mulher grávida de oito meses, com o útero aberto mostrando o feto. O trabalho do médico
parece estar alcançando notoriedade, pois a televisão inglesa, apresentou um programa denominado “Autópsia ao
Vivo”, em que ele apareceu para milhões de espectadores dissecando um cadáver. Enquanto retirava o fígado e o
pulmão de um indigente, com o auxílio de seus assistentes, comentava para o público o péssimo estado dos órgãos.
Para uma melhor visualização, erguiam a massa encefálica e a vesícula do defunto diante do público presente e das
câmeras. A audiência foi alta. (Jornal O Globo. Sábado, 12 de abril de 2003. Caderno Prosa e Verso. p. 2).

219
CÉSAR SABINO

mediante sua socialização) classificatório que expressa um gosto, a estrutura


lógica de uma organização, percepção e apreensão (valoração) da realidade.
Pensando escolher seu desenho, seja ele um beija-flor, uma carpa
japonesa ou uma caveira, o indivíduo é escolhido por todo um conjunto
de representações e práticas, estruturas subjetivas e objetivas reproduzidas
pelo estilo de vida que ele articula e imita naquele momento de suposto livre
arbítrio (EDMONDS, 2002). Esse sistema inconsciente aparta, organiza,
distingue e constitui as (dis)posições sociais alocando o indivíduo em uma,
e exprimindo a sua, condição de gênero e classe – ou seja, como o estrutu-
ralismo já mostrou e demonstrou, ele apresenta uma lógica Inconsciente
que ordena pensamento e mundo.
A tatuagem – surgida, como dito anteriormente, entre aqueles ante-
riormente considerados escória social – tornou-se emblema, ao menos nos
casos das academias cariocas de musculação, de um ethos de classe média
que confere à exposição estética uma hipervalorização. Ela apresenta-se
como o adorno e o acabamento distintivo daqueles que buscam, no cultivo
do corpo, dos músculos e da ausência de adiposidade, o sinal de destaque e
superioridade sensitiva característicos de determinada parcela das camadas
médias urbanas atuais. Esses extratos engendram uma cultura das sensações
– portanto imediatista – relacionada ao consumo enquanto distintivo de
cidadania e poder hierárquico (CANCLINI, 1995).
Cultura diretamente ligada à imagem – boa forma, sensualidade e
juventude. Essas estruturas subjetivas e objetivas são inscritas nos corpos
que as produzem e são por eles reproduzidas, em um duplo processo de
“interiorização da exterioridade e exteriorização da interioridade” (BOUR-
DIEU, 1983, p. 47). O aspecto volátil dessa ética estética pertencente às
parcelas da sociedade de consumo é reiterado pelo fato de que, tendo sido a
princípio inscrições feitas na pele para o resto da vida, ou seja, supostamente
inalteráveis, hoje os grupos de tatuados adotam, por vezes, a estratégia de
realizar outro desenho por cima da figura que já não mais satisfaça seu
usuário; o que chamam de “cobrir a tatuagem”. A tatuagem também nesse
aspecto torna-se um objeto de consumo74.
74
É necessário não confundir a lógica consumista com a lógica da diferença presente na filosofia de Deleuze
ou de Nietzsche. Alguns sociólogos que teorizam sobre o que entendem ser a pós-modernidade – a época atual
– tendem a ver, no pensamento e nas práticas da sociedade de consumo, a evocação coletiva das filosofias de
Nietzsche ou Deleuze, como se, repentinamente, o que compreendemos como o ocidente capitalista tivesse pro-
duzido uma ruptura com sua milenar tradição metafísica e instaurado inconscientemente filosofias imanentistas
enquanto práticas coletivas, o que obviamente não ocorreu e que não passa de uma confusão dos eruditos entre
coisas da lógica e lógica das coisas como escreveu Marx.

220
DROGAS DE APOLO

Quadro 7 – Tatuagens e classificação de gênero

Homens Unissex Mulheres

Pitbull Tribal Borboleta

Tigre Duende Beija-flor


Marca (Nike,
Águia Estrela
Adidas

(+) Pantera Coração Lua (-)


Agressivo/ Delicado/
Tubarão Deuses(as) Rosa
Forte Fraco
Caveira Ideogramas Mantras

Armas Frases etc. Fada

Morte Anjos etc.


Sol etc.

Corpo Corpo
Ambos
Masculino Feminino

Bíceps Nuca

Ombros
Regiões que Deltoides
Regiões (trapézio)
demarcam a Regioes que
Corporais
sensualidade Antebraço Nádegas demarcam a
relativas
masculina sensualidade
Costas ao sexo são Cóccix
(força, poder, feminina.
mantidas
domínio)
Panturrilha Seios

Peito Coxas

Fonte: o autor

Mas o que querem dizer as tatuagens? Qual sua função no contexto


estudado? Qual o sentido do ato de tatuar-se? Para adiantar uma possível
via interpretativa, podemos repetir, a respeito das pinturas corporais ame-
ríndias, que elas, de uma forma ou outra,
[...] conferem ao indivíduo sua dignidade de ser humano;
operam a passagem da natureza à cultura, do animal ‘estúpido’

221
CÉSAR SABINO

ao homem civilizado. Em seguida, diferentes quanto ao estilo


e à composição [...] expressam, numa sociedade complexa, a
hierarquia dos status. Possuem, assim, uma função sociológica.
(LÉVI- STRAUSS, 2000, p. 183)
O desenho pode significar, para aquele que o tem em seu corpo,
uma iniciação, o pertencimento, a identificação e a aceitação em um grupo
determinado:
[...] mandei esse dragão porque todo o pessoal que conheço tem
tatuagem na academia, e no tatame, os caras mais ‘feras’ têm
as mais ‘iradas’, as mais ‘maneras’... aí mandei esse dragão no
braço... agora quero fazer um pitbull aqui nas costas (Carlos. 23
anos. Estudante, fisiculturista amador e lutador de jiu- jitsu).
Também:
[...] ah, fiz a borboleta na nuca ano passado... a galera toda lá
do curso tinha, aqui na academia as garotas todas têm tattoo e
piercing, cê sabe, né? É moda, sei lá... aí eu mandei essa aí na
nuca e depois botei o piercing no umbigo... minha mãe reclamou
muito, não me deu o dinheiro pra fazer, aí eu comecei a vender
uns colares e pulseiras que eu mesma fazia e juntei dinheiro e fiz.
(Tatiana. 18 anos. Estudante).
Ainda:
Eu tava a fim de fazer porque sempre achei bacana; aí, minhas
amigas todas fizeram e os namorados acharam ‘maneiro’; aí juntei
dinheiro e fui no Banzai [loja de tatuagem situada no bairro da
Tijuca] e fiz essa flor aqui na virilha [vira abaixando um pouco
a bermuda de lycra e mostrando a tatuagem]. Doeu muito, cara,
uma dor horrível, mas valeu a pena (Carol. 24 anos. Advogada).
A figura estampada na pele permite a distinção como signo que liga
a outros signos de consumo representantes de ideologias processadas pela
mídia, delimitando as fronteiras identitárias. Assim, o
[...] sofrimento de ser escrito pela lei do grupo [a dor] vem
estranhamente acompanhado por um prazer, o de ser reco-
nhecido, de se tornar uma espécie de palavra identificável e
legível numa língua social, de ser mudado em fragmento de
um texto anônimo, de ser inscrito em uma simbólica sem
dono e sem autor (CERTEAU, 2002, p. 232).

222
DROGAS DE APOLO

Essas mensagens, não raro, estão relacionadas a uma suposta rebeldia


presente nos movimentos estético-musicais de massa:
[...] eu tenho o Bob Marley nas costas, ainda não acabei de fazer,
vai demorar um tempo porque tem que colorir toda e é grande,
pega toda as costas como cê tá vendo, né? Mandei essa tattoo
por que gosto de reggae, me identifico com a mensagem do Bob,
desde moleque eu gosto... de vez em quando aperto um, claro,
né?, Pra acalmar... então a tattoo tem tudo a ver...é um lance
cabeça e pele, sei lá. (Filipe. 24 anos. Estudante, fisiculturista
e skatista amador).
[...] esse duende no meu braço direito tá ‘carburando’ [fumando
maconha], tá vendo? E aqui no esquerdo eu tenho a planta [vira
mostrando um desenho de uma folha de cannabis], fiz as duas
quando tinha dezoito anos porque desde moleque eu gosto de
punk e rock pesado, tenho uma banda e todo mundo lá da banda
fuma de vez em quando, eu não podia ser diferente. (Rafael. 28
anos. Economista).
Perguntados se o uso de maconha não era uma contradição com a
prática esportiva, todos aludiram ao uso de esteroides anabolizantes como
pior do que a “erva” como sugere este relato, um entre muitos:
[...] todo mundo se droga aqui... chega o verão e até a ninfetinhas
tomam bomba pra ficar saradas [...] por que eu não vou fumar um
baseado de vez em quando pra relaxar? A erva é natural, não faz
mal, já bomba é sintética, dá câncer e o c***** a quatro. (Fábio.
30 anos. Funcionário público).
Representações e práticas, portanto, podem ser sugeridas pelos sím-
bolos que os integrantes desse grupo urbano inscrevem na pele. As tatua-
gens mais comuns entre os fisiculturistas e frequentadores assíduos das
academias são aquelas que, para eles, expressam força, autoridade e poder;
esse último se relaciona diretamente à virilidade. Pode-se dizer que, junto
a esses símbolos epidérmicos por nós destacados, também aparecem aque-
les ligados ao uso das drogas: ratos com corpo de fisiculturista e duendes
musculosos fumando maconha, além de cogumelos de todos os tamanhos
em alusão ao alucinógeno chá de cogumelo e o próprio desenho da planta
cannabis sativa. Essas alusões ao mundo das drogas merecem uma hipótese.
O rito de iniciação de um marombeiro – aquele que vem a se tornar um
usuário, praticante ou frequentador assíduo das academias (os professores
de educação física sempre chamam de aluno), futuro fisiculturista – está

223
CÉSAR SABINO

relacionado ao uso coletivo, e por vezes compartilhado, dos esteroides.


A maioria dos fisiculturistas utiliza essas substâncias para melhorar sua
performance. A convivência com esse mundo repleto de substâncias quí-
micas é, portanto, fato cotidiano e praticamente inevitável para os atuais
frequentadores assíduos das academias de musculação, visto que o próprio
uso coletivo desses “elixires da força” e da saúde, compreendida enquanto
boa forma, constitui-se em um dos principais fatores de aceitação e cons-
trução de identidade do grupo. A droga, portanto, como já disse, faz parte
do processo ritual de iniciação, rito de instituição, estando presente, de
forma duradoura, no cotidiano dessas pessoas.
Tatuar sobre os músculos símbolos relacionados ao consumo de drogas
reitera e afirma o pertencimento do tatuado àquelas estruturas objetivas e
subjetivas que o perpassam e o constituem. Quando a tatuagem fala sobre
a iniciação às drogas, ela articula um processo que permite ao tatuado se
fazer e se perceber como parte de um grupo. A tatuagem, no caso dos fisi-
culturistas, pode representar uma extensão e complemento do significado
dos músculos e de tudo aquilo que está envolvido no seu cultivo. Figuras
de cães ferozes, caveiras e cruzes, morte, e símbolos de super-heróis, tigres,
panteras e dragões, motivos indígenas ou das sociedades do pacífico, enfim
animais ou emblemas considerados perigosos, desafiadores ou misteriosos
podem dizer, de acordo com Diógenes (1998): cuidado sou perigoso! O cão
pitbull, por exemplo, tido por eles como um dos mais ferozes e de tempe-
ramento explosivo, surge na fala dos marombeiros como símbolo de força
e daquilo que consideram qualidades: agressividade, destemor, ferocidade
e potência: “esse pitbull aqui [aponta para a panturrilha] é o meu mascote...
ele me dá força” (Pedro. 25 anos. Estudante). Ou:
A tattoo dessa fera aqui, no braço [...], nesse braço aqui, é do
meu pitbull [...] eu me identifico com essa raça de cachorro, tem
um movimento aí que quer acabar com eles, já ouviu falar, né?
Dizem que o bicho é violento e coisa e tal, mas não vão conseguir,
a gente que luta, que malha que gosta de esporte radical, a gente
se amarra nesse bicho, vamos continuar criando. Ele é meio que
nosso símbolo... forte. A mordida dele tem mais de uma tonelada
de pressão, é isso aí, quero que meu soco também fique com uma
tonelada de pressão [...] (João. 28 anos. Comerciante).
No caso feminino, as figuras remetem à delicadeza, sensualidade,
proteção e submissão. Desenhos que parecem acentuar esteticamente a
feminilidade – os encantos, particularmente, para os olhos de determina-

224
DROGAS DE APOLO

dos homens, ou de um tipo de masculinidade, do que para eles é a mulher


(FREYRE, 1986). Figuras que, como mostra o quadro anterior, são inscri-
tas, geralmente, em regiões específicas do corpo: quadris, ventre, nádegas,
seios, virilhas, coxas, nuca. Se no caso masculino os desenhos ressaltam a
muscularidade e a masculinidade de regiões do corpo que representam
a virilidade e a força, portanto a honra de ser homem, no caso feminino,
os desenhos muitas vezes parecem destacar o inverso, ligando o poder
feminino diretamente à sedução e à sexualidade. Para os marombeiros, a
tatuagem torna-se um adorno para as qualidades físicas diretamente ligadas
ao gênero e às hierarquias de poder e relações de força e dominação a ele
inerentes. Mesmo aquelas figuras unissex, que poderiam dar a impressão de
mudança de condição disfarçada pela mudança de posição, são inscritas nas
regiões específicas do corpo nas quais ficam demarcadas as peculiaridades
do poder feminino radicado na dependência da dominação masculina.
O desenho aí surge como adorno das qualidades sensuais e sedutoras da
mulher – mesmo quando suposto sinal de “liberação” – sugerindo que o
uso do corpo e da estética feminina continua subordinado e radicado no
ponto de vista masculino:
[...] o corpo feminino, ao mesmo tempo oferecido e recusado,
[nos jogos de sedução], manifesta a disponibilidade simbólica
que [...] convém à mulher, e que combina um poder de atração
e de sedução...adequado a honrar os homens de quem ela
depende ou aos quais está ligada, com um dever de recusa
seletiva que acrescenta ao efeito de ‘consumo ostentatório’ o
preço da exclusividade (BOURDIEU, 1999, p. 40-41).
Demarcar regiões corporais que parecem ser o alvo da cobiça sexual
masculina funciona como uma potencialização da sedução:
[...] a gente faz tatuagem na nuca, na virilha, perto do bumbum...
é claro, né? São lugares de mulher fazer tattoo [...] por quê? Porque
dá um tchan, destaque naquela parte que você acha que você tem
de legal, que atrai os caras e deixa as mulheres com inveja, que te
dá [...] charme... Se a mulher tem uma cintura bonita, fininha, um
quadril largo, ela manda logo uma tribal no cóccix ou na cintura
uma inscrição. Se ela tem um peitão bacana manda uma no peito,
e aí vai [...] sacou? Muita mina diz que faz na nuca, no cóccix
que é pra não enjoar da tattoo, porque ali ela não fica vendo o
[...] tempo todo, tudo bem, pode até ser, mas é muito mais pra dar
um destaque naquela parte do corpo que ela acha legal. (Juliana.
20 anos. Estudante).

225
CÉSAR SABINO

Contudo nem todas criam um argumento a respeito da função da


tatuagem: “fiz tattoo porque gosto, não tem por que [...] achei legal e mandei
no tornozelo e panturrilha, depois esse ideograma na nuca que quer dizer vida
e amor; é isso fiz porque fiz, e pronto” (Mariana. 25 anos. Jornalista). Desse
modo, ao se servir do seu próprio corpo a mulher tatuada, ao menos nesse
caso específico, parece naturalizar uma ética estruturada culturalmente
que a constrói como ser-para-o-outro. A tatuagem surge como uma espécie
de adorno que realça e sensualiza determinados dotes físicos conferindo
à portadora o poder (ou o contrapoder75) e o quantum da sua feminilidade
construída como complemento e contraposição da masculinidade que a
define e a qual ela deve seduzir.
No entanto, não é esse aspecto de similitude entre supostas qualida-
des animais e humanas que organiza, de maneira efetiva, a realidade das
pessoas em suas relações sociais por intermédio da arte epidérmica; mas
esse é apenas o sentido que essas pessoas conferem à realidade de suas rela-
ções. É preciso compreender a lógica inconsciente que sustenta o processo.
Confusão similar fez a antropologia conceber, por exemplo, o totemismo
como a relação direta entre qualidades animais e qualidades sociais. Na
verdade, segundo Lévi-Strauss (1975a, p. 102): “não são as semelhanças,
mas as diferenças que se assemelham”. O que interessa mais ao pesquisador
é entender o funcionamento da lógica classificatória que utiliza animais,
plantas e fenômenos diversos como elementos relacionais diversos (o
pensamento elaborando oposições, contraposições, associações, disjunções
etc.) para ordenar o mundo, e não repetir que existe uma relação direta de
homologia ou similaridade entre os termos76. A lógica inconsciente presente
nas tatuagens ordena a diferença e a singularidade daqueles que utilizam
os signos marcando suas distinções e articulando nesse processo relações
de poder constitutivas das hierarquizações do pensamento e das práticas
sociais e individuais. Não é porque pareço um pitbull que adoto sua imagem
como signo, mas é porque o pitbull faz oposição à fada que o adoto como
operador de minha distinção social em relação àquelas pessoas que usam

75
Bourdieu escreve: “simbolicamente votadas à resignação e à discrição, as mulheres só podem exercer algum
poder voltando contra o forte sua própria força, ou aceitando se apagar, ou, pelo menos, negar um poder que
elas só podem exercer por procuração (como eminências pardas)” (1999, p. 43).
76
É o que difere em cada série que é significativo. As séries de diferenças percebidas no mundo natural, entre
animais, plantas, fenômenos etc. servem de código para instituir e designar as diferenças no mundo sociocultural.
As semelhanças são entre dois sistemas de diferença, portanto. Assim se pode significar as diferenças relativas
à sociedade, ou suscitá-las, se necessário for, por intermédio das diferenças repertoriadas do mundo natural.
(HÉNAFF, 2000, p. 407)

226
DROGAS DE APOLO

o signo da fada ou algo similar. Nesse movimento, as imagens também


agem, não apenas são agidas, induzindo pessoas a se relacionarem posto
que as classificam de uma forma ou outra em estilos estéticos inerentes a
uma época, um grupo, uma classe, etnia ou cultura, movimentando-as em
relações hierárquicas de reciprocidade (MAUSS, 1974c; LÉVI-STRAUSS,
1975a; 1976b; GELL, 1998; BOURDIEU; DARBEL, 2007). Preciso frisar
que a tatuagem (assim como o piercing do qual não trato aqui), ao mesmo
tempo que fornece um sentimento de singularidade ou individualização
ao ator social, classifica-o em um grupo; o que sugere que a ação social,
ou a liberdade de ação, sempre se realiza dentro e a partir de uma margem
estruturada na qual o capitalismo, em um processo de adequação, adapta-se a
toda forma de vanguarda e rebeldia que contra ele pode se posicionar, trans-
formando-a em mercadoria ou bem de consumo. Com efeito, constituiu-se
um grande mercado de tatuagens no qual se pode comprar sua “liberdade”
estética customizada e alimentar seu sentimento de diferença sem perceber
que ele já está perpassado pela axiomática capitalista do lucro. Essa “ética
da dissidência”, que busca um espaço alternativo no mundo (FERREIRA,
2007, p. 321), sugere que todo e qualquer movimento de desconstrução ou
contrapoder não pode se pautar por fórmulas ou modelos definitivos de
ação; como se a mudança social, ou mesmo revolucionária apresentasse um
esquema definitivo de transformação social. O capitalismo apresenta um
devir constante de adequação a tudo que se coloca nele e contra ele. Uma
espécie de cismogênese (BATESON, 2006, p. 219; DELEUZE; GUATTARI,
2010) na qual, para cada movimento do oponente, é realizado um con-
tramovimento de adequação e absorção mercadológica por aquele que é
atacado. Ser tatuado era uma forma de marcar sua exclusão, marginalidade
e discordância em relação ao sistema. Atualmente virou uma moda que em
nada choca ou abala as estruturas de poder simbólico, porém o contrário:
pode representar uma adequação ao atual vasto e caro mercado da rebeldia
de butique. A rebeldia de fato, ao menos em seus primórdios, jamais pode
ser institucionalizada e continuar como tal.

5.2 TATUAGEM E LÓGICA DA IDENTIDADE

A classificação triádica (tatuagem de homem, tatuagem de mulher e


unissex), representada pelas figuras desenhadas na pele, tanto de homens
quanto de mulheres, talvez faça alusão a uma maleabilidade classifica-
tória relacionada à conquista feminina da igualdade entre os sexos. Essa

227
CÉSAR SABINO

ambiguidade ilusória apenas reitera que a mulher mudou de posição,


mas não mudou de condição, pois a disciplina que tradicionalmente
se impõe ao seu corpo, delimitando sua situação em contraposição à
condição masculina, ressalta a significação moral inscrita não apenas na
sua aparência mas também em seus atos: costas a serem mantidas retas,
andar requebrado e malemolente, quadril empinado, ausência de barriga,
pernas fechadas ao sentar, seios propositadamente enfatuados, olhares
de soslaio etc., como se a feminilidade se medisse pela arte de se fazer
delicada ou pequena (BOURDIEU, 1999; SIMMEL, 1993). Essas técnicas
do corpo feminino têm por efeito paradoxal, por meio da demonstração
de disciplina e contenção, da oferta e da negação da oferta, da suposta
dissimulação, concretizar e reiterar a ordem da sedução e da beleza social-
mente construída, mostrando e demonstrando, mesmo que circunstancial
e sorrateiramente, os atrativos do corpo relacionados diretamente a sua
sexualidade, como se toda mulher fosse seu sexo.
Tem sido comum à sociologia, e por vezes à antropologia (principal-
mente a denominada antropologia urbana, mas não apenas), a abordagem
teórica que generaliza, ou universaliza, a dominação masculina típica de
sociedades complexas. Assim, grosso modo, procede as abordagens de
Lévi-Strauss, (embora tenha dito que inverter os termos de gênero em nada
mudaria a lógica do parentesco), e Bourdieu. Porém, novos estudos direcio-
nados às sociedades tribais não estratificadas da Amazônia e Nova Guiné
não aceitam plenamente tal proposição de universalidade, reiterando que
nessas sociedades, em geral, as relações entre os gêneros são permeáveis e
mais equilibradas (OVERING, 1984; LAGROU, 1998; VIVEIROS DE CAS-
TRO, 2002e; GONÇALVES, 2001). De acordo com os autores, esse aspecto
pode ser percebido, por exemplo, nas práticas do “couvade”, quando, após
o parto, o homem também fica de resguardo; essa prática seria inerente
às sociedades nas quais as tarefas sexuais são relativamente flexíveis e o
poder e o status feminino, altos. A couvade talvez sirva para estabelecer as
tarefas do pai na vida da criança e para equilibrar as funções masculinas e
femininas na criação dela.
Outro comportamento ritual que demonstra a imitação masculina do
poder reprodutivo feminino é o “saignade”, ritual de sangramento que imita
a menstruação. Embora o sangue menstrual seja universalmente temido
em geral, em muitas culturas acredita-se que ele carrega grande poder,
como fonte e causa da saúde superior das mulheres e também causa do
seu rápido crescimento. Assim, entre os Menihaku da Amazônia, existem
228
DROGAS DE APOLO

inúmeras ocasiões nas quais os homens menstruam simbolicamente, sendo


a mais significante o ritual de perfuração das orelhas. Entre os Sambia das
terras altas da Nova Guiné, o sangue menstrual também é identificado
com a vitalidade e a longevidade das mulheres. Para garantir saúde similar
e longevidade, os homens Sambia produzem um ritual doloroso e brutal
de imitação da menstruação; nesse, provoca-se o sangramento do nariz
nos jovens durante cerimônias de iniciação (COUNIGHAN, 1996). Essa
mesma sacralidade do sangue menstrual, e exaltação do poder feminino, foi
percebida por Osório (2002) em relação ao grupo de praticantes da bruxaria
moderna no Rio de Janeiro, denominado Wicca. Contudo, se as relações
são maleáveis e mais igualitárias, há sempre uma espécie de negociação de
práticas em um estado instável de poder.
A tatuagem unissex pode conferir ilusão igualitária a quem apressa-
damente a observa, posto haver nela uma suposta maleabilidade simbólica.
Porém, o problema da lógica triádica, nas classificações dos desenhos da
epiderme, remete diretamente às classificações ternárias destacadas no pen-
samento selvagem estudado por Lévi-Strauss (1975a; 1975b), que sugeriu
o caráter contínuo (ou de continuidade dinâmica do mundo) do raciocínio
selvagem: “as sociedades que denominamos primitivas não concebem que
possa existir uma fossa entre os diversos níveis de classificação; representam
[estes níveis] como as etapas ou os momentos de uma transição contínua”
(1975a, p. 202). De acordo com o autor, na classificação primitiva, não há a
concepção estática da realidade, o contrário das classificações bodybuilders
– mas essa é percebida como processo dinâmico, devir, com ausência de
elementos formais estanques, como poderia sugerir uma análise apressada
do binarismo presente nas temáticas estruturalistas. A binaridade lógica, ou
as partições ontológicas, apresentaria uma solução original no pensamento
selvagem: sendo relação entre contínuo e descontínuo, o universo estaria
“representado em forma de um continuum composto de oposições sucessi-
vas” (1975a, p. 205). As oposições binárias estáticas não estariam presentes
nessa onto-lógica na qual a identidade não seria nada mais do que um caso
momentâneo do devir, fluxo ou diferença.
É certo que uma antropologia das sociedades complexas, ou urbanas,
não deveria se preocupar apenas em encontrar, nas culturas e sociedades
nacionais de tradição cultural europeias ou eurasiáticas, a mesma lógica,
ou sentido, constatada entre os “primitivos”, mas, ao contrário, buscar as
diferenças entre tais sociedades. Uma concepção nublada do estrutura-
lismo, apontada por Viveiros de Castro, levou inúmeros pesquisadores
229
CÉSAR SABINO

de sociedades complexas, de modelos europeus ou asiáticos, a fazerem


projeções de termos de uma cultura para outra. Esse equívoco apenas
demonstra que uma projeção efetiva deveria ser a do tipo geométrico em
que as relações fossem preservadas e não os termos:
[...] o ‘equivalente’ do xamanismo ameríndio não é o neo-
-xamanismo californiano, ou mesmo o candomblé baiano.
O equivalente funcional do xamanismo indígena é a ciência.
É o cientista, é o laboratório de física de altas energias, é o
acelerador de partículas. O chocalho do xamã é o acelerador
de partículas de lá. (VIVEIROS DE CASTRO, 2002c, p. 489).
Provavelmente, a tradicional busca das culturas ocidentais pelo imu-
tável, característica da metafísica e da cultura ocidental, possa ser expressa
pelas tatuagens circunstanciais – é o nome dado às tatuagens em frases. Essas
buscam eternizar um instante da vida (circunstâncias), um momento, uma
data, uma relação por meio da fixação na pele de um nome, ou mesmo um
texto, às vezes com supostos poderes mágico-protetores. Apresentar-se-iam
sempre em forma de dizeres e dísticos que podem vir a compor ou não textos,
ao contrário dos outros modelos de inscrição epidérmica. Um fisiculturista
e instrutor de musculação de uma academia no bairro do subúrbio exibe,
além de outras tatuagens espalhadas pelo corpo, uma escrita circunstancial
com letras góticas com a palavra culturismo no antebraço:
Mandei escrever culturismo no antebraço para todas as pessoas
verem que a musculação e o fisiculturismo são a minha vida, a
razão do meu viver; tudo que tenho consegui por intermédio do
que faço... então mandei escrever isso aí, pra todo mundo ver...
ainda quero mandar escrever o nome da minha mãe nas costas,
ela pra mim é mulher mais importante da minha vida (Pedro.
35 anos. Instrutor de musculação).
Ainda uma aluna assídua das salas de musculação da mesma academia:
Eu tatuei na minha pele o que tenho na minha mente: palavra
Deus em inglês... tatuei porque acho que tenho que lembrar a todo
instante dele, agradecer o que tenho, saúde pra correr atrás do que
preciso, por isso tatuei no pulso... também pra todo mundo ver que
me protejo, sei lá, é meio amuleto também... um poder superior
que você carrega no seu corpo. (Carol. 18 anos. Estudante).
Se, a respeito das tatuagens e pinturas entre tribos “primitivas” e
neotribos urbanas, uma projeção apressada fosse feita, provavelmente
se concluiria que a classificação triádica das tatuagens remeteria a uma
230
DROGAS DE APOLO

concepção dinâmica de universo, na qual a diferença se apresentaria como


constitutiva da realidade. Porém não é isso que ocorre. Se os termos forem
deixados de lado e as relações transpostas, perceberemos que, apesar de
possíveis semelhanças nas classificações entre fisiculturistas e ameríndios,
a lógica relacional de um e de outro é simetricamente invertida. O aspecto
triádico ameríndio está relacionado ao continuum da realidade compreen-
dida como processo e instabilidade; esse, por sua vez, manifesta-se, tanto
em um grupo quanto em outro, pela ampla variedade de desenhos que, se
algumas vezes possuem os mesmos conteúdos (tema), variam amplamente
na forma (estilo). Por exemplo, entre os índios do grupo Pano na Amazônia,
as imagens corporais permitem a identificação imediata do grupo ao qual
pertence o indivíduo:
[...] particularmente elaboradas são as tatuagens dos diversos
grupos da área Juruá-Purus, caracterizadas por motivos
angulares [...] cuja composição varia de grupo para grupo,
tornando possível a imediata identificação” (SIGNORINI,
1968, p. 179 apud ERIKSON, 1986, p. 192).
Similarmente, as tatuagens entre os praticantes frequentes das aca-
demias de fisiculturismo cariocas classificam indivíduos pertencentes a
subgrupos específicos em uma lógica de “assimilação do mais longínquo
conjuntamente a uma diferenciação máxima vis-à-vis do próximo” (ERIK-
SON, 1982, p. 192). Os mesmos desenhos, com suas variantes, podem ser
encontrados entre subgrupos diferentes da mesma forma que no seio de
um mesmo subgrupo podem coexistir motivos bastante diferentes. Uma
águia pode ser representada de inúmeras maneiras, aludindo a significados
distintos para seções distintas, ou ter o mesmo significado para um grupo
específico, porém representada por estilos diferentes; formas que tendem
a demarcar a singularidade daquele que porta o desenho. Essa diversidade
entre os ameríndios faz alusão à lógica da diferença presente entre eles e
na qual o mundo é visto e compreendido como fluxo, e o que para nós é
considerado natureza, para eles existe enquanto totalidade em devir; “um
todo interconectado de seres não-humanos com intencionalidade e agên-
cia semelhantes à nossa, capazes de adotar um ponto de vista” (LAGROU,
1998, p. 164).
Philippe Descola sugere a existência de modelos diversos de “ecologia
simbólica”: a naturalista (ocidental) na qual vigora uma relação metonímica
e natural entre natureza e sociedade; sendo a realidade, em última análise,

