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A Formação Da Psicologia Pela Análise Arqueológica
A Formação Da Psicologia Pela Análise Arqueológica
Geraldini 197
Resumo
A proposta deste artigo é refletir sobre a múltipla formação da psicologia na esfera do saber, por
meio da obra As palavras e as coisas, do pensador Michel Foucault. Trazendo algumas características
da abordagem arqueológica como o modelo histórico de investigação desenvolvido pelo autor, este
percurso inicia-se no século XVI, passando pelos séculos XVII e XVIII, e finalmente chegando à
modernidade – palco do nascimento das ciências humanas. A psicologia surge enquanto disciplina
influenciada pelas bases epistemológicas e metodológicas da ciência moderna, atravessada inclusive
pelas reflexões filosóficas da época. Dentro desse contexto é possível compreender a diversidade de
conceitos, métodos e objetos que constituem a psicologia, problematizando-a enquanto construção
histórica.
Palavras-chave: Psicologia; História; Análise Arqueológica
Abstract
The proposal of this article is to reflect on the multiple formation of psychology in the sphere of
knowledge, through the work the order of things by the philosopher Michel Foucault. Bringing with
it some characteristics of the archaeological approach such as a historical model of investigation
developed by the author, this philosophical journey begins in the 16th century, passing through the
17th and 18th centuries, and finally reaching modernity – the stage of the birth of human sciences.
Psychology emerges as a discipline influenced by the epistemological and methodological bases of
modern science, highly influenced by the philosophical discussions of the period. In this context, it is
possible to understand the diversity of concepts, methods and objects that constitute psychology,
questioning same as a historical construction.
Keywords: Psychology; History; Archaeological Analysis
1 Contato: jgeraldini@yahoo.com.br
considerar que o saber não é exclusividade, podendo, desta forma, mostrar outras
nem dependente das ciências, embora toda características da abordagem arqueológica.
ciência esteja localizada no campo do saber. A ciência é objeto de estudo da
O saber é definido por meio de documentos epistemologia e, aqui sim, cabe o destaque
científicos, filosóficos ou literários que para as análises de caráter científico.
possibilitam a constituição de formações A epistemologia tem como objeto as
ciências por ela investigadas em sua
discursivas. É por isso que a questão da historicidade a partir da constituição
cientificidade ou não de determinados histórica de seus conceitos, isto é, quanto
ao tipo de progresso que os caracteriza,
discursos não merecerem, para a quanto à conquista da objetividade, quanto
à produção da verdade, quanto à
arqueologia, importância teórica. instauração de critério de racionalidade, etc.
Fica claro, então, que, embora na análise (Machado, 1981, p.154).
mais específica, no entendimento dos signos Com relação aos séculos XVII e XVIII,
que Deus apresenta aos homens. Cabem aos denominado por Foucault (1999) de idade
homens, neste sentido, desvendá-los. clássica, vamos encontrar no espaço do
Se, por um lado, no século XVI existem saber a análise da representação no
conhecimentos e técnicas que falam dos momento em que “o pensamento cessa de
signos e descobrem seus sentidos e, por se mover no elemento da semelhança. A
outro lado, existem conhecimentos e similitude não é mais a forma do saber, mas
técnicas que distinguem onde estão estes antes a ocasião do erro, o perigo ao qual nos
signos, é neste “espaço sombrio” entre o expomos quando não examinamos o lugar
primeiro e o segundo - visto que ambos não mal esclarecido das confusões” (Foucault,
se encontravam claros nem vinculados - que 1999, p.70). Assim, no Classicismo,
o saber do século XVI vai encontrar seu constrói-se uma ciência geral ligada
espaço, e aproximá-los. fundamentalmente a uma “teoria da
As descrições das coisas da natureza representação”. Representar significa
através da decifração dos signos que os comparar estruturas visíveis das coisas da
homens acreditam ter encontrado são dadas natureza e relacioná-las, considerando
em termos de semelhanças. Como tais identidades e diferenças, por meio de um
signos são colocados por Deus, há muito de princípio ordenador que contém elementos
divino no pensamento ocidental deste homogêneos.
