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Javalis no Quintal e outras estórias

Ana Paula Maia


Índice
Esporo
Javalis no Quintal
Desmedido Roger
O Fosso
Esporo
Rosália olhava para o forno fazia cinco minutos. Costumava deixar o
alicate de unha por dez minutos dentro do forno para esterilizá-lo a alta
temperatura. Trabalhava como manicure fazia quinze anos. Foi cutilando e
pintando unhas que pagou seu primeiro grau incompleto, o aborto do filho
do Tonho e comprou o material de construção para a obra de sua casa de
quatro cômodos. Pintou o interior de amarelo claro e parcelou a mobília
nova em 72 prestações. Durante os cinco minutos ali parada, pensava em
quantos alicates teve nos seus quinze anos de profissão. Não sabia contar
muito bem.
O forno apitou e da recepção gritaram seu nome. A cliente das quatro da
tarde havia chegado. A cliente das quatro da tarde era uma mulher gorda e
peluda. Para fazer as unhas do pé precisava se inclinar na cadeira ao colocar
os pés no colo de Rosália. Em seu colo, também haviam passado muitos
pés. Nenhum filho. O único, abortado, a deixou seqüelada. Era tão estéril
quanto os seus alicates. Essa coisa de esterilizar tudo é que havia acabado
com ela.
Viu a cliente. Suspirou, estava cansada. Havia café fresco na garrafa
térmica que estava sobre uma bancada. Ela apanhou um copinho
descartável e despejou o café. Saía fumaça. Ela bebeu sem pressa, apoiada
na bancada. Refletiu por algum tempo. O que Rosália refletiu e ponderou
nunca poderemos saber, pois os pensamentos são silenciosos. Nem mesmo
para um narrador onisciente é possível conhecer todos os segredos de seus
personagens. Eles, entre pensamentos silenciosos, retornam de seus
estreitos abismos e podem surpreender até o seu narrador.
Rosália apanhou na bolsa um alicate velho, cego e doente.
A mulher deixou os pés de molho e ela começou a cutilar as unhas das
mãos. Rosália queria ver um pouco de sangue. Sabia que a mulher não iria
gostar, mas arrancou o primeiro bife. O sangue escorreu rápido.
__ Está bem encravada, né?
A mulher confiava em Rosália. Sabia que seus alicates eram sempre
esterilizados. Depois do primeiro sangramento, não parou mais. Retalhou
cuidadosamente os dedos da mulher.
__ Rosália, dona Esmeralda precisou tomar antiinflamatórios. O que deu
em você? A mulher quase foi internada.
Rosália baixou a cabeça e não disse nada.
__Você tem alguma explicação para isso? __insistiu a dona do salão.
Rosália deu de ombros e saiu da presença da mulher mascando um
chiclete.
Foi despedida e logo contratada em outro salão. Sempre que podia
cortava mais fundo a cutícula. Tornou-se tão habilidosa que suas pequenas
investidas não eram nem sentidas. Usava um coagulante em forma de
bastão e a satisfação aumentava.
Descobriu que uma de suas clientes havia sido contaminada com o vírus
HCV.
__Hepatite C, Rosália, é isso que esse vírus dá.
Rosália fazia as unhas dessa cliente duas vezes por semana. Sempre a
sangrava de leve e depois usava o alicate em outras. Não conhecia bem a
doença, mas sabia que era crônica. A palavra crônica lhe parecia muito
séria e importante. Tempo depois, a cliente morreu de câncer no fígado.
Cansaço, náusea e dores no corpo passou a fazer parte da rotina de suas
clientes. Todas estavam adoecendo, porém a causa, dizia Rosália, era
estresse.
__ É estresse, dona Conceição. Tá todo mundo muito estressado hoje em
dia.
__ Tão dizendo que tem um andaço de hepatite C por aí. A gente só pode
fazer as unhas com quem é de confiança... assim como você Rosália.
Ela não respondeu. Mas deu de leve uma beliscada na velha que retraiu a
mão. Rosália se desculpou.
Pediu demissão dias depois e conseguiu trabalho em mais dois salões a
vinte quilômetros dali. Depois da confiança depositada nela, começava a
beliscar suas clientes. Cansaço, náusea e dores no corpo. Estava na hora de
mudar novamente.
Meses depois de circular em tantos salões e contaminar tantas clientes, às
vésperas do natal, recebeu um buquê de rosas cheio de espinhos. Levou
muitas espetadas nas mãos quando colocava as rosas num vaso de louça.
Rosália nunca havia recebido um buquê de rosas em sua vida. As rosas
murcharam e as mãos de Rosália inflamaram, pois os espinhos entranharam
em sua carne até apodrecê-las. Podres, foram amputadas. Quando chegou a
primavera, espinhos nasceram nos seus punhos. Nunca soube quem lhe
enviou as rosas. Nunca mais pode tocar em nada sem ferir ou fazer sangrar.
Javalis no Quintal
A velha caminhonete Ford sacoleja a oitocentos metros de distância e o
ronco do motor pode ser ouvido daqui. Pelo jeito como os pneus arriam,
parecendo molas sobre a depressão da estrada aberta à foice faz uns setenta
anos, Eulálio Marvim pode imaginar o que está sobre a caçamba. Isto não o
agrada nem um pouco. Muito menos o cheiro de carne podre embalado pelo
vento que balança as folhas das árvores que se espalham pela região de
modestas altitudes, caracterizada por planícies cobertas de gramíneas e
pântanos.
Depois do almoço, Eulálio costuma ler na varanda acompanhado de um
jarro de refresco. Folheia um livro e espera com paciência a caminhonete
estacionar a sua frente. Pois é isso que ocorrerá. Sujeitos como Adamâncio
não deixariam de lembrá-lo de suas obrigações como homem e cidadão
local. Em regiões como esta, repleta de veículos semelhantes, distinguem-se
os motoristas pelo semblante do para-choque de cada caminhonete.
Adamâncio tem um para-choque achaparrado de cor clara.
Toma um pouco do refresco, limpa as lentes dos óculos com a ponta da
camisa e lê alguns parágrafos do livro. Em poucos minutos precisará descer
até o porão e carregar o seu rifle. Não gostaria de atirar num dia tão belo
como este. O sol faz resplandecer a amplitude do verde. O silêncio,
acompanhado da paz, torna o lugar onde mora, um pequeno sítio rodeado
de fazendas de gado, o seu lar. Lar onde nasceu. Quando cresceu saiu para
conhecer outras capitais. Estudou, se formou em administração de
empresas, teve alguns empregos, mas sempre sentia a falta desse silêncio,
do isolamento, do galinheiro, da criação de coelhos e do cheiro de bosta que
tudo isso gera.
Eulálio Marvim descobriu que o cheiro do mato molhado e da bosta
fresca lhe dão uma sensação de bem-estar incomparável. Em outras
paragens, ele sentia-se invasor. Sem bando. Exótico. Era visto de maneira
que não lhe agradava. Existem muitas formas de se olhar para alguém e
com um mínimo de sensibilidade você entende que a preferência é de quem
reside em sua própria pátria. Os outros são os invasores que desconhecem
os costumes locais. As regras sociais ensinadas desde a infância. Ele não
gostou dessa sensação. Este aqui é seu lugar; onde pode caminhar pela mata
com um rifle pendurado nos ombros e ser parte do bando.
— Rapaz, você precisa ver isto aqui — diz Adamâncio ao descer da
caminhonete.
Antes de se levantar, Eulálio serve um copo de refresco para descer
rápido pela garganta. Eulálio observa a violência com que o líquido escorre
para dentro dele. Termina a bebida, tira o boné, raspa o suor da testa com
dois dedos e os lambe em seguida. O gosto de sal revigora, traz de volta a
energia.
— Passei a madrugada inteira atrás do desgraçado — pausa. — Meu
filho J.P. apanhou um na semana passada. Mostrou que já é homem. Venha
aqui, J.P. — diz Adamâncio acenando para o filho sentado no banco do
carona.
J.P. mede um metro e oitenta de altura e pesa mais de cem quilos. É de
pouca conversa, mas costuma falar sozinho e irrita-se com facilidade.
Suspende as calças antes de um simples aceno com a cabeça. J.P. apanha
um graveto no chão, coloca-o atrás da orelha direita e põe-se a ruminar
baixinho com a face voltada para o oeste. Contorce o rosto em súbitos
espasmos e nada parece abalar esse rapaz de aspecto duro e desequilibrado.
Adamâncio aparenta cansaço e põe-se a observar o filho de miolo mole.
Resigna-se com apenas um suspiro. Vê-se que é um retardado e que
precisará arrastá-lo pelo resto da vida. Em seguida, mira ao longe. Admira
por breves instantes o dia acalorado. Devolve o copo e coloca o boné.
— Acho que vem chuva por aí — murmura.
— Será? — diz Eulálio desanimado.
— Não se engane. A chuva se esconde atrás desse sol, desse céu azul.
Senti meu pé esquerdo latejar essa manhã.
Eulálio olha para o pé esquerdo de Adamâncio, mas não há pé esquerdo.
O que existe é uma capa de couro preto assemelhando-se a um cone de
cinquenta centímetros de altura, concluindo-se um pouco abaixo do joelho,
que lhe dá apoio para pisar. Perdeu o pé quando nadava num rio quando
jovem; foi arrancado por um jacaré. Faz sinal para Eulálio, que o segue até
a caçamba da caminhonete.
