Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Percursos linguísticos e
ensino de línguas
COLEÇÃO ENSINO-APRENDIZAGEM DE LÍNGUAS
Cada volume desta coleção promove um rico debate teórico-metodológico a
respeito do complexo processo de ensino e aprendizagem de línguas. As
discussões estão sustentadas a partir de abordagens (in)disciplinares, mestiças e
nômades, esses estudos se dão nos mais diversos contextos e têm potencial para
enriquecer distintos olhares sobre a temática, uma vez que ousam pensar de
forma diferente.
Conselho editorial
Prof. Dr. Fábio Marques de Souza (UEPB, Brasil) Profa.
ISBN 978-65-80266-14-2
CDD 410
Capa: Lucas de França Nário Oliveira
http://www.mentesabertas.com.br/
SUMÁRIO
Prefácio .................................................................................................................................... 5
Cássio Florêncio Rubio
Apresentação ......................................................................................................................... 8
Michelle Soares Pinheiro
5
Curriculares Nacionais (PCN), os objetivos específicos da Competência 8 da Matriz
Curricular do Enem, no que concerne ao conhecimento do aluno acerca da língua
portuguesa e de suas variedades, à prova do Enem aplicada entre 2013 e 2018. Os
resultados desse comparativo, revelados ao final do capítulo, irão apontar, dentre
outras questões, se o Exame tem abordado, de forma satisfatória, temáticas
relacionadas à variação linguística, como preceituam os PCN e a Matriz Curricular
da prova.
O segundo capítulo trata da compreensão do posicionamento de discursos
de divulgação científica presentes na mídia digital, com base no viés teórico de
diferentes autores da Análise do Discurso. A investigação dos autores desse
capítulo coloca em debate a imagem do cientista como ser iluminado e a ciência
como inefável e transformadora, a considerar que esses sujeitos se integram à
sociedade, influenciando-a e sendo por ela influenciados.
No terceiro capítulo desta obra, discute-se, com base nos pressupostos
teóricos da Sociolinguística, um tema bastante presente dentro e fora do ambiente
acadêmico e escolar do ensino de língua portuguesa, a variação na concordância
verbal de terceira pessoa do plural no português brasileiro e suas implicações
pedagógicas. As autoras proporcionam, neste capítulo, importante debate sobre a
vivacidade do fenômeno variável, com atuação de diferentes fatores de ordem
social e linguística, e apontam, em suas conclusões, a relevância da consideração de
uma prática pedagógica que considere aspectos sociais e científicos envolvidos no
emprego das variantes linguísticas.
Em seu quarto capítulo, a obra conta com uma análise discursiva que tem
como foco a proposta dos projetos pedagógicos de curso (PPC’s) do Ensino Médio
para o ensino de Espanhol como língua estrangeira, buscando verificar a
orientação apontada nesses documentos institucionais para a prática docente. No
desenvolvimento da discussão, destaca-se o comparativo crítico das pesquisadoras
entre o que preceituam os documentos oficiais governamentais, como a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), os PCN, as Orientações
Curriculares do Ensino Médio (OCEM) e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação Básica, e entre o que figura nos PPC’s considerados na pesquisa.
Com base em uma abordagem sociodiscursiva, o quinto capítulo do livro
trata do processo de letramento como prática social e discursiva que permite o
emprego da leitura e escrita de forma crítica e torna o indivíduo um sujeito. Os
autores debatem, ao longo de seu texto, as consequências da formação de
indivíduos alfabetizados ou de leitores/escritores proficientes na produção de
gêneros textuais reais.
O sexto capítulo desta obra, propõe um estudo centrado nas
representações conceituais analíticas em verbetes ilustrados online, por meio da
exploração de dicionários eletrônicos ilustrados. Com base na Teoria da
Multimodalidade, a partir da Gramática do Design Visual, os pesquisadores
debatem aspectos relacionados à organização composicional interna dos verbetes,
com destaque para sua construção de sentido.
No sétimo capítulo, são apresentados os resultados do Projeto “Escola-
casa de leitores”, que visa, por meio do trabalho com obras literárias indicadas no
vestibular da Universidade Regional do Cariri, contribuir na preparação dos
participantes para o exame vestibular. O debate desenvolvido ao longo do capítulo
evidencia uma visão crítica dos problemas que envolvem a leitura dentro e fora da
escola e da diversidade temática das obras literárias. Além disso, expõe uma
6
proposta metodológica para o estudo da literatura, com o estabelecimento da
relação entre escola e casa e a formação de leitores críticos.
O último capítulo desta obra volta-se para pesquisa realizada com artigos
científicos da área da Economia, com análise dos usos e funções do metadiscurso
interacional. A discussão empreendida ao longo do texto permite a comprovação
científica de quais recursos metadiscursivos são mais empregados na área do
conhecimento considerada. Essas estratégias revelam características do contexto
de produção e dos produtores e podem subsidiar pesquisas em outros contextos
discursivos, acadêmicos e não acadêmicos.
Este é um livro que permite ao leitor o contato com rica pluralidade de
pesquisas vinculadas aos estudos linguísticos, as quais possuem em comum a
relação imprescindível entre o saber acadêmico e a prática docente, ou, em outras
palavras, o trabalho com a linguagem verbal no contexto escolar. Os textos que
aqui se apresentam filiam-se a diferentes áreas, teorias, perspectivas e abordagens,
como a Sociolinguística, a Análise do Discurso, a Teoria da Multimodalidade, o
Estudo do Metadiscurso e até mesmo o emprego da literatura para a formação do
leitor crítico, entretanto se coadunam em um ponto essencial, o ensino de línguas,
visto como um processo contínuo, que se inicia nos primeiros anos de vida de um
ser humano e segue por toda a sua vida, com a leitura e a produção de gêneros
mais complexos, ligados ou não ao ambiente acadêmico.
Uma excelente leitura a todos e a todas.
7
APRESENTAÇÃO
8
língua(gem).
Aluizio Lendl, José Marcos R. de Souza e Antônio Luciano Pontes, com base na
Gramática do Design Visual e nos fundamentos teóricos da Lexicografia, analisaram
a organização composicional interna da megaestrutura do dicionário visual online
Merrian-Webster. Os autores concluiram que predomina a relação de coesão e
coerência intersemiótica entre as definições verbais e imagéticas na megaestrutura
do dicionário analisado, além de haver muitas representações conceituais
analíticas com o objetivo de sistematizar a exposição dos elementos verbo-
imagéticos e seus componetes fundamentais.
Diante do exposto, indico a leitura apurada dos artigos deste livro por
acreditar na relevância social e acadêmica dos conteúdos aqui elencados e por
sentir que o atual momento sociopolítico brasileiro demanda leituras, intervenções
e análises que transcendam os limites da criticidade. Penso que, somente por meio
de uma pedagogia crítica e engajada, poderemos nos motivar para agir de maneira
concreta contra todo e qualquer autoritarismo e preconceito sociodiscursivo seja
na escola, na universidade ou na comunidade.
9
A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA NO ENEM: UMA BREVE ANÁLISE DE PROVAS DE
LÍNGUA PORTUGUESA
Introdução
10
questões que continham a abordagem variacionista de forma mais específica, ou
seja, como conteúdo solicitado pela questão.
A presente pesquisa objetiva analisar a presença de fenômenos de
variação linguística na língua portuguesa na prova do Enem. Pretende-se examinar
questões apresentadas nos últimos seis exames, ou seja, o interstício entre 2013 a
2018, especificamente, aquelas que pretendem avaliar o conhecimento do aluno
acerca da Língua Portuguesa e suas variedades e registros, objetos específicos da
Competência 8 da Matriz Curricular: “Competência de área 8 – Compreender e usar
a língua portuguesa como língua materna, geradora de significação e integradora
da organização do mundo e da própria identidade” (BRASIL, 2009, p. 60).
Para isso, propomos analisar as questões por dois prismas: aquelas que
tratam de forma específica do conhecimento da variação linguística e aquelas
questões que trazem a variação linguística de maneira não específica na questão.
Dividimos este trabalho em seis seções, a partir desta introdução,
trazemos uma breve apresentação dos PCN e suas considerações sobre o ensino de
linguagens e códigos; em seguida, um conciso histórico sobre o ENEM. A quarta
parte da pesquisa traz alguns trabalhos que analisaram o fenômeno variacionista
em exames do Enem; já, na seção seguinte, apresentamos a metodologia usada e o
corpus examinado, seguida da análise de questões das provas examinadas e
concluímos, por fim, com nossas considerações acerca dos resultados
apresentados.
[...] a questão não é falar certo ou errado, mas saber qual forma de
fala utilizar, considerando as características do contexto de
comunicação, ou seja, saber adequar o registro as diferentes
situações comunicativas [...] é saber, portanto, quais variedades e
registro da língua oral são pertinentes em função da intenção
comunicativa, do contexto e dos interlocutores a quem o texto se
dirige (BRASIL, 1997, p. 31).
11
as diferenças culturais do educando, proporcionando o acesso real aos saberes
linguísticos, para que esses possam exercer sua cidadania, um direito inalienável
de todos. É certo que muitas discussões em torno do tema foram promovidas nas
universidades do país, o que se refletiu nas mudanças ocorridas nos documentos
oficiais de ensino nas últimas décadas, no entanto, podemos observar que muito
ainda precisa ser feito para que se observe mudanças nas práticas docentes.
Dessa forma, podemos ver que os PCN reconhecem a Língua Portuguesa
falada no Brasil como um conjunto de variedades, quando apresenta a variação
linguística como sendo:
12
conhecimento sobre a língua e o direcionamento dos alunos à reflexão de que a
língua compreende diversas variedades, e que há ocasiões em que cada variedade
pode e deve ser usada, afinal, um dos pressupostos da sociolinguística é a
adequação das variedades da língua às diversas situações comunicativas dos
indivíduos.
13
suas Tecnologias quanto aos conhecimentos referentes a 09 competências e 30
habilidades
Os itens da prova são compostos, cada um, por: um texto base, usado para
estimular o estudante a mobilizar recursos cognitivos na solução da situação-
problema proposta, que pode ser, uma imagem, charge, tira, ou seja, um texto
verbal ou não verbal, chamado de suporte do item; pelo enunciado, que pode vir
sob a forma de complementação ou de interrogação, mas tem que ser preciso e
estar totalmente ligado à habilidade que se pretende avaliar, chamado de comando;
por alternativas de respostas, apresentadas na forma de cinco opções, sendo
somente uma correta, o gabarito, e outras quatro alternativas que não contemplam
a resposta escolhida como correta, chamadas de distratores, que mesmo sendo
respostas incorretas eles têm de ser plausíveis, ou seja, parecerem corretas para o
candidato sem se tratarem de pegadinhas.
A resolução da prova de Língua Portuguesa do Enem envolve, portanto,
uma postura ativa do candidato e a ativação de suas estruturas cognitivas de
leitura e raciocínio, assim como a ativação de seus conhecimentos prévios, tanto
linguísticos, como específicos sobre o tema tratado. A prova de Linguagens e
Códigos é composta por quarenta e cinco questões de língua portuguesa, cinco
questões de língua inglesa e cinco de língua espanhola, sendo, essas duas últimas,
uma opção do inscrito. Vale lembrar que, em consonância com os PCN, as questões
devem ser elaboradas de modo a permitir que o aluno mobilize suas competências
e habilidades para eleger a única alternativa correta entre as cinco oferecidas.
Além disso, atualmente, o Enem possui uma edição extra, seguindo o
mesmo formato da prova regular, nas unidades prisionais e de internação de
adolescentes que cumprem medidas socioeducativos, o Enem PPL, aplicada cerca
de um mês após a avaliação oficial. Esse recurso é uma oportunidade para menores
infratores e adultos presidiários retomarem suas vidas por meio do ensino
superior ou da conclusão do ensino médio, pois a nota pode servir para a obtenção
do certificado de conclusão do ensino médio em cursos de Educação de Jovens e
Adultos (EJA). Para os que pretendem o ensino superior, as notas terão que estar
acima de 600 pontos.
Vejamos, na seção seguinte, o estado da arte que trazemos para contribuir
com nossa reflexão e análise dos dados.
14
[...] possibilitou a constatação da aplicação das prescrições
contidas nos documentos, identificada desde a presença das
concepções sociolinguísticas dos contínuos propostos por
Bortoni-Ricardo (2004a), até a existência das terminologias
indicativas de variação, demonstrando que há uma congruência de
sentido entre todos acerca da concepção de língua [...] (ANDRADE,
2015, p. 79).
15
analisar o discurso assumido por grandes corporações midiáticas e de cursinhos
pré-vestibulares de nosso país, sobre o Enem.
Inicialmente, o autor faz uma discussão sobre a falta de homogeneidade do
exame para designar a variedade falada por indivíduos letrados e defende que para
a sociolinguística, “não existe falante de estilo único” (BAGNO, 2015, p. 210, grifos
do autor). Continuando, Bagno (2015) ainda apresenta os contínuos de letramento
trazidos por Bortoni-Ricardo (2004), apresentando questões do referido exame
que não contemplam de maneira adequada a abordagem da variação linguística,
afirmando que “a separação rígida entre fala e escrita, criticada há bom tempo
pelos estudos antropológicos, linguísticos e pedagógicos em torno do letramento,
continua, no entanto, impregnando o senso comum” (BAGNO, 2015, p. 212, grifos
do autor).
Finalizando seu texto, Bagno (2015) realiza uma grande crítica a empresas
de cursinhos pré-vestibulares e à mídia, que usam o exame em prol de seus
benefícios próprios e de uma elite cultural, através de críticas contra o exame,
exame este, que vem universalizando o aceso ao ensino superior à população mais
pobre do país. Concluindo seu texto, o autor insiste com os elaboradores do exame
nacional que:
Por último, na pesquisa de Silva Jr. (2018), são analisadas seis questões
dentre as edições 2015, 2016 e 2017 da prova de Língua Portuguesa do Enem. Para
o autor:
Metodologia
16
Enem, para obtermos material necessário à análise quantitativa. Assim,
conseguimos uma amostra significativa das questões das provas do Enem,
realizadas entre 2013 a 2018.
Destacamos que, nessa etapa, levamos em consideração não somente
questões que exigem do aluno, explicitamente, conhecimentos sobre a variação
linguística, mas selecionamos, também, questões em que seu contexto apresenta o
fenômeno da variação e mudança linguística, adequadas às H25, H26 e H27 da C8
do Enem3. Para tanto, a busca pela variação linguística abrangeu as questões que
continham em seu suporte (que pode ser um texto verbal ou não verbal, comando,
distratores e/ou gabarito) o reconhecimento da variação da língua, da
sociolinguística como um todo.
Essa análise parte do pressuposto de que se um item ou questão
apresenta em seu suporte, assim como em seu comando ou em seus distratores e
gabarito, algo que contemple a diversidade, variação e mudança linguística,
demonstrando o caráter heterogêneo da língua, estamos diante de uma escolha
pensada, por parte da banca organizadora, em contemplar os eixos cognitivos
presentes em uma das cinco matrizes de referências do Enem, para além de
verificar o conhecimento sobre o tema em pauta, validando a variação linguística.
Posto isso, o corpus desta pesquisa foi formado por todas as questões
selecionadas nas provas de Língua Portuguesa, de primeira e segunda aplicação do
Enem no período de 2013 a 2018, que totalizam 480 questões.
Vejamos, no Quadro 1, o demonstrativo das questões encontradas.
17
própria questão sobre variação linguística, testando os conhecimentos prévios dos
alunos sobre as variedades linguísticas brasileiras (como vemos, 22, na primeira
aplicação, e 17 na segunda aplicação).
Destas 80 questões, 38 são referentes à primeira aplicação do Enem, e 42
são de segunda aplicação. Dessa forma, as demais 400 questões abordam outros
fenômenos linguísticos como fonologia, morfologia, sintaxe, ortografia,
concordância, interpretação, literatura, entre outros.
Vejamos, na seção a seguir, a análise de nossos dados e os resultados a que
chegamos. Em nossas análises, apresentamos os percentuais de ocorrência do
fenômeno variacionista nas provas do Enem, exibindo, primeiro, o percentual geral
e, em seguida, os percentuais para as provas de primeira aplicação e de segunda
aplicação. Por último, traremos os resultados comparativos entre as questões que
tratam o tema aqui levantado.
Entre 2013 e 2018 foram aplicadas 12 provas do Enem, sendo que 6 foram
aplicadas a toda a comunidade estudantil do país, com livre acesso a partir da
inscrição, e 6 foram aplicadas àqueles alunos que, por alguma razão, estão reclusos
em algum centro de reabilitação social. Em um total de 480 questões analisadas,
obtivemos um total de 80 questões (16,7%) que contemplam, de forma específica e
não específica, o fenômeno da variação linguística no Brasil, como podemos ver no
gráfico a seguir.
16,7%
Abordagem variacionista
Demais abordagens
83,3%
18
Gráfico 2 - Quantidade de questões de cunho sociolinguístico na 1ª aplicação do ENEM
20,0%
0,0%
2013 2014 2015 2016 2017 2018
15,0% 12,5%
10% 10%
10,0% 7,5% 7,5%
5% 5% 5% 5%
5,0%
0%
0,0%
2013 2014 2015 2016 2017 2018
19
Gráfico 4 - Percentual de questões específicas de variação linguística e questões não
específicas nas provas do Enem de 1ª e 2ª aplicação de 2013 a 2018
47,5%
Questões específicas
52,5%
20
Quadro 2 - Questões nº 97 e nº 08 específicas da abordagem variacionista
21
correta: “Reafirmar discursivamente a forte relação do falante com seu lugar de
origem”.
A questão em análise espera que o aluno compreenda que há uma forte
relação do falante com seu lugar de origem, ou seja, a questão demonstra o caráter
heterogêneo da língua, além da valorização do interior brasileiro e suas variedades
linguísticas, a partir do poema trazido no suporte da questão. Essa questão, além de
apresentar como válida a relação entre o falante e sua variante linguística, mostra
uma posição de valorização linguística das variantes do PB.
