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Formação para Atendentes de Biblioteca

Prof. Dr. Cleber Fabiano


Tema: Cultura: textos e contextos
Encontro 1: 21 de março de 2023

OS PÉS DO PATRÃOZINHO

Almerinda começou a lavar os pés de Júlio logo depois que ele começou a andar. Era um menino
ativo, corria descalço pelo jardim - o que a mãe, senhora fina mas de ideias modernas até achava bom - mas
não poderia, evidentemente, ir para a cama de pés sujos:
- Almerinda, faz o favor de lavar os pés de Julinho.
Almerinda entrava com uma bacia de água, sabonete e toalha, pedia que o menino sentasse - ao
que ele acedia, pois era travesso, mas de bom gênio - lavava-lhe cuidadosamente os pés. Nessa época,
Julinho com quase dois anos, Almerinda teria uns vinte e cinco ou trinta (a idade dela, uma incógnita, não
tinha sido registrada, não era costume, na localidade do interior onde nascera; mas era costume trabalhar e
obedecer, e por isso Almerinda estava há anos no emprego. Lavara os pés da irmã mais velha de Julio -
não, ele não era filho único - até que a menina, crescida, começou a se banhar sozinha).
A partir de certa época Almerinda passou a lavar os pés de Julio mesmo sem a patroa mandar.
Tornou-se hábito: ao crepúsculo, Julio entrava em casa, sentava na poltrona do pai (falecido quando ele
tinha poucos meses), estendia os pés. Vinha Almerinda e lavava-os.
Não trocavam palavra durante este ato. Julio, que herdara da linhagem paterna a arrogância de
antigos barões não falava com criados: ficava olhando, distraído, os desenhos animados que Aníbal,
motorista da família, projetava para distraí-lo. Quanto à quieta Almerinda, cumpria em silêncio sua tarefa.
Ao terminar: está pronto. E era tudo. Na tela: Mickey Mouse.
O tempo passou. Julio cresceu, começou a frequentar o colégio, mas nem por isso Almerinda
deixou de lhe lavar os pés. Ao contrário, dedicava cada vez mais tempo e cuidado à lavagem. E foi ela
quem descobriu as primeiras lesões de uma micose, curada pela pronta intervenção do médico da família -
que não deixou de elogiar a empregada pelo senso de responsabilidade. Lavava bem, Almerinda, lavava
com dedicação os pés de Julio, que continuava olhando desenhos animados, agora na TV. Na tela, Mickey
Mouse...
É verdade que essa coisa de lavar os pés era motivo de zombaria por parte dos amigos de Julio;
todos eles meninos de famílias abastadas, estavam acostumados a ser servidos por domésticas, mas não a
este grau.
Mesmo a mãe, que tinha por Julio um carinho todo especial, não deixava de repreendê-lo
brandamente: que é isso, meu filho, a Almerinda te lavando os pés, já está em tempo de te cuidares sozinho.
Um dia contudo, a própria Almerinda - à patroa:
- Deixa, dona Débora. Eu gosto.
Gostava. Era isso que diria aos mais íntimos, na Faculdade de Direito: que Almerinda gostava de
lhe lavar os pés - o que ele permitia, para não contrariá-la, afinal era uma empregada de tanta confiança. Os
colegas riam dessa história; um, porém, não achava graça, não achava graça alguma; mas tratava-se de um
revoltado; um iracundo, esse Ricardo. Não há do que rir, dizia, quando há tanta injustiça no mundo. Para
ele, Almerinda lavando os pés do patrão era o símbolo mesmo da opressão da classe operária. Julio ouvia-
o, sorrindo; a rispidez do outro não o abalava. Um dia propôs: quem sabe falas com ela, Ricardo, quem
sabe tu a convences a não me lavar mais os pés. Ricardo olhou-o, entre surpreso e rancoroso, mas Julio lhe
devolveu o olhar: estava falando sério. Antes não estivera falando sério, mas agora estava falando sério.
Foram até a casa dele, Ricardo emitindo comentários escarninhos, enquanto caminhavam pela
larga aléia ensaibra- da que levava à porta de entrada; algo sobre a aristocracia rio-grandense, feudais
decadentes. Julio ignorou-o. Levou o amigo a seu quarto; ligou o televisor, sentou na poltrona, tirou os
sapatos e as meias. Mickey surgiu na tela, e logo depois apareceu Almerinda: bacia, sabonete, toalha.
Indiferente à presença de Ricardo, pôs-se a lavar os pés de Julio. Ricardo ficou olhando, boquiaberto
Lentamente seu rosto foi ficando vermelho, violáceo; e ele começou a falar, primeiro em voz baixa,
ominosamente contida, e depois já aos berros:
- Não é possível, dona! Não é possível a senhora se humilhar desse jeito! Onde está sua dignidade?
Almerinda não respondia. Cenho franzido, precedia à lavagem dos pés com o cuidado habitual,
dedicando especial atenção ao espaço entre os artelhos, ali onde detectara a micose. Quanto a Julio,
continuava absorto no televisor. Não era mais Mickey, era um filme de piratas.