231
CÉSAR SABINO

radicada na Natureza: os seres humanos teriam sua “essência” biológica


como animais, diferenciando-se deles apenas pela Cultura. A abordagem
“totêmica”, na qual a relação é puramente diferencial e metafórica, sendo uma
série comparada por analogia a outra série e, por último, o modo “anímico”
(vigentes nas cosmologias amazônicas) em que a relação Natureza/Cultura é
metonímica e social, ou seja, inversamente às cosmologias ocidentais, essas
últimas compreendem o cosmos como Cultura e não Natureza. Objetos e
animais teriam sociedades e se veriam como coletividade social; o animismo
seria, portanto, um sociocentrismo (DESCOLA, 1992; 1996; VIVEIROS DE
CASTRO, 2002e). O processo é conhecido como perspectivismo ameríndio
e poderia ser resumido da seguinte forma:
O estímulo inicial para esta reflexão foram as numerosas
referências, na etnografia amazônica, a uma concepção
indígena segundo a qual o modo como os seres humanos
vêem os animais e outras subjetividades que povoam o uni-
verso – deuses, espíritos, mortos, habitantes de outros níveis
cósmicos, plantas, fenômenos meteorológicos, acidentes
geográficos, objetos e artefatos -, é profundamente diferente
do modo como estes seres vêem os humanos e a si mesmos.
Tipicamente, os humanos, em condições normais, vêem os
humanos como humanos e os animais como animais; quanto
aos espíritos, ver estes seres usualmente invisíveis é um signo
seguro de que ‘condições’ não são normais. Os animais pre-
dadores e os espíritos, entretanto, vêem os humanos como
espíritos ou como animais predadores: o ser humano vê a
si mesmo como tal. A lua, a serpente, o jaguar e a mãe da
varíola o vêem, contudo, como um tapir ou um pecari que
eles matam, anota Baer sobre os Machiguenga. Vendo-nos
como não-humanos, é a si mesmos que os animais e espí-
ritos vêem como humanos. Eles se apreendem como, ou
se tornam, antropomorfos quando estão em suas próprias
casas ou aldeias, e experimentam seus próprios hábitos e
características sob a espécie da cultura: vêem seu alimento
como alimento humano (os jaguares vêem o sangue como
cauim, os mortos vêem os grilos como peixes, os urubus
vêem os vermes de carne podre como peixe assado, etc.),
seus atributos corporais (pelagem, plumas, garras, bicos, etc.)
como adornos ou instrumentos culturais, seu sistema social
como organizado identicamente às instituições humanas
(com chefes, xamãs, ritos, regras de casamentos, etc.). Esse
‘ver como’ refere-se literalmente a perceptos, e não analo-
gicamente a conceitos, ainda que, em alguns casos, a ênfase

232
DROGAS DE APOLO

seja mais no aspecto categorial que sensorial do fenômeno;


de qualquer modo, os xamãs, mestre do esquematismo cós-
mico dedicados a comunicar e administrar as perspectivas
cruzadas, estão sempre aí para tornar sensíveis os conceitos
ou inteligíveis as intuições. Em suma, os animais são gente,
ou se vêem como pessoas. Esta concepção está quase sempre
associada à ideia de que a forma manifesta de cada espécie
é um envoltório (uma roupa) a esconder uma forma interna
humana, normalmente visível apenas aos olhos da própria
espécie ou de certos seres transespecíficos, como os xamãs.
Quando estão reunidos em suas aldeias na mata, p. ex., os
animais despem as roupas e assumem sua figura humana.
Em outros casos a roupa seria como que transparente aos
olhos da própria espécie e dos xamãs humanos. (VIVEIROS
DE CASTRO, 2002, p. 350-351).
Essa lógica diverge daquela presente na tradição principal da filoso-
fia ocidental e no seu senso comum. Praticantes de fisiculturismo, como
quaisquer outros, prezam por um paradigma classificatório identitário,
entendido (de forma avessa à dos ameríndios) enquanto negação da dife-
rença, da instabilidade, da mudança e do devir; busca constante da essência
imutável do cosmos e de todas as coisas, essência que, em último caso,
remete a um Deus ou Ser imutável. Enquanto, para um grupo, o movimento
expresso pela variação infinita de formas com o mesmo tema significa o
ser da diferença; para outro, o mesmo movimento busca demarcar a iden-
tidade do Ser contra a diferença, compreendida como um erro em relação
ao imutável ou Mesmo. A tatuagem expressaria a concepção inconsciente
de que o cosmos não é um devir, um tornar-se imanente, e sim parte volátil
de uma realidade metafísica essencialmente imutável. Se, no pensamento
domesticado ou dito ocidental, a identidade é ausência de diferença, o que
leva à busca da essência estática do cosmos, no pensamento ameríndio a
identidade é um caso particular, circunstancial e delimitado da diferença,
o que o faz perceber os seres humanos, animais e todas as coisas como
fluxos interconectados, intercambiáveis e intermitentes (VIVEIROS DE
CASTRO, 2000a).
Sem embargo, repetimos a mesma variabilidade, praticamente infinita,
das figuras tatuadas, existente entre as culturas expressando, em última
análise, sentidos opostos. No caso dos fisiculturistas (e frequentadores em
geral), essa variabilidade é representada pelo fato de o mesmo desenho ser
realizado em estilos diversos (tradicional, oriental, new school, tribal etc.).

233
CÉSAR SABINO

Há, por exemplo, o estilo tribal que pode ser visto em variações, tais como
a celta, a samoana ou taitiana; há o estilo biomecânico que representa
figuras com formas cibernéticas; há o oriental com desenhos inspirados na
arte chinesa e japonesa mormente da Yakusa (no caso japonês), e assim por
diante. Esse movimento – de variação da forma e do estilo – é compreendido
pelo fisiculturista como busca pela demarcação identitária que delimita a
singularidade da sua pessoa vista como essência eterna e marca desejante da
estabilidade e não como demonstração da diferença e do devir imanentes
ao mundo – processo que ocorre no caso ameríndio no qual “a distância
intensiva e extrínseca entre as partes converte-se em diferença intensiva,
imanente a uma singularidade dividida” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002f,
p. 293). Enquanto a variabilidade e a continuidade para um significam o
próprio movimento cosmológico, o movimento incontornável do universo;
para outro constituem-se como busca pela singularidade identitária, marca
de uma “essência” imutável da natureza- algo inexistente no pensamento
indígena. Se a singularidade é, e afirma, o processo, em um aspecto; em
outro, o processo deve ser negado pela própria busca da singularidade
identitária do Mesmo.

5.3 MAGIA CAPILAR

O corpo está no social e o social está no corpo. O agente se sente


em casa no mundo – em seu grupo, classe, sociedade etc. – porque esse
mundo está nele sob forma de ação, classificação e percepção deste próprio
mundo. Assim, “as injunções sociais mais sérias se dirigem ao corpo e não
ao intelecto” (BOURDIEU, 2001, p. 172). A percepção que o indivíduo tem
da realidade (inclusive a percepção estética) está diretamente relacionada
às estruturas classificatórias apreendidas mediante a socialização; as estru-
turas materializam-se na prática por meio dos, e nos, corpos. É na ação
pedagógica cotidiana – na concretude das práticas sociais – que o corpo e
o espírito do agente são moldados.
Sem embargo, determinados itens, artigos de consumo, ou mesmo
condutas características de parcelas dominantes constitutivas das socie-
dades complexas, são adquiridos e imitados pelas camadas mais baixas
com o objetivo de acionar a distinção característica das relações cotidianas
de poder. A moda se produz quando um grupo ao qual são conferidos o
conhecimento e o reconhecimento de elegância e bom gosto tem seu estilo
de vida imitado. Contudo, como ela é basicamente distinção social, ao ser

234
DROGAS DE APOLO

imitada pelos grupos considerados socialmente inferiores, o grupo que dita


e autoriza a moda abandona o item anterior transmitindo autoridade de
distinção a outros modos de expressão social, desautorizando, assim, o modo
anterior. A magia social de itens temporários, mas de significados constan-
tes, confere àquele que utiliza determinado artigo, ou atitude distintiva, um
suposto poder por extensão. A marca, a etiqueta – em seu duplo sentido de
comportamento e de símbolo de consumo –, ou a atitude corporal, confere
ao usuário que domina o saber de utilizá-las o poder que elas representam
(BOURDIEU, 1983; RODRIGES, 1980). Essa distinção relacionada porta
o paradoxo de inscrever o indivíduo em um grupo social determinado,
diluindo-o em uma coletividade, ao mesmo tempo individualizando-o e
distinguindo-o do grupo:
[...] cada forma essencial da vida na história de nossa espécie
há suposto, em seu próprio âmbito, uma maneira peculiar
de conjugar o interesse pela permanência, a unidade e a
igualdade com o interesse pela variação, a particularidade e
a singularidade” (SIMMEL, 1991, p. 27).
Assim, a moda relaciona-se com os sistemas de valores, as dimensões
afetivas e cognitivas da realidade social, expressando o paradoxo da busca
pela individualização, pela singularidade, ao mesmo tempo representando o
pertencimento a uma tendência coletiva. De acordo com Leach, a dimensão
simbólica não só “diz” alguma coisa, como também desperta emoções e,
consequentemente, “faz” alguma coisa, faz acontecer coisas. Para o autor,
“a essência do comportamento simbólico público é que ele é um meio de
comunicação; o ator e sua plateia compartilham uma linguagem comum,
uma linguagem simbólica” (LEACH, 1983, p. 141). Leach aponta para o fato
de que o cabelo é um símbolo universal; e o penteado, uma característica
bastante difundida do comportamento ritual. Em sociedades tradicionais,
mudanças marcadas por penteados acompanham, em geral, mudanças de
status sexual que ocorre na puberdade e no casamento; contudo o padrão
varia. No adulto, a idade é marcada pelo cabelo cortado ou amarrado, mas
algumas vezes são as crianças que usam cabelos curtos, enquanto adultos
deixam os cabelos caírem soltos sobre o pescoço. Lévi-Strauss (1975a), por
outro lado, sugere, mediante a análise dos cortes de cabelo das crianças osago
e omahas, que a forma desses cortes servem para destacar o pertencimento
do indivíduo às seções das aldeias; ou seja, sob a forma dos cortes e a esté-
tica, há uma lógica universal que permite a classificação característica das
sociedades humanas. Além disso, da mesma forma que a tatuagem e a moda,
235
CÉSAR SABINO

o corte de cabelo, em um processo paradoxal, serviria para singularizar e


coletivizar simultaneamente.
O cabelo é um dos mais poderosos símbolos de identidade indivi-
dual e social. Poderoso, primeiro, porque é físico e extremamente pessoal;
segundo porque, apesar de pessoal, é também público, muito mais do que
privado. As efetivas hierarquias sociais são simbolizadas por intermédio da
capilaridade. Gênero, ocupação, idade, fé, etnia, status socioeconômico e
até mesmo orientação política, além de disposições e gostos pessoais – que
não deixam de remeter às classes sociais – significam posições na gramática
social, radicando-se nas relações de poder e força constitutivas das relações
entre as pessoas, organizações e instituições. Existe mesmo a possibilidade
de elaboração de uma teoria do cabelo que sugeriria uma tríade de oposições
sintetizadas da seguinte forma: 1) sexos opostos tendem a ostentar formas
opostas de organização capilar; 2) o cabelo da cabeça e o cabelo do corpo
tendem a ter significados opostos; 3) concepções de mundo opostas tendem
a ostentar formas opostas de cabelo (SYNNOT, 1993; LEACH, 1983). De
acordo com Synnot, a complexidade do simbolismo capilar é possível por
duas razões distintas: primeiro, embora cabelo cresça na maior parte do
corpo, em termos simbólicos, ele pode ser dividido em três macrorregiões de
significado social, que podem ser subdivididas em outras: o cabelo da cabeça,
o cabelo da face (barba, sobrancelha, bigodes, costeletas, buços, cavanhaques,
cílios etc.) e o cabelo das regiões distintas do resto do corpo (peito, coxa,
canela, braço, axilas, costas). Cada uma dessas três regiões possui significado
ideológico e de gênero. Segundo, o cabelo pode ser modificado de várias
maneiras: comprimento, da máquina zero (careca) até os quadris ou mais;
cores, formas e estilos podem ser modificados, e até mesmo a quantidade
do cabelo pode variar ao ser transformada pela utilização de cabelos artifi-
ciais, de outros e apliques. Essa variabilidade possibilita a enorme riqueza
simbólica desse instrumento de comunicação que é o cabelo.

5.4 O CABELO DO MALHADOR

Nas academias de musculação de fisiculturistas, o cabelo possui um


grande poder de comunicação e de consagração de hierarquias. Os homens,
em geral, usam os cabelos muito curtos e, não raro, é comum vê-los de cabeça
raspada ou com cabelo cortado à máquina, (frequentemente máquina dois ou
mesmo um). Essa disciplina capilar pode estar relacionada à forte exigência
de disciplina cotidiana para aqueles que desejam construir musculatura

236
DROGAS DE APOLO

hipertrofiada. Excessos de gordura e de cabelo são execrados pelos fisicul-


turistas, como se fossem itens profanos de sua cosmologia. Já em relação
às mulheres, um certo excesso em relação à capilaridade é interpretado de
forma diversa; elas usam cabelos longos que em geral prendem em rabos de
cavalo ou deixam soltos. Há, também entre elas, uma espécie de fixação por
cabelos longos, lisos e claros, de forma que tinturas e alisamentos de todos
os tipos são muito comuns – há que se reiterar que essa era a moda daquele
momento. Se há, por parte de muitas delas, a tendência de preferir cabelos
claros, entre eles ocorre o contrário. Os cabelos são escuros ou grisalhos,
salvo raríssimas exceções, descoloridos propositalmente, quase brancos. Há
que ser ressaltado o fato de que aqueles indivíduos (tanto homens quanto
mulheres) de maior destaque entre os frequentadores assíduos das academias
são justamente os que lançam e seguem essas modas capilares. Em geral,
copiam e adaptam o estilo e a moda de algum fisiculturista internacional
visto em revistas ou campeonato internacional transmitido por canais de
televisão a cabo ou internet. Assim, um processo de difusão estética realiza-se
do mais destacado para o menos destacado, do centro para a periferia, em
um movimento de consagração de instâncias identitárias que tendem a ser
tornar globalizadas articulando, por intermédio da magia social, aquele ato
que “traz a existência a coisa nomeada” (BOURDIEU, 1989, p. 116). Essa coisa
nomeada só existe socialmente devido ao fato de que aquele que a nomeou
tem o reconhecimento e, portanto, a autoridade, conferida por aqueles
que acreditam em suas palavras e ações de nomear e fazer existir coisas e
comportamentos mediante o poder de suas palavras. Ato de magia social,
no qual o contexto é fundamental para conferir poder e autoridade àquele
que é autorizado (LÉVI-STRAUSS, 1976a). Synnot destaca que, nos EUA
e na Inglaterra, a divisão capilar de gênero é manifestada no fato de que as
mulheres buscam manter seu corpo com total ausência de pelos, enquanto
homens cultivam cabelos nos peitos pernas e costas, significando virilidade
e sensualidade. Se mulheres usam muito cabelo na cabeça e procuram não
usar quase nenhum no corpo; homens, por sua vez, buscam tê-los em pouca
quantidade na cabeça e muita quantidade no corpo.
No caso das academias estudadas, o processo toma aspecto diverso
desse destacado pelo autor. Os fisiculturistas depilam ou raspam os pelos
do corpo procurando não deixar qualquer fiapo despontando em sua epi-
derme – Segundo eles, isso auxilia na percepção e destaque dos músculos.
Porém, entre as mulheres, é muito comum cultivo de alguns pelos – que
são constantemente alourados e descoloridos – do joelho para cima, no
237
CÉSAR SABINO

ventre, (próximo ao umbigo) e na região do cóccix. Essa pelugem, entre elas,


não raro pode assumir características relacionadas à sensualidade, posto
constituir-se como item simbólico ligado à beleza feminina. Sem embargo,
enquanto homens tornam-se depilados e lisos por todo o corpo, as mulheres
deixam determinadas regiões, que representam e destacam simbolicamente
sua sexualidade (ventre, coxa e ancas), recobertas com pequenos pelos em
geral alourados – mesmo que artificialmente. Longe de representarem
virilidade, como poderia supor um analista apressado, os pelos corporais,
nesse caso, representam o contrário, a feminilidade. Já a ausência de pelos
entre os homens não desvaloriza sua masculinidade, mas, inversamente, é
buscada por todos aqueles que cultivam o corpo musculoso. Vale ressaltar
que vem surgindo a moda do uso de barba, embora entre fisiculturistas não
tenhamos visto. Contudo canelas e axilas femininas devem estar sempre
lisas, sem nenhum pelo, enquanto nenhum homem deve raspar ou depilar
suas axilas, exceto em épocas de competição. Há que se ressaltar que o uso
de esteroides anabolizantes à base de testosterona provoca aumento de pelos
por todo o corpo – embora, com muita frequência, provoque calvície ou
alopecia androgênica – tornando o usuário em excesso quase inevitavel-
mente peludo; o fato dificulta o processo de depilação e raspagem corporal
por parte desses homens. Não é incomum, quando o movimento de alunos
é grande, perceber homens totalmente lisos com pequenos cortes em bra-
ços, ombros, peitos e pernas provocados pelo uso excessivo de aparelhos
de escanhoar utilizados por todo o corpo. Se, em alguns grupos sociais, o
excesso de pelo masculino faz alusão direta à masculinidade, esse não é
necessariamente o caso entre os fisiculturistas. Também as mulheres dizem
apreciar homens sem pelos corporais, falam que não gostam de bigodes e
barbas e têm nojo daqueles que possuem pelos nas costas: “Detesto homem
peludo demais, parece macaco, urso, sei lá. Argh, esse estilo Tony Ramos, me dá
um nojo [...] hummm. Bigode? Piorou!!! Parece que cê tá beijando vassoura!!!”
(Cássia. 19 anos. Estudante). Outra disse:
Me dá nojo [...] aquele cabelo nas costas e no peito, saindo pela camisa,
nossa! É horrível, eu detesto homem peludo, eu detesto. Gosto de
homem lisinho, por isso que gosto de marombeiro, eles têm o maior
corpaço e não têm pelos, o único problema é que quando os pelos
estão crescendo começam a espetar. (Ana. 25 anos. Jornalista).
Com efeito, é preciso situar historicamente essas preferências estéticas
relacionadas à moda. Durante a década de 70 do século XX, o gosto deve
ter sido oposto ao desses anos 90 e início de 2000. Cada época tem seu belo
238
DROGAS DE APOLO

e feio, seu objeto cobiçado e asqueroso, sendo que isso muda a ponto de
um tornar-se outro com o tempo. Sobre as coisas consideradas nojentas,
é sempre necessário perguntar quando, como e por que elas são nojentas
e como e quando deixam de ser nojentas (DOUGLAS, 1976). As práticas
corporais são comportamentos rituais sustentados por crenças míticas. A
sociedade asseptizada é automaticamente uma sociedade hierarquizada. A
luta contra a poluição, diz Rodrigues (1980; 1995), está sempre associada
ao estabelecimento de um poder (religioso, econômico, administrativo),
ao advento de figuras poderosas (xamãs, heróis, líderes, chefes, visitas) e
ao crescimento e à reprodução de uma determinada ordem social. Assim,
depilar o corpo não deixa de constituir-se rito cotidiano de purificação dos
fisiculturistas. Eles necessitam estar lisos para que seus músculos apareçam
com mais definição e clareza. Sua muscularidade é ostentatória, portanto
pública; toda sua construção física é uma construção para o espetáculo da
forma, da estética construída pelos pesos das anilhas e aparelhos. Músculos
e pelos são itens antagônicos nesse sistema classificatório, contrapõem-se
como o público e o privado, o positivo e o negativo. Embora o cabelo da
cabeça seja símbolo para o coletivo; na lógica dos frequentadores de aca-
demias, os pelos corporais masculinos podem representar a dimensão da
interioridade, da privacidade, da intimidade e do particular. Como exten-
são da interioridade, portanto daquilo que não deve ser dado a público,
o excesso de pelo corporal masculino pode causar asco àqueles que com
eles se deparam nas salas de musculação. Depilar-se, raspar-se, para esses
homens, é um ato de higiene, de despoluição corporal. Da mesma forma,
o pelo das canelas femininas e axilas representam, para o grupo em geral,
algo impuro que não deve ser apresentado publicamente. Por outro lado,
“o que é puro em relação a uma coisa pode ser impuro em relação a outra
e vice-versa” (DOUGLAS, 1976, p. 21). Se o cabelo da canela e das axilas é
impuro, remetendo muitas vezes, entre os informantes, ao nojo, o do ventre
é quase sacralizado. Durante o verão, em uma espécie de variação sazoneira
(MAUSS, 1974), tornam-se mais perceptíveis quando as mulheres estão
com a pele mais escura e com roupas menores do que em outras épocas
do ano. Para ressaltar a considerada sensualidade do ventre, existem ainda
piercings de umbigo que são utilizados por quase todas as frequentadoras
assíduas das academias. Dessa forma, pelos alourados e piercings sacralizam
uma das regiões consideradas símbolos da feminilidade: o ventre. Ocorre o
mesmo processo com coxas e quadris (cóccix) e, com frequência, antebra-
ços, femininos em que a pelugem dourada recobre a forma, destacando as

239
CÉSAR SABINO

regiões ligadas à sexualidade, portanto cobiçadas por aqueles que produ-


zem e reproduzem esses sistemas objetivos e subjetivos de classificações
higiênicas capilares.
Junto aos – e além dos – pelos estrategicamente alourados e posicio-
nados, os homens das academias tendem a exaltar o cabelo longo, liso e, algo
muito comum, louro das mulheres, visto como sinônimo de feminilidade,
de “capricho”, cuidado de si, limpeza e sensualidade: “Cabelo comprido é
demais, lisinho, macio cheiroso, é muito lindo... mulher pra ter cabelo curto tem
que ser muito bonita senão fica muito sem graça...” (Fábio. 30 anos. Funcionário
público). Outro fisiculturista falou:
[...] eu sou muito louco por mulher de cabelo comprido e louro, é
muito sensual, sei lá, mais feminino [...] quando eu saio na night, e
vejo um cabelão louro já ligo logo o radar... fico ligado na mulher...
só filmando [olhando] se for bonita dou logo o bote, chego junto,
tento aproximação...desfilar com um mulherão louro do lado dá
a maior presença, abala geral. (João. 28 anos. Comerciante).

5.5 A LOURA VIRTUAL

O cabelo louro e comprido, não necessariamente liso – embora toda


uma parafernália de alisamento capilar seja articulado constantemente –,
exerce grande fascínio sobre homens e mulheres dedicados ao cultivo da
forma e da muscularidade. Porém, longe de ser apenas uma manifestação
da preferência estética atual das academias, o cabelo louro, desde o final do
século XIX, tem sido no Brasil, em geral, principalmente entre as mulheres,
um item de consumo e busca de distinção entre as classes em ascensão. Nas
salas de musculação, spinning e ginástica, contudo, uma quantidade signi-
ficativa de mulheres tinge e alisa o cabelo e transita por tais instituições
ostentando douradas madeixas raramente legítimas. Certa vez, por exemplo,
em uma tarde de agosto de 2002, contei, em uma dessas salas, 21 mulheres,
17 dentre elas com cabelo tingido de louro; dentre as 17, oito poderiam ser
consideradas afrodescendentes, que, além de tingidos, tinham os cabelos
alisados. Mas como compreender o motivo pelo qual as pessoas de um país
que tradicionalmente diz se orgulhar de suas morenas, mulatas e negras
tenderem a cultivar, na prática, essa espécie de obsessão pelo modelo de
cabeleira lisa escandinava? O que simboliza o cultivo das claras madeixas
por mulheres ligadas à transformação da forma física padronizada pelas
academias de musculação e fisiculturismo?