Vejamos, no Quadro 3, mais duas questões de nossa amostra em análise.
22
propósitos comunicativos dos indivíduos, ou seja, o texto apresenta a língua,
enquanto código de linguagem que permite variações.
O comando da questão, além de afirmar o surgimento de usos particulares
da língua a partir do desenvolvimento da tecnologia como uma nova realidade,
indaga o candidato sobre a função da escola: “cabe à escola levar o aluno a...”. Dessa
forma, com o propósito de verificar se ao aluno possui conhecimentos
sociolinguísticos, o gabarito da questão, letra “E” afirma que cabe à escola levar o
aluno a “perceber as especificidades das linguagens em diferentes ambientes
digitais”.
Já a questão nº 102, ainda do Quadro 3, nos oferece, em seu suporte, um
fragmento da peça O santo e a porca, de Ariano Suassuna. Semelhante à questão nº
97 do Quadro 2, o comando da questão exige do candidato conhecimentos de
variedades linguísticas relacionadas ao Nordeste brasileiro. Com o questionamento
“Nesse texto teatral, o emprego das expressões ‘o peste’ e ‘cachorro da molest’a’
contribui para...”, o exame apresenta, em um texto canônico da literatura brasileira,
a variedade linguística presente nas regiões do Brasil a partir de expressões
próprias. Podemos, portanto, verificar a necessidade de conteúdos de variação
linguística para que o candidato possa responder corretamente à questão, a partir
do gabarito, item “B”, que traz como resposta: “caracterizar usos linguísticos de
uma região.”.
Vimos, portanto, quatro questões que solicitam os conteúdos de variação
linguística de forma específica ao candidato. Seguindo agora uma nova análise, o
Quadro 4, nos apresenta, portanto, duas questões que consideramos cobrar de
maneira não específicas a variação linguística.
23
Quadro 4 - Questões nº 10 e nº 116 não específicas da abordagem variacionista
24
realiza nas práticas sociais, portanto, dotar o aluno de competência textual, oral e
escrita, para uma atuação eficiente além dos muros escolares passa a ser a
finalidade principal do ensino de Língua Portuguesa, anteriormente focado no
desenvolvimento de habilidades de leitura e no domínio da língua escrita padrão.
Assim, deve ser desenvolvida a competência comunicativa do educando, ou seja,
sua capacidade de realizar a adequação do ato verbal às mais variadas situações de
comunicação (TRAVAGLIA, 2001, p. 17).
Ainda no Quadro 4, a questão nº 106 não trata, especificamente, do
fenômeno da variação, e sim, da função conativa, gênero textual propaganda, texto
híbrido, texto publicitário, abordando a temática do aquecimento global,
especificamente o derretimento das calotas polares, como sua primeira
consequência para nosso planeta. Para isso, o texto publicitário cria toda sua
mensagem a partir da ligação entre a conjugação do verbo “derreter” e o efeito do
aquecimento no derretimento das calotas polares. No entanto, o texto escolhido
para compor a questão apresenta, em sua composição, o fenômeno variacionista
entre o pronome pessoal de 2ª pessoa do singular “tu” e o pronome de tratamento
“você”, quando a questão não aborda o fenômeno variacionista, mas, sim, a
intertextualidade entre o verbal, o não verbal e os conhecimentos de mundo do
candidato.
Para essa questão, a banca, também não apresenta, em seus distratores,
nenhuma opção que leve o aluno ao fenômeno da variação linguística apresentado
na imagem, assim como também não apresenta na opção escolhida como a certa, o
gabarito “E”, e muito menos no comando há qualquer menção ao fenômeno. Isso
nos possibilita concluir que, mesmo uma questão não exigindo o conhecimento
especifico sobre o fenômeno da variação e mudança linguística, não significa que o
fenômeno não possa ser contemplado pela questão, a partir de uma música
regional, uma charge usando a fala coloquial, uma poesia, entre outras maneiras. O
fato é que a banca teve a opção de escolher uma imagem que, em seu conteúdo, não
suscitasse tal discussão e que, ao optar por essa imagem, possibilitasse ao aluno a
certeza de que ambas as formas são aceitas na língua cotidiana.
Entendemos que esse fato está ancorado na C8 e H26, ou seja, o aluno vai
relacionar a variedade linguística no texto apresentado na campanha a situações
específicas de uso social, portanto, passível a ser aceita como correta. Nesse caso, o
participante do exame não vai se atentar à variação linguística presente no texto
para responder ao comando da questão. No entanto, ele está consciente de que, em
determinados contextos, orais ou escritos, a variação é permitida sem nenhum
prejuízo ao entendimento textual, pois “a principal razão de qualquer ato de
linguagem é a produção de sentido” (BRASIL, 2000, p. 5).
Vejamos, no Quadro 5, as últimas questões de nossa análise.
25
Quadro 5 - Questões nº 133 e nº 22 não específicas da abordagem variacionista
Brasil
26
qual o autor tratou essas palavras por pares: “Essa diferença é apresentada
considerando-se a(s)...”. Como gabarito, a banca do exame confere o item “B”:
“adequação às situações de uso.”.
Esta questão, assim como as três anteriores estudadas, surge com
abordagens de usos da língua portuguesa, como a adequação vocabular bastante
discutida na sociolinguística, mas não traz, especificamente, a variação lexical, por
exemplo, tratando, destarte, de forma não específica da variação linguística.
Os exemplos apresentados, a partir das questões do Enem, servem para
demonstrar o método que usamos para selecionar a amostra desta pesquisa,
tratando as questões que apresentam em seu escopo o fenômeno variacionista,
mesmo que a diretriz da questão trate de outros fenômenos linguísticos ou
questões formais da língua e da comunicação, mas não propriamente a
sociolinguística.
Podemos perceber que a diferença entre o total de questões específicas e
questões não específicas, sobre variação linguística no PB, não é significativa, pois,
no geral, é de 5% a mais para as questões não específicas. De qualquer modo, isso
demonstra que os organizadores do Enem têm a sensibilidade de ampliar o
número de possibilidade de visualização da variação linguística ao longo de todas
as edições do exame, e isso pode ser considerado como uma forma de atender às
recomendações dos PCN e às matrizes do Enem.
Considerações finais
REFERÊNCIAS
27
abordagem sociolinguística. 2015. 100 f. Dissertação (Mestrado em Letras) –
Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal de Sergipe. São
Cristóvão, 2015. Disponível em: https://ri.ufs.br/handle/riufs/5733. Acesso em:
19 mar. 2019.
28
Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/portugues.pdf. Acesso
em: 20 jan. 2019.
29
APONTAMENTOS SOBRE A DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA NA MÍDIA DIGITAL: A
(RE)PRODUÇÃO DE DISCURSOS DE AUTORIDADE E AS INFLEXÕES NO
ÂMBITO EDUCACIONAL
30
eu? Conforme aponta Kader (2012), Authier-Revuz traz considerações
importantes, pensando na presença do discurso do Outro/outro 1. Além disso,
defende a questão da heterogeneidade de vozes que, tal como a ideologia,
atravessa sujeitos ao enunciarem. Essas vozes heterogêneas podem ser tanto
constitutivas do discurso, como apenas mostradas em dadas situações. No caso de
uma heterogeneidade mostrada, esta pode estar devidamente marcada, onde
reconhece-se explicitamente a presença do outro no discurso do eu ou podem não
estar marcadas. Nesse último caso, apesar de haver rastros do discurso do “outro”,
estes são indiretos, ou seja, não evidenciados (FERNANDES, 2008).
A exterioridade é aspecto fundamental do discurso. A AD busca justamente
compreender o que está por trás da língua, dessuperficializando a mesma,
tentando entender para além do que está aparentemente transparente, o dito e o
não-dito, pois o não dizer também significa. A linguagem não é fixa. Esta é
dinâmica, instável, se (re)significa, reconstrói-se. E a formulação de sentidos se dá
pelo apagamento do caráter material da ideologia, designando um imaginário
sobre algo, onde se tem a noção de transparência. Dessa forma, FD's se tornam
dominantes, em um processo onde ideologia e inconsciente atuam como
“estruturas-funcionamentos” (ORLANDI, 2001), constituindo o sujeito, de forma
que estes discursos dominantes, atrelados ao interdiscurso, não sejam claros na
constituição do indivíduo. Cabe ao analista de discurso pensar em como essas
ideologias constituem o sujeito e como ocorrem na dinamicidade da língua em
funcionamento.
Grigoletto (2005), baseando-se principalmente em preceitos pecheutianos,
coloca em pauta tais questões, ao tratar dos termos “lugar social”, “lugar
discursivo”, “posição-sujeito” e “forma-sujeito”. Estas noções mostram como o
sujeito discursivo tem potencialidades para produzir movimentos de
(des)identificação. A noção de forma-sujeito está interligada a inscrição do sujeito
em uma determinada FD, na qual este vai se identificar, se constituindo. Esta forma
se dá, então, por meio do interdiscurso, onde o sujeito se inscreve no imaginário de
uma determinada posição social e assume seu discurso. É o que ocorre com a
posição que assume enquanto profissional, onde incorpora uma identidade da
imagem que lhe é atribuída socialmente daquela posição (médico, repórter,
cientista, etc.), ou mesmo outros sujeitos que (co)participam de um mesmo espaço
social, mas assumem posições diferentes, que o autorizam ou não o dizer dentro de
uma relação de forças (relação aluno versus professor, leigo versus especialista,
etc.), dentre outras formas. Porém, apesar de ter uma formação ideológica basal,
um sujeito pode assumir diferentes posições dentro do discurso. Como aponta
Grigoletto (2005, p. 02), ao citar a definição de Pêcheux, na “posição-sujeito”, há
uma “relação de identificação entre o sujeito enunciador e o sujeito do saber
(forma-sujeito)”. O sujeito, então, assume diferentes posições em uma FD, pois se
identifica de forma particular com um saber, produzindo, assim, efeitos discursivos
que vão se relacionar (COURTINE, 1982 apud GRIGOLETO, 2005). Nessa relação, é
importante pensar que a posição que um sujeito assume em seu discurso não é
algo universal. Esta se dá por uma construção histórica, por meio da qual
ideologias levam a constituição de FD's características de determinado grupo
social, ou seja, o indivíduo ocupa um lugar discursivo, porque ocupa um lugar
1 Cabe lembrar que o grifo “Outro”, marcado pela inicial da palavra maiúscula, se dá em relações de
discursividade, enquanto que o termo “outro” refere-se ao sujeito com o qual se dá a relação de
interlocutor.
31
social que é constitutivo de si. Exemplificando, quando falamos da posição de mãe,
médico, cientista, professor, político, ou outra, assumem-se discursos, dado ao que
as hierarquias sociais nos impelem a concebê-los como certos e dados.
Há, no entanto, uma passagem desse lugar empírico, onde o sujeito está
engendrado em sua FD, pertinente a sua “forma-sujeito”, para o espaço discursivo,
dinâmico, onde o sujeito se inscreve em um determinado lugar discursivo, “o qual
está determinado pelas relações de verdade e poder institucional que ele
representa socialmente” (GRIGOLETTO, 2005, p. 01). O sujeito então interpreta,
dentro de seu discurso heterogêneo e (re)ordena os saberes, de modo que
coabitam diferentes vozes em seu discurso.
Dado que nossas análises se pautam na ciência que se apresenta como
“verdade absoluta”, nos rastros de uma concepção de ciência cartesiana e
positivista que lança discursos dogmáticos e hierárquicos, interessa-nos a noção de
verdade. Conforme Gregolin (2007), o discurso possui uma “espessura histórica”, e
é função do analista de discursos a busca da compreensão de como tais verdades
se produzem e se enunciam, de forma a propiciar conexões tanto materiais, quanto
históricas dos enunciados. Assim, “em vez de sujeitos fundadores, continuidade,
totalidade, buscam-se efeitos discursivos” (GREGOLIN, 2007, p. 15). Nessa
perspectiva, Gregolin (2007) assinala que Foucault “propõe analisar as práticas
discursivas, pois é o dizer que fabrica as noções, os conceitos, os temas de um
momento histórico” (idem). Nessa perspectiva, para Foucault, esse tipo de análise
permite identificar a relação do que é dito com a produção de uma “verdade” que
ocorre no limiar do histórico. Em outra perspectiva, mas que nos ajuda a pensar
em possibilidades correlatas de como enxergar a questão de “verdade” e
“responsabilidade” do sujeito pelo que este diz, Silveira (2014) une criticamente o
conceito de Foucault, “coragem da verdade” com a “responsabilidade do ato” de
Bakhtin. Resumidamente, Silveira frisa que, para Bakhtin (2010, p. 04), “todo ato
de pensar é responsável, porque o sujeito somente pode falar a partir de sua
posição social e historicamente situada no mundo”, o que confere subjetividade ao
ato, já que, apesar da relação com o “outro” nos constituir como sujeitos (através
de relações dialógicas), somente o “eu” pode pensar por si. Concomitantemente, é
necessário considerar que a constituição do “eu” está relacionada à exterioridade,
ao social. O sujeito não é um ser de individualidades fechadas. A noção de ato
responsável vem justamente por este ser um “evento único e irrepetível tal qual o
sujeito que o realiza devido as condições sociais, históricas, culturais, a
responsabilidade das ações realizadas por ele recai sobre este sujeito” (SILVEIRA,
2014, p. 5). Já o termo de Foucault, a “coragem de verdade”, condiz com os efeitos
que o sujeito enunciador sofre ao “dizer a verdade”.
Vê-se nessa noção de Foucault, a vontade, a busca incessante pela verdade,
que é inerente às condições sociais, históricas e culturais. Da mesma forma, vemos
que um sujeito é responsável pelo que diz, logo, é responsável pelas supostas
“verdades” que produz. Nesse sentido, propomos pensar o dito em relações
afirmativas, que apontam para efeitos de verdade, como é o caso da ciência
divulgada de forma assistemática pelas mídias.
Dado o proposto e os pressupostos levantados, cabe-nos adentrar no
escopo de análise. Tal como Grigoletto (2005), pretendemos entender as relações
de discursividade em mídias de divulgação científica, mas não voltados com
exclusividade na perspectiva das posições e formas do sujeito. Pautamos nossos
esforços para pensar em “quem fala”, mas nosso propósito também é pensar em
32
“como” se fala. Pensar nos sujeitos enquanto ocupantes de uma posição social,
inseridos em uma determinada FD não basta para pensar em ciência, nos discursos
que são propagados por meio de enunciados que naturalizam dizeres dogmáticos,
dotados de um efeito de “verdades inquestionáveis”.
2 A web página sugere como profissionais “criativos” sujeitos dos ramos da arquitetura,
ilustradores, designers, decoradores, estilistas, empreendedores, planejadores, dentre outros.
33
que “o sentido das palavras mudam de acordo com a posiçao na luta de classes
daqueles que a empregam” (GREGOLIN, 2004). Com isso, em um discurso
capitalista, a posiçao-sujeito dos elaboradores do site insere-se na FD que
resguarda os interesses de classes dominantes, autorizadas a falar, disseminando
ideologias e discursos, que se sobrepoem aos das classes menos favorecidas
socialmente, mantendo, assim, os anseios de um sistema hierarquizado, em um
movimento em que “tanto a ideologia, quanto o inconsciente operam ocultando sua
propria existencia, produzindo verdades 'subjetivas' evidentes” (GREGOLIN, 2004).
Apenas pelo título já se começa a ver o silenciamento do sujeito. Afinal,
quem propiciou esse “avanço” científico? E o que se entender por “avanço”? Isso
nos faz lembrar de um discurso muito comum, que remete a uma autoridade,
referente a posição-cientista. Exemplo clássico da Biologia, o conceito de
“Evolução”, advindo das teorias darwinistas, é por muitos, atribuído como um sinal
de “melhoria”, em uma noção de “avanço”. Conforme apontam Montalvão Neto e
Fernandes (2014, p. 3), essa conceituação é errônea, pois: “Não necessariamente
evoluir, no sentido darwinista, significa superioridade. (...) Esse conceito remete-se
a uma melhor adaptação de um organismo frente a um ambiente e suas mudanças
de condições de vida”. Não obstante, discursos científicos, muitas vezes,
reverberam uma noção de “progresso”, de forma a se autoafirmar como um
“discurso de verdade”, próprio da autoridade que este (quer) representa(r)
perante a sociedade. Para tanto, adentramos no texto para pensar mais sobre a
interdiscursividade e as posições do sujeito.
Logo no início da matéria, o site apresenta os seguintes enunciados:
Todo mundo sabe que para gerar uma criança é preciso que um
espermatozóide encontre um óvulo, sendo obrigatória, portanto,
a participação de um homem e de uma mulher no processo. Mas a
ciência está dando um jeitinho nisso e, ao que tudo indica, casais
homoafetivos poderão gerar filhos biológicos em breve. O estudo,
que está sendo desenvolvido pela Universidade de Cambridge, na
Inglaterra, conseguiu criar formas primitivas e artificiais de
células sexuais programáveis usando a pele humana
(RASSMUSSEN, 2015, s.p., grifos nossos).
Vamos primeiro pensar nos sujeitos que estão marcados (ou ausentes) no
discurso. A expressão generalizante “todo mundo sabe” se ausenta de identificar
um sujeito específico e causa um efeito de sentido banalizante, de trivialidade, em
que se acredita partir de uma premissa óbvia para afirmar a veracidade do que se
diz (autoafirmar), ao se referir como uma criança é gerada. Essa ideia é atribuída a
uma lógica “biologizante”, historicamente marcada em uma matriz hierárquica
binária de gênero, em que prevalece um patriarcado que se estabelece como
ideologia dominante e traz uma performatividade de gênero que reverbera efeitos
de uma heteronormatividade preponderante. Não esqueçamos também do cunho
religioso embutido no preceito, onde o binarismo homem/mulher é considerado
como o socialmente certo e aceito. Mas atentamos ao detalhe da posição: ao
enunciar sobre os gametas reprodutores, a autora coloca a frente o masculino por
mera coincidência? Sabe-se que nesse modelo patriarcal quem predomina é a
figura do macho, que se estabelece como “forte” e “viril” frente à imagem da fêmea,
frágil e submissa.