Numa coisa os dois homens são unânimes: os dentes pontiagudos
medindo cerca de dezessete centímetros são um só espanto.
— Perdi meu cachorro — Adamâncio tira o boné e segura-o apertado
contra o peito.
— Lamento — diz Eulálio.
— Aquele vira-lata era um caçador. Mas o maldito abocanhou o cachorro
e jogou ele pelos ares. Foi aí que consegui acertar o tiro. Olha aqui...
Adamâncio apanha um saco preto na caçamba, abre e mostra a Eulálio,
que vira o rosto arredio por causa do cão destroçado.
— É isso que esses animais fazem. Eles devastam, destroem, ma-tam.
Por essas bandas nós somos os predadores, ouviu bem, Eulálio Marvim?
Nessas horas, homem como o seu pai faz muita falta. Que Deus o tenha! —
conclui Adamâncio ao se benzer.
Eulálio concorda temeroso num breve aceno de cabeça e faz sutilmente o
sinal da cruz.
— Espero que seu rifle esteja carregado. Pelo visto teremos muito
trabalho este ano. Eles se multiplicaram. Todo mundo está empenhado, até
os bem jovens — Adamâncio faz uma pausa. — Sabe, às vezes eu tenho
medo desses livros terem te amolecido. Aqui, tudo que você precisa é ter fé
e uma boa pontaria.
Eulálio fica calado. Sua fé é pequena e a pontaria, de um estrábico.
Adamâncio espera por uma resposta enquanto pensa que Eulálio nunca foi
bom com rifles. Imagina se dentro dele haveria alguma coragem para abater
pragas em forma de monstros.
— Eu prometo que vou me empenhar — diz Eulálio Marvim. — E logo,
logo vou aparecer com um desses também.
— Assim eu espero. Quero muito te ver com um desses, rapaz. É o que
todos esperam.
Adamâncio olha para o animal morto. É tão assustador que mesmo sem
vida lhe causa um pequeno arrepio na nuca. São como monstros que
perderam o rumo de casa e agora vagam somente em regiões em que não há
predadores naturais que os afugentem. É preciso colocálos para fora ou
invadem sua propriedade e o expulsam.
O homem sobe na caminhonete e antes de seguir em frente diz para
Eulálio que está contando com o empenho dele. Eulálio Marvim lhe
devolve um sorriso murcho de quem agradece a confiança.
— Agora eu preciso alimentar minhas galinhas. E como vão as suas?
— Estão bem — diz Eulálio.
— Cuide bem delas. É melhor reforçar o galinheiro.
— Farei isso. Obrigado.
— J.P.! — grita o pai para o filho abobalhado. — Vamos embora, rapaz.
O filho, que havia se afastado dos dois, volta com um punhado de
gravetos nas mãos.
— Senhor Eulálio, eu posso levar esses gravetos? — pergunta o rapaz.
— Claro que sim, J.P.
— Pra que os gravetos? — pergunta Adamâncio.
— É pro meu ninho. Eu estou fazendo um ninho — responde J.P., gago.
— Mas você vai fazer um ninho pra quê? — surpreende-se o pai. — Vai
botar um ovo?
Adamâncio dá uma gargalhada e se engasga. Tosse seguidamente e
finaliza com um escarro que cola no chão. J.P. abaixa a cabeça e abraça os
gravetos contra o corpo. Sobe na caminhonete com pequenos solu-ços de
choro.
É só um retardado, pensa Eulálio Marvim. Pobre-diabo de garoto mais
idiota.
Após manobrar a caminhonete, Adamâncio acelera afoito e Eulálio cospe
em seguida um pouco da poeira levantada pelo atrito dos pneus na terra
seca.
Eulálio Marvim nunca conseguiu matar um javali. Quando pequeno, saía
pela mata com o pai acompanhado de outros homens, mas nesses dias
ninguém abatia nada. Sabe que não é um caçador como a maioria dos
homens desta região. Ele gosta de seu rifle mais pela aparência do que por
sua utilidade. Sempre foi bom em caçar palavras em revistinhas, o que fazia
seu pai se ressentir de o filho nunca ter atingido uma pomba-rola sequer.
Agora Eulálio Marvim precisa ao menos de um javali morto na caçamba de
sua caminhonete. Pensa nisso enquanto olha para um dependurado na
caçamba de Adamâncio, que se tornou pequena devido à dimensão imensa
do animal.
Quando conseguir um desses, sua vida neste lugar será para sempre um
sossego. Ele sabe que enquanto não abater seu próprio javali, não o
deixarão em paz.
Para ser homem respeitado nessas bandas, você precisa saber matar. E
matar sempre que for preciso, sem pestanejar. Tudo de que Eulálio Marvim
precisa é um javali morto.
Caminha até a porteira na entrada do sítio que dá para a estrada aberta à
foice. Acha melhor fechá-la mesmo durante o dia, para evitar outra visita
indesejável. É possível que até o fim do dia mais um caçador atravesse sua
porteira sem permissão e exiba outros pontiagudos e assombrosos dentes de
besta-fera. Na semana passada dois homens que caçavam na região
atravessaram sua porteira em busca de água para beber e uma corda. Eles
tinham um javali abatido e permaneceram uma hora contando todo o
périplo, toda a perseguição.
Segue até os fundos do sítio e verifica o trinco do galinheiro. Faz dias
que três galinhas desapareceram. Os coelhos ultimamente estão agitados.
Eulálio estica os ouvidos, porém não capta nenhum som peculiar. Caminha
até a divisa do sítio, que se encerra numa fazenda de gado e algumas
plantações, e constata a cerca quebrada em vários pontos. Nas árvores
próximas há sinais de esfregaços de lama nos troncos. Retorna cabisbaixo
para casa, pois são indícios de invasores. Javalis estão frequentando o seu
quintal.
Javalis velhos são solitários. Vagam quietos apenas em busca da
sobrevivência. São animais assustadores e silenciosos. No máximo, um
macho adulto aceita a companhia de um mais jovem; uma espécie de pajem.
E só. São caçadores e conseguem sobreviver e se multiplicar rapidamente
em regiões distantes de seu continente de origem. Uma vez por ano, vão ao
encontro das fêmeas para a reprodução, e passadas algumas semanas
retornam para o estado solitário. São acanhados e violentos. Suas presas
produzem lanhos tão profundos na carne que deixam o osso à mostra.
Quando atacam, em raros relatos, laceram o abdômen e evisceram a vítima.
Eulálio Marvim vagueia em passos curtos pela grande sala de estar com
as paredes revestidas de cabeças de animais empalhados, pássaros e fotos
de caçadas. Desliza os dedos sobre as fotos, recriando reminiscências, até
que se detém na foto de um homem segurando um marreco morto e de
olhos saltados, um homem com o braço sobre o ombro de seu pai. Eles
sorriem. Melquíades é o nome do homem que fumava cigarros numa piteira
escura feita de casco de cavalo, e lhe dissera certa vez durante uma caçada
que sua pontaria era lastimável, que ele devia ser fraco das vistas. O homem
cheirava a fumo ardido, tinha a voz rouca e os bigodes felpudos. Eulálio
começou a usar óculos cinco meses depois desse comentário e mesmo
assim sua pontaria continuou lastimável. Sempre que o encontrava,
Melquíades perguntava quando ele acertaria o alvo, quando abateria ao
menos uma rolinha, quando daria tamanho orgulho para seu pai. Eulálio
Marvim sorria murcho e passou a fugir das provocações humilhantes do
fazendeiro.
Seu pai levou décadas para concluir a decoração de morte e bravura que
adorna as paredes da casa. Estica o pescoço e espia os livros numa das
estantes. Eulálio Marvim sente-se um homem ao meio, e no meio da sala se
mantém meditando. No que medita não se pode dizer ao certo, pois os
pensamentos são silenciosos. Nem mesmo para um narrador onisciente é
possível conhecer todos os segredos de seus personagens. Eles, entre
pensamentos silenciosos, retornam de seus estreitos abismos e podem
surpreender até o seu narrador.
Desce ao porão e apanha dentro de uma caixa de madeira seu rifle CZ
BRNO, modelo E2, fabricado em 1987. O sistema de mira é excelente e a
regulagem chega a duzentos metros de alcance. Assopra o cano da arma,
que está empoeirado. Coloca alguma munição dentro dos bolsos da calça,
um tipo peculiar. Um hábito de seu pai, que gostava de manter certa
tradição. São munições com o nome de família gravado em cada projétil.
Coisa de caçador excêntrico, para não haver dúvidas de quem acertou o tiro.
Quando abrem o animal, lá está o projétil com o nome do autor do disparo.
Sobe a escada e se detém na porta dos fundos quando percebe a poucos
metros a pequena horta revirada. Fecha a porta e verifica pelas janelas de
todos os cômodos na intenção de flagrar algum animal, porém não há nada.
Não se lembra de ter visto a horta revirada antes. Aquilo pode estar daquele
jeito há pelo menos dois dias, mas não tem certeza.
Deixa o rifle em cima da mesa da cozinha, apanha um achocolatado na
geladeira e senta-se à mesa. Eulálio Marvim pensa por alguns instantes.