240
DROGAS DE APOLO

No final do Império, o Brasil foi invadido por uma série de inovações


técnicas que visavam à melhoria da condição industrial. Nessa época, quase
tudo era importado da Europa; desde sapatos, descascadores, ventiladores
para produtos agrícolas até o gosto pela cerveja. Armarinhos elojasimpor-
tavam as novidades das estações, o que era chic em Paris era importado e
consumido pelas elites nacionais. A máquina de costura Singer permitia
às costureiras copiarem todos os francesismos utilizados pelas damas da
corte (DEL PRIORE, 2000). Gilberto Freyre sugeriu que, nesse processo de
consumo das coisas que vêm de fora, chegaram as bonecas louras, francesas
e de porcelana e olhos azuis que passaram a povoar o cotidiano e o imagi-
nário das meninas abastadas. De acordo com o autor, o culto “das bonecas
sempre louras e sempre de olhos azuis” (FREYRE, 1986, p. 98) deve ter
concorrido para contaminar algumas dessas garotas com certo arianismo
para desenvolver no espírito dessas meninas e futuras mães a idealização
de crianças que nascessem louras e crescessem parecidas com suas “bonecas
francesas louras e róseas” (FREYRE, 1986. p. 33; 1990 apud DEL PRIORE,
2000, p. 102). Deslumbradas com o possível desenvolvimento e progresso” da
sociedade brasileira, a elite paulista e carioca via, nos modelos de consumo
europeus, o paradigma a ser seguido. As teses racistas de branqueamento
populacional (eugenismo) disseminaram-se entre a intelectualidade que
associava o atraso do país à presença efetiva de negros e índios. Oliveira
Vianna foi um dos expoentes tardios desse pensamento; sua antropologia
do tipo lombrosiano relacionava tipos físicos com comportamentos sociais.
Para ele o componente europeu pode ser caracterizado do ponto de vista
antropológico em dois grupos: os homens altos, dolicoides e louros que
“devem preponderar na classe aristocrática: na nobreza militar e feudal da
península e os homens brunos, dolicóides ou braquicóides que formam a
base das classes médias e populares” (VIANNA, [1922] 1956, p. 126-127 apud
LARAIA, 1997, p. 30). Oliveira Vianna, expressando o eurocentrismo das
elites do início do século XX, demonstrava, como era comum, predileção
especial pelos povos germânicos, porque, mesmo admitindo que a popula-
ção portuguesa teve uma formação étnica complexa, fruto de um intenso
caldeamento de raças, o autor afirmava que, na fidalguia peninsular da era
dos descobrimentos, dominavam os descendentes dos velhos conquista-
dores germânicos: godos, suevos, normandos e borguinhões (VIANNA,
1956 apud LARAIA, 1997, p. 28). Após ligar (pode-se dizer de forma quase
alucinada sem qualquer comprovação documental) a conquista dos sertões
à ancestralidade germânica dos primeiros colonizadores, Vianna destaca

241
CÉSAR SABINO

que os “dolicóides louros [são] capazes de grandes façanhas, suficiente-


mente heroicos para vencer os grandes desafios [...]”. De acordo com ele,
“a presença nas suas veias [dos primeiros colonizadores] de glóbulos de
sangue germânico bem lhes poderia explicar a sua combatividade, o seu
nomadismo [...]”. Os caucasoides de pele e cabelo mais escuros seriam menos
nobres; enquanto os primeiros constituiriam naturalmente a aristocracia,
os segundos se deteriam em ocupações menos nobres como o comércio e
os ofícios manuais (VIANNA, 1956 apud LARAIA, 1997, p. 34).
Dada, de acordo com sua perspectiva, a suposta superioridade dos
louros germânicos sobre o resto da humanidade, Vianna é pouco simpático
com índios e negros culpados de conferir ao Brasil “caos [...] confusão e
discordância [já que] sua capacidade de civilização [principalmente a dos
negros, destaca], sua civilizabilidade, não vai além da imitação, mais ou menos
perfeita, dos hábitos e costumes do homem branco” (VIANNA, 1956 apud
LARAIA, 1997, p. 31-32). Diante dessa ideologia racista que, desde o século
XIX, reinava nas percepções sociais da elite nacional, a obsessão pela moder-
nidade e civilização sempre ligada ao que de mais branco poderia existir
em cultura, etnia e sociedade, levou essa mesma elite a propor imigração
de colonos europeus para o país com o objetivo de transformar a naciona-
lidade brasileira em “branca, civilizada e superior”, como sugeria Joaquim
Nabuco (DOS SANTOS, 1997, p. 46; SANT’ANNA, 1995). Incomodada com
a miscigenação e africanização da população e preocupada em construir
uma nacionalidade que supunha superior, portanto branca, a elite propõe
a vinda massiva de imigrantes, sobretudo alemães, considerados modelos
exemplares de eugenia – não por acaso as regiões do Sul do Brasil repletas
de terras devolutas tornaram-se destino de grande número de colonos de
origem germânica (SEYFERTH, 1999; 2012; NICOCELLI, 2012).
Para arrematar o processo de embranquecimento, ou clareamento
populacional, em conformidade com os objetivos e o imaginário eurocên-
trico das elites brasileiras, promove-se, nesse mesmo período, a vinda de
prostitutas francesas, alemãs, russas e polonesas. Começa assim a surgir e
se consolidar a moda da loura (DEL PRIORE, 2000), símbolo máximo de
superioridade étnica para as concepções de cunho positivista da época, signo
do sucesso civilizacional, das nações consideradas superiores, poderosas e
desenvolvidas, representantes do poder europeu e da supremacia germânica.
Louras passaram a povoar o desejo mais íntimo dos homens brasileiros
morenos e invejadas pelas brasileiras das classes altas que desejavam ser
brancas, refinadas e platinadas. Os jovens rapazes da elite paulista, por
242
DROGAS DE APOLO

exemplo, sonhavam iniciar-se no mundo sexual pelas mãos de europeias


experientes e viajadas, embora também jovens, que poderiam trazer-lhes,
além dos prazeres do amor, o vislumbre da cultura civilizada supostamente
concretizada nos bordéis pela presença dessas valquírias hetairas, de car-
nes brancas, cabelos claros e sotaque carregado, consideradas símbolos da
modernidade77 (RAGO, 1991). Era como se brancura, progresso e superio-
ridade pudessem ser adquiridos por osmose paga ou comprada.
Processo similar ocorria no Rio de Janeiro. Modernização para a elite
carioca significava romper com o que julgavam ser os imobilismos afro-indí-
genas e caminhar no sentido do progresso, em busca do estabelecimento de
uma sociedade de moldes europeus. Nesse aspecto, o mito da superioridade
europeia reproduziu-se nas fantasias sexuais das camadas mais altas da
sociedade carioca (MENEZES, 1990). A partir de 1867, começaram a chegar,
ao porto do Rio de Janeiro, as chamadas, à época, “polacas”, jovens do leste
europeu, frequentemente judias (muitas louras e ruivas) e que constituíram a
maioria das mulheres vendidas no tráfico de escravas brancas para a América
do Sul. A vida profissional dessas mulheres era gerida, na maioria das vezes,
por empresários também judeus78 que prometiam marido e vida nova na
América – não especificavam qual, se a do Norte ou do Sul – para meninas
pobres dos territórios judeus da Rússia ou Polônia para depois violentá-las
e mandá-las para bordéis do Rio de Janeiro ou Buenos Aires. Mas, como em
tudo que se relaciona ao social, havia hierarquia no consumo da carne das
mulheres europeias. O paradigma de “Civilização” era a França, e deitar-se
com uma francesa custava caro. Destarte, a alta prostituição, o meretrício de
luxo, estava repleto de francesas, mulheres caras. Já as mulheres da Europa
77
A historiadora Margareth Rago mostra o “poder” dessas prostitutas estrangeiras: “quando a loira parisiense
Marcelle d’Avreux descia as escadas da Pensão Milano, propriedade de Mme. Serafian, em direção ao carro que a
esperava na porta, na Rua São João, n. 30, escandalizava os provincianos de São Paulo dos inícios do século [XX].
Todos os olhares se voltavam para suas roupas coloridas e extravagantes e para seu enorme chapéu enfeitado
com longas penas de avestruz – as pleureuses –, cuidadosamente encrespadas e emendadas para parecerem mais
longas e caras. Ao lado de outras cocotes de fama internacional, como se acreditava, a cançonetista Jeanne Peltier,
Mimi Turris, Maria Cabaret, Hèléne Chauvin, recém-chegada de Paris, costumada desfilar pela cidade [...] Quem
sorria eram os ‘coronéis’ recém-chegados do interior, deslumbrados com o visual moderno que coloria seus
olhos [...] e a jeunesse dorée, esperançosa de encontrar alguns flertes e fugazes aventuras românticas” (RAGO,
1991, p. 33). Aspecto um pouco diverso destaca a historiadora Lená Medeiros de Menezes sobre a prostituição
de estrangeiras no Rio: “Cissi Gutridge, menor de idade, havia fugido de sua casa no interior da Inglaterra, indo
para Londres, onde foi deflorada por indivíduo que depois a vendeu, por 2 libras, a Laura Scunkler, austríaca,
meretriz residente no Rio de Janeiro. Esta a seduziu com promessas de muito dinheiro e jóias, trazendo-a para
o Rio e estabelecendo-a em sua casa, onde passou a explorá-la e a viver do produto de seu corpo [...] Laura ia a
europa, de vez em quando, buscar mulheres” (MENEZES, 1990, p. 137).
78
O termo popular carioca para gigolô, cáften, ou cafetão, advém de caftan, traje tradicional usado pelos judeus
do leste europeu (NEEDELL, 1993, p. 323).

243
CÉSAR SABINO

Central eram usufruídas por homens das camadas médias. Da mesma forma,
as brasileiras ricas procuravam parecer o máximo com francesas. Segundo
Jeffrey Needell (1993), as mulheres da elite carioca eram fac-símiles, mais
ou menos bem-sucedidos das parisienses, tentando imitá-las de todas as
formas possíveis, comprando as modas provenientes da França e adotando
os modos “civilizados” de sua aristocracia. Assim, as prostitutas dos locais
frequentados pelos homens dessa elite eram, em geral, de origem francesa.
Claras amostras humanas daquilo que era considerado o “berço da Civi-
lização”. Com efeito, de acordo com o historiador, as prostitutas gálicas
poderiam, supostamente, ensinar os cobiçados refinamentos civilizados
aos seus clientes. A paixão por essas mulheres, seus cabelos claros, sua
brancura, idioma e comportamento, revelava o fetichismo da elite brasileira
pelos valores eurófilos. Esses homens do paroxismo eugênico imaginavam
absorver a suposta superioridade étnica e sociocultural por intermédio do
sexo que louras europeias lhes vendiam.
A partir da década de 30 do século XX em diante, com o crescimento
da hegemonia cultural americana, o poder capilar das platinum blondes
torna-se ainda mais intenso, embora com modulações de sentido e signi-
ficado de acordo com a mudança do polo de poder mundial para os EUA.
As faces rosadas das estrelas de Hollywood e da indústria musical passam,
uma após outra, a dominar o imaginário de homens e mulheres nacionais:
Jean Harlow, Marlene Dietrich, Anita Eckberg, Jane Mansfield, Doris Day,
Marylin Monroe, Ursula Andress, Jane Fonda, Madonna, passando por
Cameron Diaz, Britney Spears, Reese Whitherspoon, Nicole Kidman e
daí vai, talvez mudando um pouco nos últimos tempos. Simultaneamente
ao sucesso das louras na mídia, aprimoram-se os produtos químicos que
permitem àquelas que não o são converterem-se ao brilho do blonde power.
Nesse processo, o cabelo louro, e preferencialmente liso ou ondulado,
foi tornando-se cada vez mais, símbolo de status e sedução. No Brasil, apesar
do tão propalado ideal multicultural de igualdade entre tipos étnicos dife-
rentes, há uma hierarquia estético-capilar claramente admitida. Basta assistir
às produções cênicas brasileira durante algumas horas para perceber que a
pele branca e, principalmente, a “lourice”, são valorizadas (EDMONDS, 2002;
JARRIN, 2017a). Essa hierarquia radicada na germanidade e capilaridade
dourada pode ser notada no fato de que os dois atuais modelos femininos
mais incensados de beleza, das décadas de 90 do século XX e inícios dos 2000,
têm pele branquíssima, cabelos louros e olhos azuis: Gisele Bündchen e Xuxa
Meneghel. No patamar subsequente, estão as mulheres brancas de cabelos
244
DROGAS DE APOLO

escuros e olhos claros, como Adriana Lima, Ana Paula Arósio e Daniela
Cicarelli; logo em seguida, vêm as morenas e, abaixo de todas, as mulatas.
Segundo Burdick, “estão excluídas da classificação as mulheres de cabelo
duro, crespo, pele muito escura e traços faciais africanos, como nariz largo e
achatado” (2002, p. 196). A incensada “beleza negra”, em geral, é representada
por mulatas com traços faciais próximos aos caucasoides. Ela, a mulata, está
presente com mais frequência na mídia em geral, no período do carnaval e,
após a onda da folia momesca, retorna para a lanterna da hierarquia estética
midiática da qual as negras estão excluídas. Em geral, é apenas nesse período
ritualístico de inversão da estrutura social (DA MATTA, 1991) que brasileiros
de tons mais claros exaltam a negritude e sua mistura étnica como positiva,
para logo depois retornarem à estrutura neoescravocrata que constitui as
relações sociais do Brasil que negativam o ser negro.
Alguns relatos dos informantes são sugestivos a respeito deste índice
étnico que pode ser acessado ou não, quando convém à manipulação da
identidade do agente social que assim resgata a imagem que lhe apraz em
um determinado momento das relações sociais. A louridade, assim como a
negritude, parece ser um coringa no jogo brasileiro da legitimidade nacional.
Assim, parece que, dependendo da situação, ter antepassados negros ou
brancos pode ser muito positivo ou muito negativo. Esses elementos que
povoam o imaginário da maioria podem ser considerados uma espécie de
excelência que não está diretamente relacionada à legitimidade direta da
cor do cabelo ou da pele. Perguntadas por que clareiam o cabelo algumas
entrevistadas disseram:
Não sei! Tá na moda.... Acho que ser loura é legal porque eu fico
bem, me sinto bem assim. Quando eu nasci eu era loura, tinha
cabelo lourinho, aí foi escurecendo, então no fundo eu acho que
sou loura, [risos], mas não sei, me sinto bem e isso é o que importa,
porque depois que eu clareei o cabelo muito mais caras passaram
a olhar pra mim, pode ser que seja porque eu me sinto bem ou
porque eles gostam de louras [risos]. (Carina. 26 anos. Advogada).
Ainda:
Eu clareio meu cabelo porque eu me sinto loura [...] não consigo
mais me conceber morena [...] meu cabelo é castanho escuro, mas eu
me sinto loura [...] acho que ser loura é um estado de espírito. Não
adianta a mulher pintar o cabelo de louro se ela não se sente loura,
se não tem alma loura, ser loura é [...], como poderia dizer, é [...] ter
charme, seduzir, chamar atenção. Entende? A loura chama mais

245
CÉSAR SABINO

atenção. Se você tá superloura, com o cabelo bem claro, bronzeadona,


coloca um vestido justinho, um salto [...], chega num lugar, numa
festa, num barzinho, pronto! Todo mundo fica te olhando, você
chama a maior atenção (Sandra. 21 anos. Estudante).
Eu tenho o cabelo claro já, só que clareio mais, me sinto legal...
mas acho que não é qualquer uma que pode sair botando o cabelo
louro, tem que ter alguns requisitos... uma pessoa muito morena
por exemplo, não fica legal loura, não fica bem, é meio caricatura,
né? Se bem que agora até preta tá pintando o cabelo de louro, né?
Acho que pra ser loura o resto tem que combinar, senão, não dá
mesmo. Tem que ser clara ou ter um olho claro pra combinar; se não
fica esquisito. Outro dia li não sei onde, acho que foi numa revista,
que pra clarear o cabelo a mulher nem precisa ser loura, mas tem
que ter alma loura, é isso: pra pintar o cabelo de louro tem que ter
alma loura, senão não adianta” (Patrícia. 29 anos. Economista)
Os relatos masculinos ressaltam aspectos diversos desse imaginário
e mentalidade:
Eu adoro loura! [...] não sei por quê [...] acho que é por causa daquele
jeitinho [...] que elas têm [...] não sei. Mistura de ingenuidade
com sensualidade.... é isso. A loura parece ingênua, mas não é.
Tem aquele ar desprotegido e insinuante, isso me atrai, fico doido
quando vejo uma lourinha com esse jeitinho de ‘me protege, me
leva pra casa, cuida de mim [risos] (Pedro. 33 anos. Fisiculturista
amador e administrador de empresas).
Sou doido por uma loura... cabelo dourado me deixa louco [...] ainda
mais se for daqueles compridos, ah meu Deus, fico doido! Não sei
por que, acho que todo mundo gosta de loura, por mais que diga que
não; cê vê só, observa só, esses jogadores de futebol, ainda mais se for
preto, o cara fica rico arranja logo uma loura. Um carro importado
e uma loura pra namorar... não é? Acho que ter uma loura do lado
é símbolo de riqueza, de poder, sei lá, meu irmão [...] vai ver que é
isso, só sei que eu gosto muito [...] (Carlos. 41 anos. Fisiculturista
amador e proprietário de academia de musculação).
Se não é mais, de forma explícita, o ideal eugênico que move os
homens e mulheres a gostarem e se identificarem com louras, permanece,
no imaginário das camadas médias urbanas, a mística da louridade, com
toda a hierarquia capilar e, por conseguinte, toda a relação de poder estético
que ela estabelece. Tendo se tornado símbolo do sucesso, o cabelo louro
ainda chega a ser separado da etnia, tornando-se por si só, um sinal de
distinção da mulher:

246
DROGAS DE APOLO

[...] eu sei que não sou branca, meu pai é negro, eu sou mulata
[...] sou criloura! [risos]. Eu pinto meu cabelo de louro não é
porque quero ser branca, eu amo minha cor. Se tivesse na moda
pintar de azul, eu pintaria, se fosse verde, eu pintaria [...] o louro
pra mim é só uma cor que tá na moda, nada mais [...] Já pintei
de vermelho, mas não deu certo. Gosto como tá agora [...] é mais
um acessório, como usar uma pulseira, um vestido, é isso. Eu me
sinto mais bonita loura do que com outras cores. Eu sou mais
vista assim [...] com cabelo louro chamo atenção e me sinto mais
sexy (Josiane. 24 anos. Estudante).
O cabelo louro, nas sociedades de consumo que as academias de fisi-
culturismo, de certa forma, representam, é mais uma marca, uma espécie
de etiqueta capilar identitária a ser consumida. Na lógica das relações de
poder e distinção delimitada por esse símbolo (e pela qual é delimitado), não
é qualquer mulher que pode ostentá-lo com eficácia, segundo as informantes,
mas apenas aquelas que trazem a “magia” da chamada “essência loura”. Em
outras palavras, a legitimidade do cabelo louro não se resume exclusivamente
a sua originalidade ou autenticidade étnica, mas a um habitus cultivado e
apreendido representado pela postura corporal que constrói a mulher sensual
e reduzida ao seu sexo como portadora dos fios dourados, mesmo se sua
sensualidade estiver associada nessas representações à negritude suposta
do brasileiro miscigenado. Esse fetiche humano, objeto de prazer, tem, nas
suas técnicas corporais de sedução que o constituem, o simbolismo imanente
de uma suposta louridade (“alma loura” ou uma virtualidade loura, diria)
que transcende a raça, e a própria cor natural dos cabelos, para encarnar-
-se em gestos que, no caso aqui estudado, dependem do status masculino
para fiador de sua condição power blonde. Todo esse processo de exaltação
da branquitude, quando conveniente, e por consequência da lourice como
signo estético positivo, parece remeter a um dos elementos imaginários da
cultura brasileira que, influenciada por um lado pelo positivismo, e, por
outro, pela longa escravidão que perpassou a maior parte de nossa histó-
ria, manteve representações raciais de longa duração que vivem ainda nas
mentes e corpos, nos costumes e práticas nacionais, pautando as relações
de dominação em suas mínimas instâncias institucionais e organizacionais,
capturando as subjetividades de dominantes e dominados em uma hierar-
quização micropolítica que termina por reproduzir nos mínimos detalhes
comportamentais e no raciocínio cotidiano a estrutura social de uma das
mais desiguais sociedades do mundo.

247
CAPÍTULO VI

Adoto, portanto, o ponto de vista de que a inclinação para a agressão


constitui, [...] o maior impedimento à civilização.
(Sigmund Freud)

6 ELOGIO À BARBÁRIE

Se bárbaro é, em primeiro lugar, o homem que crê na barbárie (LÉVI-


STRAUSS, 1976), a princípio os bodybuilders poderiam, e gostariam, de
serem chamados de bárbaros por pertencerem a uma cultura que, ao mesmo
tempo, faz apologia e despreza – dependendo das circunstâncias – aquilo
que entende como tal. Os grupos sociais que integram as chamadas socie-
dades complexas de origem europeia veneram concepções de progresso
e evolução linear. Nesse contexto, essas concepções estão relacionadas às
ideias de prosperidade, perfectibilidade e felicidade. Civilização e progresso
parecem constituir categorias mestras do jargão do senso comum. Palavras
mágicas que sugerem o advento do reino da felicidade (ARENDT, 1990). Ser
chamado de “progressista”, “evoluído”, passa a ser um dos maiores elogios;
estando o “bárbaro” e o “selvagem”, situados em uma dimensão oposta, e
mesmo ameaçadora, à ordem e ao progresso do sistema social.
Entre os fisiculturistas, essa ideologia está sempre presente por inter-
médio do constante elogio aos produtos desenvolvidos pela ciência, os quais
têm por função otimizar a construção do corpo e da forma. Por outro lado,
há a peculiaridade relacionada ao simbolismo da força, da virilidade e da
conquista do sucesso presente em todo o imaginário fabricado pela indústria
da propaganda que articula imagens de corpos fortes e saudáveis. Ser bárbaro,
nesse caso, pode significar estar mais próximo da força e do vigor animal,
ser audaz, grosso, rústico e temido, portanto, em determinados momen-
tos, representar a positividade. Símbolos são fluidos, maleáveis, voláteis e
ambíguos. Se o sistema cultural comum às sociedades complexas ocidentais
é marcado – uns mais outros menos – pelo racionalismo e formalismo
contrapondo-se teoricamente à contradição – sendo o fisiculturismo uma
expressão particular desse processo civilizatório –; no caso específico dos
bodybuilders ou marombeiros, esse aspecto surge portando um paradoxo.

249
CÉSAR SABINO

Segundo Elias e Dunning (1990; 1994; s/d), as sociedades complexas


ocidentais passaram por uma esportificação que, por um lado, serviu como
uma espécie de antídoto catártico para o excesso de autocontrole exigido
pelo cotidiano burocratizado e opressor e, por outro, como interiorização
de regras de diversão que passaram a circunscrever a violência em um
determinado espaço (ringues, estádios, clubes etc.) promovendo a modera-
ção e impedindo o amplo uso da mesma violência publicamente. Contudo,
os autores também apontam uma regressão desse processo civilizatório;
regressão manifesta não apenas, por exemplo, pelo surgimento do nazismo,
mas pela aparição, por exemplo, dos hooligans nos estádios de futebol ou das
torcidas organizadas que travam verdadeiras batalhas. Os sintomas dessa
regressão, em escala microssociológica, talvez possam ser percebidos nos
temas a serem tratados a seguir.
Quando, em agosto de 2000, efetuei matrícula em uma das academias
de fisiculturistas pesquisadas percebi que, apesar de ela ter o mesmo aspecto
das outras – muitos pesos (anilhas), quase todas as paredes espelhadas, mui-
tas máquinas de musculação e fachada de cores vibrantes –, algo diferente
concretizava-se nas atitudes e posturas daqueles que permaneciam em seu
interior. Mulheres, quase não havia; e aquelas que lá estavam ostentavam
musculosidade muito acima do que as praticantes de academias de muscu-
lação em geral portavam. O ambiente rústico, um grande galpão construído
no interior do que havia sido uma ampla casa, apresentava uma ar mais
denso (como se uma briga pudesse acontecer a qualquer momento) do que
o dos outros lugares79; desde o tipo de música popular despejada dos auto-
falantes nos cantos das paredes (heavy metal, techno, rap, hip-hop e funk80,
contrapondo-se ao pop, à música baiana e à dance das outras academias), à
aparência do professor (na realidade, um instrutor, também fisiculturista,
que nunca havia colocado os pés em uma faculdade de educação física como
orgulhosamente gostava de falar): uma massa de músculos com cabelos em
estilo militar descoloridos, quase brancos e arrepiados com gel, tênis Nike
de cor roxa e de cano longo, similar a uma botina, camiseta amarela aper-
tada e rasgada estrategicamente para realçar os músculos denominados de
trapézio e dorsal, bermuda colante de ciclista e várias tatuagens espalhadas
79
Os praticantes dessas academias denominam, em tom de deboche, “perfumarias” as academias que não são
voltadas diretamente, ou em parte, para o fisiculturismo. Dizem que tais academias são caras, limpas e cheirosas, mas
não dão resultado nenhum. Chamam os frequentadores de tais academias de “churriados”, “pangarés” e “frangos”.
80
Alguns grupos de música popular que pude identificar: AC/DC, Iron Maiden, Prodigy, dentre outros, além
dos chamados MCs de funk do momento. Funks e Raps produzidos nas favelas com letras explícitas de sexo e
violência, são apreciadas.

250
DROGAS DE APOLO

pelo corpo: um tubarão com a boca aberta com se fosse morder a presa no
braço direito, o símbolo do super-homem no braço esquerdo, o símbolo
dos X-men tomando quase toda a parte de trás da nuca e a figura de um cão
pitbull babando na panturrilha da perna esquerda. A pele desse homem, no
momento em que o avistei, pareceu uma síntese do imaginário adolescente
presente nos filmes de Hollywood e revistas em quadrinhos. Seu corpo era
um estandarte musculoso da indústria cultural. Mas ele não era o único.
Com o passar do tempo, as diferenças entre os tipos de academias
pesquisadas foram sendo ressaltadas. Por exemplo, as máquinas de fazer
exercícios – chamadas geralmente de “aparelhos” pelos usuários – estão
sempre com alguma parte suja de graxa, pois os praticantes limpam nelas
suas mãos quando encostam, ao se exercitarem, em alguma junção do
mecanismo. Jogar pesos no chão produzindo grande estardalhaço e berrar
na hora de levantá-los, ou berrar palavrões após os exercícios mais difíceis,
aplicar injeções de esteroides em público – certa vez um fisiculturista saiu, de
propósito e com ar de troça, do banheiro com uma injeção de decadurabolin
espetada no ombro esquerdo e gritou para todos: “Bomba!”81 –, arrotar e soltar
flatulências são atitudes comuns quando apenas o grupo de fisiculturistas
se reúne às tardes para treinar. Como manda o bom figurino relativista, o
antropólogo jamais julgaria essas atitudes como sendo de bárbaros, embora
aqueles que as pratiquem pudessem se sentir extremamente lisonjeados de
assim serem chamados nessas circunstâncias82. Ser comparado a Conan, O
Bárbaro, personagem interpretado por aquele que é considerado por eles o
maior ícone de todos os tempos, Arnold Schwarzenegger, ou demonstrar a
frieza e a atitude rude e, por vezes grosseira, de um Exterminador do Futuro,
81
Um dos principais fatores de distinção desse tipo de academia para outros mais comuns é o uso público de
esteroides anabolizantes, o que não ocorre em outros tipos de academias. Pessoas aplicando umas nas outras,
nos banheiros, vestiários, ou mesmo nas próprias salas de musculação, injeções intramusculares de testosterona
sintética contrabandeadas, algumas vezes de origem veterinária. Mais comum ainda é a presença de esparadrapo
nos ombros indicando recém aplicação. Ao contrário do que acontece em outras organizações voltadas para
as atividades físicas, a maioria dos praticantes não esconde o uso indiscriminado de substâncias para adequar
sua performance e forma aos altos padrões sociais exigidos. Ocorre intercâmbio de informações a respeito das
inúmeras maneiras de utilizá-las e de seus resultados, engendrando um vasto saber marginal sobre seus efeitos.
Usuários de longa data, os bodybuilders tornam-se especialistas, testando – como foi dito anteriormente – neles
mesmos os poderes químicos dos diversos produtos.
82
Não cabe neste espaço discutir o conceito de relativismo com sua gama de debates nas ciências humanas
e filosofia, essa questão já seria tema para outro livro. Apenas ressalto que utilizo o relativismo apenas como
método e de forma alguma como imperativo ético. O relativismo tomado dessa perspectiva leva a um pântano de
antinomias niilistas que nada contribuem para uma crítica antropológica consistente. Compreender o outro em
sua sociedade e cultura não significa necessariamente aceitar e adotar seus valores e crenças ou considerá-los
válidos como universais, o que seria apenas uma inversão lógica de termos. Para um debate mais aprofundado,
consultar: Nietzsche (1978a), Velho (1995), Geertz (2001), Sobrinho (2003) e Wolff (2004).