Dialogando com essas questões que atravessam os limites das Ciências
34
Biológicas, Bento (2011) destaca as complexas relações de poder que determinam
as relações de sexualidade e gênero, nos diversos campos sociais. A autora, dessa
forma, sublinha que os padrões binários, ao predominarem socialmente, suprimem
a diversidade existente nas identificações de gênero, e essas relações duais
existentes permeiam não apenas a sexualidade, mas também outras vertentes
sociais. Essa noção aproxima-se do que diz a AD ao evidenciar que, ao se dizer algo,
necessariamente, não se diz outra coisa. Há, então, ao se optar por um discurso, a
negação de outro e, muitas vezes, a exclusão de outros discursos. Butler, citada por
Arán e Peixoto (2007), coloca que, no tocante a sexualidade, desejos e identidades
são negadas justamente porque há uma reiteração da norma sexual, instituída por
uma estrutura social em que os comportamentos considerados como “desvio” de
comportamento são colocados como abjetos.
Em outra passagem, emprega-se um tom de humor quando se diz que “a
ciência está dando um jeitinho nisso”, colocando sob um sujeito que se oculta a
responsabilidade por “revolucionar” e “permitir” que se burle o imposto pelo
biológico e pelo heteronormativo, a qual a sociedade se engendra. Cabe ressaltar
que nesse tom burlesco, corporificado no emprego do termo “jeito” em sua forma
diminutiva, emerge uma heterogeneidade mostrada, mas não marcada, pois a
ironia é o manifesto de vozes que se aliam ao discurso do sujeito que enuncia para,
assim, falar da ciência, ressaltar sua autoridade, através do efeito de sentido que se
cria sobre sua eficácia de sobrepor-se ao improvável.
De forma a corroborar ainda mais o efeito de verdade do que diz, observa-
se a referência à Universidade de Cambridge, ressaltando, não por acaso, sua
localização: Inglaterra. Como se sabe, os países nórdicos historicamente
predominaram econômica, política e ideologicamente nas relações sócio-
históricas, disseminando ideologias de superioridade eurocêntricas, baseadas nas
relações de poder construídas milenarmente, e por isso, autoriza-se a eles o dizer,
não mais apenas por se utilizar de um discurso científico, mas também gênese (o
local) desse discurso, de forma a credibilizar o dizer do sujeito que enuncia.
Em um trecho subsequente, é possível notar a construção de um discurso
marcado por verdades científicas.
35
diálogo com o eu, mas descrito, através da interpretação que esse eu faz a respeito
do outro.
Nesse caso, mesmo que se tenha feito uma tradução literal da fala do
cientista a que se reportaram (dado que Azim Surani é um sujeito inscrito em
outro lugar, que tem outras FD's, ideologias e formas de enunciar), os sentidos que
este sujeito quis produzir em sua interlocutora não pode ser garantido (e nem o
seria, mesmo que fossem ambos falantes da mesma língua e/ou pertencentes ao
mesmo local, dado que há diferenças de cada sujeito, efetivadas por suas histórias
de vida, histórias de leitura 3, FD's, ideológicas, etc.). O próprio fato de se tratar de
uma especialista em marketing e divulgadora de notícias, interpretando um sujeito
que se inscreve em outra posição já causa possíveis efeitos de sentidos diversos.
Porém, na questão da fidelidade, que é comumente utilizada nos discursos sobre
tradução, é necessário considerar-se o sujeito tradutor relacionado à sua forma-
sujeito (CALDAS, 2010).
Caldas aponta que, o sujeito que traduz, apesar de existir uma aparente
visão de que este seja consciente e autônomo (que faça uma cópia fiel do discurso
como está no original), é atravessado por uma interdiscursividade intrínseca a sua
formação como sujeito, e que influenciará no modo como traduz. Nessa visão do
autor, é interessante lembrar também que o discurso jornalístico é um discurso
“sobre” e não um discurso “de” e, ao se colocar de maneira exterior ao que se fala,
como se fosse um ser imparcial, o sujeito se coloca como autorizado a formular
juízos de valor, emitir opiniões, que não ocorreriam se houvesse um intrínseco
envolvimento com a questão. Institucionalizam-se sentidos ao se falar “sobre” e
não somente isso.
Outro aspecto interessante está na forma como a linguagem científica é
didatizada, como se fosse uma “língua estrangeira”, pouco compreensível para os
“não-especialistas”, conforme traz Baalbaki (2007), ao trazer concepções sobre a
Divulgação Científica. Nesse tipo de discurso, há um discurso-fonte que é o do
próprio cientista, e este é reformulado para que se torne compreensível para o
leitor ou, em outra perspectiva, podemos dizer que houve um gesto de
interpretação4 por parte do jornalista, que se utiliza de um discurso de outra
ordem, ocorrendo um efeito de ressonância do discurso da ciência em um discurso
popular, do senso comum, realizando deslocamentos para dialogar com um público
distinto e leigo.
Por fim, em um último enunciado do texto, ressaltam-se algumas questões.
Em primeiro lugar, coloca-se em pauta uma ideia de validade científica, que é
3 Cassiani, Giraldi & Linsingen (2012) em estudos sobre a formação do leitor na educação em
ciências, colocam que, ao se ler um texto, que pode se apresentar como escrito, imagético, gestual,
dentre diversas outras formas, há sempre o ato de interpretação, e por isso os sentidos não estão
dados ou fixados. O sujeito ao ler um texto, mobiliza suas histórias de leitura para interpretá-lo.
Nessa circunscrição que apontamos, dado que as histórias de leitura de um cientista e de um
jornalista se alicerçam em campos e gêneros textuais/discursivos diferentes, evidenciam-se
discrepâncias nos modos de interpretar. Dadas as visões de mundo, ao entrar em contato com o
texto, mobiliza-se conceitos e preceitos para a interpretação, que se atrelam a FD's diferentes.
4 Conforme colocado por Baalbaki (2007), o Discurso de Divulgação Científica é encarado de
diversas maneiras, por vários autores, podendo ser considerado como uma atividade de
reformulação de um “discurso-fonte”, no caso, o da ciência, na visão de Authier-Revuz; ou como um
movimento/jogo de interpretação na visão de Grigoletto e Orlandi. Mesmo estas últimas, possuem
discordâncias quanto a alguns aspectos teóricos. Ambas as visões analisam a heterogeneidade no
discurso, porém, enquanto a primeira pensa a nível do enunciado, a segunda o faz em nível
discursivo.
36
atestada pelo método científico. Com isso, em uma concepção que advém da linha
de pensamento de um grupo conhecida como “positivistas lógicos”, uma
“descoberta” científica só se torna válida perante a comunidade acadêmica, se e
somente se, suas hipóteses forem devidamente corroboradas e justificadas pelas
evidências, fatos e dados, que possam ser empiricamente reproduzíveis/testáveis
por meio da experimentação (FRENCH, 2009). Observamos isso no seguinte
enunciado:
5 De acordo com Gaulia (2013, p. 37), a obra de Foucault, Vigiar e Punir, “faz de um exame dos
mecanismos sociais e teóricos que motivaram mudanças nos sistemas penais ocidentais,
dedicando-se à análise de como o poder, por meio de diversas entidades estatais (hospitais, prisões
e escolas), vigia e pune aqueles que qualifica como criminosos (ou 'injustos agressores')”.
37
Figura 1: Representação do óvulo
38
aprofundar em determinadas questões e não outras, que não podemos generalizar
predições. Porém, nem as queremos. É notável que, mesmo que nos apropriemos
de exemplos de outros trabalhos, que se propuseram a analisar a divulgação
científica em revistas especializadas, jornais, rádios, televisão… enfim, em vários
tipos de mídia, ocorrem fenômenos muito semelhantes, em termos dos efeitos
discursivos que apontamos6.
A historicidade marca-se em um apagamento ideológico, em que o sujeito
esquece não ser dono de seu dizer, ao mesmo tempo em que assume formas e
posições dentro das FD's diversas que caracterizam os discursos. Mas diante do
exposto, quais seriam as possíveis implicações desse embate entre a mídia, que
divulga das mais diversas formas possíveis conteúdos relativos à ciência (e em
nossas análises evidenciamos diversos tipos de ideologias propagadas e
naturalizadas, mesmo em tão poucos enunciados), e o processo de ensino-
aprendizagem em Ciências/Biologia nas escolas básicas? Lembrar-nos-emos que
os alunos são constantemente bombardeados por informações tão dúbias e não
necessariamente possuem a noção das fragilidades a que estão expostos.
Então resta-nos, para chegar à guisa de um efeito de conclusão, trazer
algumas considerações para emergir, não em respostas, mas em reflexões em
torno dessa problemática. Queremos pensar não apenas em um sujeito que se
assume em formas e posições diante da ciência, mas em seres que se posicionam
enquanto integrantes de uma sociedade que sofre, mais do que com os silêncios
fundantes do discurso, com os silêncios que as opressões preponderantes lhes
causam. Os preceitos bakhtinianos sobre dialogismo corroboraram para olhares
como o de Freire (1987), ao pensar nas várias formas de expressão, bem como nas
dualidades existentes entre opressor versus oprimido. Essa dualidade instaura-se
na comunicação que nem sempre é realizada em um genuíno diálogo. Aqui não
falamos de mera interação comunicativa entre interlocutores, mas de um fazer-se
ouvir e ser ouvido de forma humanizadora.
Diante do exposto, é função daqueles que resistem (dentre eles estão os
educadores) procurarem meios de tentar subverter as ideologias dominantes.
Mesmo que existam instituições aparelhadas, que quiçá não sejam os melhores
modelos de ensino (como é o caso da instituição escola, enquanto instituição
ideológica), é possível criar resistências em meio a faces reprodutoras de uma
hierarquia dominante. Afinal, o assujeitamento, em seus múltiplos sentidos,
necessita ser perpétuo? Claro que as palavras do outro, o já dito, as ideologias
inclusas nas formações de sujeito ideológico, não deixarão de existir. Mas é
necessário pensar criticamente, formando sujeitos que, apesar das condições,
resistam. E não são apenas falamos dos poderes de Estado. Pensamos também em
formas de poder como preconiza Foucault que pensa na legitimação deste não
somente enquanto instância jurídica ou de guerras, mas em distintas e dispersas
relações de poder, que estão disseminadas (MAIA, 1995). Conforme aponta Lander
(2005), corroborando com essa compreensão de poderes disseminados que
alienam massivamente, na lógica capitalista-liberal há uma naturalização e
universalidade da concepção de modelo social, sendo necessário que esta seja
desconstruída, para que possamos nos desvencilhar do mesmo, questionando-se
assim a neutralidade e objetividade dos princípios naturalizantes e legitimadores
6 Recomendamos as leituras de textos como Gregolin (2007), ou mesmo de Grigoletto (2005), que
foram as bases de inspiração para nosso teor de análise. Porém, esses efeitos podem ser vistos
semelhantemente, ao mesmo tempo que em diferentes abordagens, em vários tipos de trabalhos.
39
dos parâmetros predominantes de sociedade.
Dessa forma, queremos pensar na formação do sujeito no Ensino de
Biologia/ Ciências não como mero ser condicionado, aprisionado dentro de vozes
que lhe impõe o pensar/dizer. Queremos que se reflitam meios para a abertura de
possibilidades aos sujeitos, em perspectivas críticas, de forma que este possa
encarar, e quiçá superar, as reverberações disseminadas pelas várias esferas
sociais sobre/de ciência. Seja nas abordagens sistêmicas e formalizadas da escola,
ou naquelas assistemáticas presentes em páginas ou blogs informais, deve-se
possibilitar ao sujeito tomar decisões e ter posturas críticas, frente às ditas
inovações científicas e tecnológicas. Nessa mesma perspectiva, Cassiani, Giraldi e
Linsingen (2012), ao se posicionarem diante dessas questões, defendem que
“quando pensamos o ensino de ciências, consideramos que a própria forma como
olhamos a ciência e tecnologia também é um importante questionamento”
(CASSIANI; GIRALDI; LINSINGEN, 2007, p. 47). Com isso, os autores colocam que a
relação entre Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS) pode contribuir para repensar
na educação.
Finalizamos nossas discussões com uma última citação para (re)pensar
sobre o ensino de ciências, sendo esta, uma das visões que compartilhamos:
40
REFERÊNCIAS
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
SILVEIRA, E.L. Entre rupturas e deslocamentos: o encontro com a língua (do outro)
na escola e a coragem do ato. Página de Debate: Questões de Linguística e de
Linguagem, v. 20, p. 1-17, 2013.
42
COMPORTAMENTO VARIÁVEL DA CONCORDÂNCIA VERBAL DE 3ª DO PLURAL
E ALGUMAS IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS
Introdução
43
fenômeno de variação na CV com 3pp. Nosso objetivo é analisar o modo como a
variante sem marcas de CV na 3pp, em coocorrência com a variante com marcas
formais de CV, é influenciada tanto por fatores linguísticos como extralinguísticos.
No âmbito dos condicionadores internos ao sistema, discutimos a atuação da
saliência fônica, já para a observação dos fatores externos, enfocamos a atuação da
escolaridade.
Para tanto, nos valemos dos postulados teóricos da Sociolinguística
variacionista e retomamos os resultados da pesquisa de Pereira (2016) 2 realizada
com base em dados de linguagem falada por informantes do Projeto Norma Oral do
Português Popular de Fortaleza (NORPOFOR). A partir dos resultados obtidos por
Pereira (2016), refletimos sobre o comportamento variável da CV com a 3pp com
base em uma variedade de fala especifica, isto é, o falar de Fortaleza, e colocamos
em pauta algumas implicações pedagógicas que envolvem a variação na CV com a
3pp.
Este texto está dividido em três partes, além desta introdução. Assim, na
seção denominada Sociolinguística e a heterogeneidade linguística, tratamos alguns
dos principais pontos que caracterizam a sociolinguística enquanto campo de
estudo, com ênfase na noção de língua enquanto fenômeno heterogêneo defendido
por estudiosos vinculados a essa área do conhecimento, bem como o encaixamento
da variação na CV com a 3pp no português brasileiro. Na seção Variação na CV de
3pp e algumas implicações pedagógicas, discutimos a influência de uma variável
linguística (saliência fônica) e extralinguística (escolaridade) sobre o
comportamento variável da CV na 3pp a partir de dados extraídos da pesquisa de
Pereira (2016) e refletimos sobre algumas implicações pedagógicas que cercam o
fenômeno de variação em tela. Por último, tecemos algumas Considerações finais.
2Trata-se de uma dissertação de mestrado defendida pela autora deste capítulo e sob orientação da
professora Drª Aluiza Alves de Araújo, pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada
(PosLA) da Universidade Estadual do Ceará (UECE). A referida dissertação está inserida no Projeto
Retratos sociolinguísticos de aspectos fonológicos, morfológicos e sintáticos do falar de Fortaleza –
CE e pode ser conferida, na íntegra, através do seguinte endereço eletrônico:
http://www.uece.br/posla/index.php/dissertacoes/288-2016.
44
Essa abordagem assinalava, antes de qualquer coisa, uma oposição ao já
consagrado modo de fazer linguística em outras áreas como o Estruturalismo
(SAUSSURE, 2012) e o Gerativismo (CHOMSKY, 1957, 1965) e, ao mesmo tempo,
marcava uma nova maneira de olhar para as línguas naturais. Afinal, em oposição
ao Estruturalismo e Gerativismo, Labov (2006, 2008) compreende a língua como
um fenômeno essencialmente heterogêneo, mutável e que torna possível toda e
qualquer situação de interação comunicativa entre os sujeitos por meio da
linguagem verbal.
Essa concepção de língua, que está na base do pensamento
sociolinguístico, abriu espaço para a observação de uma série de fenômenos
resultantes da heterogeneidade linguística, vista não mais como um fator
secundário, mas sim como uma das mais marcantes propriedades das línguas
naturais, pois na compreensão de Labov (2008, p. 238):
45
variantes linguísticas, bem como os propósitos de seu uso por parte dos locutores.
Sendo assim, os falantes são capazes de dizer se o uso de determinada variante
está (ou não) adequado à determinada situação de interação comunicativa; aos
propósitos do locutor; às identidades do locutor e interlocutor etc.
Em consonância com esses postulados, vale lembrar que as pesquisas
realizadas nos moldes da Sociolinguística variacionista têm evidenciado que as
formas variantes não estão restritas a um único âmbito da língua. Ou seja, sabemos
que é possível encontrar formas variantes coexistindo nos mais diferentes níveis
da língua: vocabulário, fonético-fonológico, morfossintático e pragmático-
discursivo (MOLLICA, 2012). Para exemplificar a noção de variantes linguísticas,
no nível morfossintático, com a qual operamos na perspectiva variacionista,
observemos os excertos 3 e 4:
3 NORPOFOR, Diálogo entre Informante e Documentador (DID. 06): informante do sexo feminino,
60 anos de idade, 0-4 anos de escolaridade.
4 Ainda que seja chamado de ‘preconceito linguístico’, esse fenômeno marca essencialmente um
preconceito social que busca nas diferenças linguísticas algum tipo de sustentação. Afinal, conforme
argumentamos, não existe nada na língua capaz de eleger uma forma variante como superior ou
inferior a outra (LABOV, 2008; CALVET, 2002). Essa eleição é feita exclusivamente com base no
prestígio social que possuem os sujeitos situados em classes sociais favorecidas e que
supostamente usam determinadas formas linguísticas ao invés de outras.
46
de forma absolutamente positiva” (VIEIRA; BRANDÃO; GOMES, 2015, p. 104).