Bebe um grande copo e isso parece acalmá-lo e o ajuda a refletir. Faz dez
anos que disparou um rifle pela última vez. Sobe a escada para o seu quarto,
onde apanha uma mochila em que coloca um casaco impermeável, uma
lanterna, uma faca, um canivete e uma corda. Tudo o que possui são
lembranças de dez anos, quando acompanhou o pai pela última vez numa
caçada. Não sabe se precisará de tudo o que pegou, nem se saberá
manusear.
Cruza o corredor e, antes de descer a escada, volta dois passos e entra no
escritório de seu pai. O chapéu que ele costumava usar nas caçadas está
pendurado ao lado da janela. Um modelo branco feito de palha bangora,
modelo Arizona. Eulálio coloca-o e verifica que a circunferência de sua
cabeça é a mesma que a de seu pai. Com o chapéu, imagina estar mais
protegido, ao mesmo tempo que se sente mais corajoso.
Na cozinha apanha duas garrafas de água e as coloca na mochila. Com o
rifle em mãos, abre a porta dos fundos e avança cauteloso até a cerca
quebrada. Em poucos minutos o céu tornou-se nublado. Em breve choverá.
Pula a cerca; agora está por sua própria conta. Se um pobre-diabo retardado
como o J.P. consegue apanhar um javali, decerto que ele se sairá bem, de
alguma forma. Evidente que se falhar, a humilhação será aterradora. Se um
tipo como J.P. consegue executar uma função, qualquer um que seja um
pouco menos pobre-diabo feito ele há de conseguir.
Não é correto invadir propriedade alheia e caçar sem a devida
autorização, mas pretende ser cauteloso e rápido. Talvez antes do anoitecer
Eulálio Marvim possa já estar arrastando seu javali com a satisfação de se
sentir um homem completo.
O caçador ético nunca abate além dos limites permitidos. É preciso
manter a distância necessária do alvo para que este tenha a chance de
escapar. Foi assim que Eulálio Marvim aprendeu desde cedo. Que os outros
devem ter a chance de sobreviver, mesmo que você tenha fome.
Aprender a caçar é aprender a controlar os instintos e a ser íntegro e
honesto consigo. Quando mastigar a carne da presa, entenderá que foi o
melhor e por isso merece saborear aquilo que perseguiu e abateu. São bons
ensinamentos, mas é necessária bravura para aplicá-los.
Faz quase uma hora que chove e três horas que Eulálio Marvim
prossegue no meio do mato encharcado. O peso das águas lhe dificulta
caminhar. Nessas condições não encontrará um animal selvagem sequer, e
caso isso ocorra será difícil mirar debaixo de tanta chuva. Decide avançar
mais uns trezentos metros e depois voltar para casa. Embrenha-se ainda
mais no matagal, afastando-se uns duzentos metros da estrada não muito
movimentada que margeia o entorno da fazenda. Se havia rastros de javali,
a chuva apagou.
Abaixa-se para amarrar os cadarços e beber um pouco de água. Escuta
um revirar nas moitas próximas. Eulálio Marvim ouve o sussurro de uma
respiração atravessando os pingos da chuva. Algo o rodeia. Como um cão
que fareja, que ouve seus batimentos cardíacos, o aumento da pressão
sanguínea e o pavor perscrutam os sentidos. O lombo preto espinhoso cruza
sua lateral em direção a algumas árvores que formam um túnel. Eulálio
apoia o rifle num toco de árvore, mantém a lateral da arma do seu lado
esquerdo e atira duas vezes. O animal guincha. Eulálio carrega o rifle pelo
ferrolho, sendo preciso girar a alavanca para cima e puxar para trás. Ao
carregar não consegue puxar o ferrolho para a frente nem travá-lo para o
tiro. Está emperrado. Atrapalha-se com a alavanca. Lembra que era comum
essa alavanca do ferrolho emperrar. Corre pela mata adentro. Avança
desesperado. Javalis são astutos. Não devem ser caçados à força ou à
revelia. Eles sabem que estão sendo perseguidos e sabem ser rápidos e
violentos o bastante para sobreviver. Tem a impressão de ver algo se
movendo a uns cem metros de distância. Dispara diversas vezes. O som do
disparo ressoa dolorido dentro do ouvido esquerdo, onde a arma permanece
bem próxima. Sente-se zonzo; labirintoso. Perde o javali de vista e já não se
lembra para que direção atirou todas as vezes.
Uma dor aguda perpassa seu peito e ele se agacha. Está aflito e
apavorado. Eulálio Marvim sempre conseguiu o que queria. Sempre
aprendeu o que desejava. Nada o deteve. Mas acaba de descobrir que é
incapaz de matar. Por mais que deseje, não é possível para ele. Essa é a
primeira vez que falha conscientemente. É evidente que em outras vezes
falhou, porém foram fracassos de pouca importância. Mas isso aqui é
enorme. Sem conseguir um javali morto, não sobreviverá dignamente neste
lugar e sem dúvida estar neste lugar é tudo o que mais deseja no momento.
Tem a impressão de ter ouvido o som de uma batida distante,
provavelmente vindo da estrada velha que margeia a fazenda. Eulálio
Marvim caminha alguns passos até uma cerca de estacas e arames.
Suspende um dos fios de arame e consegue atravessar sem se arranhar.
Precipita-se sobre o dorso escorregadio de uma elevação barrosa. Cai de pé
à margem da estrada e caminha rápido em direção a uma caminhonete
batida contra uma árvore a poucos metros de distância. Para no meio do
caminho e pensa na possibilidade de ter provocado esse acidente. É uma
probabilidade muito pequena, mas é ela que o impede de prosseguir. Olha
para o céu. Ajeita o rifle pendurado sobre o ombro esquerdo e continua em
direção ao veículo. Encontra apenas o motorista com a cabeça pendendo
para a direita com uma perfuração de bala no pescoço.
Ele toca o ombro do velho e tenta despertá-lo. Não há resposta. Verifica
os batimentos, o pulso e se há alguma respiração quente saindo de suas
narinas. Está morto. Eulálio verifica o outro lado do pescoço e não há saída.
O projétil está dentro do pescoço do velho. Olha para as extremidades da
estrada e não vê nenhum sinal de pedestre ou outro carro. O velho lhe
parece familiar. Faz oito meses que voltou para a região e não teve muito
tempo de rever seus vizinhos. O que mais o preocupa é o que há dentro do
pescoço dele. A chuva aumenta e o barulho das gotas largas sobre o veículo
é perturbador. Está ensopado. Deixa o rifle no chão, apanha na mochila um
canivete. Abre uma perfuração no pescoço do velho e enterra dois dedos
que deslizam rápido, besuntados de sangue morno. Tem a impressão de ver
os olhos do morto tremelicar. Retira rapidamente os dedos e espera um
instante. Engole em seco, descarna mais a abertura no pescoço, a carne
flácida e manchada de sol rompe-se com facilidade, e coloca o indicador e o
polegar na tentativa de pinçar o projétil já à mostra, mas este insiste em
escorregar. Apanha um alicate na mochila e consegue puxá-lo. Lá está o
nome de sua família. Vomita ao lado do carro, mas vomitar também poderia
ser um indício de sua presença. Eulálio Marvim, com a ajuda da água da
chuva, dilui o vômito e limpa o local. Nenhuma digital ou restos
regurgitados. Enfia o projétil no bolso, lava o canivete e as mãos numa poça
d’água e esgueira-se para casa, cabisbaixo, pelo mesmo caminho anterior.
Lembra-se quem é o velho morto: Melquíades. O homem que o
provocava quando garoto por ter péssima pontaria. Era mesmo ele, mas
estava muito mais velho do que imaginava. Melquíades envelheceu
depressa devido a uma doença que levou seis anos para curar. O mal
invisível o corroeu, levando embora algumas de suas habilidades. Nada pior
para um bom caçador do que ser abatido por um sujeito fraco e de vistas
turvas.
Passa a mão em uma árvore e constata um tiro de seu rifle cravado no
tronco. Esmorece ao tentar imaginar que direção tomaram todos os outros
tiros. A chuva torna-se rala. O sol novamente aparece nos limites da
planície. Mesmo através dos óculos embaçados, percebe que o verde lavado
tornou-se vívido. A sensação de paz se expande para além das árvores.
Sente o ouvido esquerdo zunir.
Está visivelmente abatido e nota-se ter perdido aquele brilho que os vivos
carregam. Está envolto em uma espécie de treva. Ter acertado o velho
Melquíades lhe pesa na alma. Imagina o que pode acontecer se descobrirem
que ele o atingiu. Era um homem antigo no local, não deixariam por menos.
Imagina enterrar o corpo do velho no matagal, até que ouve um ronco
próximo e percebe um leve balançar de uma moita a poucos metros.
