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Autora: Ana Carolina Braga Azevedo.

Orientadora: Heloisa Buarque de Almeida.


Instituição de Ensino: Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social da Universidade de São Paulo (PPGAS-USP, ingresso em 2020).

SPG34: Sexualidade e Gênero: políticas, direitos e sujeitos

Título: (Re)reproduções e regulações morais em torno da imagem da mulher em


situação de prostituição.

Resumo:
Nesta apresentação pretendo refletir acerca de alguns efeitos produzidos em torno da
(re)construção e regulação moral da categoria êmica mulheres em situação de
prostituição. Categoria esta (re)produzida por um coletivo feminista (que também integra
uma Organização da Sociedade Civil), interessado em garantir os direitos humanos de
mulheres que estão em situação de prostituição, a partir da defesa do modelo legal
abolicionista, na região central da cidade de São Paulo - área onde a prostituição é
exercida majoritariamente por mulheres cisgênero, de camadas populares, racializadas,
com baixa escolaridade e mais velhas. Acompanhando o trabalho cotidiano do coletivo,
tenho notado que além dessa categoria estar sendo (re)construída a partir de formulações
feministas neoabolicionistas, ela também vem sendo pensada e empreendida nos
discursos e ações a partir de um contexto específico de produção e regulação de certas
vulnerabilidades.

Palavras-chave: prostituição; marcadores sociais da diferença; neoabolicionismo.

Apontamentos iniciais: situando o campo e pesquisa

Na época eu trabalhava como diarista em algumas casas no centro da


cidade e, entre uma faxina e outra, descansava no parque. As contas
estavam apertadas, minha casa em um terreno ocupado na periferia de
São Paulo estava em construção e meus três filhos pequenos precisavam
ser criados por uma mãe solteira de vinte e um anos. Foi assim que
comecei a me prostituir. (caderno de campo 26/06/2019).

1
A narrativa de Madalena1 se inicia dessa forma, assim como a de outras tantas
mulheres as quais tive o prazer de conhecer desde que comecei a realizar etnografia 2, a
partir de uma abordagem de descida ao cotidiano (Das, 2020 [2006]) e “multi-situada”,
como sugere George Marcus em “Ethnography through thick and thin” (1998),
acompanhando o trabalho cotidiano de um coletivo feminista3 que também integra uma
Organização da Sociedade Civil (OSC)4 e busca garantir os direitos humanos das
mulheres que se encontram em situação de prostituição na região central da cidade de São
Paulo. Esse coletivo, fundado em 2013 por duas mulheres, (re)produz e empreende seus
discursos e ações (assistencialistas ou não) a partir da defesa do modelo legal abolicionista
da prostituição promovendo e garantindo “o acesso às políticas públicas de assistência
social, educação, cultura e saúde física e mental, para além de cursos e oficinas para
promover o bem-estar e alternativas de geração de renda” (escritos do coletivo, 2019), a
partir de uma “base metodológica de presença, acolhida, escuta e propostas junto a essas
mulheres” (escritos do coletivo, 2019).

