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Modos de vida alternativos: o caso da

comunidade Noiva do Cordeiro

Anete Roese
Adilson Schultz

Resumo
Noiva do cordeiro é uma comunidade rural liderada por mulheres, que desenvolveu
um modo de vida alternativo e sustentável, com partilha de bens e fim da religião
institucionalizada. Forjado ao longo de mais de um século, num processo de
constantes rupturas religiosas, familiares e ideológicas, esse inusitado modo de vida
produziu uma comunidade autônoma, com sujeitos autônomos e responsáveis uns
pelos outros, que se tornaram lideranças sociais e políticas. No centro de sua história,
experiências de sofrimento e rupturas relacionadas à religião, à fome, e à estrutura
familiar patriarcal. O estudo do caso de Noiva do Cordeiro tem a intenção de analisar
elementos subjetivos deste processo, verificando os indicativos e as implicações de tal
fenômeno religioso e social, especialmente os limites e o fim de determinado modelo
de religião. Os pressupostos teóricos deste estudo apontam para uma perspectiva
transdisciplinar que compreende a teologia, a sociologia e a psicologia da religião e,
nestes campos, as teorias feministas.
Palavras-chaves: Noiva do Cordeiro; modos de vida alternativos; fim da religião;
liderança de mulheres; valores humanos.

Uma história de rupturas, sob a liderança de mulheres


A história da comunidade Noiva do Cordeiro tem mais de um século e tem à sua
frente três grandes mulheres: Maria Senhorinha, Delina Fernandes, Geraldina. Juntas,
geraram 31 crianças. As filhas e os filhos que elas tiveram geraram outras famílias,
que hoje formam a comunidade que está situada atrás das montanhas, no município