Carrega o rifle sem dificuldades. Avança para o leste, embrenha-se num
trecho de mato alto e árvores de copa redonda. Sente um calor intenso subir
pelo pescoço, é a aceleração cardíaca que também lhe provoca tontura. O
som de seus passos sobre o mato molhado é o único som que enche o local,
mas algo lhe perturba os sentidos. Alguma coisa parece estar ao seu
derredor, pois é possível perceber pares de olhos esquadrinhando seus
movimentos. O particular silêncio do iminente. Eulálio Marvim está sendo
caçado. Quando entende a situação, corre de volta pelo caminho por onde
veio. Mas às vezes entendemos tarde demais. É preciso dosar a arrogância e
espezinhar a própria empáfia. Antes de cair no chão, vê um dorso preto e
espinhoso cruzar seu flanco direito e um vulto que parece sair do solo se
debruçar sobre seu corpo. Leva cerca de vinte minutos para morrer. Os
javalis não querem sua carne, somente eviscerá-lo. São animais que
preferem tubérculos e raízes. São animais que não devem ser caçados à
revelia. Ao ser devorado fecha os olhos, pois é tão somente um horror
desme-dido. Enquanto as trevas o cobrem lentamente, sente que muito
pouco lhe resta. Olha para o céu todo o tempo e o resto de chuva
conservado nas folhas das árvores molha seu rosto quando os galhos são
balançados por um vento suave. As árvores parecem chorar por ele, mas em
momento algum sente pena de si. Torna-se selvagem como o animal que o
devorou e agora carrega parte de si em suas entranhas. Em momento algum
olha para suas vísceras, para o que lhe resta. Não importa mais. Quando o
encontrassem, haveria de ser apenas sua carcaça. Morre sem sentir pena de
si e nisso consiste toda a bravura de sua vida.
Eulálio Marvim não devia ter tentado caçar sozinho. Nunca soube como
fazer. É o que acontece quando, tão cheio das convicções ficcionais, se
acredita que a realidade pode ser enfrentada. Mas não é o caso. A realidade
desvenda qualquer fantasia e tem por princípio colocar quem quer que seja
de cara com o lado mais sombrio daquilo que se persegue.
Desmedido Roger
Uma úlcera é como uma mão calejada de trabalhador. Conhece-se um
homem pelos calos nas mãos ou feridas no estômago. Ouvi esse troço em
algum lugar e isso foi tudo o que consegui pensar ao me distrair por
segundos olhando para as minhas mãos claras e limpas, enquanto meu chefe
sentado à minha frente, exalando um hálito doce de pasta de amendoim,
procurava alguns sinônimos para me dizer mais uma vez: Você está
despedido.
Filho da puta, pensei, agora olhando para o meu terno novo. Há duas
semanas ele me disse para comprar um terno melhor porque aparência conta
muito. Puta que pariu, parcelei em dez vezes, meu terno novinho em folha.
Nada como ser demitido com um terno caro, que lhe custará o resto do seu
dinheiro. Acho que ele não me trouxe muita sorte.
Um des-pe-di-do muito enfático e naquele instante constatei a marca da
pasta de amendoim. Costumava comprá-la e comê-la lentamente, o que me
garantia uns vinte dias de pasta de amendoim importada. Eu não a como
mais.
Balançando a cabeça e alisando os seis fios de cabelos bem no topo dela,
fingindo um tipo de consternamento ele diz: eu sinto muito em seu
português precário. É claro que ele sente, eu também posso sentir que os
seis fiapos esparsos sobre a sua cabeça não resistirão tanto tempo assim.
Uma coisa lamentável.
Há dois meses tivemos uma fusão com os franceses. Eles têm mais
dinheiro e se vestem melhor. No mais, a mesma porcaria. Meu chefe
anterior foi remanejado para outro departamento, inferior, e eu, remanejado
para o olho da rua.
___Não tem meios nem medidas, Roger, c´est tout.
Ele concluiu todos os meus anos ali com um c´est tout. E o que é isso?
Sou um homem sem medida. Escritório de merda... nem meios nem
medidas. C´est tout, Pas de tout, é o que vive dizendo entre os dentes. Mas
uma coisa eu aprendi. Vá au merde.
Ele atende uma ligação e grunhi uns hã hã, hã hã, oui... oui, e faz um
sinal torpe com a mão me dispensando. Sete anos aqui dentro..... antes
tivesse tido sete anos no Tibet, é tudo que consigo pensar, no Tibet e em
seus monges tibetanos e no silêncio que deve haver num mosteiro e que
todos são carecas como meu chefe ficará até o fim do ano. Porcaria de
emprego..... e depois de sete anos continuo desmedido.
C´est tout?, ele pergunta afastando a boca do fone e eu meneio a cabeça
sem muito sentido, entendendo que sempre que se fala c´est tout é para
encerrar qualquer que seja o assunto.
Minhas divagações são interrompidas pelo som insuportável da máquina
copiadora bem ao nosso lado; uma sala com paredes finas de compensado,
frágeis feito casca de ovo me faz querer vomitar como todo o resto. Saio da
sala e retorno para minha mesa que acabou de deixar de ser minha. Nunca
foi na verdade, mas ali eu pude ver umas marcas amareladas de tanto uso,
meu suor foi manchando a madeira e o círculo marcado numa perfeita
circunferência me lembra de quantas canecas de café eu tive de tomar para
não desabar de sono.
Quero algum silêncio, mas é intragável o barulho da antiga máquina
copiadora. Folha entra, folha sai. A luz que desliza sobre o papel me deixa
enfeitiçado. Em cada sala há uma máquina dessas, estão por toda parte,
entrincheiradas, produzindo centenas de requerimentos, o monstro branco
sobre minha mesa, a pilha de papéis, a muralha que nunca parece ceder.
Você pode sentir o calor que vem delas, permanecer ao lado de uma te faz
fritar; o papel sai queimando os dedos. Um colosso de luz e calor, e é
possível ver-se reproduzido. Copiado. Inautêntico. Esperava encontrar com
minha reprodução desautorizada pelos corredores do escritório; uma
imagem falsificada, a minha medida exata.
Enlouquecidas, reproduzem uma espécie de burrice descomunal. O erro é
copiado e passado à diante e com o tempo o errado torna-se o correto, por
insistência, por reprodução. Você pode escutá-las, multiplicando aos
milhares.
Decido ir embora enquanto tenho alguma dignidade e buscar o pouco que
me resta no dia seguinte. Saio para aproveitar o início da noite quente e
perambular pela cidade enquanto os céus sustentam o peso das águas
prestes a romper numa torrente de chuva de verão e entro num bar quando
sinto pingos largos sobre meus braços. Olho para cima e os céus se rendem
à minha presença, mas somente os céus e nada mais.
Do lado de dentro todos são loucos e solitários e eu estou no meio dessa
efervescência de cores, barulhos, gemidos, portas batendo e cheiros. Muitos
cheiros e confissões. É estranho, mas quando me sento diante do balcão
percebo que eles se confessam, mas a música alta não me deixa
compreender o quê. Segredos compartilhados não são segredos, é angústia.
Angústia compartilhada é desespero. Compartilham entranhas. Há
entranhas espalhadas misturadas sangrando por todos os espaços; entranhas
boas e ruins, entranhas inflamadas. Vou me sentar ao lado das caixas de
som porque ali eu ficarei surdo o bastante para dormir sossegado àquela
noite.
Oferecem-me conhaque e lembro de alguém dizer "Mas essa lua, mas
esse conhaque botam a gente comovido como o diabo". Não me lembro
quem disse isso. Talvez tenha sido o balconista da padaria; lá vende
conhaque. Pouco importa. De qualquer forma, eu não bebo conhaque e
nunca fico comovido como o diabo.
Sentindo-me surdo o bastante para fazer calar meus pensamentos, apanho
minha cerveja e vou me sentar novamente diante do balcão onde há uma
tigela de vidro redonda com fósforos de diversas embalagens coloridas.
Uma espécie de aquário com a cara de celebridades do cinema estampada
em cada caixinha. Pareço ouvir alguém dizer: algum problema. Eu diria que
sim, mas não em voz alta. É o barman na minha frente com um pano branco
jogado no ombro esquerdo, que inclina-se e de modo insistente pergunta
mais uma vez. Não olho diretamente para ele, faço um olhar de cachorro
desconfiado, que te olha de soslaio. Apanho meu caneco e suspendo minha
cabeça para trás em busca do último gole, que benevolentemente me valem
dois.
___Outra cerveja? é o que ele pergunta e aceno negativamente com a
cabeça, digo c´est tout e faço em seguida sinal para saber quanto deu a
conta. Doze e cinqüenta, ele diz.
Porra, doze e cinqüenta! Preciso trabalhar duas horas e quinze minutos
para ganhar isso, penso, E lá se foram duas horas em copos de cerveja em
menos de uma hora de esforço despercebido.
Ele percebe que não concordo muito com o valor total e me entrega uma
nota com as despesas especificadas.
___Hei, esses fósforos aqui.... eu não pedi fósforos coisa nenhuma.
___Mas pegou. Pensa que eu não vi?
___Eu não peguei nada, digo, Só tava olhando.
Sou mesmo um imbecil e é para isso que existem barman, para te
confirmarem caso haja alguma dúvida pairando. Doze e cinqüenta, ele diz
enfático, como quem afirma: Você está despedido. Estou me acostumando
com esse tom enfático, sem meios nem medidas. Pague o que me deve e
vomite o que comeu, praticamente um faroeste dublado essa porcaria está
sendo.
De pé na calçada a chuva sequer molhou o asfalto. Uma enganação dos
diabos. Apanho meu último cigarro e jogo o maço vazio no chão. No dia
seguinte haverá trabalhadores para limpá-lo, eu por minha vez estarei
fazendo uma hora qualquer. Levo o cigarro à boca e tiro do bolso os
fósforos da Brigitte Bardot e percebo que faltam dois palitos. Alguém
acendeu seus cigarros com esses fósforos, mas eu é quem tive que comprá-
los. Sou mesmo um homem afortunado e nem roubar a porcaria de fósforos
eu consigo.
