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O SURGIMENTO E O DESENVOLVIMENTO DA

EPISTEMOLOGIA DA ADMINISTRAÇÃO
– INFERÊNCIAS SOBRE A CONTRIBUIÇÃO AO
APERFEIÇOAMENTO DA TEORIA ADMINISTRATIVA *

MAURÍCIO SERVA**

RESUMO ABSTRACT
Este artigo tem origem na constatação do interesse This article originates from the observation of the in-
crescente da comunidade científica da administra- creasing interest of the scientific community of the
ção na construção de uma epistemologia específica administration in building a specific epistemology in
nesta área. No Brasil, tal interesse se revela princi- this area. In Brazil, such interest is revealed mainly
palmente pela oferta da disciplina de epistemolo- by offering the discipline of epistemology in strictu
gia em cursos de pós-graduação stricto sensu, pelo sensu post-graduate studies, by the establishment of
estabelecimento da epistemologia enquanto tema epistemology as an issue in two academic divisions
em duas divisões acadêmicas da ANPAD, pela re- of ANPAD, annually the Federal University of Santa
alização anual na Universidade Federal de Santa Catarina held an international colloquium dedicated
Catarina de um colóquio internacional dedicado ao to the topic, and also the frequent discussion of is-
tema, como também pela discussão frequente de sues related to the epistemology of management at
assuntos ligados à epistemologia da administração scientific events and publications. Therefore, in this
em eventos e publicações científicas. Assim sendo, article I adopt as purposes summarize the emergen-
neste artigo adoto como objetivos sintetizar o sur- ce and development of this particular epistemology,
gimento e o desenvolvimento dessa epistemologia and to infer its probable contributions to the impro-
específica, e inferir sobre suas prováveis contribui- vement of management theory. For this, I undertake
ções para o aperfeiçoamento da teoria da adminis- a short review of some of the most significant studies
tração. Para tanto, empreendo uma revisão sintética of this epistemology, based on the following criteria:
de alguns dos estudos mais significativos dessa epis- i) studies that claim directly undertake an epistemo-
temologia, com base nos seguintes critérios: i) os es- logical approach, highlighting the founders studies,
tudos que declaram diretamente empreender uma ii) studies that contribute to address various subfields
abordagem epistemológica, com destaque para os of management, iii) studies that show effective the-
estudos fundadores; ii) os estudos que contribuem, oretical consistency. Then I articulated the following
em seu conjunto, para abordar diversas subáreas da inferences about some of its possible contribution to

*
Data de submissão: 31/07/2013. Data de aceite: 18/03/2014.
Este artigo é fruto de uma pesquisa apoiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.
**
Mestre e Doutor em administração pela EAESP-FGV. Professor da Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador do
Núcleo de Pesquisa em Organizações, Racionalidade e Desenvolvimento.
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CONTRIBUIÇÃO AO APERFEIÇOAMENTO DA TEORIA ADMINISTRATIVA

administração; iii) os estudos que apresentam efeti- the improvement of management theory: a) matu-
va consistência teórica. Em seguida, expresso as se- ration of the theory by adopting a reflexive attitude
guintes inferências sobre algumas das suas possíveis of the researchers; b) improvement of the research
contribuições para o aperfeiçoamento da teoria ad- protocols, adapting the methods used to research
ministrativa: a) amadurecimento da teoria pela ado- goals; c) facilitating the rapprochement between
ção de uma atitude reflexiva dos pesquisadores; b) theory and practice and between researchers and
melhoria dos protocolos de pesquisa, adequando os managers; d) realistic mapping of the field of activity
métodos empregados aos objetivos das pesquisas; c) of both: researchers and managers; e) a better over-
favorecimento da aproximação entre teoria e práti- view of the field of administration.
ca, entre pesquisadores e gestores; d) mapeamento
realista do campo de atuação tanto dos pesquisa- Keywords: Epistemology. Management. Science.
dores como dos gestores; e) uma melhor visão de
conjunto do campo da administração.

Palavras-chave: AEpistemologia. Administração. Ci-


ência.

1. INTRODUÇÃO Assim sendo, neste artigo adoto como obje-


tivos sintetizar o surgimento e desenvolvimento
Nas últimas décadas, observa-se a multiplica- dessa epistemologia específica, e inferir sobre suas
ção de estudos na administração, abordando temas prováveis contribuições para o aperfeiçoamento
como análise paradigmática, exame de fundamen- da teoria da administração. Para tanto, discuto as
tos e de pressupostos de teorias, análise do campo seguintes questões: do que trata a epistemologia?
de produção do conhecimento, discussão metodo- Quais são suas dimensões internas? Como surgiu e
lógica, interdisciplinaridade, dentre outros. Tais te- como se expande, em particular, a epistemologia
mas compõem um largo inventário de abordagens, da administração? Por que uma epistemologia da
discussões, debates e sistematizações próprios da administração avança nas últimas décadas, ocu-
epistemologia, campo do saber que elabora um pando cada vez mais espaços nas discussões, nas
discurso crítico sobre as ciências. Todo esse movi- instituições de ensino e nas publicações científicas?
mento traz consigo uma espécie de questionamen- Quais seriam as contribuições, enfim, que tal disci-
to crítico sobre os caminhos da própria ciência que plina poderia oferecer para o aperfeiçoamento da
observávamos em outras áreas, mas até então não teoria administrativa?
na administração. Balizado por tais questões, abordarei em pri-
Por conseguinte, estamos, de fato, constatando meiro lugar algumas noções de epistemologia ge-
a construção gradual de uma epistemologia espe- ral, tecendo considerações sobre a sua natureza
cífica da administração, embora no Brasil ela ainda e objetivos e acrescentando informações sobre o
não tenha a mesma divulgação que em determi- surgimento das epistemologias específicas. Em se-
nados países, o interesse pelo tema em nosso país guida, tratarei do surgimento e do desenvolvimen-
é crescente. Alguns fatos atestam esse interesse: a) to da epistemologia da administração, dando uma
determinados Programas de Doutorado e Mestra- visão geral e inicial do tema por meio de uma re-
do, como por exemplo, o da Universidade Federal visão sintética de alguns dos estudos mais significa-
do Paraná, o da Pontífica Universidade Católica do tivos dessa epistemologia. Sempre ressaltando que
Paraná, o da Universidade Federal do Rio Grande essa revisão não pretende ser exaustiva, considero
do Sul, o da Universidade Federal de Santa Catari- como alguns dos mais significativos estudos aque-
na, dentre outros, já possuem uma disciplina sobre les que atendem a, pelo menos, dois dos seguintes
epistemologia da administração em seus currícu- critérios: i) os estudos que declaram diretamente
los; b) nesta última universidade, desde 2011 vem empreender uma abordagem epistemológica, com
sendo realizado anualmente o Colóquio Interna- destaque para os estudos fundadores; ii) os estudos
cional de Epistemologia e Sociologia da Ciência da que contribuem, em seu conjunto, para abordar
Administração; b) no âmbito da ANPAD, em 2009 diversas subáreas da administração; iii) os estudos
foi instituído o tema epistemologia na Divisão de que apresentam efetiva consistência teórica. Após
Ensino e Pesquisa na Administração e, em 2010, o delineamento desse quadro geral e inicial, apre-
também na Divisão de Estudos Organizacionais. sentarei algumas inferências sobre as possibilidades