251
CÉSAR SABINO

filme protagonizado pelo mesmo ator, é uma lisonja para esses homens.
Imbuídos dessa força que julgam “selvagem”, esses indivíduos não hesitam
também em utilizá-la quando contrariados, de forma que presenciei inúme-
ros confrontos com empurrões e xingamentos que acabavam em expulsão
das academias, ou mesmo com a presença da polícia no recinto. Tatuagens
de animais ferozes e super-heróis recriados pela nova mitologia capitalista,
além de piercings, roupas rasgadas mostrando músculos e tudo o mais que
possa remeter a um sentido de força rústica e peso aludindo ao que por eles
é considerado selvagem ou bárbaro, portanto valorizado. No entanto, isso
não basta para que se possa compreender esse comportamento.

6.1 VIOLÊNCIA DIFUSA

Indivíduos manipulam códigos, fazem coisas diversas, ou as mesmas


coisas de modo diferente, segundo a presença ou ausência de determinadas
pessoas em determinados ambientes e recintos, escreve Rodrigues (1995).
Esse processo indica a existência de ambiguidades semânticas ou de alter-
nativas sintáticas pertinentes aos sistemas simbólicos. O fato de haver um
grande número de semelhantes, fisiculturistas, nessas academias faz com
que o formalismo se afrouxe. Sabe-se que, em ambientes, ou grupos sociais,
extremamente hierarquizados, são requeridos elevado grau de autocontrole
por parte dos indivíduos que tendem, então, a se expressarem com rígida
aplicação de regras de pureza e separação. A vigilância sobre os processos
orgânicos e os comportamentos menos formais torna-se alta (MAUSS, 1974;
DOUGLAS, 1976; DUMONT, 1993; RODRIGUES, 1995). O comportamento
dos fisiculturistas não é “informal” em academias nas quais constituem minoria
ou mesmo são rejeitados pelos proprietários. Por outro lado, esses homens
(e mulheres) encarnam as regras da construção corporal calcada naquilo
que consideram a muscularidade única e verdadeira, infringindo sobre seus
corpos uma forte disciplina. Sendo símbolos de excelência física para os
frequentadores em geral, têm inscritos em suas peles as estruturas objetivas
e subjetivas da sociedade que buscam afirmar, mesmo eventualmente culti-
vando atitudes algumas vezes por ela marginalizadas. Seguem códigos, com
rígidas aplicações de regras alimentares, de comportamento e exercícios, e a
espontaneidade é um luxo raro devido ao supremo objetivo que se colocam
de encarnarem a forma perfeita das fibras musculares. Quando em ambiente
no qual não necessitam representar o drama das hierarquias sociais, deixam
o corpo livre das regras e códigos rígidos.

252
DROGAS DE APOLO

A pureza reluzente, ascética e asséptica que necessitam apresentar


como imagem do poder corporal é, nesses momentos, abandonada em favor
da lassidão natural que iguala todos os seres. Porém, tal lassidão igualitária
logo é abandonada se algum ato venha a sugerir o esquecimento de que
aquela autoridade, embora suspensa, existe. Assim, a violência (agressões
físicas e verbais) aparece com a ultima ratio diante da ordem hierárquica
ameaçada. Victor Turner (1974, p. 133) escreveu que “em quase toda parte
se atribuem às situações e papéis liminares propriedades mágico-religiosas
[...] frequentemente consideradas perigosas [...] contaminadoras”. Há, por-
tanto, uma correlação entre a marginalidade social e um certo tipo de poder
que difere do utilizado nas estruturais formais de controle (FRY, 1982). O
estereótipo atual do bárbaro, anti-intelectual, distante da racionalidade,
grosseiro e violento, nem totalmente humano, nem totalmente animal, em
certos momentos, surge paradoxalmente no imaginário como ícone posi-
tivo de marginalidade. Imagem de alguém ou grupo que foge às estruturas
formais de controle. No entanto, a tentativa de fuga dessas estruturas pode
constituir-se como movimento deletério, perigoso, profano. Ser denominado
ou visto como um bárbaro pode ser estigma em determinadas circunstân-
cias e sinal de status em outras, justamente devido ao fato de apresentar
esse caráter deletério no sistema classificatório de uma cultura que crê ser
a única ou estar dentre as únicas civilizadas. Esse aspecto pode justificar a
busca, por parte dos fisiculturistas, pela aquisição dessa imagem. Aliás, o
problema do estigma tão bem analisado por Goffman (1982) alude ainda
ao caráter dúbio que o estigmatizado carrega: sagrado e profano como
elementos complementares. Da Matta (1987) chama atenção para a posi-
tividade do ambíguo presente na cultura brasileira. No triângulo amoroso
representado no romance de Jorge Amado, Dona Flor e seus Dois Maridos,
essa ambivalência é lida pelo antropólogo como complementar, sendo capaz
de reunir desejo e lei, liberdade e controle, trabalho e malandragem, sexo e
casamento, descoberta e rotina, excesso e restrição. O ambíguo é assumido
e até desejável, já que o ser humano é, ele mesmo, percebido como um ser
repleto de contradições.
A palavra civilizado é entendida, por parte da intelectualidade influen-
ciada pelo positivismo ou pelo hegelianismo, e grande parte do senso comum
pesquisado, como se associada às ideias de progresso e evolução linear, de
superioridade moral, educação erudita e razão avançada. Apesar de todo o
esforço da antropologia, essa concepção ainda reina soberana, tanto em parte
significativa do senso comum douto (universidades) como nas academias de
253
CÉSAR SABINO

musculação que são parte do senso comum. Segundo Cuche (1999), civilização
(palavra surgida na Europa iluminista do séc. XVIII) designa o afinamento
dos costumes e significa o suposto processo – instaurado pela primeira vez
pelos “esclarecidos” – que tende a arrancar a humanidade da ignorância e
irracionalidade. Diante dessa acepção, reitera-se que toda forma de governo
e organização social deve pautar-se na “Razão” e nos conhecimentos da
ciência. Civilização é, então, definida como um processo de melhoria das
instituições, da legislação e da educação. Ela deve começar no Estado, o
qual deve liberar-se de tudo que é ainda “irracional” em seu funcionamento.
Finalmente, essa perspectiva
[...] afirma que a civilização deve estender-se a todos os povos
que compõem a humanidade. Se alguns povos estão mais
avançados do que outros neste movimento, se alguns [...] estão
tão avançados que já podem ser considerados ‘civilizados’,
todos os povos mesmo os mais ‘selvagens’, têm vocação para
entrar no mesmo movimento de civilização, e os mais avan-
çados têm o dever de ajudar os mais atrasados a diminuir
esta defasagem (CUCHE, 1999, p. 22).
Contudo, veremos mais adiante como Norbert Elias reconceitua civi-
lização modificando todo esse aspecto preconceituoso do termo, passando
a utilizá-lo como ferramenta analítica eficaz para a compreensão das socie-
dades contemporâneas ou quaisquer outras. Outro aspecto a ser destacado
é o da violência presente no cotidiano desses construtores específicos da
forma musculosa. Em geral, nas academias de musculação pesquisadas, é
comum a prática de artes marciais, sendo o jiu-jitsu e o boxe tailandês as
lutas da moda nessas instituições. A busca em adquirir e ostentar um ethos
belicoso é uma das atitudes principais da construção de pessoa nesses grupos
de adoradores da força e da forma agigantada. A masculinidade, entendida
como uma exacerbação da virilidade, deve ser constantemente afirmada
por meio não apenas das posturas corporais, mas também de atos. E esses
atos resumem-se às lutas em torneios e brigas de ruas empreendidas pelas
“galeras” de marombeiros que saem nos finais de semana para, como eles
mesmos dizem: “pegar mulher e brigar”, não necessariamente nessa ordem.
Indivíduos que, ainda jovens, travam verdadeiras batalhas com outros do
mesmo tipo, de outros bairros e academias. Embates que podem terminar
em morte. Nessa academia mais específica, por sua relação com a violência,
quase toda segunda-feira, aparece alguém com hematomas ou curativos em
um dos braços ou pernas relatando aventuras de final de semana na saída

254
DROGAS DE APOLO

de alguma boate da Barra da Tijuca ou baile funk83. Esses indivíduos, pra-


ticantes de musculação e, em geral, artes marciais, não são necessariamente
fisiculturistas, mas se autodenominam pitboys em alusão ao cão ilegalmente
explorado em rinhas, em geral até a morte. A violência difusa aqui tem o
sentido de transversalidade, o que significa que está presente de forma
constante no cotidiano e pode atingir ou partir de qualquer direção, indiví-
duo ou grupo. Os estudos em bioquímica e nas áreas biomédicas, em geral,
tendem a referir o comportamento masculino violento, e mesmo feminino,
à quantidade de testosterona presente no metabolismo dos indivíduos.
Seria fácil explicar a violência desses homens a partir dessa perspectiva por
motivos óbvios. Não partimos de forma alguma dessa concepção, posto que
ela não leva em conta as dimensões socioculturais que interferem de forma
significativa nesses mesmos comportamentos.

6.2 O STATUS DA BRIGA

Comportamentos relacionados com frequência a determinados bailes


funk e boates do mesmo gênero e à articulação de certo tipo de violência
existente nesses locais, que até recentemente eram típicos das classes bai-
xas (DIÓGENES, 1998; ABRAMOVAY, WAISELFISZ et al., 1999; ALVIM;
GOUVEIA, 2000), estão sendo imitados como sinal de distinção e status,
ao menos momentâneo, entre número significativo de jovens da classe
média e média alta carioca. Os bailes funk, e toda a indústria cultural que
acompanha esse movimento e o expande, têm tido como consumidores, cada
vez mais, frequentes os jovens dos chamados bairros abastados do Rio de
Janeiro (Leblon, Ipanema, Barra da Tijuca etc.) que, por vezes, travam contato
com traficantes e passam a admirar o seu modus vivendi, tido como símbolo
de autoridade e poder. Esses jovens organizam-se em “galeras”, “gangues”

83
No momento, além dos já tradicionais locais frequentados por jovens de classe média e média alta, como
as boates e bares Cozumel na Lagoa, Guapo Loco no Leblon, Nuth na Barra da Tijuca e Baronetti em Ipanema,
que tocam música funk ou apresentam sessões de funk, os jovens da classe média carioca também buscam os
chamados bailes de clube. Nas boates da Zona Sul da cidade, as festas são, como dizem, “para curtir”, ou seja,
não são locais para brigar. Contudo muitos lutadores e marombeiros com esse objetivo, a briga, deslocam-se
de bairros, como Tijuca, Grajaú ou Copacabana, para clubes de Jacarepaguá e outros, visto que esses bailes são
locais que as “galeras” ou gangues se enfrentam. Como dizem: “a pancadaria come solta” tanto dentro como fora
dos clubes. Dentro desses espaços, a multidão chega a se dividir em lado A e lado B, enfrentando-se em blocos de
pancadaria ao som do ritmo funk – similar às brigas de torcidas no futebol. É comum a territorialidade definir o
pertencimento do grupo em uma espécie de afirmação geopolítica. Já os bailes de comunidade ou favelas, Porto
das Pedras, Morro do Cantagalo, Chapéu Mangueira, são bailes onde dificilmente ocorrem conflitos de galeras
por serem dominados pelo tráfico ou milícia, mas esses bailes não são frequentados pelas classes mais altas ou
por pessoas estranhas ao contexto comunitário.

255
CÉSAR SABINO

ou “bondes”, grupos de um mesmo bairro que têm por objetivo construir


identidade por intermédio de atividades ilícitas ou brigas com outras galeras
ou bondes, além de “fazer pegas” (corridas de carro) nas ruas mais largas
dos bairros durante a madrugada e arruaça. Há valorização de roupas de
marca, tatuagens e lutas. Essas últimas marcam as divisões territoriais entre
os bairros (ZALUAR, 1997). Até pouco tempo, essas atividades eram tidas
pelos analistas como peculiares aos jovens das chamadas classes inferiores,
em geral habitantes das favelas e comunidades carentes (VIANNA, 1997).
Com a cultura funk expandindo-se a partir de meados da década de 90 do
século XX, o ethos dos dominados que dominam outros dominados – os
traficantes e bandidos – adquiriu impulso positivo e sedutor entre parcela
significativa de jovens abastados e entediados, alguns frequentadores das
academias de musculação. Esse processo, talvez se deva a uma possível falta
de perspectiva em relação ao futuro, ao tédio de uma vida regrada e sem
dificuldades financeiras, ao extremo individualismo consumista que vem
se fortalecendo e, principalmente, à cultura de uma sociedade de caráter
patrimonialista e índole autoritária que vê, no uso da violência, a solução
de suas mazelas, conferindo papel de herói a todo aquele que articula de
maneira bem sucedida os instrumentos da morte: as armas. Por outro lado,
como reação à crescente mudança no mercado de trabalho e ao possível
enfraquecimento da ética relacionada a esse, pode estar ocorrendo, por
parte de alguns grupos, a busca de construção de uma identidade coletiva
calcada em uma postura de resistência às regras dominantes. Este relato
de um informante é significativo:
[...] às vezes preciso descarregar [...] a gente se cansa de tudo,
estudar, estudar e treinar semana toda. Mãe enchendo. Tudo!
Então, preciso de adrenalina [...] nos finais de semana pego o
carro e vou pros bailes. A melhor forma de desestressar é lá [...] a
pancadaria [...] depois dela a gente fica mais leve até [...] sempre
há o perigo de quebrar um braço, um dedo, nariz, mas aí que tá
a graça [...] porque você também bate. Também quebra o vacilão
do outro lado (Ricardo. 23 anos. Estudante).
Gangues, galeras ou bondes são termos que necessitam ser escla-
recidos para que se faça possível um melhor entendimento do universo
de algumas academias de musculação. No Brasil, quando um estudo se
refere a gangues, ele não está descrevendo organizações criminosas com
características empresariais de modelo norte-americano – pelo menos por
enquanto. Ou seja, não são organizações calcadas em uma racionalidade

256
DROGAS DE APOLO

instrumental que possibilitaria a mobilidade social dos jovens conforme


referida no trabalho de Sanchez-Jankowski (1991), que retirou o estudo
das gangues da esfera do criminologia e do desvio, alocando-o no âmbito
da sociologia das organizações e dos modos de estruturação dos meios
proletários aproximando-se um pouco das teorias sociológicas de Robert
King Merton (2004). Os critérios de definição de uma gangue em pes-
quisas americanas, tais como estrutura formal de organização, hierarquia,
liderança definida, identificação com um território, interação recorrente,
longevidade e engajamento em comportamento violento, não são neces-
sariamente transponíveis para a realidade brasileira; a não ser o tráfico de
entorpecentes que apresenta estrutura similar a descrita.
Já o uso da categoria galera pode estar relacionado à “galère”, noção
utilizada por Dubet (1987) em seus estudos sobre a juventude francesa. O
autor pesquisou os jovens de periferia descendentes de imigrantes que se
organizam em grupos relacionados a situações de violência. A “galère”é, a
princípio, uma forma de sociabilidade solta, uma forma de deixar a existência
à deriva, repleta de niilismo, autodestrutividade, desafio, risco e raiva. Esse
tipo de sociabilidade pode estar perpassada por criminalidades intermitentes
ou por marginalidades difusas (ABRAMOVAY et al., 1999). O uso do termo
pelo autor está diretamente referido aos jovens de bairros operários envol-
vidos com conflitos e tensões decorrentes da imigração, com o desmante-
lamento de uma possível consciência de classe e com a falta de perspectiva
relativa ao fim da política de esquerda e a falta de perspectiva profissional.
Tais características parecem, ao menos no caso da falta de perspectiva de
alguns grupos de jovens, adequar-se mais à análise do caso brasileiro. Con-
tudo, a aplicação do termo aqui não está diretamente relacionada a grupos
de jovens de classe baixa, como foi dito. No caso específico deste estudo,
o termo galera, eventualmente gangue, ou bonde (termo nativo ligado aos
comboios de ônibus fretados pelos funkeiros para irem aos bailes), será
utilizado de uma forma mais genérica para designar o grupo de classe média
ou média alta, mais ou menos estruturado de fisiculturistas ou marombeiros
veteranos, que desenvolvem, fora das academias, desde atividades lúdicas
até atos de delinquência – nesse caso não deixando de serem lúdicos para
eles – brigas e agressões, eventualmente pequenos furtos ou estelionatos.
Os membros desse grupo mantêm relações de solidariedade à base de uma
identidade incipiente compartilhada que busca (em um arremedo), no
modelo das organizações criminosas do tráfico de entorpecentes, o para-
digma de suas atividades e mesmo eventual consumo de bens simbólicos.
257
CÉSAR SABINO

Essas galeras ou bondes são compostas por pessoas de classe média que, sem
necessidade econômica premente ou aparente, cometem delitos procurando
imitar as práticas e representações dos grupos delinquentes de classe baixa.
Esse grupo pode ser considerado uma extensão eventual do grupo dos
marombeiros que, por sua vez, se encaixaria na definição de tribos urbanas
dos trabalhos de Maffesoli (1987; 1995). Essas “tribos” apresentariam um
caráter volátil relacionado às suas formações identitárias. Se significam
volatilidade, o bonde ou a “galera da maromba” (como por vezes se definem),
no caso específico deste estudo, o é mais ainda, visto não passar de uma
manifestação eventual – de final de semana ou noites de farra – do grupo
de praticantes assíduos de musculação e artes marciais. Nesse aspecto, fica
marcada a diferença brasileira em relação às dimensões organizacionais das
galeras francesas ou europeias e as gangues ou máfias estadunidenses. Os
primeiros apresentam comportamento menos estruturado e diretamente
calcado no prazer e amor pelo risco e delinquência, tidos como diversão
e afirmação de autoridade e masculinidade hegemônica. Outro possível
aspecto inerente a essa dinâmica das culturas de classe é aquele proposto
por Carlo Ginzburg (1986) sob o título de circularidade cultural. Pensando
os diferentes enfrentamentos entre cultura dominante e subalterna, e afas-
tando a possibilidade de uma assimilação direta dessa cultura dominante
pelos populares, e vice-versa, Ginzburg, ao analisar o trabalho de Bakhtin
(1987), destaca que o autor exemplifica um processo de absorção de parte
da cultura popular por um homem erudito, literato e médico, frequenta-
dor da corte – François Rabelais. Em sua obra, aparecem termos chulos,
grosseiros e obscenos, estranhos para um homem em sua posição em sua
época. A presença desses termos estava relacionada à convivência de Rabelais
com o mundo da praça pública renascentista. Essa proximidade, segundo
Bakhtin, permitiu a absorção, por parte de Rabelais, de itens culturais que
não pertenciam a sua classe. A partir da análise desse aspecto, Ginzburg
busca compreender o movimento recíproco e contínuo que influencia os
diferentes níveis culturais e que definirá as linhas mestras do seu trabalho
sobre Menocchio, apelido de Domenico Sacandella, o moleiro friulano,
crítico da Igreja e que, convocado pela Inquisição, apresenta um sistema
cosmológico claro construído por vários itens reapropriados e reinterpre-
tados da cultura erudita da época terminando queimado na fogueira por
ter adaptado abstrações filosóficas e teológicas a uma realidade refratária e
fortemente marcada pela vivência concreta e materializada dos fenômenos
religiosos. Menocchio serviu-se de algo que lhe era familiar, cotidiano,

258
DROGAS DE APOLO

conhecido: comparou a criação do mundo (Gênesis) com o processo de


produção de queijos relacionando os vermes à criação dos anjos84, sendo
por isso considerado herege (HERMANN, 1998; GINZBURG, 1989).
Enquanto Rabelais havia sido influenciado pela cultura das classes
baixas, Menocchio o foi pela cultura letrada das classes altas ou alta cultura.
Ginzburg escreve que, apesar de essa análise ser micro-histórica, destacando
o indivíduo, ela não prescinde, de maneira nenhuma, da análise conjuntural
que fornece aos agentes sua condição estrutura ou histórico-social. A cria-
tividade de Menocchio, por exemplo, só foi possível devido à Reforma e à
criação da imprensa, que expandiu a capacidade de leitura e as transforma-
ções da Época Moderna. Com efeito, se indivíduos de classes inferiores por
vezes constroem sistemas culturais reapropriando-se dos itens pertencentes
às altas culturas, o contrário também ocorre. A apropriação do funk por
grupos da classe média e média alta segue um processo comum dos emba-
tes entre culturas distintas e não significa, necessariamente, que aqueles
grupos que frequentam os bailes e compartilham algumas representações
e práticas com os moradores das comunidades, morros e favelas, deixarão
de fato o habitus que os constitui como elementos da classe dominante à
qual pertencem. Norbert Elias, estudando a sociedade de corte, também
nos fornece instrumentos eficazes para a compreensão dessa circulação dos
modelos de comportamento. Se o processo civilizatório se caracteriza, a
princípio, pela difusão a toda a sociedade das proibições, censuras e controles
em termos distintivos da maneira de ser dos homens de um determinado
grupo social, a generalização de comportamentos e condicionamentos
próprios em primeiro lugar dos dominantes (no caso do estudo de Elias,
os nobres da sociedade de corte) não deve ser entendida como uma difu-
são unidirecional, atingindo todo o grupo social a partir do grupo que a
domina. Ela é antes o resultado de uma luta concorrencial que leva certos
grupos dominados (no caso específico do autor, os burgueses) a imitarem
as maneiras de ser aristocráticas e que, por sua vez, obriga os dominantes a
aumentarem as exigências de distinção (civilidade, para Elias) no intuito de

84
A cosmogonia de Menocchio pode ser resumida da seguinte maneira: no início tudo seria caos, isto é, terra,
ar, água e fogo em conjunto lado a lado. Em determinado momento, esse caos produz um volume pela mistura
desses elementos, como o queijo é feito do leite. Nessa massa nascem os vermes que se tornam os anjos, sendo
Deus o superior e por isso torna-se senhor entre eles em uma hierarquia que principia com quatro capitães:
Lúcifer, Miguel, Gabriel e Rafael. Sendo que Lúcifer, ao querer ser senhor à imagem do rei ou Deus, este o expulsa
do Céu com todos aqueles a quem comandava. Dessa feita, Deus resolve fazer Adão e Eva e toda a humanidade
para substituir os anjos expulsos; a essa humanidade, que não cumpria os seus mandamentos, enviou o seu filho
que foi preso e crucificado pelos judeus.

259
CÉSAR SABINO

voltar a atribuir-lhe um valor discriminativo. Esse jogo, essa dinâmica de


expropriação e desautorização, parece ser uma forma comum a inúmeras
sociedades complexas atuais de renovar as distâncias socioculturais.
Destarte, a atração exercida sobre as camadas inferiores da sociedade
pela cultura da elite não deixa de tornar essa cultura mais exigente ou ao
menos de tentar inovar essa exigência; os condicionamentos dos dominantes
sobre os dominados não deixam de provocar efeitos de retorno, que refor-
çam nos poderosos os mecanismos de autocondicionamento (CHARTIER,
1990; ELIAS, 1983; 1994). Parecem ser as camadas mais jovens das classes
altas aquelas que absorvem com mais facilidade e rebeldia os elementos
desprezados, fazendo-os entrar na cultura superior. Nesse movimento,
os itens característicos das classes baixas tornam-se moda ou objeto de
culto no mercado consumidor, provocando ações de repúdio ou aceitação
tácita por parte da camada da qual fazem parte – não raro essa aceitação
é consciente e populista. Como as classes sociais se definem pela oposição
que ocupam na estrutura social, sendo essa posição única e não confundida
com uma outra, ocorre entre elas uma relação de forças que as atinge em
todas as modalidades. Trata-se, grosso modo, do espaço social caracterizado
por tensões entre diferentes modalidades de poderes, cada qual atuando
de acordo com lógicas que lhes são próprias e pertencentes ao seu campo
específico, formando subestruturas de relacionamentos. O espaço das
classes seria o espaço ocupado dentro dessa estrutura social – objetiva e
subjetiva –; espaço esse que se situa e estabelece uma posição, num ambiente
hierarquizado. Essa hierarquia, radicada na posse de determinados capitais
(econômico, cultural, social etc.) e na sua desigual distribuição no espaço,
estabelece singularidades relativas às diferentes visões de mundo hegemônicas
ou dominantes em seu espaço de existência, e só nele; ou seja, cada classe
produziria, e seria produzida, não apenas pela posse do capital econômico
mas também pelas representações coletivas inerentes a ela. No entanto, a
primazia do sistema simbólico, enquanto construtor da distinção social,
reitera a permanência, ou a renovação, das relações de força que constituem
a estrutura das sociedades. O que equivale dizer que ocorre uma constante
disputa pela hegemonia intra e entre grupos sociais, pela autoridade de
impor sua visão de mundo e classe às outras classes e aos seus opositores
em competição (BOURDIEU, 1979; 2001; NUNES; KHOLSDORF, 1999;
SOBRINHO, 2003). A circularidade cultural aqui citada seria um exemplo
dessa luta. Portanto, é possível resumir essa circularidade como um pro-
cesso relacionado a valores, sentimentos, ideias, visões de mundo e práticas,
260
DROGAS DE APOLO

vividas e produzidas por grupos ou classes, que são absorvidas, ou recriadas,


por outros grupos de uma mesma sociedade ou de outra sociedade, em um
tempo específico, ou de tempos diferentes, sempre ligadas às relações de
poder e dominação.
Retornando ao aspecto de disputas entre gangues e galeras, Zaluar
(1997) escreve que, sejam elas de classe média ou não, espelham-se, no caso
do Brasil, no modelo organizacional das quadrilhas de traficantes, embora
com a particularidade de não terem chefia instituída, regras explícitas (mas
implícitas) e objetivo de atividades criminais visando ao enriquecimento.
Porém o aspecto comum aos modelos organizacionais que é o da exaltação
à violência deve ser destacado, como pode ser percebido no relato de um
frequentador de uma academia de musculação no bairro do Grajaú:
Eu tava no carro [...] chegou um mané e emparelhou [o carro
dele com o meu] e começou a tirar onda com a minha cara, tava
querendo botar um pega, aí eu acelerei, ele acelerou e a gente ficou
naquela, eu passava, ele passava [...] de repente o cara deu uma
batida no meu para-choque, fiquei puto! Vai se f****, gritei. Ele
me mandou tomar no c*. Ah, malandro [...] eu peguei a máquina
[pistola] e mandei bala pra cima dele, só que eu tava tão puto
que mandei pelo vidro do meu carro, o cara sumiu e eu fiquei
com o vidro todo quebrado. No outro dia arrumei um parceiro e
fui procurar um carro igual ao meu para roubar o vidro, a gente
encontrou [...] em Botafogo, ele abriu o carro, eu entrei e meti o
pé por dentro no vidro, ele soltou e a gente levou, mas a cor era
meio esverdeada, não ficou bom que nem o outro, mas usei assim
mesmo (Carlos. 31 anos. Advogado).
Esse relato, um entre muitos do mesmo teor, feito por um informante
de família abastada, pode ter sido exagerado pelo informante em seus aspectos
principais; porém alude ao fato de que não é apenas a dimensão econômica,
de classe social, ou a miséria que leva os indivíduos a cometerem roubos,
ou mesmo assaltos, além de outros crimes. Entre alguns daqueles – sempre
indivíduos do sexo masculino –, pertencentes à classe média das academias
pesquisadas, pequenos furtos em estabelecimentos comerciais, roubo de
carros, uso de drogas recreativas, prática de “pegas”, agressões corporais e
uso de armas de fogo são comuns objetivando aquisição de destaque dentro
do grupo que exalta esse tipo de masculinidade. Esses aspectos transcendem
as determinações da pobreza e da exclusão social. É preciso ressaltar que os
indivíduos aqui estudados não são atletas profissionais, pois, como disse,
o bodybuilding no Brasil apresenta profissionalização bastante incipiente.
261
CÉSAR SABINO