Suspendo minha maleta que descansa no chão e desço a rua imprimindo
em meus pulmões o cheiro empoeirado e abafado deixado por uma chuva
que passou rápido demais, levando sua torrente para outro canto. É quando
a alma fica porosa, com a superfície árida, e a chuva debanda para o norte
deixando os afortunados para trás.
As ruas do centro e seus freqüentadores que só saem à noite; depois do
expediente ratos e mendigos têm algumas horas para desfrutar daquilo que
só conhecemos de dia. Espalhados por tudo quanto é canto fazem-me
lembrar as máquinas copiadoras. Isolados ou em pequenos grupos, estão
sempre lá chafurdando no lixo, espantando os ratos que querem desfrutar do
jantar. Os ratos aos milhares sob nossos pés, nos esgotos subterrâneos vêm
à superfície e precisam disputar com o homem o que comer. Sem dúvida,
um dia eles vão se cansar disso, os ratos, e teremos uma revolução por aqui.
Os ratos saem dos esgotos para procurar os restos de comida, a gente
procura os restos do dia. Uma cidade como essa produz muita comida,
sobras, lixo e gente como você e eu. Sou a sobra do dia. Se me distraio, os
ratos me devoram.
Caminho perdendo o equilíbrio. Sinto minhas pernas vez ou outra sem
muita direção e o calor morno que sobe do asfalto salpicado pela chuva me
lembra a máquina copiadora estridente como a sirene do carro da polícia
que acaba de passar na esquina. Adoro sirenes à noite, uma espécie de
ultimato anunciado por metros de distância, elas fazem meu coração
acelerar.
Aborreço-me quando já não consigo ver o reflexo das luzes da sirene, e
minha bexiga parece ter despertado porque está dolorida e ardida. Viro-me
e em seis passadas abro a braguilha e mijo na porta de uma pastelaria
coreana. Não era das melhores, mas nunca comi nada estragado ali. No
início, meu salário só me permitia comer ali, depois passei a freqüentar uma
outra, mais cara, e lá eu encontrei uma lasca de unha com esmalte vermelho
no recheio do meu sanduíche de atum. Fecho a braguilha e percebo que não
terei mais que me preocupar com isso. Um problema a menos.
Olho para os lados onde fica o escritório, as ruas por onde percorria, até
então apressado todos os dias, os lugares em que devorava à garfadas
violentas, abrindo covas no meu prato, quase me enterrando em seguida sob
o purê de batata; e por fim as pequenas janelas de todos os edifícios à minha
volta.
Sou remetido à minúscula janela ao lado de minha antiga mesa com que
dividia as horas incontáveis, apreciando o sol, a lua e as estrelas. Coisa
melancólica e lamentável. O passar do tempo, dissipando-se através de uma
fenda pouco maior que minha televisão vinte polegadas no centro da sala de
estar. Ter um horizonte com menos de vinte polegadas não deve ser o sonho
de ninguém.
Avançando em direção ao metrô encontro um velho sentado no chão.
Sujo e fedido. Nem os ratos se aproximam, talvez apenas quando estiver
morto para arrastarem sua carcaça para o esgoto; refeição para dias. Um
velho frágil, certamente nem seus ossos sobrariam. Deve ter osteoporose;
ossos quebradiços e facilmente triturados por roedores. Um vexame de
horror desmedido.
Ele diz que tem uma ferida e que mostrará se eu lhe der algum trocado.
Por que eu haveria de querer ver uma ferida? E pelo tamanho da faixa em
sua perna deve ser grande. Eu rio com a conversa. Venha e veja, é o que o
velho diz. Tenho uma ferida aqui e você nunca viu uma dessas antes. Dou
umas passadas, ignorando, mas é tarde demais. Sinto alguns trocados no
bolso e jogo para ele. Quero vomitar. Com a ferida, com a minha
curiosidade. Há larvas nadando na carne esponjosa. Ele está sendo
devorado vivo e os ratos o rodeiam, respeitando o árduo trabalho das larvas
para depois arrastarem-no.
Já não consigo mais sorrir faz tempo, na verdade me torno sério o
bastante para ficar desacreditado. Diante de uma coisa dessas qualquer um
pode deixar de girar bruscamente em seu próprio eixo e despencar. É isso
que eu faço, despenco tentando atingir meu centro de gravidade torcendo
para que ele não seja tão profundo.
Desço a rua até o metrô e quando chego lá, olho para as minhas mãos
claras e limpas.
Conhece-se um homem pelos calos nas mãos ou feridas no estômago.
Conhece-se um homem por seus calos e feridas. C´est tout. Suspiro
profundamente quando entro no vagão deserto, suspiro sentindo-me sedado
pelos vestígios de uma cidade subterrânea, seus habitantes e sua possível
maldade.
O Fosso

Conto inédito para antologia organizada por Nelson de Oliveira — “Todas


as guerras”.
Tema: A guerra do Vietnã
Atolado num fosso até o peito Edgar Brian Wilson de prontidão segura
um fuzil com o olhar sereno que lhe é peculiar. Os pingos de chuva batem
contra a água do fosso e beliscam o seu rosto. Ele não se move.
___Edgar tem alguma coisa no seu braço ___diz Jeremiah Elmore, seu
colega de vigilância.
Edgar B. Wilson constata uma sanguessuga colada a seu braço. Ele puxa-
a com a ponta dos dedos. Está morta e desidratada. Deixa cair no fosso. Ela
bóia, parece constituída de leveza. Uma espécie de sangue; seca como uma
folha seca.
___Duas me morderam ontem. Tenho a marca aqui na perna e no braço
___diz Jeremiah mostrando a pequena mordida próxima ao pulso esquerdo.
___Acho que não gostaram do seu sangue.
Edgar B. Wilson não faz nenhum comentário. Em seu rosto pouco
expressivo não é possível notar uma variação sequer no semblante. O olhar
sereno parece perscrutar ao longo da extensão para onde corre o fosso os
limites das imundas águas turvas, como se procurasse em vagos vãos que
estreitam para o fim algum sentido ou destino, mas nem sempre é possível
ir além do que os olhos conseguem atingir. Edgar vive às margens do
infinito, sem nenhuma fronteira aparente.
A chuva aumenta e ao contrário do que parece as águas da chuva
engrossam o caldo sujo em que estão mergulhados. A imundície vem à tona
com o farfalhar das águas. Um sapo cai sobre a cabeça de Jeremiah Elmore.
___Agora temos sapos ___comenta Jeremiah sentindo-se bastante
desanimado ao sacudir o boné para tirar o excesso de água.
Dois helicópteros buscam aonde aterrissar no acampamento dos soldados
que fica próximo ao fosso. Com o sinal de um soldado, eles pousam. A
revoada desfolha as árvores e provoca algumas ondas. O cheiro recrudesce.
___Edgar, você acha que vamos ficar aqui por muito tempo? ___pergunta
Jeremiah.
___Não sei... talvez mais algumas horas.
___Eu quero dizer nesta guerra. Nesse lugar de merda que é esse Vietnã.
___Eu não sei.
___Não entendo porque deixam a gente dentro da merda o dia todo. É como
se eu nem estivesse na guerra. Isto aqui mais se parece com a criação de
gado do velho Boulder. Tem o mesmo cheiro.
Jeremiah dá uma risada com o próprio comentário. Rir-se da condição
precária e lamentar não recolher a bosta do gado de seu ex-patrão, o senhor
Boulder, lhe causa tristeza. Sentir falta do excremento dos bois, dos porcos
e das galinhas, é o início do desespero de voltar para casa.
Edgar limita-se a um breve sorriso.
Do outro lado da margem do fosso soldados saem dos helicópteros
carregando alguns sacos de mantimentos. Alguns homens estão
enfileirados, preparando-se para alguma missão; outros se espalham e
descansam embaixo das barracas de lona. Chove faz dois meses. Todo o
lugar torna-se pantanoso. A chuva tem ajudado a lavar o sangue dos mortos,
a misturá-lo inteiramente ao solo. É possível enxergar certo horror em
algumas árvores, cujos galhos espiralados ou retorcidos denotam expressões
humanas em angústias. Toda a espécie de sangue. Há todo o tipo de dor
refletida nas árvores. Jeremiah sempre que se depara com árvores
agoniadas, sente uma pontada no peito de uma lembrança dolorida de uma
série de tristezas semelhantes a essa guerra.
___Você sente saudades da fazenda do velho Boulder?
___Sim. Todos os dias eu sinto falta do mugido das vacas e do bafo azedo
do velho ___responde Jeremiah.
Ele respira fundo. Respira aquilo que é o fim de todas as coisas. O esgoto
de uma guerra. Debaixo das águas imundas há restos de toda a espécie. Vez
ou outra sente esbarrar algo em sua perna. São os restos dos outros, os
insepultos. São eles: homens, porcos, crianças e galhos de árvores. O que
está sob o fosso negro ninguém pode ver, mas pode sentir. O horror
silencioso.
___Você sentiu isso? ___murmura Jeremiah.
___Sim ___diz Edgar.
___Estão passando vários deles.
___As águas estão agitadas.
___Por que será? Não vejo nada ___diz Jeremiah mirando ao longe com um
binóculo.
Eles ficam em silêncio. Uma correnteza agita as águas e os corpos no
fundo do fosso avançam para o outro lado esbarrando em suas pernas.
Jeremiah está apavorado e não se move até que as águas se tranqüilizem.