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de contribuição da epistemologia da administração É justamente nessa concepção diacrônica que


para o aperfeiçoamento da teoria administrativa e, pautarei o tratamento da epistemologia no pre-
por fim, as conclusões. sente trabalho. Ao adquirir um estatuto próprio,
a epistemologia apresenta-se como um saber in-
2. DA EPISTEMOLOGIA E DO SURGIMENTO DAS EPIS- terdisciplinar, uma vez que busca estudar a produ-
ção do conhecimento científico tanto do ponto de
TEMOLOGIAS ESPECÍFICAS vista lógico (herdado da epistemologia tradicional)
quanto dos pontos de vista linguístico, socioló-
A epistemologia tem suas raízes na filosofia da
gico, ideológico, antropológico. Não é por outra
ciência, embora nas últimas décadas tenha obtido
razão que Japiassu (1991) admite que o conceito
uma significativa autonomia com relação a esta,
de epistemologia é empregado de modo flexível.
como veremos mais adiante. Para vários autores,
Quanto à questão da autonomia da epistemologia
dentre os quais podemos citar Gaston Bachelard —
com relação à filosofia da ciência, o mesmo autor
considerado como um dos representantes da mo-
afirma que “essas noções são complementares: a
derna filosofia da ciência —, a epistemologia es-
epistemologia guarda sua autonomia relativamente
taria centrada na análise rigorosa do racionalismo,
à filosofia, mas permanece solidária a ela numa in-
além de voltada prioritariamente para o estudo das
tegração profunda” (Japiassu, 1991, p. 37).
ciências físicas. Bachelard (1971) propõe a noção
Desde a segunda metade dos anos de 1960,
de “região epistemológica”, ao defender que as
uma série de fatores concorre para o aprofunda-
“regiões” do saber científico são determinadas pela
mento do questionamento da ciência enquanto
reflexão profunda sobre o desenvolvimento históri-
saber revelador da essência da natureza e da so-
co do racionalismo:
ciedade. Primeiramente, nas décadas iniciais do
O racionalismo é a consciência de uma ciência
século passado o próprio avanço da ciência provo-
retificada, de uma ciência que tem a marca da cou uma revisão profunda de teorias e de concep-
ação humana, da ação refletida, industriosa, nor- ções fundamentais nas ciências mais tradicionais,
malizante. [...] Resta-nos provar que as regiões do abalando a crença na solidez destas enquanto ex-
racional nas ciências físicas se determinam numa plicação da realidade: o advento da teoria da re-
experimentação numenal do fenômeno. É aí, e de latividade, como também as experiências de Hei-
nenhum modo à superfície dos fenômenos, que se senberg — um dos fundadores da teoria quântica
pode sentir a sensibilidade da adaptação racional. — são algumas ilustrações desse processo. Mais
(Bachelard, 1971, p. 35).
tarde, a turbulência política e social do final dos
anos de 1960, culminando com o advento da cri-
Japiassu (1991) atribui à epistemologia um ca- se econômica nos países do Hemisfério Norte e a
ráter essencialmente diacrônico, em sintonia com sua expansão gradual às outras regiões do mundo,
sua concepção contemporânea: intensificaram o questionamento do saber científi-
co, estendendo-o também às ciências humanas. É
Devemos falar hoje em conhecimento-processo e
não mais em conhecimento-estado. Se nosso co-
sempre bom lembrar que o desenvolvimento cien-
nhecimento se apresenta em devir, só conhecemos tífico e tecnológico é um dos pilares da ideia de
realmente quando passamos de um conhecimento progresso que prevalece nas sociedades ocidentais.
menor a um conhecimento maior. A tarefa da A crise que se abate sobre o Ocidente põe em xe-
epistemologia consiste em conhecer este devir e que várias instituições, estando também a ciência
em analisar todas as etapas de sua estruturação, e o seu aparato institucional no bojo desse debate.
chegando sempre a um conhecimento provisório, Nesse contexto, o debate se intensifica com a
jamais acabado ou definitivo. É neste sentido que publicação de determinados trabalhos que rediscu-
podemos conceituá-la como essa disciplina cuja
tem a noção da ciência como um empreendimen-
função essencial consiste em submeter a prática
dos cientistas a uma reflexão que, diferentemente
to desprovido de interesses outros que não a pura
da filosofia clássica do conhecimento, toma por e imparcial busca da verdade. Em 1962, Thomas
objeto, não mais uma ciência feita, uma ciência Kuhn, físico americano, publica “A Estrutura das
verdadeira de que deveríamos estabelecer as Revoluções Científicas”, intensificando a análise
condições de possibilidade, de coerência ou os histórica da ciência e divulgando o conceito de pa-
títulos de legitimidade, mas as ciências em vias radigma, por meio do qual o autor chama a aten-
de se fazerem, em seu processo de gênese, de ção para a influência das disputas entre os grupos
formação e de estruturação progressiva. (Japiassu, que compõem a comunidade científica no pró-
1991, p. 27).
prio desenvolvimento da ciência. Em 1976, Pierre
Bourdieu, sociólogo francês, publica “O Campo
Científico”, um estudo situado no âmbito da so-

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ciologia da ciência, que busca identificar e analisar cal Computer Laboratory, fundado por Heinz Von
o campo profissional dos cientistas, comparando-o Foerster na Universidade de Illinois nos anos de
a outros campos profissionais e demonstrando as 1950. Tais pesquisas, mesclando conhecimentos
suas lutas internas, o jogo de interesses e poder. de áreas diversas como a biologia, a cibernética,
Ambos os trabalhos tem até hoje uma grande re- química e física apresentaram, mais tarde, desdo-
percussão nos meios científicos. A este trabalho de bramentos surpreendentes. Em 1965, Jacques Mo-
Bourdieu, seguiram-se uma série de estudos que nod, juntamente com André Lwoff e François Jacob
vieram consolidar a sociologia da ciência num pon- ganharam o Prêmio Nobel de Fisiologia e Medici-
to de vista essencialmente crítico. na por seus trabalhos no campo da biologia mole-
No que concerne à epistemologia, o questiona- cular; em 1977, Ilya Prigogine recebeu o Prêmio
mento da ciência ocasionou uma ampliação do seu Nobel de Química devido ao seu estudo sobre a
escopo: da análise do saber científico globalmen- termodinâmica. Já no ano de 1982, uma centena
te considerado, passou-se a contar também com de cientistas oriundos de várias áreas (matemática,
o desenvolvimento de análises de disciplinas indi- física, sociologia, antropologia, química etc.), in-
viduais. Assim, atualmente pode-se falar da epis- cluindo Morin, reuniu-se num colóquio em Cerisy,
temologia geral — voltada para o saber científico na França, para debater o paradigma emergente
como um todo — e das epistemologias específicas, e seus impactos nos diversos campos do conheci-
estas dedicadas ao estudo de disciplinas intelectu- mento (Dumouchel; Dupuy, 1983). A partir desse
almente constituídas em unidades bem definidas evento, o paradigma da complexidade obteve o
do saber científico. Para Japiassu (1991), a tarefa da reconhecimento da comunidade científica global
epistemologia específica é estudar cada disciplina como uma nova forma de construção da ciência
de modo detalhado, mostrando sua organização, (Dupuy, 1982). Edgar Morin é o principal sistemati-
seu funcionamento e as possíveis relações que ela zador das bases epistemológicas desse paradigma,
mantém com as demais disciplinas. Um aspecto sua vasta obra, incluindo os seis volumes da série
digno de destaque na referida ampliação de escopo intitulada “O Método”, tornou-se a referência pri-
diz respeito à autoria dos estudos incluídos na epis- mordial nessa área. Comentando a obra de Edgar
temologia específica: em sua grande maioria, eles Morin, Christian Descamps afirma que “para Mo-
são produzidos pelos próprios cientistas perten- rin, a ciência não deveria se contentar em estender
centes às disciplinas e não por epistemólogos com seus objetos. Ela deve mostrar-se capaz de estudar
formação em filosofia (Berthelot, 2001; Japiassu, a si mesma, de confrontar idéias que o sábio espe-
1991). Assim, a criação e o desenvolvimento das cializado não pode conceber sozinho” (Descamps,
epistemologias específicas são frutos das obras de 1991, p. 103).
economistas, sociólogos, biólogos e demais cientis- Ainda na perspectiva da epistemologia geral, o
tas atuantes em seus respectivos campos. conjunto da obra de Boaventura Santos, sociólogo
No final do século XX e no início deste, observa- português, reveste-se de uma importância capital,
-se um forte incremento dos estudos epistemológi- pois nos oferece uma rigorosa retrospectiva histó-
cos, tanto na vertente da epistemologia geral quan- rica da ciência desde o século XVI até o presente,
to principalmente nas vertentes das epistemologias ao passo que elabora inferências para a trajetória
específicas. Dentre os diversos estudos que com- futura do conhecimento científico. Identificando as
põem esse incremento, destacaremos brevemente origens, o conteúdo essencial e as consequências
aqueles realizados por Edgar Morin, Boaventura do que o autor chama de “paradigma dominan-
Santos, Jean-Michel Berthelot e Bruno Latour. te” nas ciências desde o século XVI, Santos analisa
Edgar Morin elabora uma extensa obra de gran- em profundidade a crise da ciência na atualidade
de profundidade, inicialmente delineando as bases e em seguida delineia o “paradigma emergente”
e, em seguida, discutindo em detalhes o conteú- (Santos, 1987), cuja essência se assemelha muito
do do denominado paradigma da complexidade, ao paradigma da complexidade. Dando conti-
uma tentativa de unificar o conhecimento científi- nuidade ao seu trabalho epistemológico, o autor
co através da aplicação da visão sistêmica, apoiada discute a racionalidade científica (Santos, 2000),
pela lógica dialética e pela fenomenologia. A emer- para depois investir fortemente na reconstrução do
gência do paradigma da complexidade é uma ten- conhecimento, reunindo cientistas de várias áreas
tativa de superar os impasses conceituais, lógicos do saber e de países diversos numa discussão epis-
e epistemológicos que disciplinas como a biologia, temológica inovadora com a publicação em 2004
cibernética, física, comunicação, dentre outras, da coletânea intitulada “Conhecimento Prudente
criaram a partir de seus próprios desenvolvimen- para uma Vida Decente”. As teses avançadas nesta
tos. As raízes históricas desse paradigma científico última publicação representam um amplo balanço
remontam às pesquisas desenvolvidas no Biologi- da situação atual do conhecimento científico, com-