A convivência próxima que esses jovens têm com o crime organizado nas
favelas que circundam seus bairros, (convivência estreitada pela frequência a
determinados locais festivos e acesso à “cultura das favelas”), leva-os, muitas
vezes, a verem os líderes do tráfico como modelos de poder e paradigmas
de autoridade. Soma-se a isso o uso, e mesmo o tráfico, de esteroides ana-
bolizantes que podem criar sentimentos de empatia pelas práticas ilegais do
tráfico de entorpecentes, associadas à admiração pela rebeldia e juventude.
Alguns jovens universitários que praticam musculação e fisiculturismo
obtêm renda significativa vendendo esteroides e outros tipos de drogas
nas academias do Rio de Janeiro. Esta nota etnográfica escrita por mim em
maio de 2002 é significativa:
Chegando à academia na parte da manhã vejo Ricardo conversando
em caráter confidencial com um indivíduo de cabelos escuros e lisos
e óculos de sol. Me aproximo e João me apresenta a Márcio, o sujeito
vende todo tipo de esteroide possível. Márcio aparenta em torno de 22
anos, está vestido com uma camiseta de malha escrita Boss, calçado
com um tênis Nike e usa cordão e pulseira grossa de ouro. Chego
bem na hora que João está encomendando 22 ampolas de winstrol.
Percebo que aquele é o instante para estabelecer contato com um
‘traficante’. Digo que estou interessado em comprar o mesmo que
João. Márcio responde que tenho que dar o dinheiro primeiro e ele
me traz “a parada” depois, no dia seguinte. Pergunto se ele só tem
winstrol e ele diz que tem de tudo. Aí contigo agora? Pergunto. Ele
diz que não. No momento só tem durateston e deposteron, peço para
ver, ele diz para irmos ao carro do outro lado da rua. Vou com ele
até um carro caro e bem equipado. Tentando ganhar mais tempo
pergunto a ele qual produto é melhor para fazer emagrecer, segundo
a maioria dos usuários, além de crescer músculo. Ele diz que é o
winstrol. Ele me mostra uma caixa de isopor cheia de ampolas de
durateston já sem as embalagens. Digo que estou em dúvida que
acho que o winstrol seria melhor. João reitera que o winstrol é mais
adequado mesmo já que desejo perder gordura. Afirmo que ficarei
com o winstrol que ele não tem no momento. O vendedor me diz para
lhe dar o dinheiro. Falo (temeroso) que, como não sabia, só estou com
cheque. Ele diz que só aceita dinheiro e que estará na academia no
dia seguinte pela parte da manhã para que o procure. Após o forne-
cedor ir embora, pergunto a João se ele o conhece há muito tempo.
Diz que o conhece há um ano e que ele é o seu fornecedor. Como
conheço João desde os tempos da graduação, pergunto sobre a vida
de Márcio, mas ele só diz que o cara vive disso, de vender ‘bomba’
para tudo quanto é academia das redondezas e até da Zona Sul, e
que ganha muito dinheiro, principalmente no verão; fala também

262
DROGAS DE APOLO

que o mercador de ‘bombas’ estuda Educação Física. Depois disso


passei um mês sem aparecer pelas manhãs, revezando noite e tarde
até que Márcio esqueceu de mim. Tem ocorrido também a venda, por
intermédio das farmácias virtuais, destas substâncias pela internet.
As atividades ilícitas que essas pessoas praticam com suas galeras são
realizadas de maneira transitória e esporádica. Com o passar do tempo,
em geral, esses jovens rebeldes tendem a abandonar as práticas, o contrá-
rio daqueles que entram para o crime organizado, do qual em geral saem
mortos (ZALUAR, 1997) – é preciso ressaltar da mesma maneira que jovens
abastados que cometem pequenos delitos, ou mesmo delitos maiores, têm,
em suas famílias ou meios de influência, quem os impeça de serem presos
ou de assim continuarem se for o caso.
Sem embargo, não apenas nesse grupo social, mas em outros, existe
a tendência à apologia da delinquência e da violência como uma espécie
de modus vivendi85. O fascínio pela imagem do macho, “bárbaro”, violento,
armado com seus músculos, técnicas de luta e armas de fogo diversas, que
impõe sua autoridade pelo terror, está, mesmo que em alguns casos de forma
incipiente, presente no imaginário de fisiculturistas que formam turmas e
têm a marca da virilidade como espécie de ícone sagrado. Arriscaria mesmo
dizer que essa representação está presente na mentalidade de grande parcela
da população brasileira. A necessidade belicosa pode ser exemplificada pelo
fato de que apenas o olhar de um homem desconhecido para outro, em um
recinto fechado, ou mesmo na rua, ou um esbarrão não intencional, já basta
para criar uma briga, posto que esses acontecimentos são, em geral, enten-
didos como desafio, invasão de território (espaço pessoal) e privacidade,
além de significar atos inimigos que devem ser imediatamente destruídos:

85
Os dados do campo apontam para a dimensão cultural da reprodução da violência colocando em xeque as
concepções do senso comum que vê apenas e somente na pobreza sua causa primordial (RIELLA, 1999). É certo,
porém, que os filhos da classe média carioca atual se deparam com uma realidade econômica em crise que, não
raro, coloca-os em situação de maior dificuldade econômica se comparada com a de seus pais quando tinham
sua idade em décadas passadas. Há hoje convergência entre o aspecto econômico de reorganização do mundo do
trabalho – com grande desemprego estrutural – e a dimensão simbólica que radica cidadania e construção social
da pessoa ao consumo de bens e serviços que pode levar jovens à delinquência da mesma forma que leva jovens
da classe baixa, não devido necessariamente à miséria, embora esse seja uma elemento crucial de análise, mas,
como disse, à importância dada ao consumo como condição sine qua non da dignidade e identidade social. Se,
para alguns jovens das favelas cariocas, não raro, a violência e o crime são um dos únicos, se não o único, meio
de conquistar dignidade social destacada em seu meio – ainda que momentânea –; para jovens de classe média,
essas atividades não significam a única forma, contudo podem representar o meio mais imediato de se destacar
socialmente pela atuação criminosa e consumo de bens considerados por eles indispensáveis para representar
papel social reconhecido (WACQUANT, 2001), sendo também a própria sensação de se colocar em risco e a
demonstração de destemor um desses itens “espetaculares” de consumo.

263
CÉSAR SABINO

[...] as brigas, a porradaria começam com um olhar [...] o cara


encara o outro desafiando, pronto! A porrada já come solta. Se tá
olhando muito tá desafiando, tá duvidando de que tu sabe brigar
ou tá achando que tu é viado... ou então o cara te dá um esbarrão
e aí tu já sai socando... se ele olhar muito e, pior, se mexer com
uma garota do grupo também já leva porrada. Mulher dos outros
tem que ser respeitada. (Pedro, 21 anos. Estudante).
Embora, como disse, não possuam uma organização com regras
rígidas, tais como as regras que governam os grupos e quadrilhas do crime
organizado, nem mesmo uma chefia devidamente estabelecida, pode-se
considerar que a organização das galeras funciona, grosso modo, como a
política segmentar dos Nuer estudada por Evans-Pritchard (1978). Os Nuer
dividem-se em aldeias “vinculadas pela residência comum e por uma rede
de parentesco e laços de afinidades, cujos membros cooperam em muitas
atividades [...] tendo um forte sentimento de solidariedade contra outras
aldeias”, pois têm um “sentimento comum ligado a um território único”
(EVANS-PRITCHARD, 1978, p. 127, 154). As galeras da maromba organi-
zam-se adotando muitas vezes o nome das favelas e morros que circundam
os bairros do Rio de Janeiro dos quais esses homens e mulheres são prove-
nientes: “bonde do Borel”, em alusão ao morro do Boréu, favela situada no
bairro da Tijuca, “galera do Cantagalo”, favela do bairro de Copacabana, e
assim por diante. Também os nomes dos próprios bairros podem servir de
referência. Grupos que alimentam sentimento bairrista, unindo-se quando
surgem disputas com outros grupos de bairros rivais. Essa rivalidade confere
seu tom organizacional segmentar. Quando em um evento qualquer, surgem
disputas entre indivíduos de grupos diferentes e rivais, todos os indivíduos
presentes ao local e pertencentes aos grupos em atrito entram no conflito
provocando pancadarias generalizadas. Embora diferente, o sistema orga-
nizacional nuer é similarmente segmentado e acéfalo constituído por uma
série de seções opostas que se contrapõem de forma cada vez mais aguda
à medida que a distância territorial e de parentesco se concretiza. São tais
oposições entre valores rivais dentro de um sistema territorial que fazem
a essência da sua organização político-social. Enquanto entre os belicosos
Nuer a separação se dá, a princípio, por seções e segmentações que vão se
ampliando em rivalidade e se unindo em luta até chegar à disputa com o
estrangeiro; entre as galeras, a segmentação principia entre academias do
mesmo bairro que podem, em uma disputa maior, estabelecer união. Grupos
de uma academia contra grupos de outra do mesmo bairro, conjunto de
grupos de academias do mesmo bairro contra outro conjunto de academias
264
DROGAS DE APOLO

de outro bairro, e assim por diante se a circunstância sugerir. Vale ressal-


tar que esse processo não possui a fixidez presente na organização social
Nuer na qual a segmentação é muita mais vital e necessária, nem mesmo é
possível generalizá-lo para todas as gangues e grupos em disputa na cidade.
Outro aspecto organizacional que vem distinguir as galeras das qua-
drilhas do crime organizado é a questão do patronímico. Se tanto a qua-
drilha quanto a galera dão importância ao território, tendo esse como um
dos focos organizacionais, a última organiza-se em torno de um chefe, uma
liderança criminosa (ZALUAR, 1997), o que não ocorre necessariamente
com as galeras. Fernandinho Beira-Mar, Marcinho V. P., Isaías do Boréu etc.,
são nomes de líderes do tráfico tornados famosos pela ampla divulgação de
suas figuras na imprensa e mídia em geral. Indivíduos que servem de base
representacional para organizações criminosas as quais eles comandam,
similar ao estilo da dominação carismática estudada por Weber. Quando
mortos, logo são substituídos por outros com tendência similar. Esse tipo
de violência, descrito anteriormente, pode ser relacionado àquele citado
por Simmel em sua obra, o qual ressalta que o conflito é indispensável para
a unidade dos grupos sociais, mesmo a preço do aniquilamento, mas nunca
da destruição total ou do extermínio do adversário.
A luta ou o conflito são condição sine qua non para a coesão social
nesse caso, pois os grupos têm o interesse em manter acesa as disputas, em
fazer perdurar os conflitos, provocando-os muitas vezes, sem pretender
resolvê-los definitivamente para não ver quebrada a unidade que os carac-
teriza, pois a vitória total de um grupo sobre seus inimigos nem sempre
representa uma solução de fato, por debilitar a energia que garante a uni-
dade, possibilitando o desenvolvimento de forças dissolventes, que sempre
estão ativas. Desse modo, pode ser prova de articulação e habilidade política
manter, ou mesmo provocar, a existência de certos inimigos para manter
a coesão dos membros, e para que o grupo continue consciente de que a
unidade constitui seu máximo interesse vital. Em suma, o conflito (ou a
luta) é considerado uma forma fundamental do processo social (SIMMEL,
1983; 1993; também: GLUCKMAN, 1987; TARDE, 2002; LEACH, 2014).
Assim, a segmentaridade conflituosa presente nas academias pode ser um
meio do grupo manter um tipo, mesmo temporário, de coesão, além de toda
a competição formal e individualista inerente à prática do fisiculturismo.
Todavia, o conflito constatado nesses grupos sociais não se resume apenas a
essa dimensão que a princípio seria função de uma ordem fundada na troca
horizontal entre grupos similar às trocas bélicas primitivas (FAUSTO, 1999).
265
CÉSAR SABINO

6.3 VIOLÊNCIA ANÔMICA

Necessário se faz observar uma dimensão que muitas vezes passa


despercebida àqueles que abordam o problema da violência. É comum o uso
de exemplos relacionados aos povos africanos e principalmente ameríndios –
esses últimos talvez devido ao tema do canibalismo que surte efeito impactante
sobre o senso comum. Se as sociedades nuer ou tupinambá são usadas como
exemplos de culturas belicosas, isso não significa que articulem a violência
com o mesmo sentido, função e consequência que as atuais sociedades latino-
-americanas, europeias, asiáticas e norte-americanas, produtoras e produtos
de sociedades complexas capitalistas86. O tema violência é polissêmico, poli-
valente e caracterizado por uma plasticidade de sentidos que propicia fácil
manipulação; portanto há que ser esclarecido: se não existe sociedade sem
um certo quantum de violência (GIRARD, 1989; MAUSS; HUBERT, 2005;
MISSE, 2012; WIEWORKA, 2014), é no Ocidente capitalista, porém, que se
gesta, cria e articula um modelo de violência racionalizada, arquitetada para
eliminar a diferença, o diferente e o Outro da face da Terra. Essa Violência, que,
para distinguir um tipo do outro, grafamos no momento com V maiúsculo,
tem como característica o aperfeiçoamento técnico proporcionado por um
paroxismo calculante na arte da guerra e da guerrilha visando ao aniquilamento
da alteridade. Violência produto da razão instrumental ou sistêmica e de seu
culto, o racionalismo que a tudo visa a submeter, abarcar, explorar e controlar
(WEBER, 1997; HABERMAS, 1992). Sem embargo, a diferença é traduzida
enquanto ameaça à Identidade; o inimigo não deve jamais ser assimilado,
absorvido ou aceito, mas destruído, pulverizado, aniquilado. Esse movimento
depredatório atingiu seu desenvolvimento máximo entre as nações denominadas
“evoluídas” durante o século XX, por intermédio do “desenvolvimento técnico
dos implementos, [destrutivos ao] ponto em que nenhum objetivo político
poderia presumivelmente corresponder ao seu potencial de destruição, ou
justificar seu uso efetivo no conflito armado” (ARENDT, 1994, p. 13). Nesse
âmbito, necessito fazer um adendo: o ser humano é o único animal que fala, tem
parentesco, troca produtos do seu trabalho (LÉVI-STRAUSS, 1982) e é cruel
(NIETZSCHE, 1988). A violência pelo simples prazer e gozo de ver o outro
sofrer até os estertores, a transformação de outros seres vivos e semelhantes
86
A respeito da violência em sociedades denominadas de “Primeiro Mundo”, por exemplo, Wacquant escreve:
“a partir da década de 1980, a autoimagem das sociedades de Primeiro Mundo, como cada vez mais pacíficas,
homogêneas, coesas e igualitárias – ‘democráticas’ segundo a noção de Tocqueville, ‘civilizadas’ no léxico de
Norbert Elias – vem sendo destruída por explosões estrondosas de desordem pública, por crescentes tensões
etnorraciais e pelo surgimento evidente da desigualdade e da marginalidade das metrópoles” (2001, p. 163).

266
DROGAS DE APOLO

em espetáculos trágicos e sanguinolentos para o deleite do espectador, seja


qual for, é uma característica única desse ser produtor de símbolos complexos.
E é por isso que temo quando alguma autoridade diz que pretende humanizar
algum aspecto da realidade social, como se a crueldade não fosse elemento
pertencente exclusivamente à nossa espécie. Pelo que sei, Hitler, Mussolini,
Papa Doc, Stálin e tantos outros não eram poodles ou equinos.
Para percebermos as sutilezas que separam a violência constitutiva
de todas as organizações sociais e a Violência que ameaça a própria disso-
lução da sociedade e dos recursos planetários, necessário se faz remeter
a estudos da antropologia política, mormente a etnologia. É interessante
que as sociedades que se autodenominaram civilizadas, evoluídas, e que
reivindicaram o título de portadoras do progresso para o aprimoramento
dos “povos bárbaros” tenham materializado, em suas próprias ações, o
significado da palavra barbárie (significado que elas mesmas forjaram para
se distinguirem dos “outros”) engendrando, pela primeira vez na história,
carnificinas traduzidas em etnocídios e genocídios: o totalitarismo é um
fenômeno de origem eminentemente ocidental (ARENDT, 1989)87 que
parece ter sido exportado para outras culturas e sociedades.
Segundo atestam inúmeras etnografias até o momento, sociedades
ameríndias, por exemplo, não apresentavam violência a ponto de colocar
em risco a existência de suas estruturas sociais. Os tupinambás, amplamente
conhecidos pela sua belicosidade e canibalismo, articulavam essas práticas
em um processo de trocas com o inimigo que eram constitutivas de suas
relações sociais de troca demonstrando uma grande civilidade no trato
com o outro (DESCOLA, 1999). Se a guerra era violenta, ela não portava
Violência, pois seu propósito era alimentar a ordem cosmológica, absorver
a alteridade tida como honrosa, portanto jamais passível de ser destruída. A
guerra era mesmo uma forma de evitar o surgimento do Estado mantendo
a reciprocidade como dinâmica de trocas do sistema social (CLASTRES,
1989; FAUSTO,1999). Assim, a existência da diferença e da alteridade era
essencial para a própria existência tupinambá:
[...] a ‘teologia’ de alguns povos tupis formula-se diretamente
nos termos de uma sociologia da troca: a diferença entre
deuses e homens se diz na linguagem da aliança de casa-
mento, aquela mesma linguagem que os tupinambá usavam
87
“Os campos [de concentração] destinam-se não apenas a exterminar pessoas e degradar seres humanos,
mas também servem à chocante experiência da eliminação, em condições cientificamente controladas [...] da
transformação da personalidade humana numa simples coisa.” (ARENDT, 1989, p. 489).

267
CÉSAR SABINO

para pensar e incorporar seus inimigos [...] é a troca não a


identidade o valor fundamental a ser afirmado [...] guerra
mortal aos inimigos e hospitalidade entusiástica [...], vin-
gança canibal e voracidade ideológica exprimiam a mesma
propensão e o mesmo desejo: absorver o outro e, neste processo,
alterar-se. Deuses, inimigos, europeus eram figuras da afini-
dade potencial, modalizações de uma alteridade que atraía e
devia ser atraída; uma alteridade sem a qual o mundo soçobraria
na indiferença e na paralisia. O outro não era um espelho, mas
um destino (VIVEIROS DE CASTRO, 2002b, p. 206-207,
220, grifos meus).
Longe de destruir o outro, a guerra entre os tupinambás era um
processo constitutivo de sua própria existência (FERNANDES, 1970); ela
não visava, portanto, a aniquilar a diferença, mas a estabelecer uma relação
de troca com o inimigo, sempre digno de honra e respeito88. O antagonista
era morto e devorado em um movimento ritual (exocanibalismo) no qual
se esperava que seus parentes o vingassem matando e devorando, num
ritual similar e honroso, aqueles que mataram e devoraram seu parente ou
semelhante guerreiro:
A religião tupinambá, radicada no complexo do exocaniba-
lismo guerreiro, projetava uma forma onde o socius consti-
tuía -se na relação ao outro, onde a incorporação do outro
dependia de um sair de si – o exterior estava em processo
incessante de interiorização, e o interior não era mais que
movimento para fora [...] tratava-se, em suma, de uma ordem
onde o interior e a identidade estavam hierarquicamente
subordinados à exterioridade e à diferença, onde o devir e
a relação prevaleciam sobre o ser e a substância. Para esse
tipo de cosmologia os outros são uma solução, antes de
serem – como foram os invasores europeus – um problema.
(VIVEIROS DE CASTRO, 2002b, p. 221).
O inimigo, absorvido, transformado, tornava-se um tupinambá.
Esse processo se realizava com o cativo sendo depilado e pintado à moda
da casa (quando era europeu), comia e bebia com seus captores, dançava
e acompanhava-os à guerra e a ele, cativo, era dada uma esposa, o que o
transformava em cunhado daqueles que o matariam e comeriam. Dessa
forma, o exocanibalismo guerreiro era uma empresa de socialização do
inimigo. Longe de retirar a dignidade e a honra do outro, desejando exter-
88
Observa-se que a barbárie é, portanto, uma representação criada pelas culturas ocidentais e que ela se aplica
a princípio àqueles que já, apresentando a tendência de praticá-la, inventaram-na para classificar o outro.

268
DROGAS DE APOLO

miná-lo como antagonista, os tupinambás queriam certificar-se que aquele


que seria morto entendesse e desejasse o que estava acontecendo consigo
(VIVEIROS DE CASTRO, 2002b, p. 221). Ao contrário da Violência típica
das sociedades complexas ocidentais, a guerra tupinambá não era feita com
o objetivo de enriquecimento, anexação de propriedades ou conservação
de território, mas unicamente pela honra; um sentido de honra que estava
diretamente relacionado a outro, o de vingança. Essa vingança, por sua vez,
relacionava-se à concepção guerreira de que
[...] a morte em mãos alheias era morte excelente porque era
morte vindicável, isto é justificável e vingável; morte com
sentido, produtora de valores e de pessoas [...] morrer em
mãos alheias era uma honra para o guerreiro, mas um insulto
à honra de seu grupo, que impunha resposta equivalente.
É que a honra, afinal, repousava em se poder ser motivo
de vingança, penhor do perseverar da sociedade em seu
próprio devir. O ódio mortal a ligar os inimigos era o sinal
de sua mútua indispensabilidade (VIVEIROS DE CASTRO,
2002b, p. 233-234).
O sistema exocanibalista consumia indivíduos para que a socie-
dade mantivesse aquilo que lhe era essencial: sua relação com o outro. Esse
deveria sempre ser respeitado e honrado em sua diferença, visto que sua
existência e de seu diferir eram essenciais para a existência do “eu” ou do
“nós”. Devia-se, portanto, esperar a contrapartida do inimigo e encará-la
com honra, pois a troca no sistema exigia também morte igual daquele que
matava (FAUSTO, 1999). Na hora de sua morte, o cativo, de maneira orgu-
lhosa e destemida, afirmava sua condição de matador e canibal, evocando
aqueles inimigos que havia morto em circunstâncias semelhantes as quais
se encontrava naquele momento e reivindicava, em uma espécie de eterno
retorno nietzscheano, a vingança daqueles que, com a sua morte, estavam
se vingando das mortes que outrora ele havia provocado: “o passado de
vítima foi o de um matador, o futuro do matador será o de uma vítima; a
execução iria soldar as mortes passadas às mortes futuras, dando sentido
ao tempo” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002b, p. 238). Sem querer incitar
dualismos ou ser reducionista demais, ao me deparar com esses dois tipos
de abordagens socioculturais distintas relacionadas ao comportamento vio-
lento, pergunto-me: se tomarmos como elementos o respeito à alteridade,
a disciplina de costumes e condutas, a contenção da violência destrutiva e
depredadora, a manutenção da reciprocidade, a harmonia com o entorno

269
CÉSAR SABINO

socioecológico, podemos considerar as formações sociais ameríndias como


tendo realizado processos civilizatórios consistentes que, diante da condição
atual das sociedades complexas, colocar-lhes-ia em condição de bárbaros,
invertendo totalmente a tradição etnocêntrica?
O modus operandi da violência, nessas sociedades “primitivas”, por-
tanto, articula-se enquanto manutenção da própria ordem social (CLAS-
TRES, 1989)89 ao contrário da violência anômica (Violência) existente em
sociedades complexas, como a brasileira ou grande parte dela. Esse aspecto
pode ser aplicado ao entendimento da Violência presente, por exemplo,
no Rio de Janeiro. A expansão na cidade do mercado das drogas, com a
inserção da cocaína na década de 80 e o aumento do tráfico de armas e das
condições de miserabilidade com ausência de serviços estatais nas favelas,
potencializou a violência de forma a torná-la praticamente um risco para
a manutenção da organização social. Contudo parece que o aumento de
ambos os tráficos – armas e drogas –, da dissensão entre traficantes pela
disputa territorial e o surgimento das milícias são sintomas de um processo
de longa duração depredatória somado às tradições culturais que têm no
compadrio, na corrupção e na transformação do mundo e do outro em
coisa o seu sustentáculo, em um verdadeiro devir-escravocrata. O relato a
seguir, colhido em uma academia do Grajaú, é sugestivo:
Eu detono, destruo, aquele que me desafia [...] se alguém é ‘alemão’
[inimigo] eu pego para matar, não quero nem saber, se saio na night
então é festa total! Outro dia descarreguei [a arma] em cima de
um otário, tava no carro e vi o mané na rua [...] duas e pouco da
manhã, acho que ele tinha mexido com minha mina no baile e aí
eu ia enfiar a porrada nele, mas ele sumiu com uma galera [...], e
eu não vi mais [...] ah, meu irmão, tava passando no carro e vi o
otário com outro babaca andando na rua, diminui a velocidade,
cheguei pertinho e mandei bala em cima dos dois não sei nem o
que deu, saí a mais de cem, sumi [...] como tava escuro e não tinha
ninguém na rua, [...] ninguém viu. (Paulo. 27 anos. Advogado).
A atitude gratuitamente violenta que está predisposta a eliminar outras
pessoas pelo simples prazer de extravasar o ódio, a crueldade ou a tensão
raivosa por serem diferentes, parece exemplificar os valores, as crenças e
os costumes autoritários que permeiam o cotidiano nacional, e do carioca
mais especificamente. Cidadania, equanimidade e respeito à diferença
89
Para Clastres, a chefia amazônica funda-se sobre o consenso do grupo; esse, para precaver-se contra uma
possível violência abusiva que o exercício do poder pode implicar, escolhe, mais ou menos a contragosto, um
homem marginalizado e moderado, que possa proteger a sociedade da eventualidade de transformar-se em Estado.