O ponto de partida para a atribuição de valores negativos à variante sem
marcas formais de CV na 3pp reside no fato de que essa forma não condiz com o
modelo de língua conservado pelas gramáticas normativas e amplamente
difundido por grande parte dos veículos de comunicação e preservado pela
educação formal (SCHERRE, 2005; LUCCHESI, 2015). Dado o prestígio que o
modelo de língua apregoado pelos bancos escolares em consonância com os meios
de comunicação disfruta, não surpreende, portanto, perceber que as formas
linguísticas que escapam aos padrões impostos por esses condutores são avaliadas
de modo negativo.
De igual maneira, não é difícil concluir, dado o reconhecimento da
sistematicidade da variação linguística, bem como a legitimidade das variantes
linguísticas, que toda e qualquer atribuição de valores positivos ou negativos a
determinadas formas é feita sem respaldo científico. Na verdade, o que distingue
os valores conferidos a uma ou outra forma variante é sua relação ou não com a
valoração do status social atribuído aos falantes que usam (ou que imaginamos que
usam) determinadas formas variantes.
Segue daí que aos falantes situados em uma escala social economicamente
favorecida, geralmente com amplo acesso aos bancos escolares e a outros bens
culturais prestigiados, são correlacionadas às variantes prestigiadas (caso da
marcação formal de CV com a 3pp). Em sentido oposto, as variantes
desprestigiadas (como, por exemplo, a variante sem marcas formais de CV na 3pp)
são cotejadas em relação ao suposto comportamento linguístico de falantes
posicionados em escalas sociais economicamente desfavorecidas (LUCCHESI,
2015). Essas assertivas indicam que a classificação de uma determinada variante
linguística em ‘melhor’ ou ‘pior’ é feita com base em critérios, exclusivamente,
sociais, isto é, externos à língua (BAGNO, 1999, 2013; CALVET, 2002; SCHERRE,
2005; LABOV, 2008; LUCCHESI, 2015).
No tocante à realização das variantes linguísticas, é essencial pontuar que
o uso de tais formas não acontece de modo aleatório. Na verdade, ao postular a
existência de variantes linguísticas ‘competindo’ entre si, Weinreich, Labov e
Herzog (2006) e Labov (2008) defendem que toda forma variante é influenciada
por uma série de fatores linguísticos, ou internos, bem como por fatores externos
ao sistema que podem ser de ordem social ou estilística. Ou seja, para Labov
(2008), a existência de formas variantes em toda e qualquer língua natural só pode
ser explicada por meio da correlação entre tais variantes e fatores linguísticos e
extralinguísticos, tal como procuramos mostrar na seção seguinte, ao abordar o
comportamento variável da CV na 3pp, com base na pesquisa de Pereira (2016).
47
sociolinguísticos, o referido corpus conta com uma significativa quantidade de
informantes, 197 ao todo, estratificados segundo o Sexo (homens e mulheres), a
Faixa etária (I: 15-25; II: 26-49 e III: 50 anos em diante), a Escolaridade (I: 0-4
anos; II: 5-8 anos e III: 9-11 anos) e o Tipo de inquérito (Diálogo entre Informante e
Documentador (DID), Diálogo entre 2 informantes (D2) e Elocução Formal (EF)).
Ainda que tenhamos selecionado informantes estratificados em sexo, faixa
etária e escolaridade nos moldes do NORPOFOR, optamos por trabalhar apenas
com inquéritos do tipo DID. A esse respeito, destacamos que os DID figuram como
inquéritos nos quais temos a interação entre informante e um documentador.
Evidentemente, consideramos apenas os casos de variação na CV de 3pp presentes
na fala dos informantes. Além disso, é importante dizer que, haja vista a presença
do informante, assumimos que os DID apresentam um grau intermediário de
formalidade, já que a presença de um indivíduo estranho, com quem o entrevistado
não estabelece nenhum tipo de laço sócio afetivo pode gerar algum tipo de
monitoramento maior do entrevistado em ralação à sua fala (LABOV, 2008;
ARAÚJO, 2011).
Ao todo, foram computadas 3.489 ocorrências de variação na CV com a
3pp. Esses dados foram devidamente submetidos à análise estatística com o auxílio
do programa computacional Goldvarb X (SANKOFF; TAGLIAMONTE; SMITH,
2005). Com isso, verificamos que 65,4% (2.283) das ocorrências apresentam a
marcação formal de CV na 3pp, enquanto 34,6% (1.206) dos casos correspondem a
não marcação de CV. Sobre os percentuais de uso obtidos para as variantes em
foco, é importante mencionar que a amostra de fala com a qual trabalhamos em
Pereira (2016) é representativa do falar tido como popular, fato que poderia elevar
o percentual de uso da variante sem marcas formais de CV na 3pp, conforme
mostram outros estudos sociolinguísticos (MONTE, 2007; ARAUJO, 2014;
LUCCHESI, 2015).
Por outro lado, não podemos esquecer que usamos uma amostra de fala
composta por informantes situados em uma das maiores metrópoles brasileiras.
Além disso, os dados computados estão inseridos no contexto dos DID os quais,
conforme dissemos anteriormente, apresentam certo grau de formalidade.
Somados, esses pontos podem ter, portanto, contribuído para diminuir o
percentual de uso da variante sem marcas formais de CV na 3pp.
Além das percentagens para as variantes em estudo, o Goldvarb X também
apontou, dentre os grupos de fatores linguísticos e extralinguísticos controlados
em Pereira (2016), aqueles que interferem no comportamento variável da CV na
3pp. Dentre os linguísticos, o programa apontou o grupo da saliência fônica como o
mais pertinente. Os resultados obtidos para todos os fatores que compõem a
variável saliência fônica estão distribuídos na Tabela 1:
48
na forma plural
c. Envolve acréscimos de segmentos e mudanças diversas na 70/543 13,9% 0.194
forma plural
Fonte: Pereira (2016, p. 111).
(5) não sei dizer o que o eles sabe (NORPOFOR, Inq. 06).
(6) as menina ajuda... (NORPOFOR, In. 06).
(7) aí eles diz assim (NORPOFOR, Inq. 10).
49
Tabela 2 - Atuação da variável escolaridade sobre a ausência de CV
Escolaridade Apl/Total % PR
0-4 anos 523/1.096 47,7% 0.694
5-8 anos 381/1.020 37,4% 0.525
9-11 anos 302/1.373 22,0% 0.326
Fonte: Pereira (2016, p. 113)
Haja vista as questões que tratamos até aqui, é possível depreender, pelo
menos, duas questões que têm implicações diretas no trabalho com a CV no âmbito
do ensino de língua materna. A primeira dessas implicações diz respeito ao fato de
que, por meio do funcionamento da variação na CV com a 3pp, constatamos a
heterogeneidade própria da língua portuguesa, bem como de toda e qualquer
língua natural, tal como propõe a Sociolinguística.
Em segundo, vemos que essa variação é sistemática, pois, conforme
mostramos nos dados extraídos da pesquisa de Pereira (2016), as variantes com e
sem marcas formais de CV na 3pp são devidamente condicionadas por fatores
internos e externos ao sistema. Dentre os primeiros, destacamos a atuação da
50
saliência fônica. Já no âmbito dos fatores sociais, vimos que a escolaridade é de
grande valia para a compreensão da variação na CV com a 3pp, na linguagem real,
falada pelos fortalezenses.
Naturalmente, o caráter variável da CV na 3pp se estende a diferentes
variedades de fala do Português brasileiro, pois, conforme sinalizamos logo de
início, temos conhecimento de diferentes trabalhos sociolinguísticos sobre o
fenômeno em diversas localidades do país. Isso nos leva a assumir que a variação
na CV com a 3pp pode ser mais bem compreendida se levarmos em conta fatores
linguísticos e fatores sociais que mais bem compreendem diferenças na identidade
social dos falantes do que mesmo diferenças geográficas.
Em nossa compreensão, essas questões, por si só, sinalizam o quão
importante pode ser a abordagem da variação na CV com a 3pp. Assim, estaremos
promovendo o trabalho com uma visão de língua não apenas mais aberta ao
reconhecimento e compreensão das diferenças linguísticas em sala de aula, mas
também com uma visão de língua que está mais próxima da realidade de toda e
qualquer língua natural. Além disso, concordamos com Bagno (2007) quando diz
que, mesmo tendo o trabalho formal com a língua materna avançado no que tange
o tratamento da variação linguística em sala de aula, essa abordagem muitas vezes
está restrita ao reconhecimento de fenômeno variáveis situados no léxico e
marcados por diferenças diatópicas.
De igual modo, Bagno (2007) aponta a necessidade de abrir espaço para o
tratamento de fenômenos variáveis marcados socialmente, como é o caso da
variação na CV com a 3pp. Afinal, a queda de marcas de concordância é um
fenômeno que escapa às regras prescritas pelas gramáticas tradicionais, tornando-
se um ponto problemático para o ensino formal da língua materna, visto que “é um
dos tópicos gramaticais que os professores de Língua Portuguesa, de um modo
geral, mais se empenham em corrigir nos seus alunos” (MONTE, 2007, p. 13).
Diante disso, acreditamos que promover, entre professores e alunos, a
descrição dos fatores linguísticos e sociais que interferem – no uso real que
fazemos de nossa língua – é de suma importância não apenas para a compreensão
do funcionamento das variantes linguísticas, mas também para a quebra do
preconceito linguístico que geralmente sofrem os falantes que fazem uso da
variante sem marcas de CV na 3pp. A questão que se coloca é o reconhecimento da
sistematicidade dessa forma variante marcada pela influência de fatores internos e
externos à língua.
Com isso, estamos mostrando – por meio de dados empíricos – que a
variante sem marcas formais de CV na 3pp não acontece de modo aleatório,
tampouco é fruto de alguma deficiência linguística. Na verdade, essa variante é
fruto da heterogeneidade linguística sistemática presente, conforme sustentando,
em toda e qualquer língua natural. Essa perspectiva, de fato, nos parece bastante
frutífera para a quebra do preconceito linguístico que, por sua vez, “deve ser
enfrentado, na escola, como parte do objetivo educacional mais amplo de educação
para o respeito à diferença” (BRASIL, 1997, p. 26).
Com isso, não estamos querendo dizer, em instância alguma, que a escola
não deve trabalhar com variedades linguísticas mais prestigiadas socialmente.
Muito pelo contrário, sabemos que ter acesso a tais variedades é um direito
inalienável dos nossos alunos e que deve ser promovido pela escola (WEINREICH;
LABOV; HERZOG, 2006; BAGNO, 2007; LABOV, 2008). Para tanto, é preciso
proporcionar aos discentes o contato com o maior número de situações ou gêneros
51
textuais que os levem a perceber os diferentes usos da língua, tanto na modalidade
falada quanto escrita da língua. Trata-se, portanto, da adoção de um ensino
‘produtivo’ e não ‘prescritivo’ (TRAVAGLIA, 2009).
Assim, por exemplo, cabe levar os discentes a compreenderem que, em
situações de interação comunicativa com alto grau de formalidade, é importante
fazer uso de formas linguísticas mais prestigiadas socialmente. Todavia, variantes
com menor prestígio social – como a variante sem marcas formais de CV na 3pp –
podem e costumam ser empregadas em situações de interação comunicativa nas
quais predomina um alto nível de informalidade (CARDOSO; CABUCCI, 2014, p.
95).
Considerações Finais
52
REFERÊNCIAS
53
BRIGHT, W. Sociolinguistics (Org.). Mouton: Haia, 1966.
FARACO, C. A. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo: Parábola
Editorial, 2008.
54
MONGUILHOTT, I. de O. e S. Estudo sincrônico e diacrônico da concordância
verbal de terceira pessoa do plural no PB e no PE. 2009, 229f. Tese
(Doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2009.
Disponível em:
https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/92838/268683.pdf.
Acesso em: Mar. 2018.
SAUSSURE, F. de. Curso de Linguística Geral. Organizado por Charles Bally, Albert
Sechehaye com a colaboração de Albert Riedlinger. Tradução de Antônio Chelini,
José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. 34. ed. São Paulo: Editora Cultrix, 2012.
55
VIEIRA, S. R. Concordância verbal. In: VIEIRA, S. R.; BRANDÃO, Sílvia Figueiredo
(Orgs.). Ensino de gramática: descrição e uso. Rio de Janeiro: Vermelho Marinho,
2007. p. 86-101.
56
ESPANHOL COMO LE NOS PROJETOS PEDAGÓGICOS DO ENSINO MÉDIO
INTEGRADO DO IF SERTÃO-PE: UMA ANÁLISE DISCURSIVA
Introdução
Dessa forma, aliados a essa perspectiva, tomou-se ainda para a análise dos
dados, os estudos do letramento, em sua abordagem crítica e da pedagogia dos
57
multiletramentos (CASSANY, 2006; KLEIMAN, 2005; ROJO, 1998, 2009), e, seguiu-
se uma proposta de base dialógica do discurso (BAKHTIN, 2000; VOLOCHÍNOV,
2013), por conceber a linguagem sob o viés de sua historicidade ao ganhar o
caráter ideológico e social em suas práticas.
1 Assim como Abreu propõe, compreende-se para este trabalho o seguinte conceito: “Entende-se
como formação cidadã um conjunto de ações possibilitadas no ambiente educacional: o acesso ao
conhecimento; a constituição do sujeito (valores e atitudes); o agir e o posicionar-se no mundo de
forma consciente e crítica; o contato com outras formas de interação através da linguagem; a
oportunidade de debater e de compreender as desigualdades, relações de poder, na sociedade
como um todo; entre outros” (2011, p. 23).
2 Não se tem pretensão, neste estudo, polemizar a retirada da oferta obrigatória do espanhol dos
direcionamentos para a educação básica, estando somente agora como uma disciplina optativa. Em
outros trabalhos aprofundar-se-á e ampliar-se-á o tema.
58
ou decodificar a língua, mas sim a competência de interagir
conscientemente na sociedade, por meio da e para linguagem
(BENVENUTO; ABREU, 2013), fazendo com que ele aja mais
analiticamente, com maior eficácia na forma de ler, de escrever, de
falar, de compreender enunciados (CASSANY, 2006, p. 555).
Mas será que tais mudanças ou propostas de uma educação linguística que
conceba o engajamento discursivo dos discentes já encontra eco nos currículos?
Será que ainda se tem a forte tendência estrutural de ensinar e aprender uma
língua? Será que há a proposta de compreender o texto como um instrumento real,
rico em possibilidades pedagógicas?
Para a proposta deste estudo, analisaram-se os PPC’s de três cursos do
IFSertão – PE, Campus Salgueiro, no caso os PPC’s dos cursos ensino médio
integrado (EMI) do Campus Salgueiro (Agropecuária 3, Edificações4 e Informática5),
por meio de uma pesquisa documental de base exploratória interpretativista e
qualitativa, sendo possível mapear os seguintes efeitos divididos em duas frentes:
PPC's e as
PPC's e orientações para o
documentos ensino de espanhol
governamentais como LE
Fonte: As autoras.
resultados, mas explorar apenas um recorte desses. Em outros estudos e trabalhos serão melhor
aprofundadas essas relações.
59
Tabela 1: PPC’s e documentos governamentais.
CURSOS RESULTADOS
Agropecuária
• Presença de citações diretas a LDBEN, mas sem referências.
• Paráfrases da LDBEN, mas sem referências.
• Quatro premissas sugeridas pela UNESCO: aprender a conhecer;
aprender a fazer; aprender a viver; e, aprender a ser.
• Apresentam 10 (dez) leis que amparam a criação do curso; somadas a
5 (cinco) pareceres Câmara de Educação Básica (CEB) e do Conselho
Nacional da Educação (CNE); mais uma portaria do Ministério de
Planejamento e Gestão; mais quatro resoluções do CEB/CNE. Todas a
título de exemplificação, pois estão citadas apenas em sequência sem
profundidade do que prescrevem – pelo menos não na seção
apresentada. E todas até 2008.
• Para o perfil do egresso, espera-se formá-lo com a base proposta pelos
Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (2000),
fundamentado pela Resolução CNE/CEB nº 04/99.
• Apresentam as leis associadas à proposta na organização curricular do
curso.
• Apresenta referências à Organização Didática do IFSertão/PE, mas
sem referência ao número e ano de publicação.
Edificações
• Presença de citações diretas a LDBEN, mas sem referências.
• Paráfrases da LDBEN, mas sem referências.
• Quatro premissas sugeridas pela UNESCO: aprender a conhecer;
aprender a fazer; aprender a viver; e, aprender a ser.
• Na seção de fundamentação legal, utilizam-se da LDBEN e do Parecer
CEB/CNE nº15/98 somente.
• As listagens das competências foram tomadas por base o Exame
Nacional do Ensino Médio (ENEM).
• Para o perfil do egresso, espera-se formá-lo com a base proposta pela
LDBEN e as competências elencadas pelo ENEM.
• Nas referências, o documento governamental mais atual, data de 2004.
Informática
• Apresentam a LDBEN, um parecer e uma resolução para a criação do
curso. Todas a título de exemplificação, pois estão citadas apenas em
sequência sem profundidade do que prescrevem – pelo menos não na
seção apresentada. A legislação mais atual data de 1999.
• Paráfrases da LDBEN, com referências.
• As listagens das competências foram tomadas por base o Exame
Nacional do Ensino Médio (ENEM).
• Para o perfil do egresso, espera-se formá-lo com a base proposta pela
LDBEN e as competências elencadas pelo ENEM.
• Nas referências, o documento governamental mais atual, data de 2001.
Faz-se referência a uma resolução, mas não há indicação de qual órgão
o publicou com data de 2010.
Fonte: As autoras.
60
produções escritas e, quiçá, consequentemente, nas ações (ABREU, 2011). Deste
modo, é possível observar a presença constante da LDBEN (1996), mesmo que seja
apenas para citá-la ou relembrá-la como um meio norteador das ações e dos
princípios básicos nas características do EMI. A noção em sua expressão “formação
cidadã” encontra-se expressa nos três documentos, mas sem maiores reflexões ou
aprofundamento, apenas reproduzindo trechos do próprio documento original, no
caso a LDBEN (1996).
