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Emile Durkheim O Suicidio Estudo de Sociologia ‘CARLOS HENRIQUE CARDIM Trad MONICA STAHEL Martins Fontes ‘Sd0 Paulo 2000 ae seenose0 Mra ees ‘meee Peatoce ta ct ata ah ae oa ‘tos eg eDatein no “aan gi ene nis ae ie 1 sas hpetan cape ets BUR Todos ets para tinge orgs reserva ‘ari Marin Font Ears ade bli) 2095879 Fact) MOSM? ‘naman “ew mre INDICE Preficio: Le suicide ou a possibilidade da socio- logia. Nota a edigdo brasileira Preficio.. INTRODUCAO I. Necessidade de constituir, por uma definigio “objetiva, © objeto da pesquisa. Definigdo obje- tiva do suicidio. Como ela evita as exclusdes arbitrrias eas inclusdes enganadoras: elimina- ‘slo dos suicidios de animais. Como ela marca as relagdes do suicidio com as formas comuns ‘da conduta Il. Diferenca enire 0 sicidio eonsiderado nos in- dividuos € 0 suicidio como fendmeno coletiv. ‘A taxa social de suicidios; sua definigdo. Sua ‘constincia e sua especificidade superiores as da mortalidade geral 7 xix XXXI 1 16 capiruLo m : O SUICIDIO EGOISTA. Observemos em primeiro lugar a maneira pela qual as diferentes confissdes religiosas agem sobre o suicicio. Examinando 0 mapa dos suicidios europeus, reconhece- ‘mos primeira vista que nos paises puramentecat6icos, como Espana, Portugal, Ilia, o suicidio & muito pouco desenvolvi- do, 20 passo que atinge seu méximo nos paises protestants, como Prissia, Saxdnia, Dinamarca, As seguintes médias, cal- couladas por Morselli, confirmam esse primero resultado: Média oe usin pc Flo debates Eads protests. . 190 ios (pots e ation) 36 caticee ~ 3s = caine ges. rs 178 osuicibio ‘Todavia, ainferiordade dos catilicos gregos nio pode seratrbuida com certeza a religio; pois, como sua civiliza- io & muito diferente daquela das outras nagdes européias, essa desigualdade de cultura pode ser a causa dessa menor disposigdo, Mas 0 mesmo no ocorre com @ maioria das sociedades cetélicase protestantes. Sem divida, nem todas estio no mesmo nivel intelectual e moral; no entanto, as semelhangas sio bastante essenciais para que se tenha algu- ma razio em atribuir & diferenga dos cultos 0 contraste 130 nitido que apresentam do ponto de vista do suicidi. Contudo, essa primeira comparagao ainda & por demais, sumria. Apesar de similaridades incontestiveis, os meios sociais em que vivem os habitants desses diferentes paises no slo idénticos. A civilizacio da Espanha e ¢ de Portugal estio bem abaixo da civilizagdo da Alemanha; pode ser, portanto, que essa inferioridade soja a razio da que acabo- ‘mos de constatar no desenvolvimento do suicidio. Se qu sermos escapar a essa causa de erro e determinar com maior precisio a influéneia do catolicismo ¢ a do protestantismo Provincias bévaras (1867-75) ‘os 5) Palatina do Re Fras ea. ‘At cin Mes 1A ppulaso com menos de 15 anos no fi leva em cont, (CAUSAS SOCIAISB TIPOS SOCLAIS 179 sobre a tendéncia 20 suicidio, deveremos comparar as duas religides no seio de uma mesma sociedade. De todos os grandes Estados da Alemanha, é a Bavira que conta, de longe, menos sucidios, ou sea, apenas 90 suict dios anuais por milo de habitantes desde 1874, 20 passo que 1 Prissa tem 133 (1871-75), 0 ducado de Baden 156, Wit- temberg 162, a Saxénia 300, Ora, € ld também que os catli= 0s sio mais numerosos: 7132 para 1.000 habitante. Se, por ‘outro lado, compararmos as diferentes provinias esse reino, veremos que os suicdios sto dretamente proporcionais 20 iimero de protestants ¢inversamente proporcionais ao de catlicos (ver quadro anterior, p. 178). Nao sSo apenas a rela- ‘es das méeias que confirmam @ lei; todos 0s nimeros da primeira coluna so superires aos da segunda eos da segun- da os da erceira, sem que haa isso neni ireglaridade. (© mesmo ocorre para a Pissia: Provincias da Prissia (1883-90) ccgmansl ie | cupitst [as comes [ange og + |i seein | paca |S | pectin |S iia te savin | 394 fret 2123 [Palen 139] Foe 68 | Rept see 3129 |e ee 203 | el 262] | 105 SOE 13 [test vehei re epee 203 | Vora. 175) "em | feces] 3 tis | 2646 fa — | 2000 |i 8] Mn | 98.6 Examinando-se detalhadamente, entre as 14 provincias assim comparadas, ha apenas duas ligeiras irregularidades: 8 Silésia, que pelo nimero relativamente importante de seus 180 osuicio1o fees | cat | ni attic. ec s 867 Mists. 