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Modos de Vida Alternativos
Modos de Vida Alternativos
Anete Roese
Adilson Schultz
Resumo
Noiva do cordeiro é uma comunidade rural liderada por mulheres, que desenvolveu
um modo de vida alternativo e sustentável, com partilha de bens e fim da religião
institucionalizada. Forjado ao longo de mais de um século, num processo de
constantes rupturas religiosas, familiares e ideológicas, esse inusitado modo de vida
produziu uma comunidade autônoma, com sujeitos autônomos e responsáveis uns
pelos outros, que se tornaram lideranças sociais e políticas. No centro de sua história,
experiências de sofrimento e rupturas relacionadas à religião, à fome, e à estrutura
familiar patriarcal. O estudo do caso de Noiva do Cordeiro tem a intenção de analisar
elementos subjetivos deste processo, verificando os indicativos e as implicações de tal
fenômeno religioso e social, especialmente os limites e o fim de determinado modelo
de religião. Os pressupostos teóricos deste estudo apontam para uma perspectiva
transdisciplinar que compreende a teologia, a sociologia e a psicologia da religião e,
nestes campos, as teorias feministas.
Palavras-chaves: Noiva do Cordeiro; modos de vida alternativos; fim da religião;
liderança de mulheres; valores humanos.
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ultimato e pediu que ela decidisse se queria ficar com ele ou com a sua comunidade
de origem (Noiva do Cordeiro). Desesperada e cansada da violência do marido para
com ela e com as crianças, Geraldina reuniu as crianças e contou-lhes o que se
passava e lhes comunicou sua decisão. Deixaria o marido e voltaria. Os filhos e as
filhas a acompanharam. Foi Delina, a matriarca, que decidiu acolher Geraldina e seus
11 filhos e filhas no casarão onde ela morava. Geraldina e Delina tinham juntas 22
filhos e filhas, que hoje fazem parte da comunidade.
O pastor Anísio, já com a liderança fragilizada, faleceu em 1995. Em consequência de
sua morte a comunidade Noiva do Cordeiro abandona definitivamente a Igreja, os
rituais e os dogmas religiosos. É o fim da prática religiosa naquela comunidade, é o
fim da maldição. A este acontecimento segue uma nova etapa de discriminação por
parte da sociedade e da comunidade religiosa externa. O casarão que já era
denominado de casa de prostitutas, agora, com o abandono da religião, é também
apontado como casa do diabo. Se antes a comunidade sofria discriminação por causa
da religião e agora sofre discriminação porque não tem religião.
O convívio, a fé, o sofrimento ao longo dos anos fez com que a grande família se
unisse e começasse a trabalhar e viver em coletividade, já que a terra era pouca para
tanta gente trabalhar e sobreviver individualmente. Em 1999 foi criada uma associação
comunitária, de modo que todos trabalhassem para o bem comum. As mulheres
ficaram trabalhando na terra, fazendo tapetes, colchas e costurando lingeries, e os
homens foram buscar trabalho na cidade. A criação da associação fez com que
conseguissem dinheiro público para fazer investimentos como compra de máquinas de
costura. Buscaram formação, fizeram cursos de computação/informática e se
conectaram com o mundo. Além disso, elegeram uma representante no poder público
(uma vereadora).
As pessoas da comunidade Noiva do Cordeiro tem uma história de desenraizamentos
(WEIL, 2001) que solapam sua dignidade e que se efetivam por meio da exclusão
econômica (pobreza), da exclusão social (discriminação e preconceitos) e da exclusão
religiosa (violência moral). Por outro lado, há um século pessoas desta comunidade
iniciam movimentos de ruptura e reação contra os sistemas de exclusão. Por esta
razão, ouvir sua história faz com que experiências significativas possam ser relatadas,
para que os sujeitos da história possam interpretar e ressignificar sua própria história,
e para que a memória seja forte e capaz de fazer pequenas revoluções no cotidiano.