Neste sentido, para o docente que tem acesso a esse documento
institucional, caberá buscar o texto fonte/original, para não apenas receber ecos de
vozes que foram entrecortadas por outros sujeitos.
Além disso, nota-se nos três PPC’s a necessidade de reformulação e
atualização, já que temos documentos com mais de 10 anos de publicação7. É
preciso trazer documentos atuais que acabam por compreender melhor as
características desse público nessa modalidade de ensino, como por exemplo, as
próprias Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica (BRASIL, 2013).
Nessa diretriz, há espaço específico para o EMI, tomando como embasamento
pareceres mais contemporâneos com a realidade pós fundação dos Institutos
Federais, em 20088.
Outras questões, de igual forma, merecem destaque, tais como:
7 Ressalta-se que no decorrer dos últimos cinco anos já foram apresentadas sugestões de mudança
ao currículo. Contudo, após as alterações impostas pela Lei nº13.415/17 na Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional - LDBEN (BRASIL, 1996), há a sugestão no Campus de aguardar os
direcionamentos específicos para o EMI.
8 A criação dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFECT) é recente, datada de
2008. Contudo, a história da Rede Federal de Educação Profissional no Brasil surge em 1909 no
Brasil, primeiramente com uma política voltada a classes desprovidas, visando uma qualificação
profissional desta camada da população. Porém, atualmente a rede profissionalizante federal “se
configura como importante estrutura para que todas as pessoas tenham efetivo acesso às
conquistas científicas e tecnológicas” (SOUZA, 2013, p. 61), além da sua formação técnica.
61
Portanto, já se observam nesses PPC’s indícios direcionados à proposta de
uma formação cidadã, visando o aprimoramento do educando quer cientificamente
e quer humanisticamente, porém, essas precisam de um melhor amparo teórico-
metodológico e pedagógico no texto base dos cursos.
Já para o segundo eixo dos resultados, e que trata do objetivo maior deste
estudo, foi possível observar que nos três cursos:
9A língua espanhola na grade curricular do IFSPE como todo é vivenciada somente nos 3º e 4ºanos
do ensino médio integrado.
62
Figura 3: Currículo Ensino Médio Integrado – Agropecuária
Considerações Finais
Nesta investigação foi possível, após análise dos PPC’s, estabelecer alguns
resultados principais para os objetivos propostos iniciais (compreender as
63
relações postas em torno das prescrições governamentais que incentivam a
formação discursiva do discente e a proposição dada aos docentes por meio de um
documento institucional - o PPC dos cursos), tais como: a prioridade no uso
linguístico da língua por meio de assuntos gramaticais, conforme se esboçam nas
seções dos conteúdos; a ausência de direcionamentos do trabalho com o texto por
meio de gêneros discursivos, por exemplo; e a homogeneização dos conteúdos
entre os três cursos, sem associar as suas particularidades e necessidades.
Dessa forma, conclui-se que há a necessidade de reformulação desses
PPC’s para que se possa construir uma linha de atuação mais próxima dos
direcionamentos sinalizados por documentos governamentais e os preceitos
teóricos recomendados neste estudo (uma pedagogia dos letramentos por meio de
uma educação linguística) associados a uma proposta de base dialógica do discurso
(BAKHTIN, 2000; VOLOCHÍNOV, 2013), no intuito ainda de que uma aula de LE
possa buscar formar cidadãos autônomos, críticos, produtores e consumidores de
linguagem em um dado idioma.
Destaca-se para esse estudo a importância que “o caráter dialógico da
linguagem e das relações postas” dadas em uma interação ou em um processo
comunicativo são de ordem sócio historicamente construídas por meio de um dado
tempo e espaço, estando relações de poder e de intencionalidades envoltas nesses
contextos (LENDL; ABREU; BARBOSA, p. 53, 2018).
De igual forma, fazem-se urgente as adequações desses PPC’s, uma vez que
existem outros “equívocos”, como por exemplo: erros de ordem linguística e até
mesmo de referências relacionados a regras da ABNT. Logo, os gestores devem
estar atentos com relação a reformulação constante e da necessária e oportuna
adequação dos PPC’s com as demandas atuais quer seja de ordem governamental
quer seja de ordem acadêmico-científico, trazendo assim um discurso coeso para a
formação dos discentes.
REFERÊNCIAS
64
BRASIL. M. da E. Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica.
Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretoria de Currículos e
Educação Integral, 2013.
65
VOLOCHINOV, V. N. A construção da enunciação e outros ensaios. Org. Trad. e
notas: João Wanderley Geraldi. São Carlos: Pedro e João Editores, 2013.
66
LETRAMENTO: LEITURA E ESCRITA COMO PRÁTICAS SOCIODISCURSIVAS DE
LINGUAGEM E DE INTER(AÇÃO)
Marcos de FRANÇA
Cláudia Rejanne Pinheiro GRANGEIRO
Introdução
1 O sentido aqui empregado não é o de “literato, erudito, instruído, literato, jurisconsulto”, como
encontrado no dicionário, mas no sentido de ter letramento.
2 A autora realizou sua pesquisa com informantes analfabetos e aplicou questões de silogismo para
avaliar se eles são capazes de elaborar respostas dentro do raciocínio lógico, considerado como
uma ação cognitiva de caráter altamente abstrato só possível para indivíduos com certo nível de
67
Street (2014), que é possível haver alguém com certo nível de letramento e não ser
alfabetizado assim como pode ser alfabetizado e não ter domínio de certo nível de
letramento (com proficiência em leitura e escrita). É preciso dizer, portanto, que
essa é uma perspectiva de letramento grafocêntrica, altamente valorizada pela
atual sociedade tecnológica. De acordo com Coulmas (2014, p. 8):
letramento. A autora constatou que a falta do rigor lógico é substituído pelas narrativas
explicativas, o que demonstraria um certo nível de letramento.
3É claro que isso teria que passar também pela formação do professor que trabalha nas formações
iniciais, na alfabetização.
68
essa prática social tornando o indivíduo um sujeito. Este implica ser um agente de
ações e práticas sociais e políticas por meio de usos da linguagem, tornando-se um
actante, um ator social e político atuante na sociedade.
Este capítulo tem por objetivo discutir os usos da leitura e da escrita como
práticas sociais que caracterizam o processo de letramento para além da
alfabetização. Nesse sentido, nossa discussão ocorre no contraponto entre a
concepção de alfabetização e a concepção de letramento como dois processos
complementares e não excludentes. Com base em autores como Soares (2004a,
2004b, 2006), Tfouni (2006), Street (2014) e outros, sustentaremos nossa
discussão sobre as concepções de alfabetização e letramento, visto que na
atualidade se discute com certa veemência o fato de que ser alfabetizado não é
garantia de pleno letramento; pelo contrário, a existência dos chamados
“analfabetos funcionais” se apresentarem como o produto final de quatro anos ou
mais de escolarização é prova cabal da ineficiência da escola em proporcionar um
nível de letramento que faça da leitura e da escrita uma prática social de
linguagem. A nossa proposta, portanto, é mostrar que o uso da leitura e da escrita
como prática social de linguagem só é possível/viável para o exercício ser/estar
em sociedade quando o indivíduo passa por um processo de letramento e não
apenas de alfabetização, tornando-se, portanto, um sujeito menos “assujeitado”,
como diria Althusser (1974) ou capaz de resistências, como diria Foucault (2001),
no âmbito das ações sócio-políticas.
Para alcançar esse intuito, num primeiro momento, defenderemos que a
concepção de linguagem como interação social e a de leitura e de escrita como
processos e produções de sentidos estão atreladas à adoção de uma concepção de
letramento, a qual está condicionada a uma perspectiva de leitura e de escrita
como práticas sociodiscursivas de linguagem. Esse condicionamento foi favorecido
por um contexto sócio-histórico-ideológico que proporcionou rever a concepção de
alfabetização e o surgimento de uma nova concepção que atendesse aos interesses
do momento presente, no caso o conceito de letramento.
Num segundo momento, discutiremos, em contraponto, as concepções de
alfabetização e letramento e os seus contrastes, não como concepções que se
opõem, se excluem, mas como conceitos que se complementam. Nesse sentido, o
processo de codificação/decodificação (alfabetização) é necessário para se atingir
o processo de produção de texto e de sentidos (letramento), que é o almejado.
Na terceira seção, analisaremos alguns textos que circularam na esfera
social nos meios digitais (internet: uma notícia e uma tirinha) com base na
discussão aqui levantada sobre o letramento como prática social de linguagem e a
importância do papel da escolarização no processo de formação do sujeito como
um agente sócio-político de ações de linguagem por meio do domínio pleno da
leitura e da escrita. Por fim, apresentaremos as nossas considerações finais, onde
exporemos as nossas conclusões resultantes das leituras e das análises realizadas a
partir do corpus selecionado.
O nosso propósito é de contribuir, modestamente, porém de forma
significativa, com os debates contemporâneos no campo de estudos sobre leitura,
escrita e letramento, principalmente na relação com o ensino de português como
língua materna.
69
Nesta seção, discutimos qual a concepção de linguagem, entre aquelas
correntes na literatura linguística, que atende à proposta e concepção de
letramento que se defende para este momento histórico marcado por fronteiras
fluidas, assim como as concepções de leitura e escrita estão interligadas à
concepção de linguagem como interação.
70
materialidade, que é o que atende a uma abordagem de análise discursiva do texto.
No entanto, a concepção de linguagem como “forma ou processo de interação”
parecem atender às expectativas de uma abordagem discursiva.
De acordo com Brandão (2004, p. 11), “[…] a linguagem enquanto discurso
é interação, e um modo de produção social; ela não é neutra, inocente e nem
natural, por isso o lugar privilegiado de manifestação da ideologia.” Sendo assim,
ela não pode ser concebida como uma entidade abstrata, “[…] mas como o lugar em
que a ideologia se manifesta concretamente, em que o ideológico, para se objetivar,
precisa de uma materialidade […]” (BRANDÃO, 2004, p. 9). É a linguagem em uso –
em movimento, em funcionamento, a linguagem como interação – que materializa
o discurso e o discurso por sua vez materializa a ideologia. Consequentemente, ao
se adotar uma concepção de linguagem como a aqui defendida, implica uma
mudança de concepção de leitura e escrita.
É sobre as concepções de leitura e de escrita que discutiremos na subseção
seguinte.
Concepções de Leitura
71
grifos nossos).
72
perspectiva de Magda Soares (2006) que nos parece dar a tônica do que de fato é
leitura e o que envolve em seu processo de realização: “Ler é um conjunto de
habilidades e comportamentos que se estendem desde simplesmente decodificar
sílabas ou palavras até ler Grande Sertão: Veredas [...] ler é um conjunto de
habilidades, comportamentos, conhecimentos que compõem um longo e complexo
continuum [...]” (2006, p. 48, grifos da autora).
Em síntese, podemos concluir que todas as concepções de leitura aqui
apresentadas têm como eixo norteador a concepção de linguagem interacionista,
portanto, de caráter dialógico, cognitivo, inferencial, discursivo e pragmático o que
implica acionar, no sujeito-leitor, uma série de habilidades e comportamentos que
vão além do linguístico, da estrutura, do código. Exige também, pois, o
extralinguístico, o conhecimento de mundo do sujeito-leitor e as condições de
produção envolvidas no processo.
Não se pode deixar de anotar que a uma concepção de leitura, está
atrelada uma concepção de escrita, que é o que apresentaremos e discutiremos na
próxima subseção.
Concepções de Escrita
73
relação com o instrumento que permite elaborá-los” (SAVELI, 2007, p. 112-113), a
linguagem escrita ultrapassa a concepção de escrita como “[...] meio de
comunicação, de expressão, mas, ao contrário, tal definição exige considerar a
escrita como a linguagem que permite acesso ao plano abstrato mais elevado”
(SAVELI, 2007, p. 110). Portanto, “A escrita é um meio de construir um ponto de
vista, uma visão do mundo, de encaixar cada fato num conjunto, de estabelecer um
sistema, de dar um sentido às coisas” (SAVELI, 2007, p. 111). Em outros termos, é
por meio da escrita que é possível sistematizar e organizar com maior precisão as
ideias, os argumentos, o ponto de vista defendido etc., porque se pode pensar,
pesar, retomar, repensar etc. antes da versão chegar até ao leitor.
A escrita, enfim, pode ser entendida como uma atividade de produção de
texto que se realiza com base nos elementos linguísticos e na sua forma
organizacional e que requer a mobilização de um vasto conjunto de conhecimentos
do escritor, no interior do evento comunicativo, o que inclui também o que ele
pressupõe ser do conhecimento do leitor ou do que é compartilhado por ambos
(KOCH; ELIAS, 2012). Nessa perspectiva, trazemos a definição de escrever
concebida por Magda Soares que nos parece dar a tônica do que de fato é essa ação
de linguagem e o que ela envolve em seu processo de realização: “Escrever é
também um conjunto de habilidades e comportamentos que se estendem desde
simplesmente escrever o próprio nome até escrever uma tese de doutorado [...]
Assim: escrever é também um conjunto de habilidades, comportamentos,
conhecimentos que compõem um longo e complexo continuum [...]” (2006, p. 48-
49, grifos da autora).
Em síntese, assim como ler, escrever também envolve uma série de
habilidades e estratégias e não pode ser reduzida a simples codificação linguística
porque envolve aspectos cognitivos, linguísticos, pragmáticos, sócio-históricos e
culturais.
74
contrário, são interdependentes, complementares, pois o processo de letramento
requer que o sujeito tenha um domínio de leitura e escrita básico com ponto de
partida. O sujeito precisa dominar, em princípio, a descodificação e a codificação
do sistema alfabético. A ideia é alfabetizar letrando e letrar alfabetizando, ou seja, o
ideal é que se alfabetize dentro de condições de letramento e que tal processo
implique em uma imersão proficiente nos materiais verbais e/ou multissemióticos
contemporâneos, que vão além do texto puramente verbal. Por isso, hoje, é
preferível se falar em texto verbo-voco-visual:
75
historiador italiano, e que as autoras trazem para a linguística e aplica os seus
princípios no processo de alfabetização. Segundo Abaurre e Mayrink-Sabinson
(2002, p. 59): "À luz de tal paradigma, as particularidades, as singularidades, os
indícios devem ser utilizados como recurso metodológico, a partir dos quais se
pode identificar de forma mais eficaz a relação de interação entre o sujeito e a
linguagem." Como podemos perceber, na proposta das autoras, com base no
Paradigma Indiciário, deve-se buscar os indícios, as particularidades que o sujeito
possa ou venha a demonstrar ter com a linguagem, ou seja, a partir do que o aluno
demonstra conhecer de linguagem explorar isso em favor do seu aprendizado, ou
seja, prioriza o sujeito do processo interativo com a ação de linguagem.
Deve-se entender "indício" como "pista". Por isso a referência comparativa
que se faz com a atividade de um detetive, porque é exatamente com o indício, com
a pista que ele trabalha para chegar às suas deduções lógicas. O que normalmente a
pedagogia tradicional considerava "erros", podem ser, na verdade, indícios de
como o aluno se relaciona com a linguagem e como isso interfere no seu processo
de aprendizagem da escrita. Em outras palavras, ao invés de o professor olhar para
os erros como algo em si, de forma estática, poderia analisar, procurar saber o
porquê desses erros. Em vista disso:
76
p. 44)
77
O texto I a seguir bem ilustra que parâmetros são utilizados para se
considerar alguém alfabetizado no Brasil.
TEXTO I7
Aprovado
Tiririca passa no teste de alfabetização
Em teste, o palhaço eleito deputado federal provou que sabe ler e escrever
Depois de provar para quase um milhão e meio de eleitores que merecia
uma vaga de deputado na Câmara federal, o palhaço Tiririca agora prova que é
alfabetizado e pode assumir o mandato. A Justiça Eleitoral aplicou nesta quinta-
feira 11 um exame para verificar se o recém-eleito Francisco Everardo Oliveira
Silva - o homem por trás do personagem - sabe ler e escrever. E ele passou. [...]
No exame aplicado, Tiririca precisou ler título e subtítulo de duas
reportagens de jornal, além de escrever um ditado 8 retirado de um livro sobre
a própria Justiça Eleitoral. Walter de Almeida Guilherme, presidente do Tribunal
Regional Eleitoral de São Paulo, confirmou que o recém-eleito cumpriu as tarefas a
contento.
TEXTO II9
78
A tirinha da Mafalda faz uma crítica contundente ao método tradicional de
alfabetização, que tem como base as cartilhas, as quais seguem uma metodologia
de repetição e de exercício mnemônico como princípio de aquisição da leitura e da
escrita.
O texto II ilustra bem como a escola tem formado os nossos alunos em
termos de leitura e escrita. O processo de alfabetização enquanto for concebido
como “[…] uma técnica que está diretamente ligada à decodificação […]”, isto é,
“[…] a decifração do código escrito – o alfabeto […]” (ROSÁRIO, 2013, p. 39), a
escola estará longe de formar sujeitos proficientes em leitura e escrita. Enquanto a
escola considerar que repetir frases feitas fora de contexto (“Minha mãe me mima.
Minha mãe me ama.”) e “ler título e subtítulo” e “escrever um ditado” é o suficiente
para estar alfabetizado, é provável que não tenhamos o tipo de leitor que a
personagem Mafalda representa: um sujeito criticamente politizado, com uma
percepção de mundo que o leva a “ler” que a escola não está cumprindo o seu papel
político-social de formar cidadãos letrados, se continuar insistindo em usar
métodos arcaicos de alfabetização que não proporcionam o letramento do aluno.
Considerações finais
REFERÊNCIAS
80
contemporaneidade. Rio de Janeiro: Oficina da Leitura, 2018. p. 51-68
SAVELI, E. L. Por uma pedagogia da leitura: reflexões sobre a formação do leitor. In:
CORREA, D. A.; SALEH, P. B. O. (orgs.). Práticas de letramento no ensino: leitura,
escrita e discurso. São Paulo: Parábola Editorial; Ponta Grossa: UEPG, 2007.