270
DROGAS DE APOLO

parecem, em alguns momentos, inexistir no dia a dia e nas relações sociais


do grupo estudado e podem ser tidos como amostra do que é geral em uma
sociedade que, durante quase quatro séculos, esteve acostumada à escra-
vatura, naturalizando-a e que mantém um devir-escravocrata. Sendo assim,
parece “normal” tratar a diferença como objeto a ser destruído, exterminado
se não for útil para ser explorado até as últimas possibilidades. Fora essa
violência gratuita há, nesse pequeno trecho de entrevista, o exemplo da
manipulação identitária percebida no discurso referido ao contexto social
no qual o narrador está inserido. A fala desse advogado – eivada de itens
pertencentes ao sistema linguístico das favelas cariocas – só é possível ser
compreendida se for tomada pela perspectiva daquele que a profere, na
circunstância que a profere: indivíduo pertencente a uma classe superior e
portador de capital cultural legitimado (BOURDIEU, 2001; GOFFMAN,
1982). Aqui é preciso fazer um adendo para a questão da sutil violência lin-
guística que não se limita apenas ao grupo estudado e que, por homologia,
compara-se a outras instâncias sociais. Essa manobra simbólica apresenta o
caráter que Bourdieu – ao escrever sobre a apologia que alguns intelectuais
fazem a respeito do colorido da linguagem do gueto – bem frisou em seu
livro Meditações Pascalinas (BOURDIEU, 2001, p. 93):
[...] em lugar dos alunos de escolas de elite, a linguagem
inventiva e cheia de colorido, logo capaz de propiciar intensas
satisfações estéticas, dos adolescentes do Harlem, permanece
inteiramente desprovida de valor nos mercados escolares e
em quaisquer situações sociais análogas, a começar pelas
entrevistas de empregos [...] o culto da ‘cultura popular’, não
passa, no mais das vezes, de uma invenção verbal e inconse-
quente, portanto falsamente revolucionária [...] essa maneira
um tanto confortável de respeitar o ‘povo’, contribuindo, sob
a aparência de exaltá-lo, para encerrá-lo ou enfurná-lo no
que ele é [...] acaba proporcionando todas as benesses de uma
ostentação de generosidade subversiva e paradoxal , deixando
as coisas como estão, ou seja, uns com sua cultura (ou língua)
realmente cultivada e capaz de absorver sua própria subversão
elegante, outros com sua cultura ou língua destituídas de
qualquer valor social ou sujeitas a brutais desvalorizações.
Essa “hipocrisia douta ou esteticismo populista” (BOURDIEU, 2001,
p. 96) é outro tipo típico de violência simbólica presente nas relações
sociais estudadas. É o tipo de atitude dominante sutil que se manifesta na
fala dos “doutos”, ou indivíduos de classes superiores, portanto também

271
CÉSAR SABINO

entre alguns acadêmicos que fazem fama e dinheiro usando itens culturais
e lugar de fala dos nativos que estudam ou dos subordinados com quem
convivem em suas relações de mando e ordem. Esses think tanks da miséria
são a romantização oportunista-acadêmica – mas não apenas – que mani-
festa a lógica da política populista, seja de direita ou “esquerda”, a qual, não
raro, utiliza-se da condição inferior alheia, sob o pretexto do “respeito à
diversidade”, para promover suas carreiras, denegando e ignorando, em
seu inconsciente escolástico, o processo de apologia e manutenção das
desigualdades que essa própria apologia à diversidade articula quando não
é dada a oportunidade, de fato e direito, ao diverso, das condições institu-
cionais que o permitam construir o próprio discurso sobre si mesmo e suas
condições de existência. Nesse desdobrar, entra o aspecto da circularidade
cultural, que anteriormente abordei, a qual, ao exaltar a cultura popular,
o faz com a intenção de manter o status de sua posição analítica segura,
subsumindo o diferente à identidade do observador circunstancialmente
complacente, assim como o sentimento, mesmo inconsciente ou recalcado,
de superioridade confortável daquele autorizado institucionalmente a emitir
discursos e julgamentos sobre os sofredores e inferiores – seus “objetos de
estudo” –, do qual se arroga porta-voz eventual, retirando dessa profissão
de “bom samaritano intelectual” suas regalias materiais ou simbólicas, sua
posição privilegiada no seu campo profissional – acadêmico, jornalístico ou
político. Esse tipo sutil de violência simbólica nada contribui para minorar
a tradicional violência física presente na sociedade brasileira de tradição
escravocrata e escravizante. Processo homólogo se configura quando indi-
víduos de classe média ou alta (como esse advogado, conhecido no meio
como pessoa abastada) apropriam-se das categorias, dos comportamentos
e do estilo dos marginalizados da classe baixa, romantizando essa condição,
para demarcar na verdade as estruturas da desigualdade que marcam as
relações sociais. Esse é um processo homólogo à cismogênese capitalista
que se movimenta e se adequa a todas as bandeiras identitárias e contes-
tatórias absorvendo-as e transformando-as em mercadorias. Com efeito,
movimentos sociais, como os movimentos negro, feminista, LGBTQIA+
etc., transformam-se em temas de publicidade, filmes, novelas, séries tor-
nando-se produtos rentáveis (SANTOS, 2020), da mesma forma que as
imagens-produto nas plataformas digitais e redes sociais. As relações de poder,
portanto, são dúcteis, flexíveis, transversais às instituições, organizações e
indivíduos. Jamais param de se flexibilizar, exigindo resistência intermi-
tente e renovada a cada instante, tanto por parte dos agentes sociais como

272
DROGAS DE APOLO

dos grupos. Não há uma fórmula geral e definitiva de combate à substância


poder, simplesmente pelo fato de ela não existir como tal, mas apenas como
exercício, fluxo, movimento (FOUCAULT, 1993; GUATTARI; ROLNIK,
1997; DELEUZE; GUATTARI, 2010).
Necessária se faz uma constante “crítica da crítica crítica”, para lem-
brar Marx e Engels em A Sagrada Família, cujo objetivo seja compreender,
em um processo de análise que Nietzsche (1988) denominou genealogia da
moral, as intenções, a vontade de poder, que sustentam sub-repticiamente,
a narrativa, ou o discurso, que se diz e se quer piedoso e, não raro, igualitá-
rio, mas que, na prática cotidiana de seus emissores, mantém os elementos
opostos de suas afirmações éticas. De qual posição social, quais interesses
particulares ou perspectiva cultural a narrativa diz o que está dizendo: “pois
todo impulso ambiciona dominar: e portanto procura filosofar [...] uma
criatura viva quer antes de tudo dar vazão a sua força – a própria vida é
vontade de poder [...] toda opinião é também um esconderijo, toda palavra
também uma máscara” (NIETZSCHE, 1993, p. 13, 20, 193). Esse processo,
em geral, ocorre de forma inconsciente ao próprio emissor.
Retornando à Violência presente no grupo estudado, ela carece de
reciprocidade ou de vindicabilidade, tornando-se gratuita e vazia. Ela
denuncia a presença do alto risco embutido em uma relação social que
envolve a diversidade cultural (BECK, 1996) a qual permite que o medo e sua
dissimulação, por meio da reação de ódio, ou uso de armas de fogo, perpas-
sem as relações entre os grupos e pessoas, instaurando a concepção de que
qualquer um pode ser um inimigo em potencial. O sentimento generalizado
de medo é o reconhecimento do grau de risco real das relações em que as
pessoas se tratam não como semelhantes, mas como coisas (MACHADO,
2003). As relações sociais nas quais a Violência se faz manifesta têm estado
presente no cotidiano daqueles que vivem nos grandes centros urbanos – e
as academias de fisiculturismo não escapam a essa situação.
Por exemplo, praticantes de jiu-jitsu, (fisiculturistas, veteranos ou não)
são os que enumeram maior número de confusões com agressões físicas
ou homicídios até o ano de 2003. O Rio de Janeiro é a capital nacional dos
praticantes dessa arte marcial. Em 1999 existiam mais de 400 academias que
ensinavam jiu-jitsu. O maior número em todo país (Veja, 3/02/1999). No
verão do mesmo ano, em um espaço de poucos meses, a imprensa noticiou
a morte de duas pessoas envolvidas em brigas provocadas por lutadores
dessa arte marcial. A identificação desses jovens se realiza pelas orelhas

273
CÉSAR SABINO

deformadas pelo constante atrito, nos treinos diários, com a lona do tatame.
Atrito provocado por gravatas e chaves de perna. A cartilagem, fraturada
e esfarelada, conforme cicatriza deixa a orelha sempre inchada e disforme
sem as divisões características do pavilhão auricular. Nas academias estu-
dadas, chamam “orelha de repolho”. São insígnias entre os frequentadores
dos tatames, símbolos corporais que conferem maior destaque àquele que
ostentar o pavilhão mais devastado. O culto à agressão gratuita tem sido
outra característica desse grupo: “Se o camarada fica me olhando, vou lá
perguntar o que é. Dependendo da resposta, arrebento a cara dele” (Rodrigo. 19
anos. Estudante). Além disso, outra característica dessa “tribo urbana”, são
os dedos levemente tortos com nódulos nas juntas de tanto dar socos, a mão
muito calejada pela prática intermitente de musculação e a cabeça raspada
ostentando apenas um topete. Alguns desses jovens vão às boates e bailes,
nos finais de semana, com o intuito de arrumar atritos, confusões e brigas.
Em algumas segundas-feiras, encontrei, pelos vestiários das academias,
integrantes desse grupo contando proezas. Suas idas em bandos a bailes,
dirigindo caminhonetes – outro objeto de adoração dessa tribo que prefere
carros grandes e fortes –, lá se apressam em consumir bebidas energéticas
à base de cafeína e aminoácidos misturadas com uísque e vodka. Quando
agitados, começam a abordar, esbarrar e mesmo agarrar mulheres que acham
bonitas e, com a eventual reação de outros para defendê-las, inicia-se a pan-
cadaria. Frequentemente acabam nas delegacias de polícia, mas, como são
de classe abastada, dificilmente ocorre punição de fato, pois dizem subornar
policiais ou ligam para conhecidos ou parentes influentes que resolvem
seus problemas com a Lei. São também aficionados por campeonatos de
Vale-Tudo (competições em um ringue em que só é proibido enfiar o dedo
no olho do adversário ou mordê-lo. Foram proibidas anos depois) e lutas
de boxe. Uma possível mudança desse comportamento talvez sobrevenha
ao grupo pela atuação de seus próprios professores e empresários desses
esportes que, cada vez mais, tornam-se objeto de repreensão das autorida-
des e opinião pública, o que ameaça o exercício da profissão daqueles que
vivem do ensino e transmissão dessa arte marcial.
Da perspectiva de Elias e Dunning (1990; 1993; s/d), essa prática
corporal de lutas precisaria passar por um processo civilizatório com a
diminuição de sua brutalidade para poder transformar-se em esporte. De
acordo com os autores (1994), o surgimento do esporte representou um
item singular do processo civilizatório, ocorrido em um período específico
de algumas sociedades ocidentais, no qual o controle dos enfrentamentos,
274
DROGAS DE APOLO

da brutalidade e da violência destrutiva se manifestou por intermédio da


codificação de regras. Essas regras estabeleceram que os embates entre
indivíduos e equipes deveriam se realizar sem colocar em perigo os corpos
e as vidas produzindo, pari passu, uma tensão prazerosa por meio do rela-
xamento modulado das pulsões emocionais. O conceito de civilizado – ou
de processo civilizatório ou civilizador – nessa abordagem nada tem do
etnocentrismo peculiar às tradições positivistas ou perspectivas desenvol-
vimentistas da sociologia econômica. Busca apenas destacar as estratégias
sociais de longa duração visando à criação de dispositivos de regulação e de
controle das pulsões de confronto (CHARTIER, 1994; ELIAS, 1993). Essa
busca de liberação controlada das emoções parece indicar que as socie-
dades ocidentais, em algum momento de suas histórias (em outros não),
empreenderam estratégias de manutenção de domínio sobre os perigosos
vetores pulsionais destrutivos presentes em grupos os quais, desde o início
de suas existências, buscaram desenvolver um racionalismo gradativo que,
paradoxalmente, ao dominar o mundo, corria o risco de perder o controle
desse mesmo domínio. Elias, herdeiro de uma tradição sociológica alemã
anti-hegeliana, compreendia que o processo civilizatório não se apresenta
como sinônimo de história-progresso, mas sofre retrocessos que podem ser
observados ao longo da história, como demonstra o exemplo do nazismo90
(ELIAS, 1996).
Ao que parece, esse retrocesso vem ocorrendo desde, pelo menos, o
início do século XX, sendo ele mesmo o produto de um movimento his-
tórico de longa duração característico do capitalismo. Assim, a violência
presente nas academias pode ser um sintoma de uma situação muito mais
ampla que se reflete e reproduz no funcionamento dessas instituições
de culto ao corpo e à forma: a situação de violência pervasiva ou difusa
que denomino Violência. Há que se esclarecer as sutis modulações rela-
cionadas às categorias de poder e violência. Pode-se considerar, grosso
modo, poder como forma de exercício da dominação que se caracteriza
pela legitimidade e pela capacidade, proporcionada por essa, de negociar
90
Conforme Novaes (1999, p. 11) e Abdelwahab Meddeb (1999, p. 171-196), o Islã, de forma similar, criou
uma das maiores e mais consistentes civilizações que não apenas aceitava as diferenças, e com elas convivia,
assimilando-as, como produziu também uma revolução nos campos do saber, indo das artes à ciência passando
pela arquitetura, geometria, álgebra, matemática em geral; tudo exatamente produto da confluência – e de suas
traduções árabes –, de elementos gregos, latinos, indianos, persas e chineses. Esse processo civilizatório apresentou
seu auge entre os séculos IX e XII quando regrediu (processo descivilizatório) de forma intensa pela força autoritária
da teologia política maniqueísta: “o Islã da decadência [civilizatória] seria precisamente a do maniqueísmo [...],
uma crença definitivamente fixada, que execra qualquer inovação; um pensamento conservador que fecha as
portas às críticas da razão; a ausência de sábios e espírito científico” (MEDDEB, 1999, p. 192).

275
CÉSAR SABINO

o conflito e estabelecer o consenso; ou seja, o poder é a possibilidade


que tem o indivíduo ou o grupo de realizar sua vontade. Ele – o poder
– necessariamente se estabelece na coerção simbólica, não apenas econô-
mica (WEBER, 1995; BOURDIEU, 1987); essa sedimenta a organização
social fazendo com que um grande número de pessoas siga, obedeça a,
um número menor ou lideranças.
Por sua vez, a prática que concretiza o processo reproduz a dimensão
simbólica que o organiza. Eventualmente, a coerção física é utilizada para
reiterar essa ordem, e a intensidade de tal coerção deve estar em harmonia
com a legitimidade do sistema simbólico que, por sua vez, tautologicamente
a legitima. O aumento de intensidade da coerção física é proporcionalmente
inverso à coesão sustentada pela coerção simbólica; o que significa dizer que
a desmesura da violência física representa um sintoma de esgarçamento do
tecido social e, paradoxalmente, a piora dessa condição haja vista que, quanto
mais violência física se utiliza, menos legitimidade se tem (ARENDT, 1990;
1994; RIELLA, 1999). A solidez do poder e da coesão social, portanto, estaria
assentada sobre dispositivos disciplinares apreendidos pelos indivíduos
em um processo de inculcação institucional que, ao atuar no inconsciente
coletivo, reproduziria a hierarquia da sociedade (ELIAS, 1983; BOURDIEU,
1987; FOUCAULT, 1993). Quando a intensidade da violência material se
expande, chegando ao limite de ameaçar as condições de sobrevivência dos
grupos sociais, ela representa a antirrelação, ou a “relação social inegociável”
(RIELLA, 1999, p. 137), e estabelece o fato de que a ordem social se debilita
quando se debilitam suas formas efetivas, simbólicas, de controle social.
Um fator primordial de manutenção da coesão social é a dádiva, ou que
Mauss denominou o dom ou dádiva (MAUSS, 1974). O caráter precípuo da
experiência do dom é sua ambiguidade: de um lado, essa experiência é, ou
pretende ser, vivida como rejeição do interesse, do cálculo egoísta, como
exaltação da generosidade, da dádiva gratuita e sem retribuição; de outro,
nunca exclui completamente a consciência da lógica da troca91 que é a de
retribuir a dádiva, em um ato de gratidão, seja de que tipo for, quando o
momento propício surgir (BOURDIEU, 1996a). A dádiva, enquanto ato
generoso, gratuito e teoricamente sem retribuição necessária, embora dene-
gada, estabelece-se (se for tomada a lógica econômica do lucro capitalista)
como economia antieconômica que não se pauta sobre a prática do cálculo
91
A troca é fator primordial de manutenção da sociedade: “ toda cultura pode ser considerada como um con-
junto de sistemas simbólicos em cuja linha de frente colocam-se a linguagem, as regras matrimoniais, as relações
econômicas, a arte, a ciência, a religião” (LÉVI-STRAUSS, 1974, p. 9).

276
DROGAS DE APOLO

racional, portanto necessariamente consciente92. Dessa forma, a disposição


calculista que surge com o racionalismo ocidental é a antítese perfeita da
disposição generosa, ameaçando-a. De acordo com Weber, a ação econômica
capitalista define-se como aquela
[...] que repousa sobre a esperança de um lucro pela exploração
de possibilidades de troca, isto é, sobre chances (formalmente)
pacíficas de lucro [...] o que conta é que uma estimativa do
capital seja feita em dinheiro [...] o importante para nosso
conceito, o que determina aqui a ação econômica de forma
decisiva, é a tendência efetiva a comparar um resultado
expresso em dinheiro com um investimento avaliado em
dinheiro (WEBER, 1985, p. 12).
A ordem econômica e social, radicada na calculabilidade e na previsibili-
dade, que transforma os seres humanos, como escreveu Mauss, em “máquinas
de calcular” (1974, p. 177) apresenta a tendência à dissolução sistêmica, posto
que retira da ordem social o espírito de generosidade e, portanto, de coesão.
O individualismo racionalista retirou o interesse na generosidade ao postular
que o egoísmo individual serviria de base ao bem comum, propiciando que a
lógica da economia capitalista invadisse as dimensões das relações sociais em
que, até então, reinava a economia interessadamente. Esse processo de busca
suprema pela autossatisfação, reiterada hoje pelo consumo de bens, acaba por
transformar relações sociais – e o corpo do outro – em relações de vantagens.
Esse fetichismo da mercadoria93 (MARX, 1983) termina por reencantar no
consumo o desencantamento do mundo que Weber (1981) havia ressaltado
como próprio produto do capitalismo, no qual a relação coisificada com o
próximo produz. Em suma, a calculabilidade e a razão instrumental inerente
aos negócios empresariais transbordaram para o cotidiano, para a vida parti-
cular ou esfera da vida privada (HABERMAS, 1992) – Marketing Pessoal –,
levando as relações a se manterem na efêmera superficialidade das aparências
e do interesse coisificante (LUZ, 1999). A transposição da economia do lucro
para as dimensões às quais ela não está adequada vem engendrando uma não
relação ou mesmo uma antirrelação social.
O uso do outro como meio de satisfação (objeto do qual se deve extrair
um determinado lucro para depois ser abandonado em detrimento de outro

92
Mauss escreve: “Foi preciso a vitória do racionalismo e do mercantilismo para que fossem postas em vigor
e elevadas à altura de princípios as noções de lucro e de indivíduo” (1974c, p. 176).
93
“A forma mercadoria [...] não é mais nada que determinada relação social entre os próprios homens que para
eles aqui assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas” (MARX, 1983, p. 71).

277
CÉSAR SABINO

objeto) alimenta essa formação crescente da Violência. Tal característica


vem tomando feição singular na atualidade devido a fatores relacionados à
mundialização do crime organizado, à diminuição das relações de trabalho e
à globalização cultural, além do enfraquecimento do Estado. Os tradicionais
mecanismos disciplinares estudados por Foucault (1987; 1993; 1997) estão
gravemente debilitados94, perdendo sua eficácia, justamente pela falta de
crença coletiva nas instituições que os aplicavam. Assim, o retrocesso da
dominação institucional – percebida pela tentativa desesperada por parte
dos governos de todo o mundo em aumentar a repressão à violência utili-
zando a própria violência (PAIXÃO, 1994; RIELLA, 1999; WACQUANT,
1999) – sugere o fortalecimento da violência difusa, concreta (Violência)
já que os instrumentos da dominação institucional radicados na violência
simbólica perdem sua eficácia. O autocontrole das paixões e dos medos
produzido pelo processo civilizatório se dissolve fazendo retornar a disputa
aberta calcada na busca desenfreada e destrutiva de prestígio social, bens
materiais e gozo a todo custo.
O fisiculturismo pode ser classificado como um exemplo de esporte
no qual o controle da violência se manifestou de forma efetiva e intensa.
Sem contato físico, com competições baseadas na performance estética dos
participantes e com uma descarga de energia voltada contra os pesos e o
próprio corpo, a prática seria o exemplo de disciplina e autocontrole que
objetivaria criar cidadãos altruístas e equilibrados. De fato, todo o discurso
presente em livros e publicações voltadas para a musculação ressalta essa

94
Não é prudente, contudo, confundir – como fazem alguns – os estudos de Foucault a respeito da sociedade
disciplinar e o processo civilizatório de Elias. Parece que para Foucault o surgimento da disciplina apresentava,
algumas vezes, a tendência a produzir efeito contrário àquele proposto inicialmente. Se, por exemplo, as instituições
disciplinares, como o manicômio e a prisão, propunham-se – e ainda se propõem – a recuperar o louco e o delinquente,
não é isso que necessariamente realizam: “a organização de uma penalidade de enclausuramento [...] é enigmática.
No exato momento em que era planejada, constituía também o objeto de violentas críticas [...] formuladas a partir
de todos os disfuncionamentos que a prisão [por exemplo] podia induzir no sistema [visto que esta] impede o poder
judiciário de controlar e aplicar as penas. A lei não penetra nas prisões [...] a prisão misturando os condenados [...]
constitui uma comunidade homogênea de criminosos que se tornam solidários no enclausuramento e [...] no exterior.
A prisão fabrica um verdadeiro exército de inimigos interiores [...] os hábitos de infâmia que marcam as pessoas que
saem da prisão fazem com que sejam definitivamente fadadas à criminalidade. Logo, a prisão [e o mesmo pode ser
dito do manicômio] fabrica aqueles que essa mesma justiça mandará encarcerar, uma ou mais vezes” (FOUCAULT,
1997, p. 29-30). Assim, ao contrário de integrar os excluídos, as instituições e organizações, não raro, tenderiam
a excluí-los de forma ainda mais eficaz e refinada. Contudo, as obras dos dois autores confluem quando Foucault
ressalta o aspecto positivo, integrativo e produtor do poder e da disciplina.

278
DROGAS DE APOLO

característica95. Como explicar que, ao menos em parte significativa das


academias do Rio de Janeiro, a violência esteja tão presente escapando
mesmo ao controle?
Uma hipótese é que a disciplina extrema que necessita do conheci-
mento do risco de morte construído pelo uso contínuo de fármacos, além
da árdua e dolorida disciplina cotidiana, em algum momento, faz com
que essa violência contra si mesmo seja exteriorizada, tornando-se ação
contra o outro de forma objetiva ou simbólica. A busca individualista pelo
capital estético que a cultura bodybuilder, centrada em valores neoliberais
de conduta e masculinidade engendra, esconde relações de exploração de
classe, gênero e raça tradicionais da sociedade brasileira, reproduzindo-as
agora em outro patamar no qual o corpo-imagem-empresa-de-si continua
relegando ao indivíduo – e não às condições sociais e oportunidades na
qual se encontra e com as quais se depara – a culpa por sua condição e
suposto fracasso. Esses agenciamentos coletivos de subjetividades, dentre
outros, referidos à estética, torna, repetindo Foucault, corpos dominados
dóceis aceitando condições que os impedem de chegarem aos recursos que
possibilitariam a transformação da sua condição dominada.
Consolidando esse processo, do ponto de vista da Saúde Pública,
há com frequência a masculinidade deletéria e tóxica para aqueles que a
representam e que, a todo custo, nela necessitam se encaixar. Masculinidade
que traduz representações e práticas relacionadas à violência, competição
e agressão como ideais de afirmação de virilidade e autoridade. Assim,
a valorização do sofrimento até o limite máximo sem demonstrar sen-
sibilidade (“homem não chora”), cultivo da dor física, o que pode causar
lesões irreversíveis e morte, apologia à crueldade e à dureza de espírito,
95
No editorial de uma das principais revistas de fisiculturismo, publicada pelo megaempresário do bodybuilding
e fitness Joe Weider, vendida em quase todo o mundo, está escrito: “strive for excellence, exceed yourself, love
your friends, speak the truth, practice fidelity, and honour your father and mother. These principles will help you
master yourself, make you strong, give you hope and put you on the path to greatness” – “Lute pela excelência,
supere-se, ame seus amigos, fale a verdade, pratique a fidelidade e honre seu pai e sua mãe. Esses princípios o
ajudarão a ter autodomínio, o farão forte, dar-lhe-ão esperança e o colocarão no caminho da grandeza” (Muscle
and Fitness, sept. 1998, p. 12). Nos últimos 20 ou 30 anos, pode ter ocorrido sensível transformação nas práticas
de adeptos do fisiculturismo e dos esportes de academias em geral; práticas que têm se radicado em uma cultura
das sensações e não dos sentimentos. Cultivar a forma musculosa pode ter deixado de ser o símbolo da disciplina
e reprodução de projetos pessoais ligados ao coletivo (família, amizade, honra à tradição etc.), passando a ser a
busca solitária pela imagem refletida na beleza, na categoria saúde e na juventude consideradas itens fundamentais
para o consumo individualista da existência. Esses mandamentos talvez reflitam uma ética que já não funciona
na prática das academias. Tal aspecto pode ser percebido pelas análises de antigas revistas de fisiculturismo da
primeira metade do século XX (La Culture Physique. Paris: 11e année. N. 216 1.er janvier 1914; Charles Atlas.
Salud y Fuerza Perdurables, NY. 1947; Howett, George. How to Achieve Nerves of Steel Muscles like Iron. New York:
The Jowett Institute of Phisical culture, 1950).