Uma versão oral do texto foi apresentada como minicurso no I Congresso de


Desenvolvimento Sustentável
e cidadania, pratrocinado pelo Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix, em
outubro de 2011. Outra
versão também oral foi apresentada em Mesa Redonda no Fórum Mundial de Teologia
e Libertação, em
fevereiro de 2011, por ocasião do Fórum Social Mundial, em Dakar, Senegal.
Anete Roese é doutora em Teologia. Professora na Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais.
anete.roese@gmail.com
Adilson Schultz é doutor em Teologia. Professor no Centro Universitário Metodista
Izabela Hendrix e na
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. adilson.schultz@gmail.com
A pesquisa está em fase inicial. Há um grande conjunto de informações históricas
ainda não disponíveis.
Além do acompanhamento e monitoramento na imprensa sites, jornais e
documentários -, a pesquisa teve como base uma pesquisa de observação participante,
com visita à comunidade em agosto de 2010. Na oportunidade houve intensa
conversação com as lideranças da comunidade sobre o futuro da pesquisa, a ser
desenvolvida com instrumentos mais sistematizados. Abre-se um leque de
possibilidades...
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de Belo Vale, distante apenas 100 km da cidade de Belo Horizonte, no Estado de
Minas Gerais O protagonismo feminino tem início em 1890 quando, por decisão do
pai, Senhorinha se casa com Artur Pierre. Infeliz no casamento, Senhorinha conheceu o
grande amor de sua vida Chico Fernandez. Engravida, foge de casa e vai viver com
Chico, com
quem terá nove filhos. A mulher que teve um amante abandona o marido e agora
sofre preconceito e discriminação, e será difamada na redondeza de onde vive agora
com o novo marido. No novo lugar sofrerá preconceito até por parte da família de
Chico, que a tem como adúltera e trata de difamá-la na região. Quando passam a ser
hostilizados neste lugar (Roças Novas) tratam de fugir para outra cidade (Belo Vale).
Quem conta esta história é Maria Matuzinha, a filha mais nova de Senhorinha, que
excomungados pela Igreja (Igreja Católica Romana), cujo padre lança sobre o casal e
sua família esta maldição. A excomunhão incluía o casal e toda a família que viria
depois até quatro gerações. A maldição, que já havia começado, era a exclusão
espiritual com a perda e direitos que lhe eram oferecidos pela igreja tal como o
batismo de seus filhos, e a discriminação social e familiar. Mas Senhorinha construirá
com Chico o casarão que depois será o centro da comunidade Noiva do Cordeiro, em
Belo Vale, que será difamado como casa de mulheres vadias. Apesar de todo
sofrimento que a história revela, esta é também a história de uma ruptura com o
modelo do poder paterno e com um modelo de casamento. Ruptura que tem como
protagonista Maria Senhorinha. A segunda grande mulher é Delina, que hoje é
matriarca da comunidade, é neta de Senhorinha e Chico Fernandez. Em torno de
Delina acontece outro grande episódio. Por volta de 1940 aparece na comunidade um
pastor oriundo de uma Igreja Batista, que funda uma nova Igreja com o nome Noiva do
Cordeiro. Era o pastor Anísio - este era seu nome. Era um homem solteiro. Não
demorou e ele pediu ao pai e à mãe de Delina a mão da filha em casamento. A jovem
Delina tinha então apenas 16 anos e o pastor Anísio tinha 43. A mãe e o pai de Delina
deixaram que a filha tomasse a decisão. Delina então se casou. Delina tem à sua frente
longos anos de padecimento. Desta vez o problema não era tanto o casamento com
este homem tão mais velho, mas a Igreja a que ela pertenceria. Ainda que a família
tivesse sido excomungada pela Igreja Católica, o preconceito contra os evangélicos era
muito grande num lugar de maioria católica. Era mais um motivo para hostilidade.
Delina passou a acompanhar o marido em longas viagens por onde o pastor fundava
comunidades e onde passava e residir durante alguns anos. Logo Delina estaria
grávida da primeira de 11 crianças. A notícia não foi bem recebida pelo marido, que
ainda tinha outros projetos. Delina fazia hortas e pequenas roças para dar de comer
às crianças, mas não raro passavam fome e outras necessidades. Às vezes, quando a