Por trás da experiência das mulheres de Noiva do Cordeiro existem sujeitos que
transformaram a própria história. Existem sujeitos que se tornaram responsáveis pela
transformação do mundo a partir de sua própria comunidade. Existem sujeitos que
efetivam o amor ao próximo por meio do exercício de responsabilidade (FRANKL,
1991) pelo próximo e pelos processos do outro. São sujeitos que praticam o amor a
si mesmo na medida em que tem respeito por si mesmo, pelos próprios sentimentos
porque não se submeteram ao amor imposto, ao casamento imposto, à religião
imposta e à exclusão imposta. E não há apenas revolta, há sonhos, fé e processos de
construção de uma nova sociedade.
Em Noiva do Cordeiro a comunidade aprendeu que o fechamento sobre si mesmo não
lhes dava força. A abertura levou a comunidade a contar e recontar sua própria
história e recorrer à memória mais profunda da mesma. Deste modo o enraizamento e
o fortalecimento das próprias raízes e do poder local deu-lhes cada vez mais
autonomia.
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sem espírito.
Há uma voz de protesto ou um espírito de dissidência que liga Dona Senhorinha, em
1891, a Dona Delina, em 2010; e obviamente há uma espécie de magma comum que
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-74)
Ao invés de escolher entre dois campos, deve-se afirmar a existência
de contradição mais profunda, que opõe a afirmação da defesa do
sujeito pessoal e de sua liberdade à lógica dos sistemas, quer esta
lógica seja a do mercado ou a de uma identidade nacional ou
cultural. (TOURAINE, 348-349)
Pode ser isso o que está sendo gestado em Noiva do cordeiro: constituição de
sujeitos autônomos, que gerarão uma comunidade livre. Nem o isolamento identitário
no gueto, nem a indiferenciação de parecer-se com todo mundo. No aspecto religioso
significaria uma terceira via entre a massa catolicizante e o gueto pentecostal, com a
constituição de uma espiritualidade que transcende os dois movimentos. Assim
também
pode ser entendido a conjugação de um sistema econômico baseado na partilha da
terra e na casa comum e, ao mesmo tempo, no salário individual na cidade. Assim a
frequência à escola convencional e a educação paralela na comunidade, onde as
crianças aprendem valores opostos ao do mundo e da escola.
E como associar a experiência de subjetivação individual, baseada no sujeito, com o
espírito comunal que marca Noiva do cordeiro? Autonomia não gera individualismo?
não apenas liberdade de. O primeiro está ligado à ideia de sujeito, e o segundo, à
ideia de indivíduo. O sujeito é um ser para algo, no sentido da ação, da disposição
para a vida social, e não para si mesmo. É como se ao formular a noção de sujeito
imediatamente se formulasse a ideia de viver juntos.
Referências
FRANKL, Viktor. Em busca de sentido. 14. ed. São Leopoldo: Sinodal; Petrópolis: Vozes,
1991.
GEBARA, Ivone. Rompendo o silêncio. Uma fenomenologia feminista do mal.
Petrópolis:
Vozes, 2000.
GUATTARI, Félix. As três ecologias. 17 ed. São Paulo: Papirus, 1990.
JASPERS, Karl. A situação espiritual do nosso tempo. Rio de Janeiro: Morais editores,
1964 (edição original: Alemanha, 1930).
NOIVA DO CORDEIRO. Documentário. Rio de Janeiro: Globo Filmes / GNT. Exibido no
canal GNT em 26 de agosto de 2008.
SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo
capitalismo. 14a ed. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 2009 (edição original: Estados
Unidos da América, 1998).
SODRÉ, Olga. Contribuição da fenomenologia hermenêutica para a psicologia.
Psicologia USP, 2004, 15(3), 55-80.
TOURAINE, Alain. Poderemos viver juntos? Iguais e diferentes. Petrópolis: Vozes, 1999
(edição original: França, 1997).
WEIL, Simone. O Enraizamento. Bauru: EDUSC, 2001.