1
Neste texto, adoto o itálico para expressões êmicas, colhidas em meio ao trabalho de campo, e para nomes
próprios ficcionais, que protegem as identidades das interlocutoras desta pesquisa. Além disso, são
indicadas por aspas, as expressões êmicas mais longas, os conceitos/termos éticos e as citações que remetem
às falas das interlocutoras e às referências bibliográficas interiores aos parágrafos. Além de não citar o
nome do coletivo/ Organização da Sociedade Civil (OSC) na qual faço campo e de elaborar nomes fictícios
para todas as minhas interlocutoras, opto também por construir narrativas que mesclam suas trajetórias.
Todas essas práticas éticas são comuns em etnografias que lidam com temas sensíveis (Roberto Efrem
Filho, 2017; Carolina Parreiras, 2018) e conflituosos.
2
O primeiro contato que tive com o campo foi em agosto de 2018, nesse período, a organização estava
promovendo um conjunto de rodas de conversa “formativas” sobre temas diretamente ligados ao debate
maior sobre o fenômeno da “prostituição”, a primeira de todo esse conjunto tinha como objetivo fazer “uma
análise geral da prostituição no Brasil”. Após esse primeiro contato, comecei a participar de outros eventos
abertos ao público externo e, aos poucos, a frequentar o próprio espaço do coletivo casualmente. Em 2019,
os campos se tornaram mais regulares, estar presente nesse cotidiano do coletivo me permitiu contato direto
com as mulheres frequentadoras do espaço. Em março de 2020, com o alastramento da pandemia por
COVID- 19, precisei interromper temporariamente o campo presencial. Assim, suspendi as idas a campo
durante o ano de 2020 e os primeiros meses de 2021, neste tempo, aproveitei para realizar parte da
etnografia em plataformas virtuais e em documentos, trabalhando em cima das postagens e
compartilhamentos feitos pela organização em suas páginas no Facebook e no Instagram, dos materiais
formativos produzidos pelo coletivo (que inclui um livro publicado pela organização em 2019), além de
acompanhar certas dinâmicas que se davam entre as integrantes e as fundadoras do coletivo nos grupos de
WhatsApp e nas reuniões virtuais via Google Meet ou Zoom. Atualmente, além de estar realizando
etnografia em plataformas e no espaço do coletivo (a partir da observação participante), fiz algumas
entrevistas em profundidade com algumas interlocutoras principais.
3
Adoto itálico, pois nem todas as minhas interlocutoras nomeiam esta organização desta forma. Embora
essa organização seja de fato um coletivo feminista que também integra uma OSC, pude observar, a partir
do trabalho de campo, que as mulheres que atuam na prostituição e frequentam o coletivo sempre usam o
termo ONG para se referir a essa organização. Penso que essa diferente forma de nomear acaba também se
traduzindo em diferentes formas de encarar a própria organização, apesar das integrantes do coletivo
ressaltarem a importância política de tratar a organização como um coletivo “que atua junto, com as
mulheres em situação de prostituição” (caderno de campo, 21/10/2021).
4
A partir do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, regulamentado pela Lei nº
13.019/2014, as Organizações Não Governamentais (ONGs) no Brasil passaram a ser denominadas
Organizações da Sociedade Civil (OSCs).

2
Esse coletivo foi fundado por duas mulheres em 2013, uma das fundadoras, uma
mulher negra de pele escura com mais de 60 anos, se define como uma ex-prostituta,
feminista e vítima da prostituição5, a segunda, uma mulher branca com mais de 70 anos,
freira pertencente à uma congregação que se fundou com o objetivo de reeducar mulheres
prostitutas para que recuperadas pudessem voltar à vida digna na sociedade6. Possui sede
e atua “em conjunto com as mulheres em situação de prostituição” (caderno de campo,
21/10/2021) de diferentes formas e a partir de diversas alianças (com pessoas e
instituições) na região central da cidade de São Paulo, território onde a prostituição é
exercida majoritariamente por “mulheres cisgêneras”7, de “camadas populares”, com
baixa escolaridade (algumas não sabem ler e escrever, e, muitas das que sabem, podem
ser consideradas analfabetas funcionais em certos contextos), racializadas e mais velhas,
geralmente, entre 40 e 60 anos de idade, ainda que haja também um número considerável
de mulheres mais jovens (entre 20 e 40 anos) e mulheres acima de 60 anos.
Em campo, tenho notado que grande parte dessas mulheres também são as
principais provedoras de suas famílias, sustentam e cuidam de filhas(os) netas(os) e
bisnetas(os), muitas moram nos arredores da região central da capital, seja em prédios
ocupados, cortiços, pensões ou pequenos apartamentos, assim como há também muitas
que moram nas periferias extremas ou até em cidades vizinhas da capital. Além dos
programas8, a imensa maioria delas também exercem ou já exerceram outras tantas
atividades remuneradas, como, por exemplo, atividades ligadas ao cuidado, à cozinha, à
limpeza, à venda de mercadorias nas ruas e metrôs, entre outras tantas atividades quase
sempre nesse grande espectro da informalidade e da “viração” (Gregori, 2000), beirando
os “ilegalismos” (Telles e Hirata, 2010).