220 Protea. 4 as | 63 suicidios deveria pertencer & segunda categoria, encontra-se apenas na tereera, a0 passo que a Pomerania, ao contro, caberia mais na segunda coluna do que na primeira. A Suiga € interessante de ser estudada desse mesmo ponto de vista. Pois, como nels se encontram populagdes francesas € alemds, pode-se observar separadamente a influéneia do culto sobre cada uma dessas duas ragas. Os cantdes catlicos apre- sentam quatro e cinco vezes menos suicidios do que os can- '6es protestantes, seja qual for sua nacionalidade, ‘A.agio do culto & tio poderosa, portanto, que domina todas as outras. Por outro lado, em um grande niimero de casos foi pos- sivel determinar diretamente 0 mimero de suicidios por mi- Ihdo de habitantes da populagdo de cada confissio. Eis os niimeros encontrados por diferentes observadores (ver qua dro XVID: Assim, por toda parte, sem nenhuma excegio?, os pro- festantes fornecem muito mais suicidios do que os figis de outros cultos. A diferenga oscila entre um minimo de 20% 130% e um maximo de 300%. Contra tal unanimidade de fa 2. Nip temo informa soe a inutoca dos clos ms Frans i, ontario que de Leroy em seu est sole o Seine-Mare: "Na com ss de Ques, Nata es Mens, Matel os potest apesetam ut ipa 310 habitants os cilicos I para 678” (op it 203). CCAUSAS SOCLAISE TIPOS SOCIAIS 181 Quapao XVII Suicidios nos diferentes paises ‘por um milhio de individuos de cada confissio Aosta (82) TS Wapee | S89 | 199 if Prisidsonn[ 188 | 1T Mert (N80) | 20 Prone |e eso Baden oof M090 | 17 Monch sap | 20 |e” | 20 | Praag a ts) | tse | Mots eon | ot | is? | pe pita) ny | ‘es | Wager Wirember | (7328) wo | aw | Ne { Gant) i |e | i tos convergentes, ¢ intl invocar, como faz Mayr®, 0 caso ‘inico da Noruega e da Suécia, que, embora protestants, tm apenas um nimero médio de suicidios. Em primeiro lugar, tal ‘como observamos no inicio deste capitulo, esas comparagdes internacionais ndo so demonstrativas, a menos que se refi- ram a um nimero bastante grande de paises, e mesmo nesses casos nfo sio concludentes, Ha diferengas bastante grandes entre as populagées da peninsula escandinava ¢ as da Euro- ‘pa central para que se possa compreender que o protestantis- mo ndo produza exatamente 0s mesmos efeitos sobre umas ‘sobre as outras. Além disso, embora a taxa de suicdios, to- ‘mada em si mesma, ndo seja muito consideravel nesses dois paises, ela parece relativamente alta ao se levar em conta o fu ‘gar modesto que cles ocupam entre os povos civilizados da Europa. Nao ha razio para acreditar que esses paises tenham 3. Handwoerterbuch de Statwisoscafe,Supleent, 1p. 102. 182 osuicioro cchegado a um nivel intelectual superior ao da Italia, nem de Tonge, eno entanto neles as pessoas se matam duas ou tes ve- 2e5 mais (90 a 100 suicidios por milhio de habitantes con- tra 40). Nao seria o protestantismo a causa desse agravamento relativo? Assim, o fato no s6 nao infirma a lei que acaba de ser estabelecida a partir de um nimero tio grande de obser- ‘ages como tende a confirmé-la‘. Quanto 0s judeus, sua disposigdo para o suicidio ¢ sempre menor do que a dos protestantes; geralmente tam- ‘bém ¢ inferior, embora em menor proporgo, a dos catél ‘cos. No entanto, as vezes essa iltima relagdo se inverte; es- ses casos de inversio se verificam sobretudo em tempos recentes, Até meados do século, os judeus se matam menos do que os catdlicos em todos os paises, menos na Baviera'; € apenas por volta de 1870 que eles comegam a perder seu antigo privilégio, embora seja raissimo ultrapassarem em muito a taxa dos catélicos. Alids, nao se deve perder de ‘vista que 0s judeus vive, mais exclusivamente que os outros ‘grupos confessionais, nas cidades e de profissdes intelec- ‘ais. Por esse aspecto, sio mais inclinados ao suicidio do que os membros dos outros cultos, e isso por razées