roça estava bem bonita, aparecia o caminhão que carregava toda a mudança e todas
as crianças. Era chegada hora de se mudar para outra comunidade para onde o
pastor havia decidido se mudar. Lá ia Delina aos prantos. O preconceito contra a Igreja
Evangélica do pastor Anísio atingia a família e o casamento. Fofocas davam conta de
criar casos em torno das filhas mais velhas do
pastor, cuja reputação de pai era atingida também. De Anísio inventavam que ele não
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dava conta de sua tarefa de pai de família, ao que ele respondia usando de violência
contra suas filhas e filhos e contra a esposa.
Por fim a família se fixou em Belo Vale, o lugar de origem de Delina, na terra que
pertencia a ela. Lá anos muitos duros seguiriam. A Igreja do pastor Anísio impunha
regras muito severas a todos que a seguiam e o isolamento da comunidade agora se
agravaria em vista da rigidez da doutrina. Quase tudo não podia, quase tudo era
pecado. Não havia televisão, era proibido ouvir música e dançar. As rezas eram longas
e diárias e acompanhadas de jejuns semanais que traziam fraqueza física para
pessoas que tinham duro trabalho de plantação e colheita na roça. Havia castigos
públicos para quem não seguisse os preceitos, que ainda incluíam proibição de uso de
álcool, métodos contraceptivos e corte de cabelo. O isolamento por meio do
preconceito, mas também pela falta de informação, educação e alimentação levaram a
comunidade à pobreza extrema. Os cultos incomodavam a comunidade católica e
geravam conflitos religiosos.
A maldição que cobriria quatro gerações parece aos poucos chegar ao fim com o
envelhecimento do pastor Anísio e a fragilização de sua liderança. Delina, ainda mais
jovem, é a mulher que sutilmente lidera uma ruptura com uma moral religiosa nefasta
e uma violência psicológica imposta pela religião e pela sociedade. Em dado momento,
Delina se nega a pedir perdão em público, diante do marido e da comunidade por
coisas que supostamente teria dito. Ela se nega a ir aos cultos do marido. Ela tem
consciência que não precisa passar fome para ser considerada filha de Deus. Muitas
vezes defendeu suas filhas e seus filhos diante da violência do marido e das fofocas
das comunidades vizinhas. Ela é a mulher da sua geração que rompe com o modelo
patriarcal de igreja. É a partir dela e com a anuência dela começa uma nova história
nesta comunidade. Na década de 1990 elas decidem abandonar as igrejas e toda
religião. Mas Delina não abandona os valores espirituais e humanos que aprendeu ao
longo de sua vida. E agora ela reúne as pessoas no casarão e lhes ensina regras de
convívio e comportamento, o amor ao próximo, o respeito e sobre a divisão de bens.
Foi Delina quem permitiu que na cerimônia de casamento de sua filha tivesse música,
e a emoção deste dia foi um momento fundamental para uma ruptura. A emoção lhes
deu alegria e alguns resolveram dançar. Neste dia muitos jovens dançaram pela
primeira vez. Era o começo de um novo tempo.
A filha mais velha de Adelina, Rosalee, organizou secretamente um grupo de mulheres
que já haviam tido muitos filhos e as levou para fazer cirurgia de ligadura de trompas.
Maria Doraci conta que a comunidade já fazia muitos questionamentos. Entre eles,
começaram a estranhar o fato de que segundo a pregação do pastor, só eles, só a
comunidade de Noiva do Cordeiro, caso seguissem todos os preceitos com rigor, iriam
para o céu. Doraci diz que elas começaram a estranhar o fato de no mundo haver
tanta gente e, no entanto, somente as poucas pessoas de sua Igreja ir para o céu.
Seria assim mesmo?
A outra grande mulher que compõe a história de rupturas com modelos autoritários é
Geraldina, prima de Delina. Nascida na comunidade, Geraldina casou-se e teve que
buscar sustento na cidade de Belo Horizonte. Foi morar na periferia da capital, onde
teve 11 crianças. O fato de Geraldina ser nascida em Noiva do Cordeiro fazia com
que sofria os mesmos preconceitos que as outras pessoas da comunidade, que era
vistas como gente retrógrada, no comércio eram olhados com desconfiança, as
mulheres eram vistas como ameaça. O marido de Geraldina, cansado dos falatórios
sobre as mulheres de Noiva do Cordeiro, que incluíam sua própria mulher, deu-lhe um