5
Além de ter fundado o coletivo, essa mulher também atua como militante na Marcha Mundial das
Mulheres (MMM), no Grupo Mulher, Ética e Libertação (GMEL) e no Partido dos Trabalhadores (PT).
Além dessas organizações, também já atuou junto à Pastoral da Mulher Marginalizada (PMM). Essas
atuações, serão exploradas detalhadamente ao longo dos próximos textos.
6
Além dessa congregação, essa freira também já atuou junto à Pastoral da Mulher Marginalizada (PMM).
7
As “mulheres cisgêneras” serão referidas no texto apenas como “mulheres”, já que a categoria “cisgênero”
é de caráter relacional e analítico, não êmico. Para aprofundar esse debate em termos teóricos, ver o artigo
de Amara Rodovalho Moira (2017).
8
A expressão programa é muito utilizada por minhas interlocutoras, e como define Adriana Piscitelli (2013)
pode se referir “ao termo genérico que alude a acertos explícitos de intercâmbios de serviços sexuais por
dinheiro, envolvendo práticas e períodos de tempo delimitados, que podem ter diferentes valores,
dependendo do ‘nível’ de prostituição” (p.26). Além desse possível significado, o campo mostrou-me que
esse termo pode se referir também a outros tipos de trocas – que estão para além dos intercâmbios de
serviços sexuais por dinheiro. Já ouvi relatos que definem a expressão de outras formas, como por exemplo:
“fiquei o dia todo sentada com ele na praça, levei até pra almoçar (...) aí eu mandei ele ir pagar uma conta
de luz pra mim” (caderno de campo, 26/06/2019).

3
A partir de uma literatura especializada sobre o tema e do próprio campo,
acompanhando tanto as dinâmicas cotidianas no espaço da organização quanto certas
produções textuais (produzidas ou não pelo coletivo)9, busco, na minha pesquisa de
mestrado compreender práticas e discursos morais em torno da prostituição em dois
aspectos: (1) como esse coletivo (re)produz e empreende suas ações e discursos contrários
à regulamentação/legalização da prostituição a partir da (re)construção e regulação moral
da categoria êmica mulheres em situação de prostituição; (2) como essas mulheres que
atuam na prostituição e frequentam o espaço do coletivo percebem, reformulam e
agenciam esses discursos e ações, como essas mulheres estão percebendo e traduzindo
suas práticas que podem ou não envolver sexo, afeto e dinheiro (Piscitelli, 2016) – o que
envolve perceber também quais são as categorias que essas mulheres utilizam para se
autodefinir e/ou para definir aquilo que fazem10.
Neste texto, em especial, buscarei desenvolver reflexões ligadas às práticas e
discursos contrários à regulamentação/legalização da prostituição que esse coletivo
feminista vem (re)produzindo e empreendendo a partir da regulação moral da categoria
mulheres em situação de prostituição neste contexto particular de “extrema pobreza e
vulnerabilidade social” (caderno de campo, 04/10/2021). Para compreender esses
discursos e ações de forma aprofundada, parto de uma postura política, teórica e
antropológica que reconhece a própria multiplicidade das formulações abolicionistas.
Admitir e pensar a partir de uma lógica situacional e contextual, nos abre caminhos para
visualizar certos efeitos políticos outros que esses específicos discursos e ações contrárias
à regulamentação/legalização da prostituição podem revelar tanto nesse contexto
específico quanto no contexto atual e nacional de proliferação de discursos
neoabolicionistas (Piscitelli, 2013; 2013c; 2014; Silva, Blanchette e Bento, 2013).

A mulher em situação de prostituição: vulnerabilidades em disputa

9
Acompanhando certas dinâmicas cotidianas, como, por exemplo, atividades de formação, distribuições de
cestas, certas reuniões internas do coletivo, entre outras, além de acessar também certas produções textuais
(produzidas ou não pelo coletivo) direcionadas tanto para as integrantes do coletivo quanto para um público
maior (analisando as postagens e compartilhamentos nas redes sociais - Facebook e Instagram - do
coletivo), além das voltadas para a inscrição em determinados projetos/editais para captação de recursos.
10
Para compreender esses dois aspectos, em especial, o segundo, parto de uma abordagem teórica que
privilegia o “ordinário” para compreender as “formas de agências” sem cair em binarismos de “poder”
versus “resistência” (Veena Das, 2020 [2006]) e “agência/resistência” versus “dominação” (Saba
Mahmood, 2019 [2005]). Assim, abrindo espaço, segundo Anne McClintock (2010 [1995]), para
considerarmos em nossas análises “as densas relações entre coerção, negociação, cumplicidade, recusa,
dissimulação, mímica, compromisso, aflição e revolta” (p.37) que envolvem as “formas de agência”.