estra- thas a religido que praticam. Portanto, se apesar dessa in- fiuéncia agravante a taxa do judaismo ¢ tio baixa, é de se acreditar que, em igualdade de situagBes, de todas as religides seja aquela em que as pessoas se matam menos. Estando 0s fatos assim estabelecidos, como explicé-los? 4 Rest cso da lagu pals ao calico em que as pests nf se rmatan mito Fle ek expeno dane (er pp. 18-90, S.A Bava sinda € na excst: Io jus mata dun exes also que or ation. A stuido Jada nese pi ert gn de exe ‘petal Nip sbermos doe (CAUSAS SOCIAIS E TIPOS SOCIAIS 183 W Se pensarmos que por toda parte os judeus so em nnamero infimo e que, na maioria das sociedades em que fo- ram feitas as observagSes precedentes, os catdlicos so em ‘minoria, seremos tentados a ver nesse fato a causa que ex- plica a raridade das mortes voluntirias nesses dois cultos® Compreende-se, com efeito, que as confissOes menos nu- ‘merosas, tendo de lutar contra a hostilidade das populagoes ambientes, sejam obrigadas, para se manter, a exercer um controle severo sobre si mesmas e a se submeter a uma dis ciplina particularmenterigorosa. Para justificar a tolerancia, sempre precaria, que lhes & concedida, véem-se coagidas a ‘uma maior moralidade. Além dessas consideragdes, alguns fatos parecem realmente implicar que esse fator especial tem alguma influéncia, Na Prissia, a condigdo de minoria fem que se encontram 0s catélicos é muito acentuada, pois representam apenas um tergo da populagdo total. Também se matam ts vezes menos do que os protestantes. A dife- renga diminui na Baviera, onde dois tergos dos habitantes so catélicos; as mortes voluntirias entre estes tltimos estio para as dos protestantes apenas como 100 esti para 275 ou até como 100 estd para 238, conforme os periodos. Final- ‘mente, no Império da Austria, que é quase inteiramente cat6- lice, nio hi mais do que 155 suicfdios de protestantes para 100 de catélicos. Dir-se-ia portanto que, quando o protestan- tismo se torna minoria, sua tendéncia ao suicidio diminui. ‘Mas, em primeiro lugar, o suicidio ¢ objeto de uma in- dulgncia muito grande para que o temor da condenagio tio lve que o atinge possa agir com tal forca, mesmo sobre mi norias cujasituagio as obrigue a se preocupar particularmen- {6 LEGOYT, opp. 205; OETTINGEN, Morals p. 654 184 osuicibio te com o sentimento piblico. Como é um ato que nfo lesa ‘ninguém, nio se impde grande censura aos grupos mais pro- ppensos do que outros e nio hi isco de que ele leve a aumen- {ar muito o afastamento que tais grupos inspiram, como cer- tamente aria uma freqéncia maior dos crimes ¢ dos delitos. Alls, a intolerncia religiosa, quando ¢ muito forte, muitas vvezes produz um efeito oposto. Em vez de incitar os dissi- pens eas ae aprecetom um namere bastante somal (279 suc 19. OETTINGEN, Morass, anexos, qu 20. MORSELLL,p 223 2L-OETTINGEN, ibid, p57 198 asuicioro 1863-67, 2.861 em 1872-76, a0 passo que, em todos 0s ou- {10s paises, a mulher se mata quatro, cinco ou seis vezes ‘menos do que © homem. Finalmente, nos Estados Unidos as condigdes da experiéncia quase se invertem, o que a torna particularmente elucidativa. As mulheres negras, a0 que parece, tém uma instrugao igual eaté superior de seus ma- ridos. Ora, varios observadores relatam? que elas também ‘ém uma predisposigdo muito forte ao suicidio, que as vezes chegaria até a ultrapassar a das mulheres brancas. A propor- ‘io seria, em alguns lugares, de 350%, Ha um caso, entretanto, em que poderia parecer que nossa lei ndo se confirma, De todas as confissdes religiosas,o judaismo é aquela ‘em que as pessoas menos se matam; no entanto, no hi ‘outra em que a instrucdo seja mais difundida. J& quanto aos conhecimentos clementares, os judeus estio pelo menos no ‘mesmo nivel que os protestantes. Com efeito, na Prissia (1871), para 1.000 judeus de cada sexo, havia 66 homens ‘analfabetos ¢ 125 mulheres; para os prptestantes, os niimeros ceram quase idénticos, 66 de um lado € 114 do outro. Mas sobretudo no ensino secundirio e superior que 0s judeus Participam proporcionalmente mais do que os membros dos ‘outros cultos; & o que provam os niimeros que se seguem, cextraidos das estatisticas prussianas (anos 1875-76) Levando-se em conta diferencas de populaglo, os judeus freqiientam ginisios, Realschulen, etc. cerca de 14 vezes mais do que os catélicos e 7 vezes mais do que os protes- 22. Com excegio da Eun. Mas sé ea exaio ds etic o- anol os des eéticos, a Equa no ¢ conparivel dr pande agdes {2 Euope cena stearon 21. BALY e BOUDIN. Citas segundo MORSELL,p. 225. 