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ultimato e pediu que ela decidisse se queria ficar com ele ou com a sua comunidade
de origem (Noiva do Cordeiro). Desesperada e cansada da violência do marido para
com ela e com as crianças, Geraldina reuniu as crianças e contou-lhes o que se
passava e lhes comunicou sua decisão. Deixaria o marido e voltaria. Os filhos e as
filhas a acompanharam. Foi Delina, a matriarca, que decidiu acolher Geraldina e seus
11 filhos e filhas no casarão onde ela morava. Geraldina e Delina tinham juntas 22
filhos e filhas, que hoje fazem parte da comunidade.
O pastor Anísio, já com a liderança fragilizada, faleceu em 1995. Em consequência de
sua morte a comunidade Noiva do Cordeiro abandona definitivamente a Igreja, os
rituais e os dogmas religiosos. É o fim da prática religiosa naquela comunidade, é o
fim da maldição. A este acontecimento segue uma nova etapa de discriminação por
parte da sociedade e da comunidade religiosa externa. O casarão que já era
denominado de casa de prostitutas, agora, com o abandono da religião, é também
apontado como casa do diabo. Se antes a comunidade sofria discriminação por causa
da religião e agora sofre discriminação porque não tem religião.
O convívio, a fé, o sofrimento ao longo dos anos fez com que a grande família se
unisse e começasse a trabalhar e viver em coletividade, já que a terra era pouca para
tanta gente trabalhar e sobreviver individualmente. Em 1999 foi criada uma associação
comunitária, de modo que todos trabalhassem para o bem comum. As mulheres
ficaram trabalhando na terra, fazendo tapetes, colchas e costurando lingeries, e os
homens foram buscar trabalho na cidade. A criação da associação fez com que
conseguissem dinheiro público para fazer investimentos como compra de máquinas de
costura. Buscaram formação, fizeram cursos de computação/informática e se
conectaram com o mundo. Além disso, elegeram uma representante no poder público
(uma vereadora).
As pessoas da comunidade Noiva do Cordeiro tem uma história de desenraizamentos
(WEIL, 2001) que solapam sua dignidade e que se efetivam por meio da exclusão
econômica (pobreza), da exclusão social (discriminação e preconceitos) e da exclusão
religiosa (violência moral). Por outro lado, há um século pessoas desta comunidade
iniciam movimentos de ruptura e reação contra os sistemas de exclusão. Por esta
razão, ouvir sua história faz com que experiências significativas possam ser relatadas,
para que os sujeitos da história possam interpretar e ressignificar sua própria história,
e para que a memória seja forte e capaz de fazer pequenas revoluções no cotidiano.
Por trás da experiência das mulheres de Noiva do Cordeiro existem sujeitos que
transformaram a própria história. Existem sujeitos que se tornaram responsáveis pela
transformação do mundo a partir de sua própria comunidade. Existem sujeitos que
efetivam o amor ao próximo por meio do exercício de responsabilidade (FRANKL,
1991) pelo próximo e pelos processos do outro. São sujeitos que praticam o amor a
si mesmo na medida em que tem respeito por si mesmo, pelos próprios sentimentos
porque não se submeteram ao amor imposto, ao casamento imposto, à religião
imposta e à exclusão imposta. E não há apenas revolta, há sonhos, fé e processos de
construção de uma nova sociedade.
Em Noiva do Cordeiro a comunidade aprendeu que o fechamento sobre si mesmo não
lhes dava força. A abertura levou a comunidade a contar e recontar sua própria
história e recorrer à memória mais profunda da mesma. Deste modo o enraizamento e
o fortalecimento das próprias raízes e do poder local deu-lhes cada vez mais
autonomia.