81
UM ESTUDO SOBRE A MEGAESTRUTURA MULTIMODAL DO MERRIAM-
WEBSTER: VISUAL DICTIONARY ONLINE
Aluizio LENDL
José Marcos Rosendo de SOUSA
Antônio Luciano PONTES
Introdução
82
O elemento que estudaremos desse sistema organizacional é a
megaestrutura. Adotamos este termo, usado por Pontes (2009) e Hartmann &
James (1998), por ser parte de um conjunto maior que gera uma sequência lógica
com as outras estruturas. Entretanto é importante fazer entender que outros
estudiosos adotam outras nomenclaturas, como é o caso de Welker (2004) e
Hausmann & Wiegand (1989), os quais chamam de textos externos; Haensch
(1982), que nomeia de macroestrutura; e Gelpí Arroyo (2000) que batiza de
hiperestrutura. De modo geral, todos entendem esta estrutura como sendo a parte
geral do dicionário, contendo três partes principais, o material anteposto, a
nomenclatura e o material posposto.
Sobre as três partes mencionadas, Hartmann & James (1998) designam
como conjunto formado pelas nomenclaturas e os textos externos – outside matter.
Assim, dividem a megaestrutura em front matter, middle matter e back matter1.
Cabe ainda mencionar que Pontes (2009) traz outra nomenclatura à
megaestrutura de dicionários escolares, porém as definições dadas aos termos não
divergem daquelas dos autores já citados. O autor divide-a em “páginas iniciais
(elementos preliminares, material anteposto), o corpo (nomenclatura ou
macroestrutura) e as páginas finais (material posposto)” (PONTES, 2009:66-67).
Em suma, Welker (2004) constata que a megaestrutura pode ser constituída pelo
prólogo, prefácio, introdução, lista de abreviaturas usadas no dicionário,
informações sobre a pronúncia, resumo da gramática, lista de siglas e/ou
abreviaturas, lista de verbos irregulares, listas de nomes próprios, lista de
provérbios, bibliografia, fonte e, algumas vezes, certas curiosidades.
Quanto ao material anteposto, Pontes (2009, p. 67) destaca que é de
presença obrigatória na megaestrutura do dicionário. Por outro lado, Welker
(2004: 80) nos mostra que há autores que consideram apenas o corpo do
dicionário como parte obrigatória. O que é consenso entre os dois autores é que há
a necessidade de informações sobre como usar os dicionários, isto é, uma
explicação sobre a organização. Sobre esses textos externos, Welker (2004, p. 80)
constata que não possuem uma posição fixa, “a não ser o prefácio e a introdução,
que devem preceder as nomenclaturas”.
Front matter ou material anteposto desempenha função metalinguística, já
que ressalta como os dicionários foram feitos e os seus usos possíveis. Serve,
portanto, para que os consulentes compreendam como a obra se organiza e como
manuseá-la. Tecnicamente, Pontes (2009, p. 67) destaca elementos que deveriam
constar nesta parte introdutória, são eles: as características da obra; a definição de
critérios adotados pelo lexicógrafo; as indicações de uso, como guia para a consulta
da obra; e a indicação do leitor potencial do dicionário. Dentro desse mesmo
entendimento, elencamos a seguir o que Damin (2005, p. 83) considera como
elemento importante do material anteposto:
(i) Deve explicar para quem é destinado e quais informações o usuário irá
encontrar na obra;
(ii) Deve oferecer um guia de uso que explique como procurar as palavras
utilizando a ordem alfabética;
83
(iii) Deve explicar como o usuário pode entender a organização do artigo
léxico e se movimentar dentro dele;
(iv) Deve informar sobre como as acepções estão ordenadas;
(v) Deve ter informações sobre como entender e utilizar o sistema de
remissão entre as partes do dicionário;
(vi) Deve conter explicações sobre símbolos, ícones e abreviaturas.
84
tais como apêndices e anexos.
Entretanto como podemos notar, o dicionário visual eletrônico não está
organizado dessa forma, a rede megaestrutural está arquitetada a partir do todo
organizacional de informações, tal como as funções do menu. Percebemos que não
há uma preocupação direta do dicionário em explicitar as características técnicas
da obra, as indicações de uso ou definição de critérios adotados pelo lexicógrafo.
Para fazer entender melhor sobre como essas informações são apresentadas,
dispomos a página inicial do dicionário eletrônico.
Fonte: visualdictionaryonline.com
85
que ele se divide em outros quatro links:
(i) Overview (visão geral): Este link nos chama atenção sobre a visão geral
do dicionário. Por exemplo, que o dicionário possui 20.000 termos com
definições contextualizadas e 6.000 imagens coloridas, que é projetado
para quando você sabe como algo é, mas não como é chamado, ou
quando conhece a palavra, mas não consegue visualizar o objeto, o
dicionário visual tem essa resposta. Isso por que a busca por uma
palavra ou termo pode acontecer a partir dos campos temáticos
(Themes), pela busca de uma palavra isolada ou uma busca simples a
partir da imagem (Index), ambos dispostos do lado esquerdo da
imagem.
Fonte: visualdictionaryonline.com
(ii) Behind the visual (Por trás do visual): Neste link o dicionário apresenta a
equipe responsável pela construção do dicionário, desde a criação da
imagem à escolha das terminologias e das definições que passaram por
um sistema de aprovação. Isto mostra que o dicionário seguiu critérios
bem definidos, ele nos diz que:
86
cada noção respectiva. Eles escolheram o termo mais usado e
recomendado pelas agências oficiais.
(c) As definições trazem informações essenciais que não podem ser
vistas ou são apenas sugeridas pela palavra. Como a definição deixa
de fora o óbvio da imagem, as imagens e as definições se
complementam.
Fonte: visualdictionaryonline.com
87
Figura 4: Internacional
Fonte: visualdictionaryonline.com
Fonte: visualdictionaryonline.com
88
Por seu turno, o link cuja denominação é TOOLS (ferramentas), discute
sobre a possibilidade de uso do Dicionário Visual em blogs, redes sociais e outras
atividades. A indicação é que todas as imagens, terminologias e definições podem
ser utilizadas livremente, desde que sem fins lucrativos, contanto que não seja feita
nenhuma modificação na ilustração ou na terminologia.
Figura 6: Ferramentas
Fonte: visualdictionaryonline.com
Fonte: visualdictionaryonline.com
89
Por sua vez, o link APPS direciona o consulente para outro sítio. Nessa nova
página, percebemos que a Merriam-Webster disponibiliza uma nova versão em
formato de aplicativo do Dicionário Visual para dispositivo móvel, com mais de
8.000 imagens de alta definição rotuladas e explicadas por 25.000 palavras em
cinco idiomas que dão nome e descrevem nosso mundo contemporâneo, conforme
podemos observar na imagem a seguir:
Fonte:ikonet.com/en/thevisualplus/
90
apresenta, percebemos que somente um dicionário eletrônico pode disponibilizar
semanalmente jogos multimodais interativos diferentes, que busca fazer aprender
uma língua a partir da relação entre termo e imagem. Acrescentamos, sobretudo, a
possibilidade de comunicação mais rápida entre os consulentes e a equipe do
Merriam-Webster. São facilidade como essas que fazem de um dicionário visual
eletrônico uma ferramenta diferenciada das obras impressas.
Constatamos, portanto, que megaestrutura do dicionário visual eletrônico
online possui uma rede organizacional complexa, diferente em termos estruturais e
informacionais dos dicionários impressos, visto que o eletrônico disponibiliza
certas informações através de abas ou menus em forma de link para acesso das
funcionalidades dentro do próprio dicionário ou encaminha por meio de uma nova
guia de acesso em outro sítio eletrônico.
Considerações finais
REFERÊNCIAS
91
HARTMANN, R. R. K.; JAMES, G. Dictionary of Lexicography. London: Routledge.
1998.
92
O ENSINO DE LITERATURA MEDIADO PELO PROJETO “ESCOLA-CASA DE
LEITORES”
Cássia da SILVA
Antônia Cândido de SOUZA
Maria Lúcia Pessoa SAMPAIO
Introdução
93
Partimos do entendimento de que é nosso dever mediar a literatura fazendo com
que ela seja viva não só no Ensino Médio, mas também em todos os níveis de
ensino e que os alunos junto aos professores procurem fazer a mediação entre casa
e escola, conscientizando, assim, também a família sobre o quanto é importante as
crianças e jovens terem gosto pela leitura, também em casa.
A pesquisa que apresentamos neste capítulo justifica-se relevante devido
às dificuldades encontradas no ensino médio em relação à leitura de obras
literárias que venham a ser primordiais nos vestibulares e que são pouco
trabalhadas nas modalidades de ensino e aprendizagem dos alunos. No entanto, é
de imensa importância salientar que não defendemos um modelo de ensino de
literatura voltado apenas para exames pós ensino médio. Pretendemos, com este
estudo, (re)pensar esse modelo de ensino no qual a literatura é posta em segundo
plano, buscando fazer com que o aluno se torne um cidadão crítico capaz de fazer
suas próprias escolhas e de se impor a determinadas situações no mundo atual que
vivemos. Para isso, adotamos obras que estão no edital da URCA, mas que podem
ser adaptadas, dependendo da faculdade e do vestibular.
Nosso trabalho se encontra dividido, além de uma introdução, na qual
visamos reforçar a leitura mediadora entre escola e família, enfocando
principalmente as obras do vestibular da Universidade Regional do Cariri (URCA)
com objetivo de também levar esse conhecimento para dentro das casas de cada
um dos discentes que desejam passar no processo seletivo de qualquer natureza. A
segunda seção é referente à teoria utilizada no embasamento deste trabalho. Na
terceira seção, tratamos da metodologia escolhida para a realização do estudo aqui
empreendido. Já na quarta seção, nossa atenção volta-se para o projeto “Mala da
Leitura”, inspiração para a criação do nosso, e para as obras literárias que serão
trabalhadas à medida que ele for desenvolvido. A quinta seção é dedicada à
descrição do nosso projeto intitulado “Escola-Casa de Leitores”.
94
Nas salas de aula, os alunos sentam-se em carteira, enfileiradas
uma atrás da outra. O professor posiciona-se, em geral, a frente
dos alunos, dirigindo-se a todos ao mesmo tempo, e em algumas
situações fazem perguntas a alunos em particular e os demais,
quando desejam manifestar-se levantam o braço – sinal de pedir
licença para fazer uso da palavra.
Com isso, percebemos que o modelo de ensino ainda está muito distante
da realidade que vivemos, pois ainda está relacionado com um passado não muito
distante, e para que possamos melhorar, é preciso que nos convertamos a
realidade do mundo que vivemos.
Uma alternativa útil para a dinamização do ensino é a utilização da
tecnologia a favor da aprendizagem escolar, pois a grande maioria dos jovens
possui um aparelho tecnológico com acesso a internet (geralmente um celular),
utilizando-o para se comunicar com outras pessoas via redes sociais, jogar jogos,
fazer downloads de músicas, assistir filmes, séries etc. Por que não utilizar essa
habilidade de manuseamento da tecnologia em favor da escola? Pelandré (2011, p.
31) recomenda:
95
parte de nossa vida e da realidade que vivemos, temos que saber levar para casa o
conhecimento adquirido na escola e saber se situar diante desse conhecimento
tanto na escola quanto em casa.
A leitura literária nos faz viajar e dar mais ênfase em outras leituras
necessárias para passar nos vestibulares e provas que realizamos no decorrer do
nosso ensino. No entanto, Silva (2009, p. 45) ressalta que “a grande ênfase das
leituras de vestibulares, portanto, está no romance e no conto produzidos nos
últimos 80 anos”. Sendo assim, ao observarmos o Ensino Médio, notamos que os
textos que são cobrados pouco têm do que realmente cai nos vestibulares, pois o
que o ensino pede o tempo todo, não somente no Ensino Médio, mas em todo
ensino, é o estudo da gramática tanto em casa quanto na escola deixando, assim, o
estudo literário para depois, o qual se cobra tanto numa prova. Logo, Silva (2009,
p. 47) ainda afirma que “a linguagem literária é sutil: treinar um olhar crítico pela
via e ficção é conhecer mais a fundo a natureza humana, um aprendizado essencial
para cada um de nós”. Isso nos diz que a literatura está dentro de cada um de nós e
só precisamos nos interessar por obras literárias que nos façam pensar
criticamente.
No entanto, para que isso aconteça, é necessário que as escolas e as
famílias também olhem para o ensino literário com bons olhos. Logo, os alunos não
vão para escola apenas para estudar o português, praticamente dito, mas também
pela literatura. Segundo Leite (2006, p. 21), “na Europa, a sociologia da literatura já
vem inventariando, há anos, os usos da literatura na escola, pondo em evidencia a
sua função ideológica e seletiva”. Posto isso, fica claro a importância dada à
literatura em outras escolas de países que não são diferentes do nosso, e ainda nos
primórdios. “No Brasil, esses estudos são ainda muito raros” (ibdem).
É comum os textos literários serem “jogados” no meio da disciplina de
Português, como se não tivesse nenhuma importância para o desenvolvimento
interativo dos alunos. Sendo assim, é meio que obrigação ensinar literatura que,
por sinal, é tão rica em conteúdo, mas que pode se tornar muito pobre se não
aplicada como deveria, tanto no Ensino Fundamental como no Ensino Médio.
Linhares e Lopes (2007 p. 7) nos apontam que, “nas aulas de literatura
geralmente as metodologias aplicadas não permitiam o contato dos alunos com
textos literários, tampouco favoreciam o trabalho de reflexão e interpretação sobre
eles”. Este excerto reforça o que vem sendo dito, sobre o fato de o ensino de leitura
literária ser muito pouco em relação à sua necessidade, fazendo com que os alunos
não desenvolvam a capacidade de interpretação e nem compreensão do que estão
lendo.
Se não houver o incentivo à leitura literária desde cedo é quase que
impossível o despertar desse gosto quando o aluno chega ao Ensino Médio, até
porque vivemos em uma sociedade na qual já é muito difícil estudar e,
considerando a realidade dos alunos, onde muitos têm que conciliar estudo e
trabalho, isso acaba prejudicando, fazendo, assim, a leitura pouca para quem
estuda e trabalha, e muita para quem apenas estuda. Sendo assim, é pertinente
falar novamente em Linhares e Lopes (2010, p. 2), numa leitura que fizeram de
Martins (1993) afirmando que: “a leitura historicamente é concebida como
privilégio de classe no Brasil permitindo o domínio de um setor da sociedade sobre
os demais, porque a leitura é conhecimento e conhecimento é poder”.
Como podemos perceber, o crescimento profissional depende de muito
estudo e bastante leitura não só na escola, mas em todos nossos momentos de
96
convivência familiar. Como diz Brandão e Micheletti (2007, p. 26), “a escola deveria
desde as séries iniciais, encarar a literatura como atividade produtiva no sentido
mais amplo”. Para isso acontecer, é necessário também o apoio dos pais em casa,
fazendo, assim, a mediação entre escola e família.
Ainda segundo as autoras (2007, p. 26), “a literatura integra diversos
prazeres: o da criação, o da ação, o do conhecimento, o do bem-estar interior, o do
lazer - que se condensam na fruição; a escola pode ser séria sem ser sisuda e
enfadonha”. Como podemos perceber, o ensino e assimilação dos conteúdos
podem ser cobrados sim, mas que a literatura seja sentida emocionalmente por
todos que constituem o ensino e aprendizagem de maneira igualitária.
Faz-se necessário formar leitores dentro e fora da escola e fazer como
Lajolo, (apud INFANTE, 1998, p. 63):
97
ser leitores começando a ler, principalmente, o que gostamos. Como acrescenta
Maria (2009, p. 159):
98
111), como “um conjunto de ações determinadas para propósito de investigar,
analisar, e [criticamente] avaliar determinada questão ou problema em dada área
do conhecimento”. Sua estrutura é composta por elementos fundamentais para o
entendimento e organização das ideias, dos dados e dos resultados, mediados por
um denominador comum essencial para o seu desenvolvimento: o método.
Constituindo um ponto importantíssimo para a pesquisa acadêmica, a
metodologia é a parte responsável pelos caminhos trilhados para o alcance dos
objetivos do pesquisador na busca pela obtenção de resultados. Consoante esses
pressupostos, esta pesquisa constitui-se como bibliográfica a qual obtivemos
resultados qualitativos, pois segundo Salvador (1978, p. 10), “a pesquisa feita em
documentos escritos é chamada de pesquisa bibliográfica, quando se utiliza de
fontes, isto é, documentos escritos originais primários”.
Nesse sentido, privilegiamos obras de teóricos que consideramos
propícios ao enriquecimento do nosso trabalho cientifico e que tratam do ensino
de literatura no ambiente escolar e em casa, como Martins (1988), Infante (1998),
Leite (2006) e Silva (2016) que nos ajudaram a enxergar as dificuldades da leitura
em sala de aula. Além desses autores, usamos em nossa metodologia, uma
sondagem em escolas do município de Missão Velha, com o intuito de recolher
informações sobre o projeto “Mala da Leitura”, enleio motivador deste estudo, no
qual adaptamos e acrescentamos novos elementos voltados agora para o Ensino
Médio.
Partindo de uma perspectiva voltada para o Ensino Fundamental (o
Projeto Mala de Leitura), propomos uma abordagem direcionada para o Ensino
Médio, destacando, assim, a transição da leitura nesses anos pré-universitários, da
escola para casa e enfocando as obras em (prosa e poesia) que as universidades
propõem para o vestibular, em específico, da URCA.
Já avançados no desenvolvimento deste estudo, faz-se necessário situar
nossos possíveis leitores acerca do que está por vir. As páginas seguintes são
dedicadas à apresentação do projeto “Mala da Leitura” e da análise das respostas
dadas ao questionário aplicado à professora X. Em seguida, há um breve resumo
das oito obras escolhidas para serem estudadas no projeto “Escola-Casa de
Leitores” a ser especificado num capítulo adiante, sendo as mesmas indicadas pela
URCA. Em seguida, nossas últimas considerações sobre o percurso realizado até
aqui.