24 Sepndo Alin PETERSILIE, Zu Satis er hen Lehi tenn Presa, in Zech D, Pres Sat. area, 1871. 109 (CAUSAS SOCIAISE TIPOS SOCLAIS 199 acta cdc por 100) tae emp ss | w | ow pan ns pr 0st | cmon seit ms | om | 96 tantes, © mesmo ocore no ensino superior. Para cada 1.000 jovens catéicos que freqdentam os estabelecimentosc5co- Taes de todos os rau, hi apenas 13 na niversdades para cada 1,000 protestants, hi 2,5 para os jude, a proporgio seeleva a 163, Mas, se ojudeu consegue ser ao mesmo tempo muito instruldo e muito pouco inclinado ao suicdio,€ porque a cariosdade que ele revela tem uma origem muito especial, uma lei geal que as minorias regis, para poderem resitir com maior seguranga conta.os dios de que sfo chjeto ou simplesmente em conseguénca de uma expéie de emulagio, esforgam-se para sre superiors, quanto a0 ‘saber, as populagdes que as cercam. E por isso que os pro- priosprotestntes mostram tanto maior gosto pela cigncia Guano menor € sua proporySo na populagao gral, O ux 2S, itech. DP, tat, Brea, 1889, XX. 26, Com eet, es oro ¢ despa a eqsasa pelos protester dos ‘exsbelecimeno de cnsino secundin nas divers provincia da Pris Page nia Dene epee cespmtesoroenaee "ane | separ einen! ses ec DeveT swam Min 948 Beto 3 mo ra Beso 3 an = es ting Aino com os 200 osuictoro eu, portanto, procura instruir-se, no para substituir por nogGes racionais seus preconceitos coletivos, mas simples- mente para estar mais bem armado na luta. E um meio de compensar a situagdo desvantajosa em que é colocado pela ‘opinido publica e, as vezes, pela lei. E, como a ciéncia por si mesma nada pode contra a tradigdo que conserva todo 0 seu vigor, ele sobrepée essa vida intelectual a sua ativida- dde costumeira sem que a primeira prejudique a segunda, Dai vem a complexidade de sua fisionomia. Primitivo em alguns aspectos, ele é, em outros, um cerebral e um refina- do. Junta assim as vantagens da rigorosa disciplina que caracteriza os pequenos grupos de outrora aos beneficios da cultura intensa de que nossas grandes sociedades atuais tém o privilégio. Tem toda a inteligéncia dos modernos sem compartilhar sua desesperanga, Se portanto, neste caso, 0 desenvolvimento intelectual rio tem relago com 0 nimero de mortes voluntirias, 6 por cle nio ter a mesma origem nem o mesmo significado que tem comumente. Assim, a excegao é apenas aparente, até ‘mesmo confirma a lei. Ela prova, com efeito, que se, nos ‘meios instruidos, a propensio ao suicfdio se agrava, esse agravamento se deve, como dissemos, a0 enfraquecimento das crengas tradicionais e ao estado de individualismo que resulta disso, pois ele desaparece quando a instrugio tem outa causa e responde a outras necessidades. ‘Asim, ode o prttatimo consti grande naira ut poplaeo scolar ao ¢proprconal 3 sus popula geal. Quinoa minora atic ment, ifrenga ete sds populaes, qu er ep ma-sp tare ea irene postive cece na media em gu os protestants st ‘am menos mero. Octo calico tunbém mani maior cro Inelacaal onde ee €misors (Ver ORTTINGEN, Moran 680) ‘CAUSAS SOCIAISE TIPOS SOCIAIS 201 Vv Deste capitulo extraem-se duas conclusses importantes. Em primeio lugar, vemos por que, em geral,osucidio progride com a ciéncia, Nio & ela que determina esse pro aresso, A cinca é inocent, ¢ nao ha nada mais injusto do due acusi-a; 0 exemplo do judeu & demonstrative quanto a esse aspecto, Mas esses dois fatos sto produtos simulténeos de uma mesma situagdo geral, que eles traduzem sob for tas diferentes. O homem procura se instruire se mata por- que a sociedade religosa de que ele faz parte perdeu sua