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Espírito de protesto: Noiva do Cordeiro como laboratório de sujeitos autônomos


Os movimentos de ruptura ao longo da história de Noiva do cordeiro são tentativas
de articular um novo mundo. Mesmo o isolamento na igreja evangélica, onde o
discurso de abandono do mundo está mais evidente, com forte ascetismo, já é um
movimento criativo, no sentido de contestação da sociedade - todo movimento asceta
movimento que
define esse espírito de protesto - pode ser uma igreja evangélica, pode ser uma
comunidade isolada, pode ser uma mulher que abandona o casamento patriarcal ou o
poder do pai, pode ser abandonar a religiosidade convencional. O que coloca Noiva

qualquer autoridade que se reivindique absoluta. Tomado como movimento, Noiva do

sem espírito.
Há uma voz de protesto ou um espírito de dissidência que liga Dona Senhorinha, em
1891, a Dona Delina, em 2010; e obviamente há uma espécie de magma comum que

dissidência ao longo da história da humanidade. As experiências de acolhimento da


dissidência em Noiva do cordeiro são um bom exemplo disso. O espírito de protesto
que contesta a ordem social e o status quo anda de braços dados com a
constituição de sujeitos autônomos. Nesse sentido, ao promover a dissidência, Noiva
do cordeiro é um laboratório de sujeitos autônomos.
A teoria do sujeito formulada por Alain Touraine ajuda a capturar o movimento em
curso em Noiva do cordeiro. Touraine apresenta a constituição do sujeito autônomo
como alternativa diante da escravidão do indivíduo preso às opções do gueto ou da
massa, seja em âmbito cultural, seja em âmbito econômico-social. Segundo Touraine,
de um lado está a opção da indiferenciação do mercado do desejo, que iguala tudo
e todo mundo, e nos torna iguais, mimetizando o desejo: devemos pensar as mesmas
coisas, desejar as mesmas coisas, vestir-se do mesmo modo, e até revoltar-se do
mesmo modo. De outro lado, a opção pelos particularismos de toda ordem,
geralmente com reivindicação grupal e identitária, o que pode nos isolar na identidade
rígida da simples oposição ao mundo. É o gueto versus a massa. Touraine denominará

(TOURAINE, 73-74). Embora as estratégias sejam diferenciadas nas duas alternativas, o


fim acaba sendo o mesmo isolamento do indivíduo, que sem comunicação, acaba
escravizado.
A questão colocada por Touraine, então, é como será possível parar o duplo
movimento que enclausura a todos ora na globalização-imitação indiferenciada, ora na
privatização-identificação autoritária, ambos isolados e sem comunicação. Para
superar
essa dualidade entra em jogo o projeto de vida pessoal, ou a afirmação do sujeito, o
desejo de cada um fazer da sua vida uma existência que valha à pena, o esforço de
individuação de quem quer ser o ator ou a atriz de sua vida, o sujeito (TOURAINE,
sujeito recusa reduzir a organização social ao
presente no corpo ou o espírito dos indivíduos. Ele é a procura, pelo próprio indivíduo,
das condições que lhe permitem ser o ator da sua própria história, (...) reivindicar o

158
-74)
Ao invés de escolher entre dois campos, deve-se afirmar a existência
de contradição mais profunda, que opõe a afirmação da defesa do
sujeito pessoal e de sua liberdade à lógica dos sistemas, quer esta
lógica seja a do mercado ou a de uma identidade nacional ou
cultural. (TOURAINE, 348-349)

Pode ser isso o que está sendo gestado em Noiva do cordeiro: constituição de
sujeitos autônomos, que gerarão uma comunidade livre. Nem o isolamento identitário
no gueto, nem a indiferenciação de parecer-se com todo mundo. No aspecto religioso
significaria uma terceira via entre a massa catolicizante e o gueto pentecostal, com a
constituição de uma espiritualidade que transcende os dois movimentos. Assim
também
pode ser entendido a conjugação de um sistema econômico baseado na partilha da
terra e na casa comum e, ao mesmo tempo, no salário individual na cidade. Assim a
frequência à escola convencional e a educação paralela na comunidade, onde as
crianças aprendem valores opostos ao do mundo e da escola.
E como associar a experiência de subjetivação individual, baseada no sujeito, com o
espírito comunal que marca Noiva do cordeiro? Autonomia não gera individualismo?

não apenas liberdade de. O primeiro está ligado à ideia de sujeito, e o segundo, à
ideia de indivíduo. O sujeito é um ser para algo, no sentido da ação, da disposição
para a vida social, e não para si mesmo. É como se ao formular a noção de sujeito
imediatamente se formulasse a ideia de viver juntos.

O sujeito é o princípio não social que constitui a sociedade (...),


combinação de uma identidade pessoal e de uma cultura particular
com a participação num mundo racionalizado e como afirmação, por
este mesmo trabalho, de sua liberdade e sua responsabilidade.
(TOURAINE, 25)