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plementado por propostas de novos caminhos para partida de uma epistemologia da ciência adminis-
a ciência que estão alimentando significativamente trativa. Como a administração faz parte do grande
o debate sobre o futuro desse tipo de saber. conjunto das ciências sociais, e é considerada por
Na perspectiva das epistemologias específi- muitos como uma ciência social aplicada, atribuo
cas, ressalto o trabalho coletivo dirigido por Jean- como causas desse início da reflexão sistematizada
-Michel Berthelot (2001), o qual congrega análises aquelas mesmas causas que apontei anteriormente
da economia, história, geografia, linguística, co- para o questionamento da ciência em geral (a crise
municação, sociologia, antropologia e demografia da ciência, acoplada às crises econômica, social e
realizadas por autores pertencentes aos seus res- política).
pectivos campos. Berthelot explica que esse livro
foi elaborado em três níveis. O primeiro nível visa 3.1. O SURGIMENTO DA DISCUSSÃO EPISTEMOLÓGICA
apresentar o espaço de conhecimento das disci-
plinas analisadas, a forma como ele se constituiu
DA CIÊNCIA DA ADMINISTRAÇÃO
historicamente e como ele é preenchido por cer-
O primeiro sinal da reflexão de natureza episte-
to número de teorias principais. O segundo nível
mológica sobre a ciência administrativa que obteve
aborda a questão da proximidade temática e epis-
uma razoável difusão nos meios acadêmicos veio
temológica dessas disciplinas, através da aborda-
com a publicação do livro “Sociological Paradigms
gem de determinados problemas transversais: ação
and Organizational Analysis”, escrito por Gibson
e cognição, história e estrutura, modelos e relatos,
Burrel e Gareth Morgan em 1979. Mesmo não sen-
dentre outros. O autor adverte que tais problemas
do um trabalho que aborda de forma mais comple-
não foram escolhidos ao acaso, pois eles concen-
ta as questões epistemológicas, pois se restringe à
tram desde o início do século passado uma parte
análise de paradigmas, posso indicar que esse estu-
importante do esforço teórico e reflexivo no seio
do sinaliza para o surgimento futuro de uma epis-
das ciências sociais. O terceiro nível busca alcançar
temologia específica da administração. Partindo
a unidade na pluralidade, por meio da tentativa
da configuração da sociologia, os autores apontam
de resposta à seguinte questão: pode-se reduzir
quatro paradigmas que, segundo eles, orientam a
a extrema diversidade das disciplinas analisadas
produção científica na análise organizacional: fun-
a uma espécie de carta cognitiva e programática?
cionalista, humanista radical, estruturalista radical e
Nesse nível, alguns temas são discutidos, tais como
o interpretativo. A publicação desse livro inaugura
“das teorias aos programas de pesquisa”, “dos pro-
uma série de trabalhos que serão elaborados mais
gramas aos esquemas”, “esquemas e dados: des-
tarde sobre os paradigmas na análise organizacio-
crição e explicação”, “integração e confrontação
nal, desembocando na constituição de um tema
das ciências sociais”. A obra dirigida por Berthelot
de estudo abordado com razoável freqüência por
apresenta ricas descrições e análises de cada uma
autores interessados no debate paradigmático. Al-
daquelas ciências, elaboradas sob o ponto de vista
guns exemplos desses trabalhos são: i) o de Morgan
de autores com formação e experiência em cada
(1980), no qual o autor reforça a visão dos quatro
campo particular, o que acaba por se tornar uma
paradigmas difundidos pelo livro e acrescenta a uti-
referência indispensável no estudo das epistemolo-
lização de metáforas para a análise organizacional,
gias específicas na atualidade.
adotando um caminho que o conduziu mais tarde
Assim, além de um repensar sobre a epistemo-
à publicação do famoso livro “Imagens da Orga-
logia geral, esses novos estudos que surgem a partir
nização”; ii) o livro “L’analyse des organisations”,
de 1980 avançam no reconhecimento e na análise
publicado no Canadá por Chanlat e Séguin (1992),
de epistemologias específicas. É desse aspecto que
que propõe uma outra base para o exame das teo-
me ocuparei a seguir, ao abordar esse fenômeno
rias organizacionais composta por dois paradigmas,
no campo da administração.
a saber, o funcionalista e o crítico; iii) o trabalho
de Lewis e Grimes (1999), propondo a construção
3. SURGIMENTO E DESENVOLVIMENTO DA EPISTEMO- de teorias administrativas por meio do emprego
LOGIA DA ADMINISTRAÇÃO simultâneo de vários paradigmas, ou como os pró-
prios autores o definem, mediante um processo de
A reflexão sistematizada sobre a natureza, os “metatriangulação”.
fundamentos e a construção dos conhecimentos No ano seguinte ao lançamento do livro de
científicos em administração inicia-se no final dos Burrel e Morgan, Chevalier e Loschak (1980) pu-
anos de 1970 e começo dos anos de 1980. Num blicaram na França um livro intitulado “A Ciência
período de três anos — entre 1979 e 1981 — cons- Administrativa”. Apesar de se tratar de um livro de
tata-se o lançamento de três livros, os quais exami- tamanho reduzido e dedicado inteiramente à dis-
narei brevemente a seguir, denotando o ponto de cussão da realidade francesa, observa-se pela pri-