Jeremiah Elmore dá um leve suspiro. É um homem simples que vivia
numa fazenda do Texas, arava a terra e sonhava em avançar nos estudos e
se tornar algo além do que parecia ser seu destino. Juntava dinheiro para ir
para a cidade grande, estudar e conseguir um trabalho longe do campo.
Gostava de assistir a filmes, coisa que fazia raramente. Gostava de ler, mas
tinha alguma dificuldade. Não queria terminar seus dias colhendo bosta de
boi, sulcando a terra e morrendo debaixo do sol pouco a pouco sem um
dente na boca, como os seus pais e os pais de seus pais e toda a miserável
ascendência que lhe expiava até os dias de hoje. Estava disposto a ser
diferente. Aceitou servir ao seu país mesmo sem compreender o que dizia a
cartilha que convocava os homens da América para lutarem. Ele tinha
forças e pretendia sobreviver à guerra e a toda sua miserável ascendência.
Quando finalmente se deparou com a chance de ir embora da fazenda do
velho Boulder, para trabalhar na construção civil em Nova York, estava
novamente encarcerado e obrigado a um trabalho tão pesado e sujo quanto
ao que tinha. Seus limites, outrora uma fazendola esquecida e caindo aos
pedaços, tornou-se uma selva de proporções tão imensas quanto a sua
resistência para sobreviver, de contornos tão sombrios quanto o seu
entendimento para cálculos matemáticos.
Estava preso por um fuzil nas mãos e os pés amarrados a um coturno
militar. A extensão de seus inimigos tornou-se incalculável. Antes tinha
como inimigo o “Doido George”, que ele conhecia desde menino. Eram
inimigos fazia muito tempo e todos os anos competiam na corrida de
tratores, categoria tamanho médio. Tanto Jeremiah quanto Doido George
nunca chegaram em primeiro lugar e a única coisa que faria Jeremiah
Elmore retornar ao Texas, uma vez ao ano depois que se mudasse para NY,
seria para competir até vencer o primeiro lugar. E quando isso acontecesse,
ele deveria retornar ao Texas todos os anos e competir para garantir seu
posto de primeiro lugar. Seria um trabalho duro por muitos anos, mas tinha
muitos planos.
Jeremiah conversa sobre todo o tipo de coisa com Edgar B. Wilson e este
parece nunca se aborrecer.
___Madeleine fazia compotas de doces e vendia pra minha mãe. As
melhores compotas de amora de todo o Texas. Vinha gente de longe
comprar dela. Mas aí quando o pequeno Joe ficou esquisito, ela parou com
os doces. As amoras apodreceram. E nunca mais veio gente de longe.
Jeremiah faz uma pausa. Suspira as lembranças. Essas lembranças é tudo
o que carrega de mais precioso neste momento. Falar do pequeno Joe nunca
lhe pareceu tão familiar e como poder contar essas histórias o faz sentir
mais que um soldado esquivando-se da morte. Depois de tanto tempo
vivendo nos campos de uma guerra é possível que um soldado se esqueça
de onde veio. A imagem diária de consumada desgraça e os iminentes
instantes de pavor destroem o juízo.
___O pequeno Joe colhia as amoras depois da escola. Mas aí, um dia,
depois da escola ele não colheu mais nenhuma amora. Foi encontrado num
meio de mato todo machucado. Dizem que foram uns garotos do colégio.
Foi currado por vários deles. Aí ficou esquisito e meio confuso da cabeça.
Essas desgraças acontecem em todo lugar, não é Edgar?
___Sim. Está por toda parte. O mundo está afundado no fosso.
___Assim como a gente?
___Pior, bem pior.
Jeremiah Elmore nunca entendeu os motivos desses confrontos e pelo o
que pouco entendia dos seus superiores, percebeu que nem eles sabiam o
motivo pelo qual despejavam milhares de homens regularmente no meio da
selva do Vietnã, um país que para ele nunca existiu até também ser
despejado no meio da mata com um fuzil nas mãos. Ir para a guerra foi uma
escolha sua, pelo menos era o que Jeremiah e mais um punhado de outros
jovens soldados imaginavam. Porém, o senso de patriotismo pode destruir
um país. E o que motiva uma guerra quase nunca é realmente percebido por
aqueles que morrem lutando. Uma guerra sempre parece ser a guerra do
outro, ainda que convocados como pátria, esses homens só se deram conta
quando chegaram ao coração da selva, às margens das trevas e no limite
estreito com o inferno.
Era uma guerra pobre, lamacenta, chuvosa e imunda. De um lado homens
mergulhados num ideal nefasto conduzidos por palavras de ordem que os
transformavam num aglomerado de ratos que rastejavam dia e noite pela
mata densa e desconhecida. Do outro lado, ratos que pressentiam o cheiro
de sangue, que se movimentavam rápido e que estavam dispostos a morrer.
E principalmente isto, estar disposto a morrer faz de um soldado um
predador. Os soldados não foram à guerra para morrer, mas para serem
heróis. Os vietnamitas estavam dispostos a morrer para ter uma nação livre.
Ser parte disso faz com que alguns homens se sintam a escória, e muitas
vezes a escória tem um faro extraordinário para detectar a escória dos
outros, e ali, naquela guerra díspar, alguns punhados de soldados que
formavam cada batalhão tornavam-se incomuns, pois entendiam a dor do
lado mais fraco. A miséria do povo que se despedaçavam aos seus olhos.
Quem convive com a desgraça todos os dias, conhece os dias de miséria dos
outros.
O sofrimento, a intolerância e a injustiça são marcas profundas em toda a
história da família de Jeremiah Elmore e das famílias vizinhas à sua.
Para uma ampla parcela de soldados havia prazer em matar e torturar.
Aqueles que jogavam as bombas de napalm ou agentes químicos para o
desfolhamento da selva, como o agente laranja, não tocavam os pés no solo
morto, não sentiam o cheiro de carne queimada dentro de suas aeronaves,
não viam um corpo sequer despedaçar aos punhados ou tomavam o café da
manhã com o cheiro do napalm misturado ao aroma do leite morno.
Esses homens apertavam um botão e saciavam-se com a beleza das
explosões, as labaredas incendiárias que do chão tocavam o céu em breves
segundos. Para eles o confronto era diferente. Não se sujavam, não olhavam
nos olhos do inimigo, nunca se sentiam vítimas ou pensavam nelas. Eles
diziam cumprir ordens. É para isto que estavam na guerra. Os que decidiam
parar, não matar ou morrer, eram condenados e perseguidos. Eram os
desertores. Homens de remorso, que não suportavam matar camponeses
mediocremente armados. Essa espécie de homens não é aceita numa guerra.
E quando se está em uma a humanidade que cada um carrega precisa ser
destruída. Só resta a monstruosidade e ela deve ser alimentada todos os
dias.
___Como você veio parar aqui? ___pergunta Jeremiah.
___Não me lembro. Acho que sempre estive aqui.
___Sei como é. Às vezes sinto isso também ___ Jeremiah Elmore faz uma
pausa. ___ Mas sabe o que eu faço? Eu aperto bem os olhos assim ó e fico
lembrando da fazenda do velho Boulder, das compotas de doces da
Madeleine, de toda a poeira que já comi disputando o campeonato de
tratores. Aí eu sei que não pertenço a esse lugar miserável. Eu tenho minhas
lembranças, Edgar. É tudo o que eu tenho aqui.
A chuva torna-se minguada e o céu de um branco encardido. Uma
aeronave passa por cima de suas cabeças em direção ao oeste. Aquele
modelo é usado para lançar bombas de napalm na intenção de abrir clareiras
no meio da mata, e mata qualquer ser vivo que estiver próximo do seu raio
de alcance. Hoje é quarta-feira, dia em que o capitão Greenleaf gosta de
avançar para o oeste.
___Tenho medo de morrer aqui, Edgar.
___Todos têm.
___Você acha que eu consigo escapar desse lugar?
___Ninguém sai imune ou escapa de um lugar como esse.
___Não quero morrer. Os outros disfarçam, mas todo mundo está com
medo. Esse povo não vai se entregar. Ainda que a gente jogue bombas,
espalhe a morte, o terror, mas eles se multiplicam. Vamos perder essa
guerra, é isso o que eu acho. E espero que seja logo porque quero voltar pra
casa. Você tem algum palpite?
___Sim.
___ Qual é?
___Todos vão perder.
___Alguém sempre ganha, mesmo que seja uma vitória injusta. Alguém
sempre ganha. E não importa quem vença, só quero estar vivo.
___ Você tem algum palpite, Jeremiah?
___Sim. Acho que vamos sair daqui com o rabo entre as pernas.
Jeremiah dá uma risada.
___Mas eu não me importo. Depois de tudo o que vi aqui, eu não me
importo.
___Quantos já matou?___pergunta Edgar.
___Alguns, mas não sou bom nisso e me deixam quieto aqui no fosso até
me usarem de novo como bucha de canhão. E você?
___Sim. Matei toda a espécie necessária.
___E como foi?
___Foi como cumprir ordens.
___É o que a maioria dos homens aqui dizem. Vai matar de novo?
___Sim, Jeremiah. Estamos numa guerra. Vou matar de novo porque
sempre é preciso.
___Eu não vou mais matar, só se for eu ou o sujeito, aí sim....mas Deus
sabe que não mato mais ninguém se puder evitar. Tento ficar bem quieto pra
que me esqueçam aqui dentro do fosso. Prefiro a merda ao sangue em
minhas mãos.