século. Assim, a natureza estaria repleta de Há, neste sentido, a colocação de plantas
figuras semeadas por Deus para serem e animais em séries lineares, caracterizando-
decifradas. Se os antigos já haviam feito suas se de um modo universal uma ciência geral
interpretações, cabia agora o entendimento da ordem, cujo instrumento principal é a
disposição das coisas em quadros ordenados p.201) concebe “a história natural como o
das identidades e das diferenças. Por meio conjunto dos métodos pelos quais se
de um suporte epistemológico em que “o definiram os seres vivos como objeto de
conhecimento dos indivíduos empíricos só uma classificação possível, e que relações de
pode ser adquirido sobre o quadro contínuo, ordem se estabeleceram entre eles”. Com
ordenado e universal de todas as diferenças relação à análise das riquezas, que ainda não
possíveis” (Foucault, 1999, p.199), surge um se inscreve como a economia política da
“tempo classificado” inscrito sob a modernidade, o processo de ordenação
influência do pensamento racional de clássica está situado em cima do valor;
Descartes que universaliza o ato da utilizam-se o comércio e a troca para
comparação. A partir dele, as coisas são analisar a formação do valor a fim de se
comparadas em termos de medida e de estudar as teorias da circulação e da
ordem. distribuição de riquezas (Machado, 1981). A
Para Foucault (1999, p.222), o que se gramática geral, por sua vez, preocupa-se
configura no Classicismo como uma ciência com a análise da representação por meio de
da vida, não se constitui ainda uma biologia, uma ordem sucessiva, dispondo-a parte por
pois “com efeito, até o século XVIII, a vida parte em uma ordem linear, articulando os
não existe. Apenas existem seres vivos”. sons um a um, “desde as mais simples
Considerando-se a existência dos elementos representações até as mais finas análises ou
da natureza, e constituindo-se uma forma as mais complexas combinações” (Foucault,
ordenada de abordá-los, busca-se também 1999, p.117).
uma nova maneira de nomear os seres vivos.
Assim, “a tarefa fundamental do ‘discurso’ A formação da psicologia na
clássico consiste em atribuir um nome às modernidade
coisas e com esse nome nomear o seu ser” Este autor diferencia a episteme clássica
(Foucault, 1999, p.169). Ocorre, então, no da moderna quando diz que a primeira é
domínio do saber, uma preocupação com caracterizada pela representação e a segunda
relação à linguagem no sentido de lhe dar a é marcada pela dupla experiência do homem
função e o poder de representar o enquanto sujeito e objeto do saber. Neste
pensamento. Ao saber, “cumpre-lhe fabricar sentido, o “homem moderno do
uma língua e que ela seja bem-feita – isto é, conhecimento” é chamado por Foucault
que, analisante e combinante, ela seja (1999) de “duplo-empírico-transcendental”.
realmente a língua dos cálculos” (Foucault, Foucault (1999) considera que, apesar de se
1999, p.86). poder reconhecer o “homem” no
A ciência da vida para o Classicismo não Classicismo, seja com relação à história
está na ordem da biologia, mas configura-se natural, à gramática geral ou à análise das
como uma história natural. Foucault (2005a, riquezas, esta ordem não se configura com
desvendar as leis imutáveis que regem a A psicologia tem como característica uma
natureza. A psicologia, na pretensão de formação bastante diversificada de modelos
alcançar status de cientificidade, desenvolve transferidos de outras ciências. Vemos, num
teorias e técnicas pautadas no modelo primeiro momento, que o processo
positivista da ciência moderna (Prado Filho, norteador da sua constituição arqueológica é
2005). Assim, a psicologia transfere das dado por meio da transferência de alguns
ciências empíricas as leis que determinam os conceitos da biologia e da fisiologia,
fenômenos naturais para, por meio de bases passando a se realizar um estudo das
metodológicas quantitativas e por meio dos representações no homem enquanto ser
estudos de verificação com experimentos, vivo funcional, fisiológico e neuromotor.
aplicá-las ao homem (Foucault, 2002). Sua diversidade passa pelas influências da
É neste sentido que podemos falar da filosofia moderna, e pelos modelos formais
naturalização dos fenômenos psíquicos e da herdados das ciências dedutivas.
naturalização dos estudos empreendidos Embora as influências sofridas pela
para descobrir tais fenômenos (Hüning & psicologia estejam bem marcadas, é
Guareschi, 2005). Com raízes no modelo da interessante pontuar que isto não implica
objetividade natural, o conhecimento um consenso entre os estudos psicológicos.
desenvolvido pela psicologia é voltado para O modelo orgânico da biologia e da
descobrir as leis que regem a realidade fisiologia, as perspectivas evolucionista e
psíquica do homem, espelhando-se nas adaptacionista herdeiras dos estudos de
descobertas das leis que movem a natureza. Darwin, os modelos quantitativos
O mesmo movimento de separação entre o empiricamente comprováveis das
sujeito ativo do conhecimento e seu objeto matemáticas e das físicas, e ainda as
de estudo, garantido pelos discursos de reflexões filosóficas, que vão desde o
neutralidade do observador, foi transferido homem transcendental kantiano, passando
para os estudos empreendidos pela pelo positivismo de Comte, transitando
psicologia, no intuito de se constituir vezes pelo pensamento fenomenológico de
o que conhecemos por “ser homem” se Trad). (8. ed). São Paulo: Martins Fontes.
torna imprescindível.
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