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meira vez o tratamento conjunto de temas como Doutorado em Administração da Universidade


a “constituição do campo científico da adminis- Laval, em Quebec, sob a coordenação de Alfred
tração” e “obstáculos epistemológicos a superar”, Houle. Após o falecimento prematuro do professor
numa nítida incursão pela disciplina epistemológi- Houle em 1984, e coincidindo com a comemo-
ca, embora ainda incipiente. ração dos vinte anos de funcionamento daquele
Praticamente no mesmo período da divulgação doutorado, Michel Audet e Jean-Louis Malouin
dos estudos citados acima sobre a ciência adminis- (1986) — professores do mesmo Programa — or-
trativa, mais exatamente no ano de 1981, Alberto ganizaram uma coletânea dos textos discutidos du-
Guerreiro Ramos publica o livro intitulado “A Nova rante os seminários, publicando em 1986 um livro
Ciência das Organizações”. Nesse seu último livro, intitulado “La Production des Connaissances Scien-
o autor dedica algumas páginas à discussão episte- tifiques de l’Administration”. Esse livro torna-se um
mológica da teoria administrativa, antes de propor marco na construção da disciplina em questão,
as bases de uma nova abordagem para a teoria. A pois expressa o estabelecimento efetivo da episte-
importância que Guerreiro Ramos atribui à episte- mologia da administração. O livro é inteiramente
mologia pode ser atestada por esse trecho de seu dedicado à nova disciplina, oferecendo pela pri-
livro: meira vez aos pesquisadores da administração um
tratamento aprofundado de temas tais como o
A disciplina organizacional contemporânea não campo, a cientificidade, a diversidade e os proces-
desenvolveu a capacidade analítica necessária à sos de produção dos conhecimentos científicos em
crítica de seus alicerces teóricos e, em vez disso, administração. Tentarei reportar aqui uma síntese
em grande parte toma emprestadas capacidades
dos principais conteúdos dessa importante obra.
exteriores. Por essa razão, condenou-se a si mes-
ma a permanecer pré-analítica e, para sempre,
Na primeira parte do livro, o próprio Michel
na periferia da ciência social. Dificilmente um Audet (1986) discute o conceito de campo e tam-
campo disciplinar atingirá o nível sofisticado de bém o interesse de empregar esse conceito para
conhecimento requerido para o ensino em grau tratar do desenvolvimento e do conteúdo da ciên-
superior, se não for capaz de desenvolver um ca- cia administrativa. O campo é definido como um
ráter crítico de si mesmo, extraídas as suas bases sistema composto por atores e suas relações. Os
epistemológicas. (Guerreiro Ramos, 1981, p. 118). atores principais do campo de produção do conhe-
cimento administrativo são os gestores profissio-
Assim, o autor deixa claro que, na sua visão, o nais, os professores e pesquisadores universitários,
desenvolvimento de uma epistemologia específica e os consultores organizacionais. Em conformidade
é uma condição sine qua non para a elevação qua- com os estudos de Pierre Bourdieu, Audet adverte
litativa de uma disciplina científica e também para que esse campo é também um espaço de dispu-
que o seu ensino seja realizado num alto nível. A tas e, portanto, a sua dinâmica deve ser analisada
natureza da discussão epistemológica que Guerrei- como um processo social. Nessa abordagem do
ro Ramos empreende é de cunho crítico, uma crí- campo, Audet (1986) identifica que o aspecto fun-
tica endereçada à teoria administrativa dominante damental que está em jogo, ou seja, no centro das
naquele momento. A discussão aberta pelo autor disputas é a definição do que é ciência, dos crité-
passa pelos seguintes temas: a organização como rios de validade do conhecimento que é produzido
um sistema epistemológico; pontos cegos da teo- pelos atores do campo; daí decorre a obtenção das
ria organizacional corrente; reexame da noção de condições de satisfação de interesses de poder, de
racionalidade; peculiaridade histórica das organi- status, de recursos materiais e simbólicos no espa-
zações econômicas; interação simbólica e huma- ço profissional.
nidade. Na segunda parte do livro, Gagnon (1986a)
Após o ano de 1981, portanto, tínhamos já um ilustra algumas transformações do campo, particu-
patamar básico estabelecido para o incremento da larmente no ambiente das escolas de gestão. Em
epistemologia da administração. No desenrolar dos seguida, Dominique (1986) procede a uma revisão
anos de 1980, diversos trabalhos foram elaborados geral dos pressupostos epistemológicos subjacentes
nessa disciplina, dentre os quais destacarei a seguir às lutas metodológicas que animaram o campo da
alguns dos mais importantes. economia desde a sua institucionalização. Essa re-
visão se reveste de uma importância considerável,
3.2. O DESENVOLVIMENTO DA EPISTEMOLOGIA DA pois a economia é uma ciência que possui uma
ADMINISTRAÇÃO interface importante com a ciência administrativa.
Price (1986), por sua vez, examina as concepções
Entre 1981 e 1984, uma série de seminários clássicas da ciência e do método científico para en-
sobre epistemologia foi realizada no Programa de tão propor uma atualização dos mesmos, visando