coesio; mas ele nfo se mata por se instru, Também no & 2 instrugio que ele adquire que desorganza a religido; mas é porque a religido se desorganiza que surge a necesidade da insrugdo. Esta nfo € buscada como um meio de destrur 4s opinidesrecebidas, mas porque a destruigdo delas come- sou. Sem divide, uma vez que a cigncia existe, ela pode Combater em seu nome e por sua conta € se colocar como adversiria dos sentimentos tradicionais. Mas seus ataques seriam sem efeito, ou, mais ainda, nem poderiam se prod- 2, se esses sentimentos ainda estivessem vivos. Ndo 6 com demonstagées dialticas que se desenraiza a fe; & preciso ue ela jéesteja profundamente abalada por ouras causes para poder no resstr ao choque dos argumentos. Muito longe de ser aorigem do mal, a ciéncia€ 0 re- édio,¢otnic, de que dispomos. Uma vez que a erengas estabelecidas foram arrastadas pelo correr das coisas, nfo & possivel restabeleé-lasarificialmente; mas jé nfo hi nada além da refleio que possa nos ajudar a nos conduzi na vida. Uma vez que o instinto social se dssipou a inteigén- cia €o tinico guia que nos restae é por meio dela que deve- ‘mos reconstruir uma consciéncia para nés. Por mais arrisca- da que seja 2 empreitada, no é permitido hestar, pois ndo temos escotha,Portanto, aqueles que assisem com inguie- tude e tristeza &ruina das velha erenas, que sentem todas as 202 osuicibro dlifculdades desses periodos eritcos, ndo devern condenar & cigneia por um mal de que ela no é 2 causa mas que, a0 con- twiro, ela procura cura! Eles que evitem taté-la como inimi- ga! A ciéncia nao tem a influénca dissolvente que lhe é ae ‘buida, mas €atnica arma que nos permite lutar contra a dis- solugo de que ela propria resulta Proscrevé-a no é uma so- Igo. Nio & impondo-he siléncio que iremos recuperar a auloridade das tradigBes desaparecidas; $6 conseguiremos nos tornar mais impotentes para substitui-las. E verdade que ddevemos evtar com o mesmo cuidado considera a instrugio com um objetivo que basta a si mesmo, pois ela ¢ apenas um meio, Se nio € acorrentando os espiritos que poderemos fazi-los desaprender 0 gosto da independéncia, também no ‘asta libert-os para thes devolver 0 equilibrio. E preciso aque eles empreguem essa liberdade conforme convém, Em segundo lugar, vemos por que, de mancira geral, a religiio exerce uma agéo profiitca sobre o suicidio. Nao é, ccomo as vezes se disse, porque ela 0 condene com menos hesitagdo do que a moral lica, nem porque aidéia de Deus transmita a seus preceitos uma autoridade excepeional ¢ que faz as vontades se dobrarem, nem porque a perspectiva de uma vida futura ede sftimentosteriveis que nea aguar- dam os culpados dé a suas proibigBes uma sangio mais efi caz do que aquelas de que dispem as legislagdes humanas (0 protestante no ex® menos em Deus e na imoralidede da alma do que o catdlico. Além do mais, a religido que tem ‘menor propensio ao sucidio, ou seja, 0 judaismo, & just ‘mente a inica que ndo 0 prosereve formalmente,e também a religio em que aidéia de imortalidade tem papel menos importante. A Biblia, com efeto, nfo contém nenhuma dis- posigdo que proiba o homem de se mata” e, por outro lado, {I-A inion presergi pena ue coahacomos&agyls de qu ns fla vi SQSHFO, ese std ra dase nis roma CCAUSAS SOCIAISE TIPOS SOCIAIS 203 deixa muito indefinidas as erencas relativas a uma outra vida. Sem divida, quanto a ambos os aspectos, o ensinamen- to rabinico pouco @ pouco preencheu as lacunas do livro sagrado; no entanto, no tem a autoridade dele. Portanto, ‘nfo & 4 natureza especial das concepgdes religiosas que se deve @ influéncia benéfica da religifo. Se cla protege 0 ho- ‘mem contra 0 desejo de se destrur, ndo & por the pregar, com argumentos sui generis, o respeito por sua pessoa; € por cla ser uma sociedade, O que constitui essa sociedade € a cexisténcia de um certo mimero de crengas e de prticas, tra- dicionais e por conseguinte obrigatérias, comuns a todos os iis. Quanto mais numerosas ¢ importantes essas situagOes coletivas, mais a comunidade religiosa ¢ fortemente inte- sgrada; maior