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Abençoada liberdade

Emerson Monteiro

No Dilúvio, quando Noé recebeu a atribuição de construir a arca e esperar que


chovesse o tanto de cobrir a Terra, por certo jamais imaginara vir ser escolhido
naquela missão tão importante. Porém nunca duvidou, a despeito da polêmica
motivada pelo assunto. Transformou fraqueza em força, animou a parentela ao
trabalho, reuniu animais e acreditou (sobretudo), e ainda hoje imaginamos como
pôde o engenho humano participar com tamanha envergadura na luta da
sobrevivência.
A nós não compete julgar, como também não cabe duvidar que exista o Poder,
fonte irradiadora de vida, função máxima do Ser, que provas por si só determinam
quando muito até que ponto nossa compreensão é limitada nas razões da
Eternidade.
O gesto de escrever permite, no entanto, deixar que o papel lance o sonho nas
planícies do inatingível, aonde reunir ficção e elaborar ferramentas de fechar
contatos e acender consciências. Mas o espaço tem de ser preenchido a todo
custo, catando letras, sílabas, palavras, frases, pretexto de alguém nos acompanhar
na montagem da cena do dizer.
Isto, todavia, não é bastante para que observar o trilho ininterrupto da história,
perdidos que, por vezes, somos nos melhores propósitos, presas fáceis de manias,
começos abandonados, fitas, velas, a confundir espelho com fotografia. (O
espelho inverte a imagem, equivoca, troca os lados de nossa cara, enganando,
remetendo de volta à caverna de onde saíramos um belo dia; pura irrealidade que
se instala; ilusão que tritura tempo e seca de cair do pé, raias da imbecilidade).
Temos de perceber essa fórmula mágica da autotransformação, independente de
esperar horas mais propositadas. Noés de hoje, alertemo-nos ligados através das
parabólicas invisíveis, pois de algum lugar sopra o vento libertador. E a fantasia
quase gastou todos os filmes de ação, muita superprodução sem que ainda
sejamos heróis além dos banheiros, quintais, churrasqueiras, castelos, confeitarias,
arquibancadas vazias, nada além de l5 minutos.
Nesse girar de pneus, rastros e calendários, estômagos secos e bocas amargas,
robôs fora de uso. Estacionemos um pouco e sintamos a presença da luz que em
cada criatura move a vontade entre faixas, flores, sorrisos, estágios da semente
original.
Nuvens e naves riscam o tapete silencioso das estrelas ainda molhadas do frio da
noite, quando os animais dormiam obedientes no Paraíso. E insisto em perguntar:
- Quanto falta ainda para outra vez nascer o Sol?...

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