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aplicá-los à administração no sentido de reduzir emergem com clareza. Em face dessa configuração,
a oposição entre teoria e prática. A preocupação Audet se interroga e arremata: Deveríamos nos es-
com a prática faz avançar a análise epistemológica, pantar com um campo em transformação rápida
demonstrando que ela pode contribuir significati- e incessante, ao mesmo tempo integrado por seu
vamente para o aperfeiçoamento de uma ciência objeto global e diversificado pelos objetos que nele
social aplicada, como a administração. É nessa são recortados? Para o autor, o que aparentemente
direção que Landry (1986) aborda a natureza do parece constituir a fraqueza principal da adminis-
conhecimento administrativo e sua relação com a tração, em verdade constitui sua força mais viva e o
prática. O autor trabalha a epistemologia e a meto- princípio explicativo de seu dinamismo; toda ten-
dologia científica em administração como uma es- tativa de sufocar a sua diversidade, as tensões entre
pécie de “um vasto canteiro de obras”, no qual os facções, contribuirá para a sua estagnação (Audet,
membros do campo administrativo tem interesse 1986, p. 19).
em agir, pois é adotando essa via que a ultrapassa- Dentre os diversos trabalhos que se seguiram
gem das oposições tradicionais e o reconhecimento ao de Audet e Malouin, ressaltarei alguns com o
da diversidade dos processos de produção do co- intuito de proporcionar ao leitor uma visão geral e
nhecimento científico são possíveis. Neste sentido, inicial (sempre em conformidade com os critérios
Gagnon (1986b) retorna com um segundo texto, apresentados na introdução deste artigo) do desen-
no qual elabora um balanço das principais transfor- volvimento da jovem disciplina.
mações observadas na teoria da gestão financeira Martinet (1990a) realiza um esforço notável
durante os últimos trinta e cinco anos, oferecendo de correspondência entre a epistemologia geral e
aos especialistas dessa área uma oportunidade para a epistemologia da administração ao examinar as
a reflexão sobre a trajetória da teoria face às expec- grandes questões que ao longo do tempo vêm mar-
tativas da prática. cando o debate epistemológico. O autor examina
Edgar Morin (1986) inaugura a terceira parte da as seguintes questões com um olhar inovador, pois
coletânea, abordando o tema da complexidade e lançado a partir do ponto de vista do produtor de
organização. O autor elabora uma série de raciocí- conhecimento em administração: verificação x re-
nios com vistas a contribuir com o desenvolvimen- futação, hiperempirismo x antiempirismo, explica-
to da teoria administrativa a partir das descobertas tivo x normativo, intencionalismo x determinismo,
do paradigma da complexidade. Bherer (1986) dá explicação global x explicação local, purismo x
prosseguimento à reflexão dos autores preceden- anarquismo metodológico. Após inserir o conhe-
tes, abordando a questão da oposição entre os mé- cimento administrativo no coração do debate so-
todos qualitativos e os quantitativos de pesquisa. O bre as bases e o futuro da ciência, Martinet prega
autor rejeita essa oposição, reconhecendo a diver- uma “abertura do método”, como forma de fazer
sidade dos protocolos de pesquisa que marca a ad- a ciência administrativa evoluir: “o que importa
ministração. Herbert Simon (1986) apresenta três é a construção de enunciados razoáveis, comuni-
formas concretas de pesquisa nas organizações: cáveis, discutíveis pelo duplo jogo da experiência
os estudos experimentais em uma organização, os (mais do que pela experimentação) e do exercício
estudos de observação em uma ou várias organiza- das lógicas. Aos cientistas cabe conceber e declarar
ções, e a modelização via recursos computacionais seus métodos, os quais representem sempre um su-
no estudo da tomada de decisão. Simon reconhe- jeito que caminha, um território mais que um ob-
ce que a modelização em si não é suficiente para jeto, um caminho, um percurso” (Martinet, 1990,
assegurar o rigor e a validade da pesquisa, mas ela p. 27).
contribui muito, uma vez que a “intolerância” do É nessa perspectiva que Martinet (1990b) ela-
computador é implacável com um possível relaxa- bora um estudo epistemológico sobre a área da es-
mento do pesquisador. tratégia empresarial. Definindo a estratégia como
Ao todo, vinte textos fazem parte da coletâ- “a concepção, preparação e condução de uma
nea. Como considerações transversais, podemos ação coletiva de tipo econômico num meio confli-
constatar que o campo da ciência administrativa tuoso”, o autor identifica as proposições gerais que
é fracionado segundo múltiplos recortes que co- acompanham os estudos em estratégia: i) atores
locam em jogo os interesses dos seus membros, (organizações) dotados de autonomia e funciona-
suas opções epistemológicas e metodológicas, os lidade; ii) atores no ambiente suscetíveis de agir e
projetos de produção de conhecimento nos quais reagir relativamente ao ator focal; iii) uma teoria
eles trabalham e a divisão social do trabalho que os “interessada”, na medida em que visa conduzir o
afetam. Num tal contexto, as contradições entre as ator de um estágio para outro; iv) uma teoria cujos
diversas opções feitas pelos membros, bem como a critérios de validade são buscados na eficácia e na
dinâmica acelerada das transformações do campo eficiência, e não numa “verdade científica”; v) uma

RGO REVISTA GESTÃO ORGANIZACIONAL | VOL. 6 - EDIÇÃO ESPECIAL - 2013 57


O SURGIMENTO E O DESENVOLVIMENTO DA EPISTEMOLOGIA DA ADMINISTRAÇÃO – INFERÊNCIAS SOBRE A
CONTRIBUIÇÃO AO APERFEIÇOAMENTO DA TEORIA ADMINISTRATIVA

teoria composta de duas vertentes, uma descritiva resultante em sete falácias do planejamento estra-
e outra normativa. Em seguida, Martinet extrai os tégico. No lugar da ortodoxia estratégica, o artigo
principais paradoxos frequentemente encontrados propõe seis áreas que vemos como fundamentais
na teoria da estratégia: sujeito x objeto, transforma- para o esforço de compreender a estratégia como
ção x conservação, alcance de objetivos x mudan- prática” (Clegg, 2004, p. 30).
ça de objetivos, racionalidade x espontaneidade, Micallef (1990) analisa a epistemologia do ma-
liberdade x adaptação, conhecimento das regras x rketing, oferecendo um panorama geral para a
mudança das regras, cálculo x aposta. Aprofundan- produção científica nessa área, tendo em vista o
do as implicações teóricas da natureza paradoxal atendimento de exigências epistemológicas míni-
da estratégia, Martinet indica como saída a adoção mas de qualidade dessa produção. Em seu esforço
do pensamento baseado no paradigma da comple- analítico, Micallef visita os grandes ciclos históricos
xidade e cita a visão de Edgar Morin, visando uma da pesquisa científica em marketing: primeiro ci-
melhor compreensão dos fenômenos organizacio- clo (1900-1950), de um marketing descritivo a um
nais. O autor argumenta que: marketing analítico; segundo ciclo (1950-1970), de
um marketing conceitual, holístico e social a uma
Convém, então, de início, se convencer de que os metáfora do marketing; terceiro ciclo (1970-1980),
pólos contrários atuam, quer se queira ou não. É de uma epistemologia do marketing às tentativas
assim que toda enunciação estratégica deliberada de teorização geral. Micallef identifica a partir
faz nascer comportamentos e ações não estrita-
dos anos de 1980 as diversas controvérsias cien-
mente desejados, que de forma incremental farão
emergir uma estratégia diferente, ou que toda
tíficas e metodológicas que afetaram o campo do
tentativa de homogeneização deslancha processos marketing, bem como as iniciativas para alcançar
de heterogeneização. É, então, necessário que a um acordo entre os autores. O autor reconhece
reflexão seja capaz de pensar a coexistência dos o relativo sucesso do chamado “paradigma do in-
contrários. [...] Salvo a se degenerar em exercício tercâmbio social” (entre atores e instituições) em
tecnocrático, a estratégia não pode se apoiar obter um acordo mínimo entre os pesquisadores,
exclusivamente no analítico, seqüencial, serial, tendo como referência, dentre outros, os trabalhos
digital... [...] Ela se arrisca a cair no imaginário de Carman (1980) e de Houston e Gassenheimer
puro, no mito, no fluido artístico. (MARTINET,
(1987). Todavia, para Micallef, tal acordo não é su-
1990b, p. 234).
ficiente para garantir o rigor da produção cientifica,
uma vez que resta aberta a questão metodológica.
Ainda concernente à epistemologia da estraté-
O autor discute, então, a problemática ligada ao
gia empresarial, Clegg (2004) nos dá, mais recen-
método, reportando as contribuições mais impor-
temente, uma contribuição digna de destaque. O
tantes dadas ao longo dos anos de 1980 e chaman-
autor identifica a base epistemológica da gestão
do a atenção para o aspecto do campo de referên-
estratégica com o cartesianismo, o que conduziria
cia do pesquisador. Micallef finaliza o seu estudo
a sete falácias que guiam os estudos nessa área, as
confessando certo pessimismo, devido ao fato do
quais são apresentadas em termos de disparidades,
trabalho epistemológico ser, por natureza, inacaba-
a saber: i) a disparidade entre as fantasias geren-
do... Ademais, o marketing não estaria ao abrigo da
ciais e as competências organizacionais; ii) a dispa-
crise geral que afeta a ciência.
ridade entre os objetivos reais e claros e os futuros,
Além de permitir uma reflexão sobre o desen-
possíveis e imprevisíveis; iii) a disparidade entre o
volvimento das diferentes “áreas” do campo, a
planejamento e a implementação; iv) a disparidade
epistemologia da administração tem proporciona-
entre a mudança planejada e a evolução emergen-
do novas formas de retraçar a trajetória histórica
te; v) a disparidade entre os meios e os fins; vi) a
da teoria administrativa. Um dos estudos que abre
disparidade entre uma mente planejadora (a admi-
tal perspectiva é o elaborado por Déry e Audet
nistração) e um corpo planejado (a organização);
(1996). Os autores remontam a historiografia da te-
vii) a disparidade entre a ordem e a desordem. Afir-
oria administrativa não como uma série cumulativa
mando a importância de se conceber uma teoria
de abordagens teóricas, e sim sob o ângulo de cada
mais centrada na prática real da gestão estratégica,
etapa das escolhas epistemológicas predominantes.
Clegg estabelece uma agenda de pesquisa basea-
O resultado do trabalho é inovador, no sentido de
da em temas como poder, identidade profissional,
pensar as transformações operadas no conjunto da
“atores não humanos” (acontecimentos não inicia-
teoria. Quatro grandes etapas podem ser extraídas
dos por ações dos indivíduos), ética, linguagem e
do exame histórico-epistemológico realizado pelos
instituições. O autor afirma que “o artigo contribui
autores: i) Apropriação do discurso “cientificista”:
para um melhor entendimento da linha epistemo-
inicia-se em torno de 1900, com os trabalhos de
lógica da gestão estratégica contemporânea. Uma
Taylor e os seus contemporâneos. O campo da
dívida para com Descartes foi caracterizada como