279
CÉSAR SABINO

ausência de empatia e desprezo ao sofrimento alheio (sempre visto como


algo procurado pelo sofredor, portanto merecido) pode fazer parte da
socialização bodybuilder construindo, em consonância à musculosidade,
um habitus repleto de elementos antifeminilidade, agressividade, com-
petitividade visando à violência como sinônimo de autoridade sobre
si mesmo e outros e destaque. Esse modelo de macho encontrado entre
fisiculturistas, mas não apenas, é, sob nosso ponto de vista, reflexo do
campo esportivo específico, mas também da sociedade androcêntrica
geral. Dutra e Orellana (2017, p. 152), ao estudarem discursos e imagens
masculinas no Tinder, escreveram:
A toxic masculinity se baseia em competir com os outros
homens e outras mulheres e dominá-los, sendo uma tendên-
cia problemática dos homens. Essas tendências masculinas
promovem a resistência à dor, à sensibilidade e à psicote-
rapia e se apresentam geralmente sob a forma de estresse e
complexidades da vida do homem moderno. A relação entre
masculinidade hegemônica e masculinidade tóxica integra
dinâmicas individuais e institucionais que intensificam a
masculinidade tóxica, ocasionando, muitas vezes, obstáculos
estruturais ao tratamento de saúde mental. Geralmente a
masculinidade tóxica está atrelada à violência e agressão como
um ideal cultural da própria masculinidade onde a [imagem
da] força é tudo, e onde, como consequência, acidentes e [...]
mortes acontecem.
Essas perspectivas podem também representar posições políticas e
micropolíticas anti-LGBTQIA+, misóginos, pró-armamentistas, objeti-
ficadoras de mulheres, anti-intelectualistas, ultraindividualistas, além de
sustentarem discursivamente a hipersexualização do cotidiano, produzindo
bazófia como necessidade constante de afirmação de heterossexualidade
(GOMES DA SILVA, 2000).
Resta saber, repito, se essa Violência transversal ao cotidiano é uma
manifestação passageira de um momento, ou formação social, ou se é uma
constante da sociedade brasileira em geral, refletida nesse dia a dia das
academias de musculação e bodybuilding. Se esse for o caso, ela não neces-
sariamente deixa de ser anômica, mas torna-se um elemento crônico e
mesmo estrutural do sistema social nacional. Uma Violência crônica desse
tipo tornar-se-ia estruturada pelas práticas dos agentes sociais e estruturante
delas mesmas posto tornar-se meio de manutenção da (des)ordem inerente
às relações de dominação e suas representações de autoridade.
280
DROGAS DE APOLO

6.4 BÁRBAROS E CIVILIZADOS

Dunning, em seu estudo sobre os violentos torcedores hooligans,


escreve que a maior parte dos componentes desses grupos de jovens desor-
deiros advém dos extratos inferiores das classes baixas inglesas. Excluída
e marginalizada, essa parcela da sociedade estaria apartada do processo de
civilização pertinente aos outros grupos sociais. Devido a tal exclusão, que
não teria permitido a interiorização do controle necessário da agressividade,
esse grupo construiria a violência enquanto valor social, respaldando a con-
cepção de status inerente àqueles que se veem, e desejam ser vistos, como
outsiders (DUNNING; MURPHY; WILLIANS, 1994), em consonância com
o fato de que tal postura liminar e antiestrutural confere sentido de poder
aos que a sustentam. Contudo, os praticantes de fisiculturismo aqui estuda-
dos são, em sua maioria, provenientes do que se pode denominar camadas
médias urbanas, como dito anteriormente. Em vez de serem excluídos por
forças estruturais de carência ou impedimento institucional, esses jovens
cultivam o fascínio da condição de excluído tendo, porém, como fiduciário
sua condição de pertencentes a um extrato social brasileiro que, apesar de
ter sofrido redução em seu poder aquisitivo nas últimas décadas, ainda
se mantém, mutatis mutandis, como superior. O acontecimento a seguir,
registrado em meu diário de campo, em outubro de 2000 em uma academia
do bairro da Tijuca, pode sugerir, ao menos parcialmente, essa concepção:
Chego à academia, são 15:49. Este horário ainda apresenta um
número reduzido de pessoas nos salões de musculação; elas vão em
número cada vez maior até às 18:00 quando todas as salas tornam-se
superlotadas e o estridente barulho dos pesos de ferro em colisão e
falatório geral invadem todo o ambiente. Por volta das 16:10 chega
Daniel, um fisiculturista que veio de São Paulo com sua namorada
e que agora está morando em um apartamento no bairro do Estácio.
Daniel parece bastante irritado [...] Logo percebo que não é o efeito
colateral de alguma droga que o deixa assim, mas que algo errado
aconteceu entre ele e outro de nome Gilberto. Pergunto à Glória,
recepcionista, o que está acontecendo. Ela diz: Hoje vai ter briga
aqui... o Daniel está aborrecido com o Gilberto porque ele andou
dizendo que o Daniel tá saindo com a Carla, e a mulher dele [do
Daniel], parece que ficou desconfiada e brigou com ele”. Quando
Gilberto chega Daniel vai tomar satisfações e rapidamente surge uma
discussão entre os dois repleta de acusações e impropérios. Gilberto
agride o outro que se atraca com ele, mas apesar da audácia, ele é
menor e mais fraco; os dois caem por cima dos aparelhos e a gritaria

281
CÉSAR SABINO

e o alvoroço é geral. Na mesma hora fico pensando no perigo que me


ameaça, já que logo vão me pedir para ajudar a separar a contenda
entre os dois brutamontes. Mas felizmente não é preciso, Gilberto
joga uma anilha de 10 quilos no pé de Daniel, mas não acerta, e sai
correndo com a camiseta rasgada em direção à rua, fugindo. Daniel
diz que não está machucado e fica tentando explicar para todos que
estão chegando, sem saber de nada a respeito do ocorrido, o motivo
da agressão. Quando eu já pensava que Gilberto havia sumido e
que provavelmente não apareceria mais na academia, pelo menos
durante uns bons meses, ele reaparece com três camburões da Polícia
Militar. Destes descem seis soldados e um oficial (um capitão) que
é quase idêntico ao Gilberto – obviamente irmão gêmeo dele. Os
policiais, dois portando fuzil, um com uma pistola em punho e o
oficial segurando algemas, entram na academia em busca de Daniel
que não tem como escapar. O irmão de Gilberto dá voz de prisão a
Daniel dizendo: ah, você que é o valentão, né? Vai tomar porrada
pra ver o que é bom. Um dos soldados mantém constantemente o
fuzil apontado para ele. O capitão então desfere tapas no rosto de
Daniel, algemando-o com as mãos para traz. Como as algemas ficam
muito apertadas, Daniel reclama, o que apenas agrava sua situação,
pois o sósia fardado de Gilberto aperta ainda mais as pulseiras de
aço, levando o fisiculturista para a caçapa do camburão parado na
calçada em frente à academia. Vão todos para a delegacia. Após este
acontecimento Daniel sumiu da academia. Encontrei com ele no
Estácio, por acaso, em uma tarde de domingo. Viu só o que aquele
otário fez comigo? Ele se garante na familiazinha dele, por isso que
é folgado, ele deu parte de mim e naquele dia fiquei a noite toda
na delegacia, mas tudo bem agora tô treinando lá na [academia]
Neves; o pior é que não posso fazer nada com aquele mané, por que
a polícia tem meu endereço, telefone, tudo [...]
Como escrevi anteriormente, a prática da musculação, em determi-
nadas circunstâncias, pode servir de instrumento para a potencialização da
agressividade e expansão de um egocentrismo fadado a não perceber “que
o mundo não foi feito para nossa conveniência pessoal” (LASCH, 1995, p.
278). Diante disso, o domínio das técnicas corporais do fisiculturismo (do
mesmo modo que as técnicas das artes marciais) pode ser um exemplo de
desvio de propósito que pode caracterizar um possível retrocesso civiliza-
tório ou um breve retrato de uma sociedade que nunca passou por um de
fato. Se os indivíduos pertencentes às camadas médias urbanas não passam
pela privação direta dos meios de sobrevivência ou pela exclusão institucio-
nal, eles, ao menos nesse caso, cultivam certo fascínio pela marginalidade
criminosa devido ao fato de valores como virilidade, força, agressividade e

282
DROGAS DE APOLO

resolução de conflitos sem a mediação jurídico-estatal serem transversais


às classes socais no Brasil, mormente no Rio de Janeiro. Esses elementos
culturais, associados à extrema desigualdade social, talvez ajudem a fazer do
país um dos mais violentos do mundo. Por conseguinte, podemos afirmar
com Nazareth (2020, p. 10, 12) que no Brasil o Estado não se mostra capaz
de cumprir sua missão civilizatória a contento, pois provoca a sensação de
desordem e medo, negando à sociedade o mais básico em educação e saúde,
o que, em vez de pacificar, só faz aumentar a latência disruptiva presente
no dia a dia. O não reconhecimento social da legitimidade da existência do
outro, da capacidade do diálogo e da política de encaminhar soluções para
conflitos coletivos por intermédio do diálogo democrático, parlamentado,
na persuasão, sob regras consensuais da disputa política, impede, não raro, as
tensões manterem-se sob níveis equilibrados ou harmônicos. Se isso não for
transformado, provavelmente, haverá emergência, cada vez mais, frequente
dos impulsos de destruição, banalização e eliminação do outro, do ódio ao
diferente transformado em inimigo mortal a ser varrido da face da Terra.
A atitude de admiração ao mundo do crime e suas organizações e
ao poder paralelo que delas emana, talvez, seja exacerbada pelo tradicio-
nal autoritarismo ligado ao patrimonialismo característico das relações
cotidianas no Brasil. Se a lógica do “sabe com quem está falando” está
presente em várias circunstâncias da vida nacional, no caso específico
das academias de musculação, ela também se faz atuante. Não é incomum
acontecer, por exemplo, alguém com aparência mais fraca – um neófito
ou aluno pouco musculoso – ser impedido (apesar de pagar as mesmas
mensalidades que os veteranos e fisiculturistas, às vezes até mais) de fazer
exercícios em determinadas máquinas ou pesos pelo simples fato de haver
um ou mais “influentes” no campo (fisiculturistas ou veteranos) monopo-
lizando aparelhos e pesos. É cena comum nas academias – principalmente
a partir da primavera em diante – grupos de veteranos e fisiculturistas
encostarem-se em aparelhos ou carregarem pesos para o local no qual
estão reunidos impedindo, assim, qualquer indivíduo que não pertence
ao mesmo grupo de utilizá-los, em uma flagrante ausência de concepção
cidadã. A aglomeração de seletos cultuadores dos músculos também
impede o trânsito de pessoas comuns nos recintos. Muitas vezes observei
esses indivíduos exercitando-se em abdominais nas principais passagens,
inclusive entrada e saída das academias, impedindo o trânsito normal
das pessoas, como se esses mesmos indivíduos tivessem a autoridade e o
direito de se apropriar, privatizar, o espaço coletivo.
283
CÉSAR SABINO

Sem embargo, a prática sugere a existência de uma violência simbólica


autoritária característica de dimensões societárias relacionais e patrimo-
nialistas como a nossa. Prática que pode vir a diminuir com o tempo, ou
no pior dos casos, intensificar-se. Essa característica do tão falado “jeiti-
nho” brasileiro, que propicia “levar vantagem em tudo” e instrumentalizar
o outro como coisa, é a marca de longa duração das relações escravistas
que perdura no cotidiano nacional (DA MATTA, 1979; 1991; BARBOSA,
1992; 1999). O uso ilegítimo da violência em suas dimensões cotidianas,
subjetivas (micropolíticas de autodestruição) e estatais (macropolíticas) é
capaz de nos levar a repetir com Ortega y Gasset:
[...] o homem sempre recorre à violência: algumas vezes
esse recurso era simplesmente um crime [...] outras vezes
a violência era o meio a que se recorria depois de se terem
esgotado todos os outros para defender a razão e a justiça
que se acreditava ter [...] a civilização não é outra coisa senão
a tentativa de reduzir a força à ultima ratio. Agora começamos
a enxergar isso com extrema clareza, porque a ‘ação direta’
consiste em inverter a ordem e proclamar a violência como
prima ratio; a rigor como única razão. Ela é a norma que
propõe a anulação [da] norma, que suprime todo interregno
entre nosso propósito e sua imposição. É a Charta Magna da
barbárie. (2002, p. 107. Grifos do autor).
Diante do exposto, é preciso retornar à polêmica questão do que vem a
ser bárbaro e civilizado. Adotamos neste livro o relativismo como ferramenta
analítica e não como uma espécie de imperativo ético. Não há espaço neste
trabalho para a discussão sobre o tema que envolve pensadores que vão de
Platão, passando pelos sofistas, Nietzsche, até Habermas e Deleuze. Fora o
imenso e consistente debate dentre os gigantes intelectuais da disciplina que
praticamente o reinventou na era contemporânea: a Antropologia Cultural ou
Social. Basta aqui reiterar que, tanto em estudos sociológicos como antropo-
lógicos, torna-se fundamental suspender as pré-noções (DURKHEIM, 1972),
buscar neutralidade axiológica (WEBER, 1992; 1997) e estudar os sentidos
e significados e as funções de uma instituição dentro do sistema social ou
cultural no qual ela está inserida, posto que, fora desse contexto relacional, ela
perde totalmente sua racionalidade (MALINOWSKI, 1978; LÉVI-STRAUSS,
1976a; 1976b; 1976c; 2012a). Não podemos estudar um grupo social, uma
sociedade e cultura, ou mesmo outro período histórico, armados com os valo-
res, crenças, verdades e certezas que constituem nossa própria sociedade. No
momento da observação, é preciso compreender os fatos ou os significados
284
DROGAS DE APOLO

sem julgá-los. Todavia, essa é uma ferramenta que auxilia a compreensão do


funcionamento de outros sistemas diversos daquele do observador.
O problema surge quando, em vez de utilizar o relativismo como
ferramenta de pesquisa, alguém o utiliza como princípio de vida equivalendo
ontologicamente todos os comportamentos e crenças, o que provoca uma
confusão filosófica com consequências niilistas dignas de Turgueniev. Esse
processo ético paradoxal de nivelar filosoficamente todos os valores pode
induzir aquele que o sustenta a correr o risco de nadar no vácuo da total
ausência de sentido da sua existência, posto que o ser humano é um ser que
raciocina e, ao fazê-lo, classifica e, inexoravelmente, confere valor a tudo
que afeta seus sentidos e razão, como Nietzsche tão bem ressaltou ao longo
de sua obra (1978a; 1978b; 1988; 1998).
A partir dessa perspectiva, darei seguimento à questão colocada no
início do capítulo sobre o que é ser civilizado ou bárbaro a partir do com-
portamento dos homens do grupo estudado buscando expandir a máxima
lévi-straussiana de que bárbaro é aquele que acredita na barbárie. Destarte,
minha posição é similar àquela formulada pelo pensador francês Francis
Wolff (2004, p. 19-40). Chamo de bárbara toda cultura, sociedade, ou grupo
social, que não dispõe, em sua estrutura, de meios de admitir, assimilar ou
reconhecer outra cultura, comportamentos e valores diversos dos seus. Em
outras palavras, bárbaro é todo aquele que não consegue admitir outras for-
mas de humanidade diferente da sua e que acredita que a única e verdadeira
forma de ser homem ou ser humano é ser igual a ele. Sem embargo, ele rejeita
a humanidade do diferente e a diferença como elemento de humanidade
e do mundo o que supostamente lhe permite destruir e coisificar a alteri-
dade, visto ela não ser humana, mas sub-humana, ou mesmo inumana. Isso
permite, àquele que assim vê as relações sociais, perpetuar a depredação, a
crueldade, a destruição, a exploração, o extermínio e o genocídio dos que
não se comportam e não pensam como o suposto portador da Verdade e
da verdadeira Humanidade. A barbárie, ou sua cultura, não pode suportar a
diversidade e a divergência, necessitando destruir, da forma que for, aqueles
que se encontram fora de suas classificações morais; e mais ainda: um dos
itens fundamentais de seu movimento é a destruição da multiplicidade,
visando a nivelar, impor e dissolver qualquer discordância em relação a
sua Identidade e pensamento único.
Por outro lado, civilizações são caracterizadas por áreas culturais que
permitem a coexistência, de fato como de direito, de vários povos, sociedades

285
CÉSAR SABINO

e culturas com suas diferenças e potencialidades de diferir, permitindo sua


interpenetração e compreensão recíproca. Civilização não aceita qualquer
espécie de pensamento único, autoritário, totalitário ou de caráter fascista,
posto que ela configura como a possibilidade da diversidade de valores,
perspectivas, divergências e abertura constante para multiplicidades. Assim:
Uma cultura específica é “civilizada” quando, independen-
temente da riqueza ou pobreza [...] de seu nível de desen-
volvimento técnico, [...] tolera em seu seio uma diversidade
de crenças e práticas (excluindo-se, evidentemente, práticas
bárbaras). Uma cultura civilizada é sempre virtualmente
mestiça. Em suma, uma civilização é enriquecida por uma
pluralidade de culturas, enquanto uma cultura é bárbara quando
[aceita] apenas ela mesma, só pode ser ela mesma, permanece
centrada e, portanto, fechada sobre si mesma [acreditando] que
sua própria cultura é a única forma de humanidade possível
(WOLFF, 2004, p. 41-42, grifo meu).
Em consonância com essa afirmação, podemos acrescentar a concep-
ção ameríndia de Ailton Krenak que vem ampliar a compreensão do que
seria civilizado ou civilização quando escreve que a resistência indígena
consiste na negação da ideia ou representação de que somos todos essen-
cialmente iguais ou senhores da mesma identidade humana essencial. Para
ele, de acordo com o pensamento de seu povo e dos ameríndios em geral, é
urgente o reconhecimento da diversidade e da diferença, efetivando também
a recusa de que o humano é superior não apenas a outros tipos de homens,
mas também aos demais seres que vivem no planeta. Para o autor, só ado-
tando essa visão e prática, a humanidade conseguirá impedir o retrocesso
que a leva em direção ao abismo (KRENAK, 2019).
Portanto, processos civilizatórios relacionam-se tanto a sistemas
sociais e culturais como às formas de pensar coletivas e individuais, bem
como para opiniões e filosofias que aceitam, ou não, a diversidade, a plu-
ralidade e a diferença. A barbárie obviamente não é dada por condições
genéticas ou ditas naturais, não é jamais biológica, mas uma incapacidade
de pensar o múltiplo, os fluxos criativos e divergentes, a criação de novos
valores, tudo que pode ser, ou se tornar, uma nova forma de existência e, por
consequência, novas formas de relacionamentos e composições de afetos
nas infinitas possibilidades das relações sociais. Sendo assim, ela, a barbárie,
é um produto sociocultural (WOLFF, 1999). Com efeito, reformulando a
máxima de Lévi-Strauss, bárbaro é todo aquele que acredita na barbárie

286
DROGAS DE APOLO

referida à diferença e alteridade e não reconhece que o devir, incluindo os


fluxos sociais, diz-se em múltiplos sentidos. Portanto, aquele que nega e
renega toda a diversidade ao considerar como única verdade e possibilidade
de vida seu próprio modo de existência e valores, sua própria Identidade,
pode ser considerado bárbaro.

287
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O uso de esteroides anabolizantes por parte dos fisiculturistas estu-


dados relaciona-se à visão de mundo do grupo ou as suas representações sociais
(crenças, normas, valores, formas de sentir e pensar) e práticas (formas de
agir) calcadas no elogio a um paradigma estético de musculosidade e mascu-
linidade hipertrofiadas. Esse aspecto caracteriza a dimensão micropolítica
presente no grupo, ou seja, suas relações cotidianas de poder e dominação,
suas estratégias e negociações para conquistar os papéis ambicionados com
a ascensão social por intermédio da imagem, no caso. No entanto, também
mostram sua ligação direta com elementos simbólicos e práticos da macro-
política – ou política partidária e estatal, da cultura, da sociedade e da época
histórica na qual o grupo se insere. Isso é perceptível pela transversalidade
que a exaltação à violência estética, o elogio à destruição da diferença, o
modelo dominante androcêntrico se apresenta tanto em uma dimensão
social micro como em outra macro. Com efeito, os esteroides anabolizantes
surgem como item ritual a reforçar a reprodução das estruturas sociais de
dominação típicas não apenas do campo do fisiculturismo, mas também
da sociedade brasileira; estruturas calcadas no modelo patriarcal, patrimo-
nialista e autoritário. Esse, relativamente novo tipo de uso de novas drogas,
pode tanto ser contraposto ao uso de drogas “recreativas” tradicionais,
como a essas associar-se, objetivando a construção da chamada “forma
física ideal” ou uma imagem próxima daquilo que o grupo se coloca como
perfeita. Imagens jamais são neutras, evocam sempre as relações de poder
implícitas em sua produção, além de significarem a excelência ou a derrisão
em uma cultura ou sociedade.
Essas drogas que resolvi denominar drogas de Apolo são elemento
fundamental para a construção identitária dos indivíduos ou agentes sociais
do grupo observado e, em contraposição às opiniões vigentes que associam
o seu uso à ignorância dos efeitos de sua utilização ou ao desconhecimento
por parte desses mesmos usuários, digo que é justamente o conhecimento
e o reconhecimento desses riscos, a consciência objetiva e clara de seus
danos, a reflexividade investida no uso perigoso, e não raro mortal, o
item principal de sua eficácia ritual. Ou seja, o risco é conhecido por todos
usuários e há mesmo prazer, elogio a ele como etapa renovada de coragem
e como dispositivo prático eficaz nos ritos que consolidam e perpetuam a

289
CÉSAR SABINO

estrutura do grupo, ritos que têm no perigo da morte o emblema da cora-


gem, dureza e capacidade de liderança, pois, conforme sugeriu Bourdieu
(1996), os indivíduos aderem de maneira tanto mais decidida a uma ins-
tituição quanto mais severos e dolorosos tiverem sido os ritos iniciáticos
aos quais se submetem. O consumo de esteroides anabolizantes alimenta
a função hierarquizante na estrutura do grupo conferindo status aos usuá-
rios que demostram perícia em relação à manipulação e ao saber que têm
do seu uso na fabricação de uma imagem corporal próxima à ideal. Como
essas substâncias são, em sua maioria, hormônios sintéticos androgênicos,
atuando, portanto, na produção de caracteres sexuais secundários, elas
são esteticamente masculinizantes, o que sugere a existência de um louvor
estético e ético aos princípios fundantes da masculinidade dominante, ou
hegemônica, na cultura brasileira contemporânea – a imagem do macho
bem-sucedido, repleto de admiradoras, com poder de impor sua vontade e
objetivos. Esse louvor ao princípio ético-estético da masculinidade domi-
nante ou hegemônica, por parte de algumas mulheres fisiculturistas, eu
denomino Complexo de Piegan.
A invenção dessas técnicas corporais, testadas pelos próprios fisicultu-
ristas neles mesmos, pode ser observada in loco. O saber sobre esse tipo de
consumo se realiza, também, por intermédio da associação dessas mesmas
substâncias com outras, como remédios diversos e suplementos alimentares,
que são frequentemente experimentadas pelos próprios bodybuilders em sua
busca de construir músculos e diminuir adiposidade; corpos cada vez mais
próximos ao ideal de perfeição, em um movimento que remete diretamente
ao aspecto platônico presente na mentalidade dessas pessoas. Da mesma
forma, o uso de drogas para a construção estética e otimização da forma
relaciona-se ao processo denominado, desde a década de 70 do século XX,
medicamentalização da sociedade contemporânea (ILLICH, 1975; DUPUY;
KARSENTY, 1979), significando um tipo de crença e dependência quase
mágica no poder dos produtos da indústria farmacêutica e nas descobertas
da ciência. Por sua vez, essa medicamentalização apresenta relação, cada
vez mais, intensa com uma utopia da saúde (SFEZ, 1995), a qual persegue,
nas sociedades atuais, um corpo eternamente jovem, belo e supostamente
pleno de saúde, produzindo crescente dependência cotidiana em relação às
instituições médicas e suas organizações e discursos (ILLICH, 1972; 1992;
LUZ, 1986; 2003). Esse parece ser o paradigma organizador do comporta-
mento e das relações sociais, portanto dos adeptos da boa forma e do corpo
perfeito, paradoxalmente dito “saudável”.
290
DROGAS DE APOLO

Se, por um lado, o capitalismo, conforme escreveu Weber (1992),


apresenta, via racionalização e burocratização, a tendência ao desencan-
tamento do mundo, esvaziando o sentido da vida das pessoas; por outro, o
mesmo capitalismo reencanta, por intermédio das técnicas do marketing
e da propaganda, o universo de parte significativa da população. Reencan-
tamento fugaz radicado no agenciamento intermitente do desejo o qual
está na base do consumo conspícuo de elementos simbólicos, ou não, que
possam alimentar a perfectibilidade, por sua vez, levando à eterna insatisfação,
frustração e carência em um ciclo intermitente de consumo dos renovados
itens ligados ao aprimoramento da forma corporal.
Como ressaltei, o surgimento do esporte, de acordo com Elias e Dun-
ning (1994), representou a estilização das práticas violentas, servindo para
consolidar o processo civilizatório no qual as mesmas práticas tenderiam
a ser controladas não apenas pelas instituições diretamente coercitivas,
mas principalmente pela absorção de valores, regras e normas de disci-
plinarização das relações sociais por parte dos indivíduos e coletividades.
Interiorização do controle social em relação à agressividade. Segundo os
autores, esse processo estaria ligado também ao fortalecimento do Estado
Moderno, fiduciário último da civilidade e detentor legítimo da violência
física. Nesse movimento disciplinar de controle cotidiano das condutas
violentas (estudado também, de certa forma, por Foucault), o bodybuilding,
dentre algumas atividades desportivas ou práticas corporais (como parte
do nado sincronizado ou da ginástica rítmica), poderia assumir o caráter
máximo de estilização da violência física devido ao fato de não apresentar
qualquer tipo de contato corporal entre os competidores, tendo suas dispu-
tas individuais ligadas apenas à apresentação estética em locais adequados.
Todavia, ao longo da segunda metade do século XX, mormente a partir do
final dos anos 70 e início dos anos 80, o fisiculturismo tornou-se, cada vez
mais, próximo às representações e práticas conservadoras e neoliberais de
mundo. O que, algumas vezes, levou a estética musculosa e hipertrofiada
a associar-se a atitudes de grupos políticos de extrema direita com com-
portamentos violentos e discursos excludentes antidemocráticos. Fato que,
em um primeiro momento, pareceu uma contradição em termos. Se a tese
de Elias sobre a estilização da violência por intermédio do esporte pode
ser sustentada, os dados colhidos durante os anos de trabalho de campo
entre o grupo observado vêm sugerindo que essa violência sofreu algumas
modulações permanecendo presente no cotidiano dos indivíduos de forma
acirrada em sua dimensão simbólica e prática, não apenas como violência
291
CÉSAR SABINO

contra o outro, mas também como autoviolência. Violência simbólica e


prática consolidada por intermédio da busca, a qualquer preço, da forma
ideal como sinônimo de realização e felicidade. Sem embargo, para atingir o
ideal do sucesso, todos os recursos são utilizados podendo levar à apologia
da agressão física, ao desrespeito, menosprezo e desprezo pela alteridade.
Em um primeiro momento, o bodybuilder introjeta, ou absorve, em si
mesmo toda a violência, aplicando ao seu corpo os riscos e desafios presen-
tes na construção de sua forma, produto de um duro, ascético e abnegado
trabalho, aparentemente individualizado; contudo o faz sem perceber que
também é produto direto de relações sociais disciplinadoras, administrado-
ras, agenciadoras de seu comportamento tornado dúctil em contraposição
à crescente dureza e expansão de seus músculos. A violência física, assim
estilizada, volta-se contra o atleta, não raro, destruindo-o. Outro aspecto
relaciona-se ao uso das tecnologias corporais desenvolvidas pelos saberes e
pelas práticas da musculação e do fisiculturismo que, associadas às lutas ou
artes marciais, por exemplo, podem ser utilizadas por indivíduos ou grupos
específicos para a otimização das práticas da violência física contra aqueles
considerados seus oponentes ou inimigos. Ocorre que, em uma sociedade
altamente hierarquizada como a brasileira e de tradição escravocrata, esses
saberes e práticas podem significar emblemas de distinção e excelência
reproduzindo a violência simbólica e física contra si e outros, violência
sempre inscrita nos corpos como habitus (BOURDIEU, 1983; ELIAS, 1994).
Há que se ressaltar que a opressão articulada contra si na produção
esportiva imagética pode não se deter apenas nesse âmbito, mas extravasar
em práticas violentas de galeras e gangues, as quais apresentam, em sua
lógica identitária, a inaceitação ou mesmo a ojeriza à diferença tentando
eliminá-la do âmbito de sua convivência. Resta saber se ela é anômica, um
episódio de um processo social que corre o risco de perder sua coesão, ou se
é estrutural; ou seja, se constitui item fundamental da própria manutenção
do sistema social que depreda parte de seus elementos para se perpetuar.
Dentre as sugestões presentes neste livro sobre a construção do corpo, há
uma em especial, devido a sua generalização teórica, que deve ser ressaltada:
as representações e práticas presentes no cotidiano do grupo pesquisado (que,
de certa forma, espelham parte da sociedade maior no qual está inserido)
sugerem que o Brasil parece passar por um processo descivilizatório (ou
processo de descivilização, de acordo com Elias) sem mesmo ter experimen-
tado de forma efetiva seu oposto. A sociedade brasileira não perpassaria
um estado anômico de violência e crueldade, ou seja, essa não é um evento
292
DROGAS DE APOLO

conjuntural, passageiro, mas um elemento estrutural de um sistema criado


sob o domínio da escravidão e do genocídio, do etnocídio e da destruição
da alteridade. Essa descivilização brasileira que há séculos depreda o outro
e a alteridade fortalece-se associada ao modelo econômico neoliberal e às
políticas públicas ligadas ao desprezo crescente às questões sociais. Esse
aspecto parece sugerir que, além de serem hipóteses econômicas reflexivas,
princípios neoliberais tornaram-se itens inconscientes ou valores, crenças,
regras, normas, portanto modos de vida, que, ao menos em parte, encon-
tram-se no cotidiano do grupo estudado (BROWN, 2019). Isso sugere que
instituições de saúde e organizações, direta ou indiretamente a elas associa-
das, refletem as representações e práticas, as relações sociais da sociedade
brasileira em geral (LUZ, 1986), o que indica comportamento no qual a
violência é manifesta não apenas como coisificação do outro, desinteresse
pela cultura humanística, pelo coletivo e pela dimensão solidária da vida,
mas também como autocoisificação levando à morte, à autodestruição em
nome de um padrão de beleza percebido como signo de empreendedorismo e
vitória. O corpo e sua forma passam a ser vistos e a funcionarem socialmente
como microempresa capitalista, e o bodybuilder afigura-se como um Uber
de imagens trocadas nos mercados dos bens simbólicos das redes sociais e
competições esportivas. Imagem logo descartada pelos acelerados processos
da nova etapa do capital na qual a produção exige crescente depredação de
si, em novos níveis de extração de mais-valia. Corpo-imagem-empresa-de-si,
corpo-capital, sacrificado no altar do deus-mercado.