também & sua virtude de preservagio. O deta- The dos dogmas e dos rites é secundario. O essencial é que eles sejam de tal natureza que alimentem uma vida coletiva de intensidade suficiente. E é por nio ter 0 mesmo grau de consisténcia das outras que a Igreja protestante no tem a ‘mesma ago moderadora sobre o suicidio, 25), est dio smplesmente gue“ corosdaqules ates mata von ‘amen fara se separ 9 pco-sl, cera sj erator {ar antes ot qe foram moro ge” ibe inp de tos ta (i uma medida pea a osuictoro ‘ais. Mas seri diferente no caso do suicidio egoista? O sen- timento da autonomia individual ndo teré sua moralidade do ‘mesmo modo que 0 sentimento contrario? Se este ¢ a con- digdo de uma certa coragem, se ele fortalece os corages € chega até a endurecé-los, o outro os amolece e 0s abre & pie dade. Se, quando reina 0 suicidio altruista, o homem esta ‘sempre disposto a dar sua vida, em contrapartida ele jé nio faz caso da vida dos outros. Ao contrério, quando le enal- tece tanto a personalidade individual que jé ndo vislumbra ‘nenhum fim que a ultrapasse, também a respeita nos outros. ‘A veneragdo que tem por ela faz com que sofra por tudo 0 que a possa diminuir, mesmo em seus semelhantes, Uma simpatia maior pelo sofrimento humano sucede as devogdes fanéticas dos tempos primitivos. Cada tipo de suicidio, por- tanto, ndo é mais do que a forma exagerada ou desviada de ‘uma virtude. Mas, entdo, a maneira pela qual atingem a cons- ciéncia moral ndo os diferencia suficientemente para que se fenha 0 direito de consttu-tos em tantes géneros diferentes, caPITULOV O SUICIDIO ANOMICO ‘Mas a sociedade nfo & apenas um objeto que atrai para si, com intensidade desigual, os sentimentos e a atividade dos individuos. Também & um poder que 0s regula, Hé uma relagdo entre a maneira pela qual se exerce essa ago regu Iadora ¢ a taxa social dos suicidios. tém uma fato conhecido que as crises econdmi influéncia agravante sobre a propensto ao suicido. Em Viena, em 1873, eclode uma crise financeira que tinge seu maximo em 1874; imediatamente, 0 nimero de Suicios se eleva. De 141 em 1872, eles sobem para 153 em 1873 e para 216 em 1874, com um aumento de 51% com relagdo a 1872 ¢ de 41% com relagio a 1873. A prova de aque essa catistrofe & a tinica causa desse crescimento & 0 fato de ele ser sensivel sobretudo no momento em que a cti- se chegou ao estado agudo, ou seja, durante os quatro pri- trees meses de 1874 De I? de janice 30 de abi 48 304 osuicioio suicidios haviam sido contados em 1871, 44 em 1872, 43, em 1873; houve 73 em 1874. O aumento & de 70%. A mesma crise que eclodiu na mesma época em Frankfurt-am-Main produziu os mesmos efeitos. Nos anos precedentes a 1874, |é cometiam-se em média 22 suicidios por ano; em 1874, hhouve 32, ou seja, 45% a mais, [Nao esti esquecido o famoso craque que se produziu ‘na Bolsa de Paris no inverno de 1882. Suas conseqiiéncias se fizeram sentir nio s6 em Paris, mas emtoda a Franga, De 1874 a 1886, o crescimento médio anual & de apenas 2%; em 1882, & de 7%. Além disso, ele ndo se distibui igual- ‘mente entre os diferentes periodos do ano, mas ocorte 50- ‘retudo nos trés primerios meses, ou sea, no exato momento fem que o craque se produziu, S6 a esse trimestre cabem 59 centésimos do aumento total. Tanto essa elevagio se deve a circunstincias excepcionais que, além de nio se verificar em 1861, ela desaparece em 1883, embora este iltimo ano tenha, no conjunto, um pouco mais de suicidios do que o anterior: a) 20 mL 12136 MH) 7267 Primero ime 1.589 L770 1) 1.608 Essa relagio nio se constata apenas em alguns casos cexcepcionais; ela é a regra. O mimero de faléncias & um bbarémetro que reflete com sensibilidade suficiente as varia- ‘es por que passa a vida econdmica, Quando, de um ano ‘para outro, as faléncias repentinamente se tornam mais nu- merosas, pode-se ter certeza de que ocorreu alguma pertur- bagio grave. De 1845 a 1869, houve, em trés ocasides, es- sas elevagdes sibitas, sintomas de crises. Enquanto, duran- te esse periodo, o crescimento anual do nimero de faléncias