58 RGO REVISTA GESTÃO ORGANIZACIONAL | VOL. 6 - EDIÇÃO ESPECIAL - 2013


MAURÍCIO SERVA

administração é representado como uma espécie mais, políticas, culturais, críticas, econômicas, etc.).
de engenharia social, os métodos de estudo são a Paralelamente, os métodos qualitativos de pesquisa
observação e a codificação. Os efeitos desejados ganharam uma ampla utilização.
são a legitimação e a permanência da nova pro- Nesse contexto de fragmentação da teoria,
fissão; ii) “Cientifização” das práticas: a partir de Hatchuel defende então a interpretação da teoria
1940, marcada por um fundamento neopositivista, administrativa enquanto teoria da ação coletiva
cujo objeto são as regras de validação científica do baseada em duas dimensões fundamentais: o sa-
conhecimento. O método é centrado na análise ber e as relações interpessoais. Defende também
formal (quantitativa) e a representação do campo o princípio da não separação entre essas duas di-
é de uma ciência unitária. Seus efeitos são a espe- mensões para o estudo da administração. O autor
cialização crescente da administração em áreas e a acredita que a ciência administrativa pode hoje
institucionalização delas; iii) Revelação da diversi- pensar uma mutação essencial para ela mesma,
dade das práticas: inicia-se em 1970 e tem como para outras ciências sociais e para a sociedade. Se-
fundamento um pluralismo metodológico na admi- gundo Hatchuel: “essa teoria não é um idealismo
nistração. Os métodos são tanto conceituais quan- proclamando uma racionalidade universal, nem
to empíricos e a representação do campo é de uma um pragmatismo sem princípio ou sem dimensão
ciência polimorfa. Alguns dos efeitos principais são coletiva. [...] O trabalho dos pesquisadores é aqui
a fragmentação do saber e a politização definiti- um vetor essencial. Uma teoria axiomática da ação
va do campo; iv) Derivação conceitual: inaugura- coletiva permite pensar novas formas da pesquisa”
-se nos anos de 1980 e é marcada por um esforço (Hatchuel, 2000, p. 39). Vale ressaltar que a con-
construtivista na produção do conhecimento, o tribuição de Hatchuel compõe uma coletânea de
qual tem por objetos a cognição e a organização. textos inteiramente dedicados à epistemologia da
Os métodos são tanto conceituais quanto empí- administração, lançada em 2000 na França e ree-
ricos. Neste último período os autores indicam o ditada em outubro de 2012, desta vez em francês
surgimento de uma epistemologia da administra- e também em inglês. O livro aborda temas como
ção, ensejando um grande debate paradigmático teoria da ação coletiva, instituições da administra-
no campo e, em menor grau, o aparecimento de ção, epistemologia das práticas, sistemas de legiti-
epistemologias de subáreas da administração. Déry midade, validade de conceitos, relação entre ação
e Audet também advertem que traços de etapas e decisão, dentre outros.
anteriores não desaparecem totalmente, o que tor- Esses estudos historiográficos nos proporcionam
na o campo cada vez mais complexo. um repensar da atualidade da administração, à luz
Hatchuel (2000) estabelece outra perspectiva de uma nova visão do passado.
para a historiografia da administração: i) um pro- Um dos mais recentes trabalhos de epistemo-
jeto educativo e iniciático (1900-1939): etapa ca- logia da administração é o livro “Épistémologie
racterizada por novas doutrinas que impõem uma des Sciences de Gestion”, elaborado por Martinet
redefinição das antigas figuras do empreendedor e e Pesqueux e publicado em fevereiro de 2013 na
do patrão. Essa etapa configura-se como um novo França. Os autores afirmam que:
projeto educativo, sobretudo dedicado aos patrões
e homens de negócios; ii) um projeto de enge- Este livro pretende ser uma leitura epistêmica críti-
nharia, um arquipélago de especialidades (1947- ca do corpus de pesquisa sobre as organizações, ao
1965): após a Segunda Guerra, desenvolvem-se mesmo tempo em que ele propõe vias para uma
epistemologia das ciências de gestão que esteja à
novos sistemas técnicos e as organizações tornam-
altura do que exigem atualmente a onipresença
-se mais sofisticadas. A produção de conhecimen- da administração e seu impacto sobre a vida dos
to visa então formar técnicos especializados num homens, das sociedades e do planeta (Martinet;
campo, no qual há um aperfeiçoamento contínuo Pesqueux, 2013, p. 1).
de tecnologias. É o tempo da dispersão em diversas
áreas especializadas e crescentemente isoladas; iii) Dentre outros assuntos, o livro traz discussões
crises e avanços de uma disciplina numa encruzi- importantes sobre a gênese da ciência da admi-
lhada (a partir de 1965): malgrado sua indiscutí- nistração, seus fundamentos epistemológicos, os
vel expansão, a administração se vê abalada por principais modelos científicos desse campo e um
questões epistemológicas tais como: qual é o seu capítulo final inovador, propondo um “sistema
objeto? Qual é o status de suas técnicas e de sua epistêmico-pragmático-ético” da ciência adminis-
eficácia? Como controlar sua própria história sem trativa, no qual os autores oferecem a seguinte de-
um referencial teórico forte? Esse período é marca- finição para o objetivo desta ciência:
do pela interrogação de seus fundamentos e pela
multiplicação das perspectivas acadêmicas (for-

RGO REVISTA GESTÃO ORGANIZACIONAL | VOL. 6 - EDIÇÃO ESPECIAL - 2013 59


O SURGIMENTO E O DESENVOLVIMENTO DA EPISTEMOLOGIA DA ADMINISTRAÇÃO – INFERÊNCIAS SOBRE A
CONTRIBUIÇÃO AO APERFEIÇOAMENTO DA TEORIA ADMINISTRATIVA