99
fato de a Universidade indicar livros tanto em prosa como em poesia, o que mostra
um avanço, considerando a afirmação de Silva (2009) que ressalta que ênfase dada
ao romance e ao conto, presente no capítulo teórico deste trabalho. O quadro de
indicações é composto por oito obras, sendo cinco em prosa e três em poesia, cujas
temáticas variam desde uma relação homoafetiva, passando pelo desejo patriota
de instauração de uma cultura como a oficial de um país, até a poética de um autor
cujo lirismo o transformou no maior poeta português de todos os tempos.
O primeiro romance indicado é a Cidade e as Serras, do escritor português
Eça de Queiroz. Brevemente, a narrativa trata da vida no campo e na cidade
através do personagem Jacinto de Tormes, que sai do campo para viver em meio à
civilização de Paris. O narrador da história é José Fernandes, que descreve Jacinto
como um homem muito rico que passou por estranhas transformações à medida
que foi se civilizando. As mudanças são tamanhas que com o passar do tempo seu
comportamento é associado ao de um louco em um mundo totalmente diferente do
mundo dos humanos em sua expectativa de vida. O romance termina com as
consequências da chegada de Jacinto à Tormes, onde se encantou com a beleza do
lugar e logo casou-se, encontrando a felicidade em uma vida simples, diferente da
que tinha em Paris.
Big Jato, do cratense Xico Sá, é uma obra construída pelo viés da memória
através de suas próprias lembranças de barulhos ouvidos na região do Cariri. A
vida real tornou-se ficção numa representação da vida no sertão nordestino,
precisamente no Crato, sua cidade natal. O enredo gira em torno da trajetória de
um menino, um velho, de um beatlemaníaco e de um caminhão limpa-fossa, do
qual saiu o título da obra “Big Jato”. Através dele, visualizamos a difícil história de
Xico Sá e de sua família que sobrevivia graças a profissão de seu pai como
motorista de um caminhão de limpa-fossa.
Bom Crioulo, de Adolfo Caminha, é uma obra cujo enredo desenvolve-se a
partir de uma relação homoafetiva entre dois homens, tendo como personagens
centrais Amaro, Aleixo e dona Carolina. Aos poucos, se forma um triângulo
amoroso, pois Amaro, um escravo negro, se apaixona por Aleixo, um homem loiro
de olhos azuis. Depois de Amaro se envolver numa confusão no navio que ele
trabalhava para defender Aleixo, os dois passam a se encontrar num quarto
alugado por dona Carolina, que era prostituta. Passado algum tempo, Amaro foi
transferido do navio e os desencontros começaram, deixando o caminho livre para
Carolina seduzir Aleixo e deixá-lo apaixonado. Amaro desconfia da traição, no
entanto, pensa ser com outro homem e, por conta de tanto sofrimento, ele entra
em outra briga no navio, logo é castigado a 150 chibatadas e foi hospitalizado,
Amaro manda recado para Aleixo ir lhe visitar, mas ele não vai então Amaro foge
do hospital que está internado e descobre a traição de Aleixo com dona Carolina,
ele fica indignado e o mata a navalhada.
Em Os Papéis do Inglês, o escritor português Ruy Duarte de carvalho
escreve um romance de ganância, violência e paixão, que tem como personagem
principal um professor, que investiga a morte de um caçador de elefantes na África.
Esse próprio caçador mata um amigo de profissão, mas se entrega as autoridades
portuguesas, que por sinal, não lhe dão ouvidos, deixando-o, assim, livre para sair
atirando em tudo que vir pela frente no acampamento, e em seguida, termina por
atirar em seu próprio peito.
Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, é um clássico da
literatura brasileira, publicado primeiramente, em folhetins e que retrata o mundo
100
político em um momento histórico da história brasileira, tendo como foco principal
a inconformidade de um major chamado Policarpo Quaresma, em ver seu país
seguindo modelos portugueses políticos e culturais. Em suma, o personagem
pretende valorizar a cultura do Brasil, lutando contra políticos que desvalorizam a
verdadeira cultura brasileira. Policarpo é tido como louco ao exagerar no seu
desejo em abrasileirar a sociedade em que vivia, começando pelo Rio de Janeiro,
para, em seguida, abranger todo o país, fracassando nesse percurso.
Não só de prosa faz-se o vestibular da URCA. Aqui, falamos também da
Poesia representada por obras como O ferrolho do abismo, de Geraldo Urano. O
poeta nascido em Crato-CE, em 10 de julho de 1953, foi grande participante dos
festivais regionais da Canção e grande escritor da geração mimeógrafo. Produziu
dois livros solos. Em um deles, ele reúne suas poesias por completa. Sua poesia é
inspirada na própria vida dos moradores de Crato, pincelada em recordações de
suas andanças pelas raízes culturais de sua terra.
Em Romanceiro da inconfidência, publicada originalmente em 1953, Cecília
Meireles transcreve para a poesia notas líricas sobre um importante
acontecimento histórico brasileiro: a Inconfidência Mineira. Esse livro, apesar de
publicado em 1953 foi escrito em 1940, resultado das andanças de sua autora por
Vila Rica e, inicialmente, sob outra pretensão de escrita. A atmosfera da cidade fez
com que Cecília, diante dos conflitos políticos que ali efervesciam, buscasse
inspiração nas verdadeiras histórias e lendas da população daquela cidade, hoje,
Ouro Preto, para construir uma lírica com densos tons políticos em uma revolta
marcada, principalmente, pelo enforcamento de Francisco José da Silva Xavier, o
famoso Tiradentes.
Por fim, mas não menos importante, temos Sonetos, de Luís de Camões, o
maior poeta português de todos os tempos. Fonte inesgotável de inspiração bebida
por escritores do passado, do presente e, certamente, do futuro, esse poeta
português é conhecido, principalmente, por seu clássico da literatura “Os lusíadas”.
No entanto, outros escritos de Camões merecem destaque, a saber, seus sonetos,
aqui representados pelo (talvez) mais conhecido deles “O amor é fogo que arde
sem se ver”. Através dele pode ser percebida a transcendência temporal de sua
escrita, quando esta perpassa as linhas do tempo, passando pela canção do grupo
musical brasileiro Legião Urbana e chegando a atualidade, adentrando o espaço
musical do sertanejo universitário. Com isso, fica visível o quão o estudo dessas
obras, no Ensino Médio, e cobrado no vestibular de uma Universidade que vem se
destacando a cada dia no meio acadêmico, pode contribuir para debates sobre
temas diversos, discutidos a partir da literatura. Decorridas as considerações feitas
até aqui, passamos, agora, a discutir mais especificamente os pontos contemplados
na proposta do nosso projeto.
101
Os textos literários são ricos em conteúdo que não merecem ficar
guardados em uma biblioteca. Eles foram/são escritos para serem lidos e
trabalhados dentro da escola para, a partir dela, expandir-se para fora de seus
muros, através da mediação feita pelos professores entre a família e esta
instituição de ensino. Dessa forma, reafirmamos que buscamos através deste
estudo, conscientizar a todos que a ele tiverem acesso sobre a importância de se
incentivar a leitura literária como forma de contribuir para produção crítica do
pensamento humano e do mundo, por intermédio da literatura, focada nos exames
aplicados pelas universidades em seus vestibulares. Apresentamos, portanto, o
projeto “Escola-Casa de Leitores”.
Como “ponta pé inicial”, para a idealização deste projeto de leitura,
destacamos as qualidades e dificuldades que os alunos da rede pública e da rede
privada enfrentam em relação à leitura, com enfoque nos primeiros. Partimos do
entendimento de que o ensino privado, na escola em que aplicamos o questionário
de pesquisa citado anteriormente, tem uma boa base de leitura e desenvolve, em
parceria com as famílias dos alunos, projetos que visam à formação de leitores. No
entanto, vale ressaltar que o ensino público também possui boas escolas e bons
professores que podem desenvolver projetos desta mesma natureza, se tiverem as
ferramentas e o apoio necessário.
Ressaltamos ainda que, apesar de ser mais difícil, considerando as
dificuldades enfrentadas pelas famílias dos alunos da rede pública, também é
possível fazer a mediação entre pais, alunos e professores, fazendo da literatura a
ponte de ligação entre casa e escola, nestas instituições públicas.
O projeto “Escola-Casa de Leitores” é uma proposta que busca desenvolver
a leitura literária dentro e fora da escola enfocando, principalmente, alunos que
estão cursando o terceiro ano do Ensino Médio. Sabemos que nestas turmas é
comum o estudo da literatura voltado quase que exclusivamente para o ENEM.
Dessa forma, direcionamos nossa atenção para outros exames (os vestibulares),
especificamente o da URCA. O objetivo do projeto é incentivar a leitura de obras
literárias indicadas para a realização dos vestibulares com metodologias que
envolvam o aluno e o motive a querer ler tais obras não por obrigação, mas por
prazer.
“Escola-Casa de Leitores” divide-se em quatro etapas a serem
desenvolvidas durante o ano escolar, em conformidade com os bimestres que
regem o calendário de atividades anuais da escola. Optamos por esta divisão
acreditando que, desta forma, todas as obras podem ser trabalhadas aprimorando
o desenvolvimento do aluno de maneira mais ampla e eficaz, já que eles estão
próximos de prestarem um vestibular. Além disso, temos a esperança de causar
algum tipo de mudança na vida dos alunos, já que a literatura tem o poder de
humanização do homem (CANDIDO, 2011).
Dessa forma, trabalharemos com duas obras em cada bimestre uma em
prosa e outra em poesia, no 1°, 2º e 3º, e duas em prosa, no 4º bimestre. No
primeiro bimestre, a obra em prosa é A cidade e as serras (Eça de Queiroz), da qual
se podem tirar características do mundo civilizado e da vida simples que o homem
pode ter sem tanta globalização. A poesia fica por conta de Ferrolho do abismo
(Geraldo Urano) valorizando, assim, o grande escritor da terra local Crato-CE,
cenário escolhido por Geraldo Urano em suas poesias.
Daremos continuidade a nossa sequência de aplicação das obras,
102
abordando, já no segundo bimestre, a obra Big Jato (Xico Sá), autor também da
cidade do Crato-CE, que é também onde fica a sede central da URCA. Para darmos
andamento, ainda no segundo bimestre, utilizaremos a poesia presente em
Romanceiro da Inconfidência (Cecília Meireles), tratando dos fatos históricos do
Brasil através da literatura.
No terceiro bimestre, a prosa a ser trabalhada com os alunos é Bom crioulo
(Adolfo Caminha), através da qual abordaremos o grande triângulo amoroso entre
Amaro, Aleixo e dona Carolina. E, para dar leveza ao trabalho de leitura, por vezes
enfadonho, devido à extensão dos romances, trabalharemos também com os
Sonetos (Luís de Camões), autor de obras literárias que serviram de exemplos para
outros escritores.
Por fim, no 4º bimestre, todas as atividades estarão relacionadas a dois
romances, pois, segundo o quadro de indicações das obras do vestibular da URCA,
há um número maior de obras em prosa. Assim, restam Os papéis do inglês (Rui
Duarte de Carvalho), história de um professor que investiga a morte de um caçador
de elefantes, e Triste fim de Policarpo Quaresma (Lima Barreto), na figura do
visionário Policarpo e seu desejo de resgatar a cultura brasileira.
Seguindo essa ordem cronológica de estudo e considerando a diversidade
de temas presente nestas indicações, serão desenvolvidas ações dentro da escola,
em que serão explorados todos os ambientes, principalmente a biblioteca, em
consonância com a feitura de atividades em casa, onde serão estimuladas
pesquisas e a confecção de materiais, ambos mediados pela leitura individual e
coletiva dessas literaturas. Resumir os elementos básicos de uma obra pode
induzir os leitores a buscarem lê-la, por isso, é importante saber indicar algo, no
nosso caso um livro, que já conhecemos e gostamos, para despertar o interesse de
outras pessoas a também conhecê-los. Dessa forma, Silva (2016, p. 30) afirma:
103
instiguem a participação dos discentes e contribuam para o entendimento dos
textos selecionados, refletindo em possíveis resultados que, esperados, sejam
satisfatórios. Essa dinamização do ensino-aprendizagem é também uma maneira
de fugir do tradicionalismo do ensino abordado por Pelandré (2011), no qual a sala
de aula é regida por normas que padronizam o comportamento de todos os
presentes neste espaço de conhecimento.
104
tecnologia na aplicação desse projeto, colocaremos em prática a orientação de Silva
(2003) quando aponta a necessidade de incorporar as ferramentas tecnológicas ao
ensino/estudo como meio de acesso ao conhecimento, pois, juntando a ideia da
autora com a de outro pesquisador, reconhecemos que: “Assim, como a nossa
cultura está ligada aos feitios digitais, entendemos que não poderíamos mais
pensar na aprendizagem dos estudantes sem inseri-los em um contexto real de
ensino” (BEZERRA, 2016, p. 59).
Na segunda etapa do projeto, aquela que tem como foco o estudo das
obras Big jato e Romanceiro da inconfidência, os pontos a serem destacados
referem-se, tanto a aspectos sociais, como históricos. A partir do texto literário,
discutiremos as desigualdades sociais existentes na sociedade brasileira
conscientizando os alunos a se posicionarem criticamente diante dessa situação.
Sabemos que existem diferenças entre as famílias, principalmente em relação à
renda, pois poucos ganham muito dinheiro e uma maioria gigantesca não ganha
nem o suficiente para o seu sustento.
Esse entendimento pode ser o ponto de partida para relevantes discussões
e também uma forma de elevar a autoestima de alguns alunos, pois é comum os
alunos se sentirem envergonhados por conta de sua condição humilde, diante de
outros alunos que demonstram ter boas condições financeiras. Também é uma
forma de valorizar a cultura da nossa terra, por meio de autores da própria região,
chamando a atenção dos discentes para os escritores locais.
A terceira etapa consiste no estudo do romance Bom crioulo e dos Sonetos
de Luís Vaz de Camões. A mescla entre essas duas importantes obras das
literaturas brasileira e portuguesa é importante para o entendimento de dois
movimentos literários, a saber, o Classicismo e o Realismo-Naturalismo. Portanto,
ao estudarmos a lírica de Camões, revisaremos as características da poesia clássica
para um melhor entendimento. Também será necessário apontarmos as principais
características do Realismo-Naturalismo.
Além disso, pelo tema presente no cerne dessas obras, provocaremos
debates acerca de um delicado assunto e muito presente em nossa sociedade: a
homossexualidade. Em Bom crioulo, presenciamos as aventuras e desventuras de
uma relação homoafetiva marcada por um assassinato. A partir dessa obra,
trabalharemos a homofobia, deficiência social que maltrata física e
psicologicamente homens e mulheres, pelo fato de se relacionarem com pessoas do
mesmo sexo.
É interessante para o estudo de uma obra literária, incitar o desejo dos
alunos por lê-la. Assim, iniciarmos as atividades com algo que os motivem a querer
se aprofundar nessa leitura. Esse momento inicial provou ser bastante proveitoso,
cumprindo, assim, sua principal função: motivar o aluno. Segundo Cosson (2014, p.
28):
Considerações finais
106
aprendizagem do aluno, transpondo-o para o ensino médio, buscando, com isso,
tentar suprir as necessidades que os discentes têm em relação à leitura. Se ao
colocarmos em prática o projeto “Escola-Casa de Leitores” e com ele influenciar
positivamente no desempenho escolar e na leitura de textos literários, estamos
satisfeitas. É essencial formar pensadores críticos, buscando aprimorar sempre o
seu conhecimento de mundo através de leituras que os façam pensar e ver o
mundo diante de obras que enriqueçam sua personalidade. Dessa forma, deixamos
aqui a nossa contribuição para formação de alunos leitores.
REFERÊNCIAS
CHIAPPINI, Ligia. Aprender e Ensinar com Textos. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2007.
v. 2.
COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2014.
GERALDI, João Wanderley. O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 2006.
INFANTE, Ulisses. Do texto ao texto: curso prático de leitura e redação. São Paulo:
Scipione, 1998.
MARIA, Luzia de. O clube do livro: ser leitor – que diferença faz? São Paulo: Globo,
2009.
MARTINS, Helena Martins. O que é leitura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1998.
107
MOTA, Roth Desirée; HEDGES, Graciela Rabusk. Produção textual na
universidade. São Paulo: Parábola Editorial, 2010.
SILVA, Vera Maria Tietzmann. Leitura Literária & outras leituras: impasses e
alternativas no trabalho do professor. Belo Horizonte: RHJ, 2009.
108
Anexo
“ESCOLA-CASA DE LEITORES”
CRONOGRAMA DE ATIVIDADES
SALA CASA
1º Bimestre • Leitura das obras A cidade e as • Leitura das obras A cidade e as
serras (Eça de Queiroz) e O ferrolho do serras (Eça de Queiroz) e O ferrolho do
abismo (Geraldo Azevedo. abismo (Geraldo Azevedo.
• Debates sobre as duas obras e as • Pesquisa sobre a vida e obra dos
características do gênero romance e poesia. autores e sua importância nas literaturas
• Realização de um leilão literário brasileira e portuguesa.
com a resolução de algumas questões de • Preparação para as apresentações
vestibular relacionadas às duas obras. de trabalho.
2º Bimestre • Introdução ao estudo das obras Big • Leitura das obras Bom Crioulo
Jato (Xico Sá) e Romanceiro da Inconfidência (Adolfo Caminha) e Romanceiro da
(Cecília Meireles). Inconfidência (Cecília Meireles).
• Roda de conversa sobre os artistas • Confecção de cartazes relacionados
(poetas, escritores, cantores, etc.) aos dois temas debatidos, pensando em
nordestinos e da região do Cariri. alguma contribuição para a sociedade.