Um temor doentio começou a se espalhar entre os soldados quando
perceberam que eram frágeis e suas habilidades e armamentos poderiam
não livrá-los da derrota ou das muitas baixas devido ao volume de mortes.
Meses antes isso não era possível. Essa sensação não estava lá. Enquanto os
vietnamitas comemoravam o seu ano novo lunar, chamado de ano Tet, num
dia de trégua dentro da guerra, mais de trinta mil guerrilheiros ocuparam
trinta e seis cidades sul-vietnamita que tinham o apóio dos Estados Unidos
e para demonstrar que uma guerra é feita mais do que por homens de
uniformes e bem armados, ocuparam a embaixada dos Estados Unidos em
Saigon.
Para aqueles que almejam e necessitam da liberdade não há possibilidade
de um dia de trégua. Os miseráveis guerrilheiros que largaram as enxadas,
mulheres e filhos no campo e combateram com as armas possíveis contra
gigantes invasores, os intrusos que os massacravam diariamente buscavam
a independência e a dignidade de não terem sua nação tomada. Não existe
trégua para quem luta por liberdade. Morreram aos milhares com a
investida e mataram um tanto outro punhado de soldados. E ali ficou ainda
mais evidente que os soldados buscavam ser heróis e os vietnamitas a
liberdade a preço de morte.
O ritmado farfalhar da chuva contra o fosso faz Edgar B. Wilson
permanecer por um longo tempo em silêncio observando o movimento dos
outros através das frestas das árvores. Tudo parece sob controle e há raros
momentos em que é possível esquecer que se está numa guerra. Um grupo
de soldados joga baralhos sob uma tenda e apostam revistas, cigarros e
loção pós-barba. Outros cochilam. Outros se mantêm isolados e pensativos.
Outros limpam as armas. Outros fazem fila para o banheiro.
Edgar olha para o céu e suspira. Esse sossego não é um bom sinal. Num
lugar assim, nunca é. O silêncio é interrompido pelo barulho do motor de
um pequeno barco que avança sobre o fosso.
___O capitão Greenleaf está vindo. Que Deus me proteja! ___murmura
Jeremiah.
O barco pára a dois metros de Jeremiah e uma onda bate forte contra seu
peito e respinga em seu rosto. Ele se mantém de prontidão e faz
continência.
A voz do capitão é nasalada e ele pronuncia cada palavra com muita
calma, prolongando demais as sílabas no final de cada frase, saboreando as
vogais gentilmente. O espaço de tempo entre suas frases é longo e isto
arrebenta os nervos de quem o teme. Um homem de pouco mais de
cinqüenta anos, careca e extremamente forte. O capitão desliga o motor do
barco, apanha uma laranja e começa a descascá-la sem ferir o fruto.
___Pode descansar, soldado Elmore.
Jeremiah murcha um pouco o peito e torna a respirar mais frouxamente.
___Há quanto tempo você está aqui?
___Seis horas, senhor.
___Tem resistido bem soldado. Essas águas corroem mais que agente
laranja.
Corta uma lasca da laranja e come. Seca o canto da boca com as costas
da mão direita.
___Tivemos algumas baixas ontem.
___Sim senhor. Eu soube.
___Uma excelente companhia. Vários homens meus não voltaram.
Capitão Greenleaf olha ao longe, através das frestas das árvores e
contempla o acampamento.
___Soube que desobedeceu ordens, soldado Elmore. Por isso te colocaram
aqui no fosso.
Greenleaf olha ao seu redor. O cheiro é insuportável, mas não perece se
importar ou senti-lo.
___Você é um bom filho?
___Eu me esforço pra ser, senhor.
___E um bom soldado?
___Também senhor.
___Já desobedeceu ordens da sua mãe ou do seu patrão?
Jeremiah hesita por algum tempo. O capitão Greenleaf espera pela
resposta enfiando mais um gomo de laranja na boca.
___Não me lembro, senhor ___murmura Jeremiah.
___Errado soldado ___fala o capitão de boca cheia. ___ Se tivesse
desobedecido teria sido punido. Ninguém esquece uma punição.
Jeremiah emudece. Sente o rosto afoguear. O capitão Greenleaf aponta
para o acampamento.
___Nenhum daqueles homens pertence às suas famílias. Quando uma
criança nasce ela é do Estado. Os pais devem cuidar, mas o Estado deve
zelar e vigiar. Já parou alguma vez na sua vida pra pensar nisso, soldado?
Os homens nascem e morrem e não se dão conta disso. Entenda bem,
Soldado Elmore, quando o seu país manda matar, você deve obedecer.
Jeremiah abaixa a cabeça.
___Eram inimigos. Você tinha uma ordem.
___Sim, senhor.
___Sabe quantas crianças estão aprendendo a armar emboscadas na selva?
Greenleaf enfia todo a resto da laranja na boca. O líquido vaza pelas
laterais. Ele mastiga sem pressa até engolir tudo.
___Faz três dias que o comandante Cleaver explodiu pelo rabo ___começa
Greenleaf. ___ Toda essa maldita selva está minada. O homem arriou as
calças e foi se aliviar numa moita e explodiu pelo rabo. O comandando
Cleaver era um dos homens de maior coragem deste lugar, e agora tudo foi
despedaço. Não sobrou nada. E por quê? Porque a porcaria de um soldado
de merda acostumado com o cheiro de bosta de uma fazendola do Texas
decidiu não cumprir suas ordens. Você deveria “desminar” o local e
eliminar todos que não fossem americanos.
___Eu removi as minas, senhor.
___Mas deixou as crianças escaparem. E foi uma delas que explodiu o
comandante Cleaver. A imprensa está comendo o nosso fígado. Agora nos
chamam de assassinos.
Capitão Greenleaf fica de pé no pequeno barco. Está terrivelmente
exaltado.
___Parece que todo cidadão americano resolveu protestar contra a nossa
permanência nessa guerra, mas eles não sabem de merda nenhuma do que
acontece aqui. Tudo o que sabem é o que assistem na hora do jantar pela
televisão. A imprensa está nos transformando numa piada e essa guerra
num circo.
Silêncio entre os homens. Resta apenas o marulhar fétido do fosso.
___Não foi uma criança, senhor ___diz Jeremiah.
___Como assim, soldado? Temos relatos.
___ Não havia nenhuma criança.
___O que era então?
___Um anão, senhor.
___Um anão?
___Sim, senhor.
___Como você pode ter certeza disso, soldado?
___Porque eu vi bem de perto, senhor. E eles são rápidos também.
Ficam em silêncio.
___Você disse: eles, soldado?
___Havia pelo menos três, senhor. Só que dois estavam mais distantes.
Capitão Greenleaf incrédulo. Retira o boné e alisa a cabeça.
___Anões!
___Senhor, não existem crianças lutando. São anões.
___Você quer que eu acredite que um guerrilheiro vietnamita anão explodiu
o comandante Cleaver pelo rabo?
___Foi exatamente isto que aconteceu senhor.
Uma aeronave vinda do sul sobrevoa o fosso e segue em direção ao
acampamento. O capitão Greenleaf espreme os olhos e à distância percebe a
agitação dos soldados. Ele precisa voltar.
___Soldado Elmore, você está dizendo que nessa porcaria de selva existem
anões como na porra da Branca de Neve? E que eles estão nos atacando?
___Não sei se são como os da Branca de Neve, senhor, mas eu tenho
certeza de que vi anões nos atacando.
Greenleaf coloca novamente o boné e dá a partida no barco.
___Malditos contos de fadas! ___murmura o capitão desacreditado e
avança sobre o fosso deixando um rastro retilíneo.
Edgar B. Wilson que permaneceu quieto e invisível por todo o tempo
manifesta alguma inquietude e pigarreia. Olha para Jeremiah e espera que
diga alguma coisa sobre sua recente afirmação.
___Não me olhe desse jeito. Você não estava lá. Eram anões e eu tenho
certeza disso.
Edgar sorri levemente. Parece satisfeito.
___Não ria, Edgar. Você me desmoraliza assim.
Edgar continua sorrindo.
___Existem anões lutando nesta selva e acho que ninguém aqui está
preparado pra isso ___fala Jeremiah.
___Preparado pra quê?
___Pra matar anões. São pequenos, frágeis, parecem crianças. É estranho.
Nunca pensei nisso, mas o que atingiu o comandante Cleaver só tinha um
braço.
Edgar B. Wilson pela primeira vez desde que se encontrara naquele fosso
dá uma gargalhada que provoca ondas. Jeremiah não se contém.
O comandante Cleaver um dos militares mais respeitados da América,
um dos homens mais temidos desde que a guerra do Vietnã começou; que
nunca hesitou dar ordens nefastas, armar emboscadas e determinar em
segredo o despejo de toneladas de agente Laranja e ataques de napalm na
selva, foi morto enquanto cagava atrás de uma moita por um anão
vietnamita guerrilheiro de um braço só.
___O comandante Cleaver estava com desinteria fazia uns dois dias
___conta Jeremiah. ___ A gente caminhava uns trezentos metros e parava
pra ele se aliviar numa moita. Aquilo foi deixando uma trilha de merda por
todo o maldito caminho e os guerrilheiros perceberam a coisa toda. A cada
parada atrás da moita, o comandante Cleaver passava um recebido de que a
gente esteve ali e seguia caminho.