E de 3,2%, ele & de 26% em 1847, de 37% em 1854 ¢ de 20% em 1861. Ora, nesses trés momentos, constata-se tam- CCAUSAS SOCIAISE TIPOS SOCLAIS 305 ‘bém uma ascensio excepcionalmente répida do mimero de suieidios. Enquanto nesses 24 anos o aumento médio anual E apenas de 2% ele & de 17% em 1847, de 8% em 1854, de 9% em 1861. ‘Mas a que essas crises devem sua influéncia? Sera por- ‘que, fazendo diminuir a riqueza publica, elas aumentam a ‘miséria? Seré porque a vida se toma mais dificil eas pessoas renunciam a ela com maior facilidade? A explicagdo seduz por sua simplicidade e,aliés, conforma-se & concepgio cor- rente do suicidio, No entanto, os fatos a contradizem. ‘Com efeito, seas mortes voluntirias aumentassem por- que a vida se toma mais dura, elas deveriam diminuir sen- sivelmente quando o bem-estar se toma maior. Ora, embo- +a quando o prego dos alimentos de primeira necessidade se cleva excessivamente o mesmo ocorra, geralmente, com os sicidios, nfo se constata que eles diminuam para menos da _média no caso contririo. Na Prissia, em 1850, a cotagdo do ‘igo desce ao ponto mais baixo que atinge durante todo o periodo de 1848-81; era de 6 marcos 91 por 50 quilogramas; rho entanto, nesse mesmo momento, os Suicidios passam de 1,527, sua taxa em 1849, para 1.736, ou seja, um aumento de 13%, ¢ continua a aumentar durante os anos 1851, 1852, 1853, embora © prego baixo persista. Em 1858-59, uma nova baixa se produz; no entanto, os suicidios eumen- tam de 2.038 em 1857 para 2.126 em 1858, para 2.146 em 1859, De 1863 a 1866, os pregos, que tinham atingido 11 marcos 04 em 1861, caem progressivamente até 7 marcos 95 em 1864 e permanecem muito moderados durante todo © periodo; os suicidios, durante o mesmo periodo, eumen- tam em 17% (2.112 em 1862, 2.485 em 1866). Observam- se fatos andlogos na Baviera, Segundo uma curva construi LV. STARK, Vorbrecho and Yrg in Peasen Bein, 1885, p55 od osuicioio dda por Mayr? para o periodo de 1835-61, entre os anos 1857-58 e 1858-59 o prego do centeio foi o mais baixo; ora, 0s suicidios, que em 1857 eram apenas 286, sobem para 329 em 1858, depois para 387 em 1859, O mesmo fendmeno ja se produzira durante os anos 1848-50: 0 trigo, nessa época, estivera muito barato, como em toda a Europa, Contudo, apesar de uma diminuigdo ligeira e proviséria, devida aos acontecimentos politicos e da qual jé falamos, os suicidios ‘mantiveram-se no mesmo nivel, Contavam-se 217 em 1847, ainda 215 em 1848, e, embora em 1849 baixassem por um ‘tempo para 189, ji em 1850 voltaram a aumentar, chegando 2250, Tanto nfo é 0 crescimento da miséria que provoca 0 ‘rescimento dos suicidios que também crises favoriveis, ccujo efeito & aumentar bruscamente a prosperidade de um pais, agem sobre 0 suicidio do mesmo modo que desastres econémicos. ‘A conquista de Roma por Vitor Emanuel em 1870, inau- gurando definitivamente a unidade da Itélia, foi para esse Pais © ponto de partida de um movimento de renovacdo que © esti tornando uma das grandes poténcias da Europa. Seu comércio © sua indistria tomaram um grande impulso e pproduziram-se transformagdes com extraordinaria rapidez. Enquanto, em 1876, 4.459 caldeiras a vapor, com forga total de 54.000 cavalos-vapor, bastavam as necessidades indus- triais, em 1887 o mimero de maquinas era de 9.983 e sua poténcia, elevada a 167.000 cavalos-vapor, triplicara. Na- turalmente, a quantidade de produtos nesse perfodo aumen- tou segundo a mesma proporsio. As trocas acompanharam 2. Die Geseomansihe tx Geselichafsleton p48 3. Ver FORNASAR DI VERCE, La criminal ricende eonomi he daa Tai, 19,7783. (cAUusAS SOCLAISE TIPOS SOCIAIS 307 1 progressio; nfo apenas a marinha mercante, os meios de ‘comunicagao e de transporte se desenvolyeram, como 0 ni- mero de coisas e pessoas transportadas dobrou. Como essa superatvidade geral provocou uma elevagdo dos salrios (es- tima-se em 35% o aumento de 1873 para 1889), a situagdo ‘material dos trabalhadores melhorou, tanto mais que, no ‘mesmo periodo, o prego do pio foi baixando’. Enfim, se- ‘gundo os célculos de Bodio, riqueza privada teria passado de 45 bilhes e meio, em média, durante o periodo de 1875 180, para S1 bilhdes durante os anos 1880-85 ¢ 54 bilhies e ‘meio em 1885-906, Ora, paralelamente a esse renascimento coletivo, cons- {ata-se um erescimento excepcional do nimero de suicidios. Entre 1866 e 1870 cles praticamente permaneceram cons- tantes; de 1871 a 1877 aumentaram em 36%. Havia em. 1-7. 