293
POST SCRIPTUM

MOVIMENTOS CONJUNTURAIS

Da última década do século XX até o momento, vários aspectos rela-


tivos ao campo ou ao grupo estudado transformaram-se, porém a estrutura
hierárquica e as relações de poder anteriores foram mantidas, e mesmo
reforçadas. Um dos aspectos que mais chama a atenção é o crescente domínio
do poder médico em relação às práticas corporais em geral, e o fisicultu-
rismo em particular. Os esteroides anabolizantes continuam sendo itens
fundamentais do cotidiano bodybuilder e seus rituais de instituição. Todavia,
o crescimento da chamada medicina estética vem colonizando a adminis-
tração de seu uso em parte crescente das academias, mormente aquelas de
classe média alta. O ramo da medicina voltado para o aperfeiçoamento da
forma física tem elaborado com dedicação saberes e práticas sobre o que
considera beleza como sinônimo de saúde (FERREIRA, 2010), produzindo
subjetividades e justificando os padrões estéticos socioculturais dominantes
que são agora perseguidos sob a égide da legalidade institucional. Assim,
essa medicina transforma o que é uma representação social sobre o feio
ou a feiura em patologia a ser combatida por intermédio de intervenções
diversas, ao menos para aqueles que têm capital monetário para investir em
consultas dispendiosas e produtos ainda mais (JARRIN, 2017). Destarte,
embora os esteroides anabolizantes ainda sejam traficados nas academias
em quantidade significativa (obviamente de forma ilegal); em grande parte
daquelas nas quais o poder aquisitivo dos alunos e atletas é maior, o uso tor-
na-se legalizado via consulta médica e sua consequente prescrição (receita).
Esses remédios passam então a serem utilizados em nome da “reposição
hormonal”, eliminando o caráter ilegal que o tráfico porta. Dessa feita,
o terapeuta não apenas utiliza as substâncias já citadas, mas também as
associa a outras, não raro também prescrevendo hormônio do crescimento
humano (HGH ou GH entre os bodybuilders cariocas) visando a uma maior
eficácia nos resultados. Vários consultórios se espalham pela cidade – da
Zona Sul ao subúrbio, Zona Oeste e Baixada Fluminense – especializados
nesse tipo de consulta. Em outras palavras, a prática e o saber médico, de
certa forma, apropriaram-se de um campo que era ilegal, ou no mínimo o

295
CÉSAR SABINO

enfraqueceram, “legalizando” – via receituário – o consumo de esteroides


e outras substâncias, retirando parte significativa dos clientes do tráfico.
As clínicas médicas de estética, endocrinologia e dermatologia asso-
ciam-se em convênios ou parcerias às farmácias de manipulação para as
quais receitas de esteroides anabolizantes e outras substâncias são enviadas
visando à feitura das fórmulas individualizadas prescritas para o uso de
clientes-pacientes em busca do padrão dominante de beleza. Esse crescente e
próspero ramo da medicina, ao legalizar o uso desses componentes, em nome
de um suposto deficit hormonal, reitera, justifica e amplia o padrão corporal
socioculturalmente hegemônico reproduzindo as desigualdades inerentes às
relações sociais. Fato que corrobora as previsões críticas de Illich (1975; 1992)
a respeito da medicamentalização, ou domínio, cada vez maior, da medicina
sobre a conduta e o corpo dos indivíduos e da sociedade em geral.
Outro aspecto a ser ressaltado tem a ver com o fato de as academias
que no início do estudo eram frequentadas por jovens, em sua maioria, per-
tencentes à classe média, sendo marca organizacional dessa classe, passaram
a ser uma instância quase que obrigatória de práticas físicas e corporais
para todas as pessoas de todas as classes sociais, sendo encontradas tanto
em favelas como em condomínios de luxo da classe média alta (SILVA,
2014), e não apenas por jovens, mas também por pessoas de faixas etárias
diversas nos também diversos horários de seu funcionamento. Repetindo
Madel Luz, as classes baixas e altas aderiram ao projeto do “Apolo biome-
cânico” (2003a, p. 34), ou seja, ao modelo do corpo musculoso e definido,
trabalhado com anilhas e máquinas – com baixo ou baixíssimo percentual
de gordura – como emblema de saúde e beleza da racionalidade ocidental
biomecânica. Acompanhando também essa expansão transversal da clien-
tela, o Brasil passou a fazer parte do circuito mundial das competições de
bodybuilding e fitness, o que fortaleceu a semiprofissionalização, ou mesmo a
profissionalização, e consolidação da área no país. Isso ampliou ainda mais
o fluxo de pessoas voltadas à produção do corpo como capital ou empresa
a ser colocada para funcionar tanto no mercado das competições como
no mercado sexual e, em muitos casos, no mercado da segurança privada
de casas noturnas ou eventos diurnos, no caso de pessoas de menor poder
aquisitivo (LUZ; SABINO, 2013; 2018).
A expansão das redes sociais, como Facebook, Instagram e outras,
além do surgimento dos aplicativos de exercícios, aulas com profissionais
e bodybuilders pelo YouTube e outras plataformas digitais – além de der-

296
DROGAS DE APOLO

matologistas, cirurgiões plásticos, endocrinologistas, médicos em geral, e


nutricionistas veiculando informações sobre saúde, estética e estilo de vida
–, alavancou a hiperexposição imagética e a obsessão pelo corpo magro e
musculoso. As imagens dos influenciadores digitais, atletas ou professores,
com seus corpos talhados a ferro e dietas, representam agora não apenas
o ideal de saúde e beleza, mas também de vida feliz em uma atualização
crescente do que Lucien Sfez (1995), na década de 90, detectou como o
surgimento de uma nova utopia, a da saúde perfeita. Parte dessa utopia
pode ser alimentada diretamente pelas imagens hipertratadas por filtros de
câmeras cada vez mais aperfeiçoadas tecnologicamente e, assim, levadas ao
máximo de aprimoramento visual em plataformas digitais, nas quais todos
se apresentam alegres, satisfeitos e mesmo felizes, associando-se às novas
formas de produção e consumo do corpo como virtualidade e objeto central
de um mercado que, ao profissionalizar os digital influencers, consolida o
mesmo corpo como mercadoria e empresa. Cada curtida em uma imagem
exposta em plataformas digitais pode representar lucro para o corpo-em-
presa-de-si típico do modelo econômico neoliberal, o qual busca avançar a
extração de valor em todas as instâncias possíveis da vida. O bodybuilding
adentrou a nova era de expansão mercadológica não apenas como campo
independente, mas também como um dos exemplos de exposição e explora-
ção estética. O corpo-mercadoria sendo consumido em todas as suas formas
vitais e imagéticas possíveis. Nesse aspecto, este trabalho, além de ser uma
descrição de uma tribo urbana, é análise de uma época refletida nas prá-
ticas e representações desse mesmo grupo. Práticas e representações que
significam um modo ou desdobramento da subjetividade neoliberal. Em
outras palavras, o que se reflete é que o neoliberalismo surge como uma
racionalidade da vida cotidiana e das microinstâncias sociais; além de ser
uma política econômica e uma Weltanschauung (visão de mundo), ele rees-
trutura e reorganiza a ação dos governantes e a conduta dos governados.
De acordo com Santos (2020, p. 19): “A racionalidade neoliberal apresenta
como aspecto fundamental a generalização da concorrência na qualidade
de norma de conduta e da empresa enquanto modelo de subjetivação”. A con-
corrência torna-se princípio universal de vida individual e coletiva confi-
gurando-se como reordenamento da maneira de governar subjetividades
e populações. O bodybuilding, como socialidade e conjunto de valores ou
representações e práticas, já estava, desde seu início, muito próximo das
práticas conservadores e liberais, vide a mitologia biográfica de seu maior
ícone, Arnold Schwarzenegger. Agora, em uma modulação conjuntural,

297
CÉSAR SABINO

passa a refletir, de maneira ainda mais intensa, crenças, práticas e visões de


mundo neoliberais com todas suas consequências individuais e coletivas.
Esta modulação da subjetividade, em consonância com novas políticas
econômicas e mudanças tecnológicas, pode ser entendida pela descrição
que Deleuze e Guattari realizam sobre a capacidade do capitalismo se ade-
quar e se transformar agenciando o desejo e domesticando as tentativas de
subvertê-lo. Para os autores, a economia política não se separa da economia
libidinal, sendo o desejo elemento constitutivo da infraestrutrura social e
não apenas projeção superestrutural. Com efeito, o capitalismo funciona a
partir da liberação dos fluxos desejantes que excedem conjuntos sociais e
políticos instituídos visando a própria reprodução do sistema de produção
– assim também todo desejo é produção. É nesse sentido que a produção
subjetiva capitalista pode ser qualificada como esquizofrênica. Todavia, se
o sistema funciona liberando doses intensas de energia libidinal que “deco-
dificam” e “desterritorializam”, ele mesmo articula mecanismos contínuos
de reabsorção desta energia à máquina produtiva. Os autores escrevem que
quanto mais a máquina capitalista desterritorializa, decodificando fluxos,
mais ela busca extrair deles a mais-valia (ou mais-valor) por intermédio dos
aparatos burocráticos e policiais, máquinas repressivas, reterritorializando
e reabsorvendo as forças em processo incessante no qual o capital tenta, em
jogo contínuo, dominar as linhas de fuga criativas, os fluxos desejantes por
intermédio dessas máquinas “paranoicas” que delas escapam (DELEUZE;
GUATTARI, 1995; 2010; 2012; RICARDO, 2020). Deleuze, porém, perce-
berá uma nova modulação do funcionamento do capital e, por conseguinte,
das instituições nas sociedades atuais pós anos 80. Para ele, a liberação dos
fluxos desejantes ou linhas de fuga passarão de forma crescente a serem con-
trolados entre o modo de subjetivação por estímulo do desejo e a avaliação
dos desempenhos, dispensando cada vez mais as paredes institucionais e a
configuração anterior das máquinas de repressão (DELEUZE, 1992). Se a
dinâmica do capital produz nela mesma oposições ao seu funcionamento,
novas subjetivações, ela, por sua vez, busca rearticular formas de agenciar
e controlar essas forças desejantes que se opõem e saem do capital, trans-
formando-as, modulando-as em uma dinâmica que, não raro, termina por
transformar os produtos da rebeldia em uma nova mercadoria que vem a ser
também o produto de uma extração inusitada de mais-valia ou mais-valor.
São novas subjetividades, novas formas de valorar e se relacionar e ver o
mundo que surgem nos parâmetros sempre adaptativos do capitalismo – no
caso em voga, subjetividades ou subjetivações neoliberais.
298
DROGAS DE APOLO

A busca incansável pela forma física perfeita na dinâmica dessa nova


anátomo-política (o corpo-capital-vitrine-empresa), crescem, desde o final dos
anos 90, as experimentações com remédios de todos os tipos em composi-
ção com esteroides anabolizantes. Em outras palavras, o uso de substâncias
combinadas aumentou não apenas por intermédio dos autoexperimentos dos
praticantes, mas também sob a tutela médico-estética visando a trabalhar o
corpo para adequá-lo ao padrão hegemônico de beleza – vale ressaltar que
o termo malhar muito em uso em tempos anteriores tem sido substituído
pela categoria trabalho. É um trabalho-de-si que demanda capitais de todos
os tipos e que será bem-sucedido em conformidade com a quantidade de
capitais investidos pelo sujeito em sua empresa corporal. Surgem então, com
renovados exercícios, sob supervisão de profissionais e supervisão clínica
ou não, todos os tipos de combinações possíveis de fármacos e substâncias
para o aprimoramento da aparência na luta competitiva pela melhor imagem
de si. E, se novas identidades (minoritárias) tomam, cada vez mais, lugar no
cenário capitalista em suas lutas por reconhecimento, trans, lésbicas, negros
etc.; o paradigma, ou a estrutura da forma física, assim como as relações de
poder continuam sendo as mesmas – sendo a própria condição de cidadão
cada vez mais associada ou aproximada ao modelo hegemônico de beleza
do corpo simétrico, musculoso e definido (LUZ; SABINO, 2013; JARRIN,
2017a), não importando necessariamente mais a cor da pele ou a orientação
sexual. O mercado da forma física e estética jamais esteve com tamanha
solidez como agora. Mercado em todos os sentidos do termo. Esse processo
está em harmonia com e indica a formação de novas subjetividades, ou seja,
aquela do “sujeito-empresarial” ou “homem-empresa-de-si” característica
neoliberal produtora de novas modulações psíquico-funcionais96
Com efeito, além das já tradicionais associações de esteroides ana-
bolizantes, hormônio do crescimento humano e infindáveis dietas surgidas
no dia a dia das academias, novas experimentações aparecem, fazendo

96
Dardot e Laval (2016, p. 332-335) escrevem a respeito dessa nova subjetividade: do sujeito ao Estado, passando
pela empresa, um mesmo discurso permite articular uma definição do homem pela maneira como ele quer ser
“bem-sucedido”, assim como pelo modo como deve ser “guiado”, “estimulado”, “formado”, “empoderado” (empowered)
para cumprir seus “objetivos”. Em outras palavras, a racionalidade neoliberal produz o sujeito de que necessita
ordenando os meios de governá-lo para que ele se conduza realmente como uma entidade em competição e que,
por isso, deve maximizar seus resultados, expondo-se a riscos e assumindo inteira responsabilidade por eventuais
fracassos. “Empresa” é também o nome que se deve dar ao governo de si na era neoliberal. Especialista de si mesmo,
empregador de si mesmo, inventor de si mesmo, empreendedor de si mesmo: a racionalidade neoliberal impele
o eu a agir sobre si mesmo para fortalecer-se e, assim, sobreviver na competição. Todas as suas atividades devem
assemelhar-se a uma produção, a um investimento, a um cálculo de custos. Uma espécie de uberização geral. A
economia torna-se uma disciplina pessoal. Tudo isso pode ser aplicado ao universo bodybuilder aqui estudado.

299
CÉSAR SABINO

talvez do ritual de instituição, ou construção, de identidade e pessoa do


fisiculturista um processo ainda mais arriscado que antes. Potencializou-se
a produção da forma física tanto de homens como de mulheres em busca do
padrão apolíneo hegemônico, sendo o arsenal bioquímico, cada vez mais,
ampliado – antes apenas ampolas de testosterona sintética e comprimidos
eram utilizados por fisiculturistas e simpatizantes do bodybuilding nos
banheiros das academias ou em suas residências. Atualmente, médicos em
clínicas associam várias substâncias aceleradoras do metabolismo, visando
à perda de adiposidade, com os esteroides e hormônios do crescimento.
Destarte, houve a expansão da tríade academia-consultório-esteticista em um
primeiro instante, direcionando-se agora para procedimentos cirúrgicos
delimitados, hidrolipo, lipoenxertias ou lipoesculturas, por exemplo, para
os que portam algum recurso monetário, e harmonização facial. O padrão
lipofóbico e simétrico de musculosidade se consolidou em um paradigma
de Apolo Biomecânico ou Vênus Carnavalesca para mulheres. Nesse último
caso, o modelo ambicionado pelas mulheres é o da forma rainha de bateria
atual; ou seja: músculos protuberantes e definição abdominal demonstrando
o mínimo possível de gordura corporal, além de coxas similares àquelas
ostentadas por jogadores de futebol associadas às nádegas “granadas”, ou
em forma desse artefato bélico. Essa bricolagem estética produz uma espé-
cie de mix dos tradicionais tipos “mulata brasileira”, de fartas ancas, com a
“loura americana” de seios grandes – em geral siliconados no caso em voga
(LUZ; SABINO, 2013).
Como dito, é o tipo (Vênus Carnavalesca) ou o papel social que repre-
senta a rainha de bateria do carnaval brasileiro (eminentemente o carioca) que
se aproxima agora mais do tipo fisiculturista feminino, apenas com menor
conteúdo de volume muscular. Esse tipo estético sem leveza é ambicionado
por número significativo de mulheres jovens, competindo no mercado
sexual ou no mercado das plataformas virtuais produtoras de celebridades
imagéticas (LUZ; SABINO, 2013, 2018). Há que se ressaltar o crescente
número dos denominados digital influencers que têm como profissão a
postagem diária não apenas das imagens de seus corpos, modelados como
descrito anteriormente, mas também as exposição cotidiana da forma como
se alimentam, os meios nutricionais, o que vestem, os produtos estéticos
e suplementos alimentares que utilizam e, fundamentalmente, as práticas
dos variados tipos de exercícios ao ar livre ou em academias com pesos,
amealhando assim milhares de seguidores e altos patrocínios de empresas
ligadas a tudo que se relaciona à forma física.
300
DROGAS DE APOLO

Adoração da imagem total, paradigma de existência, é o desdobramento


do capital extraindo lucro de “curtidas”, tempo e vida. Como escreve Jonathan
Crary (2016), uma das grandes afrontas à expansão voraz do capitalismo
atual é aquela parte das vidas humanas que ainda não estão em atividade de
consumo ou produção, seja qual consumo for, mesmo que sejam imagens do
mundo virtual. Dessa feita, uma das estratégias do capital contemporâneo e
sua desregulação do trabalho, é o máximo da manutenção das atividades, se
possível durante 24 horas, sete dias por semana. Esse processo induz à insônia
parcelas crescentes da população mundial, já que as redes sociais, principal-
mente via internet de tablets e smartphones, que colonizam o tempo e a vida,
avançam e direção ao sono, diminuindo-o gradativamente, o que faz com
que tudo se direcione e seja absorvido pela lógica da mercadoria, do código
genético das espécies vivas e extintas até afetos e contatos com semelhantes.
É o máximo de flexibilização do capital já alcançado aumentando a precari-
zação do emprego (uberização do corpo e da imagem no caso aqui tratado) e a
desigualdade social em todos os níveis possíveis. Esse é o retrato paradoxal dos
mercados desregulamentados que extraem tempo e vida em forma de lucros
em contraposição aos limites físicos inerentes aos seres humanos obrigados
a se conformarem com esta demanda incessante.
Essa lógica que Crary aplica ao sono pode ser estendida para a própria
produção do corpo entre fisiculturistas e similares, todos inseridos no mesmo
sistema que visa a colonizar e, cada vez mais, extrair riqueza da vida, esbar-
rando em seus próprios limites. Nesse sentido, os mercados da estética, boa
forma e saúde, não cessam suas articulações, buscando refinar suas técnicas
de marketing, suas tecnologias da beleza e, assim, aumentar o número de
consumidores. Portanto, houve, nas últimas décadas, significativa redução
dos preços de consultas e procedimentos estéticos que passaram a ser parce-
lados a perder de vista alcançando pessoas das classes mais baixas, além dos
moradores dos subúrbios e bairros de origem proletária, não apenas no Rio
de Janeiro, mas em todos os lugares. Fora a expansão de academias e redes
de academias pelo país e a ampliação das vendas pelas redes sociais de todos
os itens possíveis para manutenção da forma que se consolidou de vez. Os
suplementos alimentares, cada vez mais sofisticados, podem ser comprados
e consumidos por qualquer um, assim como programas de treinamento
vendidos on-line por especialistas. Seguindo a percepção de Deleuze (1992,
p. 219-226) sobre o surgimento de uma sociedade mundial que estaria não
apenas submetida à disciplina, mas também ao controle intermitente de prá-
ticas e subjetividades pelos desdobramentos do capital; o bodybuilding (mas
301
CÉSAR SABINO

não apenas ele, e sim todas as práticas de boa forma e estética, sendo ele aqui
tomado apenas como modelo analítico maior e exagerado) teve suas práticas
agenciadas, expandidas e flexibilizadas para muito além das organizações ou
academias, terminando por ser conduzido, e por vezes administrado, pelas
instituições médicas – e seus produtos – também flexibilizadas no âmbito
da modulação capitalista.
Aqui é preciso fazer um adendo, pois, diante de todo esse movimento
de criação da saúde como beleza, vem surgindo um novo campo de práti-
cas ou atividades físicas que, a partir do início dos anos 2000, passou a se
expandir dos EUA para o mundo, tornando-se a maior cadeia de fitness da
atualidade: o CrossFit Inc. Não vou aprofundar o assunto sobre esse grupo
bastante diverso dos fisiculturistas e que mereceria um estudo em separado,
mas posso dizer que é uma nova tribo urbana se consolidando com práticas,
regras, associações próprias e singulares que surge adequada ao sistema
neoliberal e ao modelo de sociedade de controle da era contemporânea. A
CrossFit Inc., aparece já como uma marca ou grife, uma espécie de startup
do corpo saudável, muito mais do que um esporte ou modalidade. Destarte,
seu inventor, o estadunidense Greg Glassman, criou, em parceria com Lau-
ren Jenai, um pacote de metodologia de exercícios variados que misturam
ginástica calistênica, corrida, pliastenia e levantamento de pesos, mas com
uma aplicação do tempo mais curto e funcional, diverso das academias de
musculação em geral. Assim, em uma nova bricolagem de práticas, contempla
exercícios de levantamento olímpico, movimentos ginásticos e condiciona-
mento aeróbio, os quais são executados em alta intensidade (DOMINSKI
et al., 2018) o que difere do fisiculturismo, ao menos em parte. Com efeito,
os vastos galpões nos quais a prática é realizada são denominados pelo seu
criador de Box. O pacote de instruções e atividades é alugado para filiados
empresários da boa forma e saúde ao redor do mundo no modelo de fran-
quia (franchising) no qual aqueles que aderem, mediante um licenciamento
anual renovável, estão obrigados a seguir o cronograma e a cartilha das
práticas criadas e formuladas por Glassman. Ou seja, a prática intensa de
perda de adiposidade e criação de massa muscular e condicionamento
físico é mais “solta” que o fisiculturismo, inclusive podendo ser realizada
em partes externas ao box, como, em alguns momentos e casos, a própria
rua ou amplos espaços abertos. Porém, apesar dos movimentos mais livres
e independentes, posto que funcionais (calcados em movimentos cotidianos
do corpo), todas as atividades acabam sendo controladas, administrativa e

302
DROGAS DE APOLO

financeiramente, ou seja, centralizadas por um líder-empresário da forma


e saúde e pelas regras que ele compôs.
Diante de todo o cenário descrito, resta reiterar que a estrutura das
relações de poder representadas pelo grupo de bodybuilders estudado se
mantém e se expande em uma conjugação incessante de saberes-práticas
associadas aos mercados. A manutenção do ritual de instituição ligado
ao consumo de substâncias lícitas e ilícitas para a construção da forma
física, portanto da identidade do praticante, é um exemplo dessa perma-
nência. Como disse no início, aos esteroides anabolizantes, são somadas
novas substâncias sob supervisão médica ou não. Assim, é possível elen-
car alguns elementos agora usados que não são testosterona, mas que se
enquadrariam pelo contexto social no que denominei drogas de Apolo.
Assim, quatro grandes grupos podem ser destacados nas práticas rituais da
forma: esteroides anabolizantes e hormônio do crescimento HGH – os de
sempre; broncodilatadores; estimulantes e emagrecedores. Sem embargo,
tanto farmácias de manipulação podem vender composições e fórmulas
prescritas por médicos com partes dessas substâncias, assim como os pró-
prios fisiculturistas podem, por conta própria, compor e experimentar
em si mesmos os “coquetéis explosivos” que, não por acaso, são por eles
denominados “bombas”. As indicações e contraindicações ou informações
sobre como funcionam seus usos, resultados e riscos podem atualmente
ser encontradas, direta ou indiretamente, nas redes sociais (ORTIZ, 2020),
algo quase impossível até meados da primeira década do século XXI. Além
da facilidade de informações, nem sempre seguras, é possível até mesmo
comprar a maioria dessas substâncias via sites ou farmácias virtuais.
Associados ao uso dos esteroides – que variam de um tipo a cinco
simultaneamente –, estão os broncodilatadores que, segundo os pratican-
tes, auxiliam na perda de gordura ou no “ficar seco”. O primeiro remédio
broncodilatador que vi ser associado foi o Franol que contém sulfato de
efedrina e produz no atleta, segundo usuários, disposição e maior concen-
tração. Outro remédio para asma, utilizado com o mesmo propósito, é o
Marax que também contém sulfato de efedrina, além de teofilina anidra e
dicloridrato de hidroxizida. Outro muito usado com o mesmo propósito de
emagrecimento, embora sem a efedrina, é o Aerolin spray. Há nesse aspecto
também o remédio veterinário Brontel (Clembuterol cloridrato. 20 mg.), da
mesma forma um broncodilatador que tem efeito similar ao da adrenalina.
Segundo usuários, apresenta efeito termogênico e ajuda, de forma signi-
ficativa, a perda de gordura em 15 dias mais ou menos. O uso de Ritalina
303
CÉSAR SABINO

também é comum, visando a aumentar concentração e foco nos treinos,


como dizem. O Cloridrato de Sibutramina entra na lista, por ser responsá-
vel pela perda de apetite e eliminação de gordura, assim como o Orlistate;
também a Metformina passou a ser usada, um fármaco para diabetes que
reduz absorção de carboidratos e a produção de glicose. Fora esses fárma-
cos, surgem também os diuréticos no auxílio de perda de peso, o Aldactone
(espironolactona), que elimina a retenção hídrica, assim como a Hidrocloro-
tiazida. Além desse bulário, existem muitas outras drogas desviadas de seus
objetivos principais para o uso na busca da forma perfeita, como a insulina
e os hormônios tireoidianos (que são usados para regular o metabolismo
de quem apresenta sintomas de hipotiroidismo), como Cytomel, Eutirox 50,
Levotiroxina (Puran T4) e o Tertroxin.
A perseguição, a todo custo, da boa forma ou do padrão de beleza domi-
nante, passou, a partir da década de 90, ao menos no Brasil, a ser conduzida
por valores conservadores, antissolidários, individualistas e masculinistas.
Porém, mais do que isso, aprimorou a transformação do corpo em empresa ou
mercadoria, levando à epifania do consumo, sendo sua imagem transmutada
em moeda virtual de troca no âmbito cotidiano das plataformas digitais e
competições. Cotidiano esse de relações econômicas e trabalhistas, cada vez
mais, desreguladas e desregulamentadas, propensas à neoescravidão por parte
da acumulação do capital. Com efeito, o campo analisado reflete o contexto
econômico geral, mas também as ideias, representações e o imaginário que o
envolvem. Em outras palavras, as práticas e visões de mundo do grupo estu-
dado podem indicar, por um lado, o desdobramento da moral ascética capaz
de impor autodisciplina ao corpo em nome de um ideal imagético supremo,
sacrificando-o até a morte pela causa da glória individual e egocentrada, e,
por outro lado, a reprodução das práticas e afetos escravocratas, excludentes e
androcêntricas tradicionalmente presentes na cultura brasileira. Com efeito, no
contexto hodierno, a já tradicional propensão ao autoritarismo e à antidemo-
cracia do país parece associar-se às práticas políticas anti-solidária enraizadas
nos valores neoliberais e neoconservadores vigentes (SCHWARCZ, 2019;
BOURDIEU, 1997). Busquei aqui não apenas compreender, talvez de forma
tortuosa, o dia a dia dos bodybuilders em suas relações de poder, moralidade
e aspirações, mas também, a partir daí, enxergar um pouco a forma como a
economia política molda a subjetividade e como por ela é moldada. Perceber,
assim, os sentidos de uma época em crise, que mercantiliza – torna objetos
– todos os aspectos da vida, então sujeitada à lógica do empreendedorismo e
ao recrudescimento da solidariedade e da democracia.
304
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