Com um palavrão, Ricardo saiu. Cortaram relações; não mais falaram, nem sobre lavar pés, nem
sobre outro assunto qualquer. Morreria ainda jovem, esse atormentado, vítima, como é comum nesses casos,
de um daqueles acidentes que nada mais são do que suicídios disfarçados. Julio, que não guardara rancor,
foi ao enterro e enviou condolências à família.
Por causa de Almerinda, contudo, ainda enfrentaria outro grave dissabor. Recém-formado em
Direito, apaixonou- se. A moça, Cristina, era bonita e meiga; culta e inteligente; de boa família. Dona
Débora estava contentíssima, mas temia a reação da jovem quando descobrisse a história da lavagem dos
pés. Aconteceu: um dia Julio convidou a noiva para jantar em sua casa. Cristina chegou mais cedo, foi
introduzida, talvez perversamente, pelo motorista Aníbal, no quarto de Julio, exatamente no instante em
que Almerinda começava seu trabalho.
Se ficou surpresa ou irritada, a moça não o demonstrou, pelo menos na hora. Tão logo Almerinda
saiu, contudo, expressou sua estranheza:
- Não pretende continuar com essa coisa depois de casarmos, não é? - Perguntou, em tom de
gracejo.
Ele não respondeu. No dia seguinte, bem cedo, foi ao médico, o mesmo médico da família que
cuidava dele desde bebê.
- Doutor Augusto - foi logo dizendo - acho que minha micose voltou. A micose que tive quando
guri, lembra-se? Voltou.
O médico mandou que ele tirasse os sapatos, as meias, examinou-o cuidadosamente.
- Não vejo nada - disse.
- Mas voltou - insistir: Julio. Me coça dia e noite, não aguento mais. Preciso tratamento. Uma coisa
para dissolver em água, por exemplo.
Olhou-o fixo, o médico. Era um velho homossexual, tímido e suave de modos. Baixou a cabeça,
ficou pensativo por uns instantes.
- Acho que sim - disse, finalmente. - Acho que precisas de um remédio para micose. Escreveu
rapidamente a receita, estendeu-a ao rapaz.
- Pronto. Dissolvido numa bacia d'água.
- Uma vez por dia? - perguntou Julio.
- É. Uma vez por dia.
- A tardinha, por exemplo.
- É. A tardinha.
Julio despediu-se, saiu. Retornou logo depois:
- Ah, eu ia me esquecendo: imagino que deva usar esse remédio muito tempo, não é?
- É - suspirou o médico - Muito tempo. Essas coisas são crônicas.
- Pelo resto vida, o senhor diria.
- Bem...
Sorriu amargo:
- Pelo resto da minha vida pelo menos, Julinho.
Saindo dali ele telefonou a Cristina:
- Preciso continuar com a lavagem dos pés. O médico disse que é necessário.
Ela desligou. No dia seguinte mandou um curto bilhete, desfazendo o noivado.
Julio não casou, mas mudou-se de casa. Foi morar sozinho; levando Almerinda, naturalmente. Não
teve mais problemas com amigos, que não convidava para o aparta- mento, nem com mulheres, que só o
visitavam altas horas da noite. Foi uma dessas promiscuas que o matou; uma discussão tola, ele queria que
ela cheirasse pó, ela se recusou, ele tentou obrigá-la à força, ela puxou a navalha, cortou-lhe a carótida.
Quando Almerinda, atraída pelo barulho, veio cor- rendo de seu quarto, Julio já estava sem vida.
A mãe ficou tão desesperada que teve de ser hospitalizada. A empregada é que cuidou de tudo:
avisou os parentes e os amigos, providenciou o agente funerário, e até mesmo lavou e vestiu o cadáver,
colocando-lhe os sapatos novos que comprara.
Mas não havia nada nesses sapatos. Os pés do patrãozinho ficaram com Almerinda, que usou, para
cortá-los, a navalha que encontrara junto ao cadáver. Devidamente embalsamados por um tio de Almerinda,
homem entendido nessas coisas, eles foram levados para a casinha onde ela agora mora, no Interior. Todos
os dias, ao cair da tarde, ela liga o televisor e procede à lavagem dos pés. Fá-lo com alegria. Que uma
lágrima pingue de vez em quando na bacia é apenas um acontecimento fortuito; quase um acidente no
trabalho.

SCLIAR, Moacyr. Os Melhores Contos. São Paulo: Global Editora.

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