Produzir conhecimentos gerais sobre as formas preendedorismo. Essa constatação pode parecer
de racionalidade susceptíveis de serem colocadas provocadora, porém, ela não traduz nada menos
em prática na atividade dos homens, para ampli- que as dificuldades reais que os pesquisadores en-
ficar a pertinência e a robustez do agir em cada contram. A autora faz um levantamento das defini-
situação particular na qual o ator mobiliza uma
ções do termo, primeiramente abordando o cam-
racionalidade contextual (Martinet; Pesqueux,
2013, p. 255-256). po sob o ponto de vista dos economistas, desde
os trabalhos de Schumpeter até os atuais. Segundo
Como afirmei anteriormente, no Brasil, a epis- Guimarães, “uma das críticas dirigidas aos pesqui-
temologia da administração tem suscitado um inte- sadores denominados ‘economistas’ diz respeito à
resse crescente dos pesquisadores. Dentre os diver- incapacidade de criar uma ciência do comporta-
sos estudos que vêm sendo difundidos nos últimos mento dos empreendedores. Esses se recusavam a
anos, farei referência aqui a dois que apresentam aceitar modelos não-quantificáveis. Pode-se dessa
um grau de qualidade respeitável e que abordam forma afirmar que neste momento predominavam
temas bastante diferenciados. os paradigmas do racionalismo cartesiano e do fun-
O primeiro deles foi elaborado por Garcia e cionalismo, com limites claramente observados”
Bronzo (2000) e se refere a um estudo epistemo- (Guimarães, 2004, p. 3).
lógico sobre o pensamento administrativo conside- Após realizar o levantamento das definições e
rado por eles como convencional. Inicialmente, os abordagens dos economistas, a autora enfoca o
autores debatem os pressupostos que sustentam a trabalho dos comportamentalistas, demonstrando
racionalidade da ciência moderna, os quais reper- que estes dominaram o campo do empreendedo-
cutem nas teorizações das ciências administrativas, rismo até o início dos anos de 1980, buscando de-
com destaque para os pressupostos oriundos da finir o que eram os empreendedores e quais eram
visão do positivismo lógico. Em seguida, abordam suas características. Numerosas pesquisas foram
três grandes correntes da teoria organizacional: a focadas nas características individuais e nos traços
teoria clássica, a escola de relações humanas e o de personalidade dos empreendedores. Apesar de
chamado estruturalismo. Segundo Garcia e Bron- todas essas pesquisas, os resultados mostraram-
zo, a tentativa é relacionar a adequação de antigos -se bastante contraditórios, mesmo que adotando
valores formais/teóricos no campo da administra- metodologias adequadas e às vezes parecidas. Tais
ção aos desafios de uma nova ordem econômica pesquisas parecem mostrar uma forte influência
mundial, compreendendo as transformações na das correntes empírico-analíticas. Seus critérios de
esfera produtiva com a aceleração tecnológica e cientificidade buscavam sistematizar variáveis e es-
as novas formas de organizar a produção. Em face tabelecer graus de significância entre elas, as quais
dessa nova conjuntura, os autores indicam a apro- eram preferencialmente quantitativas, procurando
ximação da teoria organizacional com a teoria da a objetividade. O eixo de explicação científica era
firma — mais especificamente, a teoria dos custos relacional-causal, numa relação de “causa e efei-
de transação — ensejando uma interdisciplinarida- to”, com base nos pressupostos de que o conheci-
de renovada entre a administração e a teoria eco- mento estava no objeto pesquisado. Apresentavam
nômica contemporânea. Os autores argumentam propostas técnicas procurando criar princípios,
que “em seus interesses mais legítimos, grande par- leis, normas, regras e conceitos, num nível teórico
te das teorias organizacionais procuraram encarar clássico-positivista. Os fenômenos eram analisados
os problemas que nasciam da própria prática ad- isoladamente, logo as análises produziam variáveis
ministrativa, com o intuito de antecipar reflexões e isoladas e quantificáveis, na maioria das vezes. Uti-
ações futuras, em torno da eficiência empresarial. lizando métodos indutivos, partiam de um conjun-
Mas de uma forma deliberada ou não, essas formu- to de casos particulares para concluir com o caso
lações serviram para legitimar posições dominantes geral, ou seja, os comportamentalistas buscavam a
já inscritas nos espaços produtivos, reforçando os generalização de suas pesquisas. Guimarães afirma
limites de suas motivações” (Garcia; Bronzo, 2000, que, a partir de 1980, há uma clara expansão de
p. 14). estudos sobre o tema, inclusive no Brasil. Um exa-
O segundo estudo versa sobre uma análise epis- me detalhado dos principais estudos do empreen-
temológica do campo do empreendedorismo. Gui- dedorismo é realizado pela autora, no sentido de
marães (2004) constata que o tema do empreende- tentar compreender os rumos que o campo toma
dorismo tem sido amplamente discutido, mas sua com a expansão observada desde os anos de 1980.
definição precisa, suas principais implicações em A conclusão de Guimarães é assim expressa:
termos de contexto, especificidades, características
O empreendedorismo é hoje visto como um
e componentes, ainda estão longe de promover
fenômeno heterogêneo, complexo e multidimen-
um consenso entre os estudiosos do tema do em-

60 RGO REVISTA GESTÃO ORGANIZACIONAL | VOL. 6 - EDIÇÃO ESPECIAL - 2013


MAURÍCIO SERVA

sional. O caminho seguido, por meio da literatura cluindo os gestores profissionais. Neste sentido, a
analisada com relação às diferentes correntes de epistemologia pode favorecer a tão desejada apro-
pensamento, mostrou a influência de vários pa- ximação entre teoria e prática, entre pesquisado-
radigmas epistemológicos podendo ser citados: res e praticantes, no âmbito de uma ciência social
uma dominância quase total dos pensamentos
aplicada. Quem sabe o desenvolvimento da epis-
racionalistas, funcionalistas e positivas, principal-
mente no início dos trabalhos, mas também uma temologia específica possa reduzir a tão discutida
forte presença de trabalhos seguindo a corrente distância de interesses, de instrumentos e de pro-
dialética, cibernética e da complexidade. (Guima- cedimentos entre os pesquisadores, professores,
rães, 2004, p. 10). consultores e gestores profissionais.
O mapeamento dos atores do campo da ad-
Após fornecer um panorama dos estudos que ministração desvela uma realidade mais clara para
compõem a epistemologia da administração, gos- todos aqueles que atuam ou desejam atuar nesse
taria de tecer breves comentários sobre as contri- campo, desmistificando-o e demonstrando a natu-
buições que essa disciplina pode oferecer à teoria reza dos interesses que são colocados em jogo, as
administrativa. estratégias dos atores (pessoas e organizações) em
busca do poder, de espaços, de status num campo
4. INFERÊNCIAS SOBRE A CONTRIBUIÇÃO DA EPISTE- cada vez mais institucionalizado. Demonstra tam-
bém o estágio do processo de institucionalização e
MOLOGIA DA ADMINISTRAÇÃO AO APERFEIÇOAMEN- suas consequências em cada país, como no caso do
TO DA TEORIA ADMINISTRATIVA Brasil, onde tal processo é recente, mas acelerado.
Na área do ensino da administração, os be-
Do que foi exposto, podemos inferir sobre as nefícios podem ser diversos. A possibilidade, por
possibilidades que um incremento da epistemolo- exemplo, de contar com historiografias alternativas
gia da administração apresenta para o aperfeiçoa- ao caráter serial estabelecido pela dita “TGA – Teo-
mento da teoria administrativa. De início, chamo ria Geral da Administração” abre novos horizontes
a atenção para o fato de que a intensificação de e opções para os docentes que desejem fomentar
estudos de natureza epistemológica voltados para discussões sobre pontos de vista diferentes, formas
o campo da administração denota um provável co- diversificadas de perceber a administração e sua
meço de amadurecimento desse campo enquanto história, criando condições para visões alternativas
conhecimento científico. A atitude reflexiva dos aos seus alunos. O debate paradigmático, pela ri-
pesquisadores em administração acompanha, as- queza que traz ao estudo da administração e de
sim, o mesmo movimento que já há algum tempo suas subáreas, aprofunda o conhecimento da teo-
foi deslanchado tanto nas demais ciências sociais ria administrativa em si e facilita o debate a respeito
quanto na ciência como um todo. Num período de suas ligações com outras ciências, numa época
de crise da ciência, quando ela sofre um profundo em que muito se fala em interdisciplinaridade. Ou-
questionamento, a teoria administrativa não pode- tro efeito importante da epistemologia pode ser o
ria ficar imune, sob pena de perder a oportunidade aumento da nossa capacidade, enquanto docentes
de rever os seus fundamentos, seus métodos, reve- e pesquisadores, de compreender a amplitude que
lar seus paradigmas, a estrutura do seu campo, tal a administração vem adquirindo, com a criação su-
como acontece nas outras ciências. Essa espécie de cessiva de subáreas cada vez mais especializadas,
movimento pode permitir ao pesquisador correndo o risco de um fracionamento mais grave
compreender o conjunto dos pressupostos sobre os pela impossibilidade de uma visão de conjunto dos
quais sua pesquisa se apóia, como também prever fenômenos e da prática organizacional. Até o início
as implicações de suas escolhas, promovendo mais do desenvolvimento dessa epistemologia, não con-
reflexividade sobre sua própria pesquisa. távamos com qualquer instrumental que pudesse
Como vimos acima, o desenvolvimento da epis- ao menos delimitar a discussão sobre essa ampli-
temologia da administração tem se dado em várias tude. A epistemologia pode oferecer quadros deli-
direções: analisa a produção geral do conhecimen- mitativos para esse exame, criando chances para a
to no campo e adentra também em áreas especí- tomada de consciência de todos nós, profissionais
ficas (finanças, marketing, estratégia, empreende- do campo.
dorismo, etc.), focalizando questões de método, O potencial de contribuição da epistemologia
de validade do que é produzido e das condições da administração para o aperfeiçoamento da teo-
sociais dos processos dessa produção. Tal expansão ria administrativa é bem mais amplo que o breve
do questionamento sistematizado pelos próprios inventário indicado anteriormente. Todavia, por
atores da administração abre mais espaço para se tratar de uma jovem disciplina, prefiro adotar
diálogo entre os produtores de conhecimento, in- a prudência e finalizar a enumeração dessas possi-