Jeremiah respira fundo. Sente-se desolado e enjoado devido ao cheiro do
fosso. Gostaria de se acostumar com aquilo. Se permanecesse por mais
algum tempo ali dentro seria capaz de conseguir. Decide continuar sua
história.
___ Nesse dia a gente estava numa missão importante pra pegar uns
vietcongs num vilarejo e ia ser uma grande emboscada. Não tinha como dar
errado, mas a desinteria do comandante salvou a minha alma.
___Como uma coisa dessa salvou a sua alma?
___A gente ia pra um vilarejo em que só tinha mulheres, velhos e crianças.
Não havia um guerrilheiro lá. Eu não ia conseguir matar aquele monte
gente. Eu não. E os soldados me matariam quando me vissem desistir.
___Era uma armadilha ___comenta Edgar.
___Sim... desde a ofensiva no início do ano os comandantes
enlouqueceram. Iam repetir o que aconteceu em março no vilarejo 1May
Lai. Aquilo foi um pesadelo. Agradeço a Deus todas as horas por ter ido
desminar o campo naquele dia de março e não ter participado daquilo.
Os olhos de Jeremiah lacrimejam. A voz fica embaraçada.
___O Stuart não agüentou. Se enforcou três dias depois do massacre. Me
contou que matou uma grávida e o filho que ela segurava pela mão. Matou
um aleijado. Oito bebês.
Dezenas de velhos e meninas e mulheres. Ele me disse que nunca imaginou
tanta desgraça. Pobre Stuart, não agüentou.
___Homens que se suicidam ficam presos aos lugares em que morrem
___comenta Edgar.
___Eu não sabia disso __diz Jeremiah.
___Ele ainda está por aqui. Ficará preso neste inferno por muito tempo.
___Eu espero conseguir agüentar tudo isso, Edgar. Não quero fazer como o
Stuart. Não quero me matar.
___E se você morrer? __pergunta Edgar B. Wilson.
___O que tem isso?
___O que você pensa de morrer num lugar como este?
___Espero não ter muito tempo pra pensar. Muitos soldados agonizam
durante horas antes de morrer. Semana passada enquanto eu me mantinha
na minha posição crucial conduzindo uma operação, o ataque atingiu o
Joseph que vinha a muitos metros atrás de mim.
Jeremiah pára de falar. Está engasgado. Os olhos doem com a chegada
das lágrimas. Seu corpo está trêmulo. A chuva engrossa e engole seu choro
e suas lágrimas. Sente-se interrompido. A continuidade de seus
pensamentos flui vagarosamente. Ele era convocado muitas vezes como
Point Man, o soldado que vai à frente durante uma operação e conduz todos
os outros não por ser mais valente ou condecorado, mas o Point Man deve ir
à frente atento a todo o tipo de emboscadas e armadilhas. É ele quem deve
morrer primeiro. Jeremiah já conduziu dezenas de operações e nunca foi
atingido.
Quando Joseph foi atingido por um morteiro, Jeremiah o colocou sobre
os seus ombros e o carregou em direção a uma clareira que ficava a um
quilômetro de distância. Joseph pesava 83 quilos. Jeremiah estava
acostumado a carregar cerca de 90 quilos sobre os ombros enquanto
percorria seiscentos metros. O que fez com que Jeremiah suportasse o peso
sem maiores dificuldades foi o fato da perna esquerda de Joseph ter ficado
caída no local da explosão. Os membros inferiores são os que mais pesam.
Joseph levou três horas para morrer. Não percebeu a falta da perna. Achou
que tivesse perdido somente o pé. Durante três horas, Jeremiah fez o que
pode. E o que pode, continuou achando que foi muito pouco. Durante todo
o tempo ele vivia a morte lenta do amigo e a sua também. Uma das coisas
que certamente um soldado mais teme numa guerra é morrer sozinho ou nas
mãos do inimigo. E para não morrer nas mãos do inimigo é aconselhável
carregar uma pequena pistola no bolso do uniforme, caso seja capturado.
Isso evita a morte lenta e agonizante. Um tiro na cabeça e você não estará
mais lá.
___Sabe Edgar, eu sou o Point Man que mais durou em todo tempo de
atuação. Ninguém entende como eu ainda não morri.
___Você só vai morrer quando for a hora certa ___responde Edgar.
___Meu avô costumava dizer isso. A gente só morre quando chega a hora.
Eu perguntava pra ele porque Deus permitiu que o tio Jarred morresse
queimado e enforcado pendurado numa árvore pela KKK. Ele dizia que
havia chegado a hora do tio Jarred __ Jeremiah faz uma pausa prolongada.
___A Klan matou muitos da minha família desde o meu tataravô. Nos
caçavam feito bichos. Agora nos colocam aqui pra seguir bem à frente dos
soldados pra morrer primeiro. Estamos sendo caçados e mortos como a
maioria desses amarelos vietnamitas. Igualzinho a eles. A gente lutando e
morrendo aqui e eles lá mataram o Luther King no mês passado. Eles
calaram o homem, mas não antes que ele dissesse que tinha um sonho. Eu
também tenho um sonho, Edgar. E ele é tudo o que eu tenho aqui. Se eu
morrer nesta guerra, eu morro com o meu sonho.
Jeremiah suspira e sussurra uma canção entre os dentes para si.
Interrompe para falar.
___Eu vi o tio Jarred pendurado na árvore. Ainda saía fumaça dele. Os
abutres rodeavam a árvore, mas a tia Hope conseguiu cortar a corda e tirar
ele de lá. Ontem eu vi um homem, criador de porcos, segurando uns
pedaços queimados do corpo da filha. Quando me viu, começou a gritar. Ele
me acusava de ter matado a menina. A menina alimentava os porcos quando
morreu. Os porcos estavam vivos. Foi um ataque de Napalm. Eu só
conseguia pensar na tia Hope. Ela olhava pra mim e dizia Por quê?.
Jeremiah ainda pequeno aprendeu com seu irmão mais velho um poema.
E toda a sua casa o sabia de cor. Nunca mais subiu numa árvore e tinha
pesadelos de um dia se tornar um desses frutos, pendurado pelo pescoço e
de mãos amarradas.
Árvores sulistas têm um estranho fruto, Sangue nas folhas e sangue na
raiz, Corpo negro balançando ao sopro da brisa do Sul, 2 Strange fruits, de
Lewis Allan.
Fruto estranho pendente em álamos.
Cena pastoral do Sul galante, Os olhos esbugalhados e a boca torcida,
Perfume de magnólia doce e fresco, E o súbito cheiro de carne queimada!
Eis um fruto para os corvos bicarem, Para a chuva arrancar, para o
vento sugar, para o sol apodrecer, para uma árvore deixar cair, Eis uma
estranha e amarga colheita''
Jeremiah cala-se e permanece com o olhar distante sobre o acampamento.
A chuva agrava-se terrivelmente e dificulta ver o que se passa a curta
distância. Torna-se feroz a cada minuto sendo impossível não sucumbir às
águas do fosso que aumentam de volume. Mas ele permanece firme.
Jeremiah Elmore tem um sonho que só ele conhece. Olha para o lado e
Edgar não está. Não faz idéia para onde ele possa ter ido. Uma mão por trás
de sua cabeça tapa seus olhos com força, porém o toque é suave. Jeremiah
tenta se desvencilhar. Algumas palavras são sussurradas em seu ouvido para
em seguido seu pescoço ser cortado. Ele desliza sobre o fosso que o traga.
Edgar B. Wilson enquanto caminha para fora do fosso lava a faca com a
água da chuva. Não deixa pegadas no chão lamacento da selva. Atravessa o
acampamento sem pressa. Observa à distância alguns homens protegidos da
chuva e segue em direção a uma colina. Homens como Jeremiah Elmore
não devem ir para uma guerra. Não devem morrer pelas mãos de outros
homens. O que muitos não sabem é que existem homens que devem morrer
apenas pelas mãos dos anjos. Nem todos têm essa sorte. Edgar B. Wilson,
uma espécie de serial killer divino, continuará eliminando homens em
silêncio. Ele segue para outro acampamento. Ainda restam homens para
resgatar.
A chuva é interrompida minutos depois. Ficou sem chover por duas
semanas.

***

A porta do escritório do capitão Greenleaf é aberta por um soldado que


carrega uma pasta. O capitão abaixa seus óculos de leitura e olha para o
soldado.
___Com licença, senhor. Aqui está a pasta com a documentação do soldado
Jeremiah Elmore. Ele foi encontrado essa manhã quando as águas do fosso
baixaram.
O capitão Greenleaf coloca os óculos novamente e verifica a
documentação de Jeremiah e o relatório de sua morte.
___Senhor, com este já são mais de duzentos casos de soldados mortos na
mesma circunstância desde o início da guerra.
___Vietcongs? ___pergunta o capitão.
___Russos, senhor. A inteligência acha que são os russos.
___Obrigado soldado. Dispensado.
O capitão Greenleaf levanta de sua mesa e vai até um arquivo de metal.
Abre uma grande gaveta e procura pela letra E. Murmura a letra até
encontrá-la. Elmore, Jeremiah. Espreme a pasta entre tantas outras e fecha a
gaveta.
Table of Contents
Título
Índice
Esporo
Javalis no Quintal
Javalis no Quintal
Desmedido Roger
Desmedido Roger
O Fosso
O Fosso
Chapter Six
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