• Roda de conversa sobre a • Produção de um texto/resumo
Inconfidência Mineira e seus impactos na descrevendo os principais elementos
história do Brasil, bem como sua influência contidos nas obras.
na literatura. • Resolução de questões sobre os
livros estudados.
3º Bimestre • Continuação do projeto com os • Leitura das obras Bom crioulo
primeiros diálogos sobre Bom crioulo (Adolfo Caminha) e Sonetos (Camões).
(Adolfo Caminha) e Sonetos (Camões) • Pesquisa sobre outras obras
• Debate sobre o tema literárias que tratam do preconceito nas
homossexualidade, exibição do curta- várias formas que ele se apresenta na
metragem Hoje eu não quero voltar pra casa sociedade.
sozinho, discussão sobre a homofobia. • Ensaios para o recital de poemas
• Reprodução da música “Monde com os sonetos de Camões a ser realizado
castelo” (Legião Urbana) e “Impressionando em um espaço da escola onde seja possível
os anjos” (Gustavo Mioto), cantadas por um convidar outros alunos e professores para
convidado. participar.
• Realização de um recital de poemas
com os sonetos de Camões.
4º Bimestre • Estudo dos romances Os papéis do • Leitura das obras Os papéis do
inglês (Ruy Duarte de Carvalho) e Triste fim inglês (Ruy Duarte de Carvalho) e Triste fim
de Policarpo Quaresma (Lima Barreto). de Policarpo Quaresma (Lima Barreto).
• Exibição do primeiro episódio da • Assistir em grupo os outros
série Thirteen Reasons Why, em que o tema episódios da série.
do suicídio, também presente no livro de • Produção de uma redação sobre a
Ruy Duarte é o principal assunto. fala do psicólogo convidado para debater
• Roda de conversa sobre o suicídio sobre o suicídio relacionando com a obra de
na adolescência com um psicólogo Ruy Duarte e a série Thirteen Reasons Why.
convidado. • Pesquisa sobre vida e obra de Lima
• Leitura de um artigo científico Barreto.
sobre a obra Triste fim Policarpo Quaresma • Resolução de questões de
para que os alunos conheçam a estrutura vestibulares.
dos trabalhos que terão de fazer ao
entrarem na Universidade, bem como uma
análise mais aprofundada desta obra.
• Encerramento do projeto.
109
O METADISCURSO INTERACIONAL EM ARTIGOS CIENTÍFICOS DA ÁREA DE
ECONOMIA
Introdução
110
seus estudos mais recentes (HYLAND; TSE, 2004; HYLAND, 2017; HYLAND; JIANG,
2018).
Hyland (2005) parte de uma concepção de linguagem como interação e
não apenas como troca de informações. Para o autor, nos diversos propósitos com
os quais fazemos uso da linguagem (persuadir, informar, entreter, engajar-se com
a audiência etc.), transmitimos uma atitude em relação ao que é dito e ao nosso
leitor ou ouvinte. Nesse sentido, a linguagem veicula, ao mesmo tempo, um
conteúdo proposicional (informações), mas também aspectos que se referem à
própria interação (dimensão interpessoal), atinentes à maneira como a informação
é organizada discursivamente e à relação a ser estabelecida entre o locutor e sua
audiência.
Dessa concepção deriva sua visão da fala e da escrita como engajamento
social e comunicativo entre interlocutores (HYLAND, 2005; HYLAND; TSE, 2004).
Trata-se, então, de formas de relação social, de construção e negociação de
sentidos, a partir das quais o locutor promove interação com seu destinatário por
meio do texto, procurando projetar uma imagem de si e do outro com o uso de
recursos linguísticos que melhor cumpram essa função.
Esses recursos linguísticos de natureza interpessoal utilizados pelo autor
para referir-se ao conteúdo proposicional do texto, organizando o discurso, a si
próprio, marcando seu posicionamento, e ao leitor/ouvinte, para guiar sua
interpretação, são chamados de metadiscurso. Nas palavras de Hyland (2017, p.
17, tradução nossa):
111
negociação que envolve os conhecimentos do leitor/ouvinte, suas experiências
com textos e necessidades de interpretação, a serem levados em conta pelo autor
(como exemplo, cita as conjunções, recursos textuais que são interacionalmente
motivados a fim de guiar a interpretação do leitor sobre o texto). O terceiro
princípio diz que o metadiscurso se refere a relações que são construídas
discursivamente, na organização e no funcionamento da linguagem, ao passo que o
conteúdo proposicional alude a elementos externos, da organização dos eventos do
mundo.
Ao realçar o aspecto interacional em detrimento de critérios puramente
linguísticos, Hyland (2005) propôs um modelo2 que ele denomina de interpessoal,
a compreender duas dimensões: a interativa e a interacional. A primeira concerne
à organização do conteúdo proposicional para o leitor/ouvinte, ordenando e
relacionando o material linguístico, a fim de dar coerência e convencimento ao
texto e orientar sua interpretação. A segunda diz respeito, mais especificamente, à
condução da interação entre os interlocutores, explicitando a visão e os
julgamentos do autor e envolvendo e engajando o leitor. O quadro a seguir
apresenta cada uma dessas dimensões, com seus respectivos recursos
metadiscursivos:
112
etc., entre as ideias do texto; os marcadores estruturais sinalizam fronteiras
textuais ou elementos da estrutura esquemática do texto, sequenciando suas
partes e indicando a ordenação dos argumentos, dos estágios, dos objetivos e da
mudança de tópico; os marcadores endofóricos remetem a informações de outras
partes do texto; os evidenciais indicam, na forma de citações, fontes de
informações presentes no texto, marcando as posições de outras pessoas; e os
códigos glossais oferecem informações adicionais (paráfrases), explicando ao leitor
o que foi dito.
Na dimensão interacional, os atenuadores indicam a avaliação do autor
sobre ponto(s) de vista do texto, mas com certo grau de incerteza e de imprecisão;
os intensificadores também indicam uma avaliação sobre o conteúdo
proposicional, mas com certeza e ênfase; os marcadores de atitude expressam
atitude subjetiva ou afetiva do autor em relação ao conteúdo proposicional, como
surpresa, concordância, obrigação, importância etc.; as automenções indicam o
grau de explicitação do autor no texto; e os marcadores de engajamento
direcionam-se ao leitor/ouvinte, para focalizar sua atenção e incluí-lo no texto.
Ao estudar os usos e funções do metadiscurso, Hyland (2005, 2017),
Hyland e Tse (2004) e Hyland e Jiang (2018) têm privilegiado os textos
acadêmicos, neles enfatizando a relação desse fenômeno com aspectos como
propósito comunicativo, gêneros de texto, comunidades discursivas, registros,
culturas e idiomas. Em nosso trabalho, ao analisarmos elementos metadiscursivos
em artigos científicos da área de Economia, destacamos a relação com o conceito
de cultura disciplinar de uma determinada comunidade discursiva.
Segundo Hyland (2005, p. 58), o metadiscurso está relacionado a práticas
de uma comunidade, seus valores e ideias, haja vista que constitui o modo como o
autor percebe e interpreta a comunidade e os participantes com os quais interage,
ao utilizar os recursos discursivos mais adequados a eles, definindo, assim, certos
padrões. Essas práticas, valores e ideias de uma determinada comunidade
acadêmica ou profissional constituem sua cultura disciplinar.
Para Hyland (2004), as práticas de escrita de uma determinada disciplina
(como Economia) são situadas. Isso significa que cada disciplina (re)produz e
veicula, através dos textos, normas, atitudes, concepções e valores que definem sua
cultura, a identidade dos membros que dela fazem parte. Nesse sentido,
depreender características dessas práticas linguageiras, como as marcas
metadiscursivas, permite-nos vislumbrar algumas peculiaridades de dada cultura.
Nas palavras de Hyland e Tse (2004, p. 175, tradução nossa):
113
Desse modo, o uso de recursos como o metadiscurso nas práticas
linguageiras depende de fatores contextuais, que definem o modo como o autor
marca sua presença e sua posição no texto, tenta predizer certas expectativas da
audiência e negocia com ela o sentido do que se diz, mediante a organização do
conteúdo proposicional. Esses elementos, por sua vez, podem fornecer-nos
indícios de aspectos da cultura disciplinar de uma comunidade, como a Economia.
A seguir, apresentaremos os procedimentos de coleta e de análise dos
dados utilizados para tal finalidade.
114
associados à delimitação do tema, com vistas a obter os resultados almejados com
a investigação.
O corpus se constitui de 60 artigos científicos coletados, entre 2013 e
2016, na “Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política” (B2 na área de
Economia de acordo com a classificação Qualis-Capes 2013-2016). A escolha dos
textos se deu em função do objetivo da pesquisa de estudar o metadiscurso
interacional na linguagem especializada da Economia.
Para a seleção dos termos que compõem o metadiscurso interacional,
utilizamos a ferramenta Concordance do software computacional da LC, o Antconc
versão 3.2.3w3. Essa ferramenta nos permite extrair termos, palavras e expressões,
sua frequência de uso e emprego nos artigos. Os termos, palavras e expressões das
categorias do metadiscurso interacional que procuramos e encontramos foram os
seguintes:
Quadro 2 – Itens lexicais pesquisados e encontrados nos artigos por meio do software
Antconc
Categoria Itens lexicais
Atenuadores talvez, provavelmente, possivelmente, (é) possível, é provável, poder
(possibilidade), dever (possibilidade), porventura, aproximadamente, às vezes,
ocasionalmente, parecer, quase, sugerir, usualmente
Intensificadores de fato, é certo, certamente, decerto, indubitavelmente, sem dúvida,
inquestionavelmente, é inquestionável, está claro que, definitivamente, é fato,
não há dúvida, com certeza, claramente, é claro, não é possível, não poder,
necessariamente, obviamente, perfeitamente, realmente, sempre
Marcadores de (in)felizmente, (eu/nós) concord-, surpreendentemente, minha/nossa opinião,
atitude (eu/nós) acredit-, (eu/nós) ressalt-, enorme, extraordinár-,
extraordinariamente, fantástic-, fundamental(is), grande(s), importante(s),
precis-, significativ-
Automenções eu, mim, me, nós, nos, meu(s), minha(s), nosso(s), nossa(s), -mos
Marcadores de considere(-se), veja(-se), observe(-se), note(-se), você, -mos, nós, nos, nossa(s),
engajamento nosso(s), dever (obrigação), é importante, é preciso, ter que
Fonte: Elaborado pelos autores.
115
Tabela 1 – Funções do metadiscurso interacional em artigos científicos da área de Economia
Categoria Número de itens Por 10.000 palavras % do total
Atenuadores 2.211 39,23 26,34
Automenções 1.678 29,77 19,91
Intensificadores 1.219 21,63 14,46
Marcadores de atitude 1.389 24,64 16,48
Marcadores de engajamento 1.930 34,24 22,9
TOTAL 8.427 149,51 100
Fonte: Elaborado pelos autores
116
Exemplo 1
“Tal elevação poderia desencadear uma valorização da moeda doméstica frente às moedas
estrangeiras, afetando os setores produtivos locais, risco conhecido na literatura como doença
holandesa.” (RIBEIRO, 2014, p. 46, grifo nosso)
“É possível pensar neste estágio do debate como um período intermediário entre duas fases de
polarização teórica forte.” (ANDRADE; MARQUES, 2013, p. 25, grifo nosso)
“Esta é uma das razões, talvez a principal razão, pelas quais Magdoff e Foster acham que a
participação da classe trabalhadora nos salários caiu vertiginosamente” (KLIMAN, 2014, p. 50, grifo
nosso).
Exemplo 2
“A SPVEA, criada em janeiro de 1953, foi instalada em Belém em 21 de setembro deste ano,
aprovando-se seu regimento interno um mês depois – veja o largo espaço temporal entre a sua
criação em lei e a sua efetivação.” (MARQUES, 2013, p. 171, grifo nosso)
“[A propriedade privada] Deve, assim, ser entendida como um resultado da atividade alienada, e
não a sua causa.” (CARDOSO; PINTO, 2016, p. 14, grifo nosso)
“Note-se agora, passando para o momento seguinte, que Marx tem por verdade a seguinte
afirmação: conquanto nem toda mercadoria seja dinheiro, é certo que o dinheiro é mercadoria, mas
propriamente uma mercadoria sui generis” (PRADO, 2013, p. 133, grifo nosso).
117
Exemplo 3
“Muitos teóricos consideram uma diferença entre os termos alienação e estranhamento tal com
utilizados por Marx. Nós, no entanto, nos posicionamos ao lado daqueles que utilizam ambos
como sinônimos.” (FRANKLIN; MOURA, 2015, p. 35, grifo nosso)
“Do nosso ponto de vista, a não consideração desse modo de exposição é o que dificulta a
compreensão da construção dialética da teoria da superexploração no Livro I de O capital.”
(NASCIMENTO; DILLENBURG; SOBRAL, 2015, p. 107, grifo nosso).
“Como a questão central aqui é o que causou a Grande Recessão, eu vou limitar minha explicação
para os dados até o ano de 2007, quando, ao seu final, a recessão entrou em erupção” (KLIMAN,
2014, p. 40, grifo nosso).
Exemplo 4
“É importante destacar que a interpretação dos conflitos representava, para os pesquisadores, um
esforço para articulá-los com as macro-transformações em curso na sociedade brasileira.”
(MASSUQUETTI, 2015, p. 85, grifo nosso)
“Como ressaltamos anteriormente, a base da alienação do trabalho no capitalismo nasce da criação
de uma classe de trabalhadores despossuídos.” (FRANKLIN; MOURA, 2015, p.30, grifo nosso)
“Eu acredito que o futuro vai aprender mais com o espírito de Gesell do que com o de Marx” (YUKI,
2015, p. 136, grifo nosso).
118
Exemplo 5
“É a essa camada que, de fato, o discurso trabalhista se dirige, qual seja, trabalhadores urbanos,
sobretudo os não-formalizados.” (VARASCHIN, 2016, p. 142, grifo nosso)
“De acordo com a concepção do materialismo histórico de Marx, o capitalismo, enquanto modo de
produção historicamente localizado, chegará necessariamente a um fim.” ((FRANKLIN; MOURA,
2015, p. 27, grifo nosso)
“Certamente o discurso marxiano pressupõe que o sujeito do processo histórico é “o homem” e que
o predicado exprima simplesmente distintas formações sócio-históricas” (ANDRADE; MARQUES,
2013, p. 25, grifo nosso).
Conclusão
119
disciplina cujos artigos analisamos.
Para finalizar, deixamos claro, em primeiro lugar, a limitação do nosso
corpus quanto ao volume textual. Em segundo, a possibilidade de outras reflexões
que podem ser levantadas a respeito do metadiscurso na área de Economia, seja
focalizando a categoria interativa (ou ambas, comparativamente), seja
considerando diferentes subáreas (que não foram discriminadas neste trabalho),
comparando-as. Como vemos, os estudos do metadiscurso em textos acadêmicos
dessa e de outras áreas de conhecimento apresentam como campo fértil de
possibilidades.
REFERÊNCIAS
120
HYLAND, K. Metadiscourse: What is it and where is it going?. Journal Of
Pragmatics, [s.l.], v. 113, p. 16-29, maio 2017. Disponível em: https://ac.els-
cdn.com/S0378216616306245/1s2.0S0378216616306245main.pdf?_tid=b9c0fa1
af53349119575bcea7e6164e&acdnat=1530062555_2cfd7676e0fa9ddc8eec384ad
43bb131. Acesso em: 7 maio 2018.
HYLAND, K.; JIANG, F. (K.). “In this paper we suggest”: Changing patterns of
disciplinary metadiscourse. English For Specific Purposes, [s.l.], v. 51, p. 18-30,
jul. 2018. Disponível em: https://ac.els-cdn.com/S0889490616302058/1-s2.0-
S0889490616302058main.pdf?_tid=0364a67ae4df443eb3bf4ba217c5824a&acdn
at=1530061785_b410237c06a8a95ff62a05506b9d1fd5. Acesso em: 29 maio 2018.
121
especializados turísticos: los matizadores discursivos y la pronominalización
en alemán y español. 2006. p. 1-15. Comunicação apresentada no Congresso
ALED de Análise do Discurso. Valparaíso, Chile. 2006. Disponível em:
http://roderic.uv.es/bitstream/handle/10550/31097/labarta_suau_aled_2006.pdf
?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 15 abr. 2018.
Referências do Corpus
122
SOBRE OS ORGANIZADORES
123
SOBRE OS AUTORES
Cássia da Silva
Doutoranda do PPGL/Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN. Pau
dos Ferros – RN.
E-mail: cassia_silv@hotmail.com.
124
Cláudia Rejanne Pinheiro Grangeiro
Doutora em Linguística e Língua Portuguesa pela Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho” e com pós-doutorado em Linguística pela Universidade
Federal do Ceará; professora-adjunta de Língua Portuguesa do Departamento de
Línguas e Literaturas da Universidade Regional do Cariri.
E-mail: claudiarejannep@yahoo.com.
125
Maria do Socorro Maia Fernandes Barbosa
Doutora em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. Natal – RN. Professora da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.
Pau dos Ferros, RN.
E-mail: socorromaia@uern.br.
Marcos de França
Doutor em Linguística pela Universidade Federal da Paraíba, professor-assistente
de Língua Portuguesa do Departamento de Línguas e Literaturas da Universidade
Regional do Cariri; pós-doutorando em Linguística Aplicada pela Universidade
Federal do Ceará.
E-mail: santanadefrança@yahoo.com.br.
126
Coleção TECLIN - Tecnologias, Culturas e Linguagens
1. Velhas práticas em novos suportes? As Tecnologias Digitais como mediadoras do
complexo processo de ensino-aprendizagem de línguas - Fábio Marques de Souza &
Geyza de Freitas Santos.
mentesabertas.com.br
contato@mentesabertas.com.br
MentesAbertas.Com.Br
Mentesabertas2019
127