29 iio por I mio. 1874.37 sucidioe port mills nw 3 ses me ies wa 36 rns = E, a partir de entio, © movimento continuou. O mime- ra tom, que em 1.199 om 1877, pesoon para 2.463 en 1889, ou seja, um novo aumento de 28% Na Prissia, o mesmo fendmeno se produziu em duas ccasides. Em 1866, esse reino passa por um primeiro eres- cimento. Tem anexadas a ele varias provincias importantes, a0 mesmo tempo que se torna capital da confederagio do Norte, Essa conquista de gldria e poder logo se vé acompa- hada de um brusco aumento dos suicidios. Durante 0 pe~ 4d 108-17 Sfp 8108 & Ocrstnen menor 0 prod 1885.90 comic de ms 308 osuicioio iodo de 1856-60, a méia anual de sucidios ea de 123 por 1 milhlo, e apenas 122 durante os anos 1861-65, No qiin- qiénio 1866-70, apesar da baixa produzida em 1870, a médii Sobe para 133. No ano de 1877, que se suis imeditamen- {© vitéi,o sucidio tigi o ponto mais alto que che- gou depois de 1816 (1 suicidio por 5.432 habitantes, 0 asso que, em 1864, hava apenas um caso para 8.739) Logo depois da guerra de 1870, produciu-se mais uma transformagio favorivel. A Alemanka se uifica ese colo- ca inteiramente sob hegemonia da Prissia. Uma enorme indenizagio de guerra ver engrossar a foruna publica; © comércioc a indistra lrescem. Nunca o desenvolvimen- to do sucidio foi tio rapido, De 1875 a 1886 ele aumenta em 90%, passando de 3.278 cass para 6.212 As Exposigdes universais, quando dio certo, sio con- sideradas um evento favorivel na vida de uma sociedade Estimolam os negocios, trazem mais dinheio ao pas econ- siderase que aumentem a prosperidade pablic principal- mente na propria cidade em que se realizam, No entanto ‘fo & impossvel que, afinal, se saldo seja uma elevagio considervel do mimero de Suiidis. £ que parece ter acontcidoprincipalmente na Expesigio de 1878. O aumen- to foi, nesse ano, © maior que se prodizinente 1874. 1886 Foi de 8% portant superior ao determinado pel craque de 1882. E 0 que pratcamente nio permite supor que esse recrudescimentotenha tido outa causa que nao a Expo «060 fit de 86 cenésimos desseeresciment trem acon- tecido jstamente durante os seis meses que cla dou Em 1889, o mesmo no se prodziu para o conjunto da Franca. Mas € possivel que a erie boulanista, pela in- fluéncia depressiva que exerceu sobre a marcha dos suici- dos, tenha nevtralizdo os efits contririos da Exposgao. © certo que, em Pais, embora as paixdespoliticasdesen- cadeadas devessem tera mesma ago que no resto dopa, as (cAUSAS SOCIAISE TIPOS SOCLAIS 309 coisas ocorreram como em 1878. Durante os 7 meses da [Exposigdo, 0s suicidios aumentaram em quase 10%, exata- mente 9,66, a0 passo que, no resto do ano, permaneceram abaixo do que foram em 1888 e do que seriam, em seguida, em 1890. 1888 1n89 1890 (rw meses comespndenes a Expsiia.... 517 S67 S40 ino oxtos meses . 319386 ‘Cabe penguntar se, sem o boulangismo, a elevagio no teria sido mais acentuada ‘Mas 0 que demonstra melhor ainda que @ depressio ceconémica nfo tem a influéncia agravante que muitas vezes Ihe foi atribuida & o fato de que ela produz antes o efeito contririo, Na Irlanda, onde 0 camponés leva uma vida tio ppenosa, as pessoas se matam muito pouco. A Calébria, tio rmiserdvel, no tem suicidios, por assim dizer; a Espanha tem dez vezes menos do que a Franca. Pode-se até dizet que 1 miséria protege. Nos diferentes departamentos franceses, 60s suicidios sio tanto mais numerosos quanto mais ha pes- soas que vivem de rendas. Dara cm gue secne No i de enous or 0000 Bans “events oe 0 ae ‘ssa Capa puters 88) De 48 a 43 suis 5 deparaments). im al 6 > a wim — (6 =D. @ Spe lousy. 2

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