O fim da religião e a construção de um novo modo de vida


Noiva do cordeiro prenuncia o fim de um tempo de uma determinada configuração
religiosa que privilegiou discursos e práticas que alinham a tudo e a todos ao status
quo, sem brechas para a autonomia e a responsabilidade. O que sobrevive no
cristianismo contemporâneo do senso de vida em comum, da agudeza das
necessidades coletivas, do cuidado mutuo dentro das famílias, da educação de
crianças, homens e mulheres baseada em valores como autonomia, solidariedade e
responsabilidade? No limite dessa questão, o rompimento com a religião em Noiva do
cordeiro pode ser visto como consequência inevitável do modelo de igreja ou religião
em curso. O modelo religioso dominante apresentado pelo cristianismo patriarcal
levou
a desintegração e ao desenraizamento, à fragmentação do ser-humano, das relações
e dos valores. Afastou o ser humano das necessidades próprias e essenciais do si
mesmo e da noção de cooperação com outro.
O caso de Noiva do Cordeiro mostra também que os processos de ruptura têm não
apenas protagonistas específicos, mas que esta também acontece em nível simbólico.
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A ruptura acontece no âmbito da família, casamento, da igreja e da religião. Nos três


lugares se veem rupturas com sistemas de poder: fim do casamento civil (rompimento
com o modelo de família); protagonismo e liderança de mulheres (questionamento do
sexismo e poder masculino); abandono consciente da religião (fim do domínio religioso
institucional). Em todos eles está a negativa à submissão irrestrita, seja à igreja, seja
ao marido ou ao pai, seja à sociedade como um todo.
Tomado como caso paradigmático e que instrui outros casos, em Noiva do Cordeiro
questiona-se, indiretamente, o casamento patriarcal, a igreja patriarcal, e o modelo
masculino machista. Apregoa-se o fim da religião sob o domínio do padre e do
pastor, o fim do casamento sob o domínio do homem ou das convenções, o fim da
família sob domínio do pai, o fim das hierarquias na organização da vida comunitária.
Por outro lado, a maldição lançada sobre Dona Senhorinha é a mesma que cai sobre
as mulheres que rompem com esses mesmos modelos patriarcais na sociedade. O que
a história de Noiva do Cordeiro evidencia é que foram necessárias quatro gerações
naquela família para efetivar a ruptura com o modelo patriarcal.
Noiva do Cordeiro está sob a liderança de mulheres, que assumiram sobre si a
responsabilidade de criar novos modelos de vida, ensaiar novos sistemas de poder na
família, no casamento, na espiritualidade. Criar um novo modelo de poder, agora
partilhado, horizontal. Há também um novo modelo de educação e política, baseado
na busca da autonomia e da participação da comunidade. Há um novo modelo de
economia, baseado no uso comum da terra e no resgate de saberes e poderes
antigos, como a produção de artesanato.
Noiva do cordeiro permite instruir um novo modelo de espiritualidade: o rompimento
com a religião clássica não significou o fim da fé. A ruptura se dá com a forma, e
não com o princípio. Abandona-se a igreja e a religião, mas não a fé.

Referências
FRANKL, Viktor. Em busca de sentido. 14. ed. São Leopoldo: Sinodal; Petrópolis: Vozes,
1991.
GEBARA, Ivone. Rompendo o silêncio. Uma fenomenologia feminista do mal.
Petrópolis:
Vozes, 2000.
GUATTARI, Félix. As três ecologias. 17 ed. São Paulo: Papirus, 1990.
JASPERS, Karl. A situação espiritual do nosso tempo. Rio de Janeiro: Morais editores,
1964 (edição original: Alemanha, 1930).
NOIVA DO CORDEIRO. Documentário. Rio de Janeiro: Globo Filmes / GNT. Exibido no
canal GNT em 26 de agosto de 2008.
SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo
capitalismo. 14a ed. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 2009 (edição original: Estados
Unidos da América, 1998).
SODRÉ, Olga. Contribuição da fenomenologia hermenêutica para a psicologia.
Psicologia USP, 2004, 15(3), 55-80.
TOURAINE, Alain. Poderemos viver juntos? Iguais e diferentes. Petrópolis: Vozes, 1999
(edição original: França, 1997).
WEIL, Simone. O Enraizamento. Bauru: EDUSC, 2001.

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