RGO REVISTA GESTÃO ORGANIZACIONAL | VOL. 6 - EDIÇÃO ESPECIAL - 2013 61


O SURGIMENTO E O DESENVOLVIMENTO DA EPISTEMOLOGIA DA ADMINISTRAÇÃO – INFERÊNCIAS SOBRE A
CONTRIBUIÇÃO AO APERFEIÇOAMENTO DA TEORIA ADMINISTRATIVA

bilidades que na minha visão já indicam a sua im- pelo favorecimento da aproximação entre teoria e
portância para o avanço da ciência administrativa. prática, entre pesquisadores e gestores, na medida
em que a epistemologia aborda também a geração
5. CONCLUSÃO de conhecimento nas subáreas da administração;
iv) pelo mapeamento realista do campo de atua-
Neste ponto, posso retomar algumas questões ção dos profissionais gestores e dos acadêmicos; v)
lançadas na introdução deste trabalho. A discussão pelo aperfeiçoamento do ensino da administração;
epistemológica passou muito tempo sem interes- vi) e por uma melhor visão de conjunto da admi-
sar a maioria dos produtores de conhecimentos da nistração, concorrendo para diminuir o risco de
administração. Talvez por se tratar de uma ciência fracionamento da teoria e, conseqüentemente, do
social aplicada, talvez por falta de um questiona- campo de ação profissional.
mento sistematizado sobre si mesma, a administra- Tais possibilidades serão postas à prova ao
ção cresceu ao longo de oito décadas quase sem longo do tempo, quando a jovem epistemologia
nenhuma energia despendida para a construção mostrará se ela é capaz de concretizar suas po-
de um discurso sistematizado sobre si mesma. tencialidades. Essa concretização, entretanto, é
Enquanto isso, a epistemologia se transformava e tarefa de todos nós, atores do campo de produ-
ganhava uma nova configuração, dividindo-se em ção de conhecimento científico na administração.
geral e específica. Essa última tentava responder à Estaremos dedicados a essa tarefa, nossos avanços
necessidade de tratar dos desdobramentos que o são possíveis, mas os desafios são enormes, princi-
questionamento à ciência — fruto de uma época palmente em razão de que a teoria administrativa
de turbulência no Ocidente, em meados do século passou muito tempo sem lançar um olhar sobre si
passado — trazia para os atores da esfera científica. própria. Ao menos, não estaremos nos esquivando
Assim, as epistemologias específicas se dirigiam às de examinar, de refletir corajosamente sobre o que
diversas ciências, mas a administração permanecia fazemos, porque fazemos e como fazemos. Desse
inerte neste sentido, mas firme na sua marcha de modo, contribuiremos para evitar que a adminis-
expansão. tração seja vista como um campo que se encontra
No período compreendido entre 1960 e 1980 na “periferia da ciência social”.
ocorre, entretanto, uma revisão de todas as insti-
tuições basilares da sociedade ocidental, incluindo REFERÊNCIAS
a ciência. A crise econômica, então global, acom-
panhada das crises social, moral e política acabam AUDET, M.; MALOUIN, J.-L. (Orgs.). La production des
por expandir o questionamento também à ciência connaissances scientifiques de l’administration. Que-
administrativa, a qual já em si não parecia dar mais bec: Les Presses de l’Université Laval, 1986.
conta do seu próprio crescimento e diversificação
interna. Esses dois movimentos, externo e interno, AUDET, M. Le procès des connaissances de l’admnistration.
promovem a construção gradual de uma epistemo- In: AUDET, M.; MALOUIN, J.-L. (Orgs.). La production
logia específica no campo da administração. Ela se des connaissances scientifiques de l’administration.
desenvolve nos anos de 1980, ganha gradualmente Quebec: Les Presses de l’Université Laval, 1986.
força, se dirige também às subáreas e sinaliza con-
AUDET, M. ; DÉRY, R. La science réfléchie. Quel-
tribuições promissoras para a teoria administrativa.
ques empreintes de l’épistémologie des sciences de
Neste artigo, tentei discutir primeiramente l’administration”. In: Anthropologie et Sociétés, vol.20,
noções gerais de epistemologia, em seguida de- n. 1, 1996.
monstrar a criação de epistemologias específicas,
para chegarmos ao nosso interesse maior: tratar BACHELARD, G. A epistemologia. Lisboa: Edições 70,
da epistemologia específica da administração, dar 1971.
uma visão geral de seu conteúdo, ainda que por
meio de sínteses dos principais trabalhos e, por BERTHELOT, J.-M. (Org.). Épistémologie des sciences
fim, indicar as possibilidades de contribuição des- sociales. Paris : PUF, 2001.
sa epistemologia para o aperfeiçoamento da teoria
BHERER, H. Le choix de la méthode en fonction de l’objet.
administrativa. O potencial de contribuição passa,
In : AUDET, M.; MALOUIN, J.-L. (Orgs.). La production
dentre outros aspectos: i) pela abertura ao ama- des connaissances scientifiques de l’administration.
durecimento da teoria administrativa, através da Quebec: Les Presses de l’Université Laval, 1986a.
criação de oportunidades para a adoção de uma
atitude reflexiva dos pesquisadores; ii) pela melho- BOURDIEU, P. O campo científico. In: ORTIZ, R. (Org.).
ria dos protocolos de pesquisa, adequando os mé- Pierre Bourdieu – sociologia. São Paulo: Ática, 1994.
todos empregados aos objetivos das pesquisas; iii)

62 RGO REVISTA GESTÃO ORGANIZACIONAL | VOL. 6 - EDIÇÃO ESPECIAL - 2013


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