4
A partir de uma literatura especializada sobre o tema e do próprio trabalho de
campo, acompanhando tanto as dinâmicas cotidianas no espaço da organização quanto
certas produções textuais (produzidas ou não pelo coletivo), tenho notado que para
(re)construir essa categoria de mulheres em situação de prostituição, esse coletivo vem
(re)produzindo e mobilizando diversos discursos diretamente ligados às “novas
linguagens dos direitos humanos” e às “novas noções de direitos sexuais” (Carrara, 2015),
seguindo um movimento de negação da “agência” para o “consentimento” e de
deslocamento do “consentimento” para a preocupação com a “vulnerabilidade”
(Lowenkron, 2015). Tal como, determinados discursos neoabolicionistas11 acerca da
prostituição que, em linhas gerais, pensam:

(...) a prostituição como símbolo da violência sexista, formando parte de


um continuum que se inicia na publicidade, continua nos espetáculos,
inclui a pornografia e culmina na prostituição. Nessa linha de
pensamento, a prostituição é exploração sexual porque nela se obtém
prazer sexual mediante a utilização abusiva da sexualidade de uma
pessoa, anulando os seus direitos à dignidade, igualdade, autonomia e
bem-estar. Essa versão de abolicionismo nega qualquer forma de
prostituição livre e o direito a prostituir-se, percebido como contrário aos
direitos humanos universais (Piscitelli, 2014:167).

Esse movimento também se intensifica com o próprio período da pandemia de


Covid-19, em que “as ações assistencialistas” do coletivo aumentaram frente a outras
ações. Neste momento “extremamente crítico”, de “aumento da vulnerabilidade social
dessa população” (caderno de campo, 04/11/2021), acompanhei o coletivo nas redes
sociais também. Nas postagens, o fato de a “pandemia ter aumentado a pobreza”
(postagens do coletivo, 2021) era diretamente relacionado com alguns dados estatísticos
apresentados pelo coletivo a respeito “do Brasil ocupar o primeiro lugar da América
Latina no ranking de exploração sexual” (postagens do coletivo, 2021). Para justificar
essa afirmação, o coletivo cita alguns dados produzidos pela Faculdade de Ciências
Humanas da Fundação Mineira de Educação e Cultura (FUMEC, 1999). Esses dados são
fruto de uma pesquisa realizada com 7.000 prostitutas residentes na cidade de Belo
Horizonte. A partir dessa coleta, foram realizadas projeções a nível nacional,

11
Para aprofundar esse debate, pensando nos diversos efeitos, tensões e dilemas que essa posição produz
no próprio exercício da prostituição ver Adriana Piscitelli (2007; 2008; 2013c; 2014); José Miguel Nieto
Olivar (2012); Sônia Corrêa e José Miguel Nieto Olivar (2014); Thaddeus Gregory Blanchette, Ana Paula
da Silva e Andressa Raylane Bento (2013); Monique Prada (2018).

5
considerando que no Brasil há pelo menos 1,5 milhões de pessoas em situação de
prostituição (postagens do coletivo, 2021). Segundo o estudo:

78% das pessoas em situação de prostituição são mulheres [cis] e 59% dessas
mulheres são chefes de família. 70% das pessoas em situação de prostituição não
têm uma capacitação/profissionalização e 90% gostariam de ter outro trabalho.
28% das mulheres em situação de prostituição encontram-se desempregadas e
55% sentem necessidade de ganhar mais para a manutenção da família. 45,6%
possuem primeiro grau de estudos e 24,3% não concluíram o ensino médio.
76% das mulheres em situação de prostituição apresentam sintomas de depressão,
59% possuem níveis de estresse crônico e 36% confessaram que ao menos uma
vez já pensaram em suicídio. (postagens do coletivo, 2021).

Recentemente, houve um estudo realizado no parque sobre “mulheres em situação


de prostituição e COVID-19”. Neste estudo, foram entrevistadas 219 mulheres trans e cis
(além de travestis). Entre essa população, 78,8% são de mulheres cis, quase 50% dessa
população tem mais de 41 anos, em termos de raça/cor 28% se define como preta e 41,3%
como parda. 35,2% pertencem à classe C e 60,3% à classe D/E. A partir desses dados e
estudos, o coletivo, ainda destaca nas postagens o fato delas serem mães, avós e bisavós,
de terem um papel fundamental em suas famílias, contribuindo economicamente (sendo
“chefes de família”) e com o trabalho cotidiano de cuidado com as crianças. Outro ponto
destacado ainda é a questão da raça/cor atrelada a pobreza dessas mulheres, Madalena
sempre pontua “essa questão racial e do racismo estrutural” em suas falas. Ressaltam
ainda, que parte considerável das mulheres “exercem a prostituição em idade considerada
avançada para a atividade” (postagens do coletivo, 2021). Ou seja, além de todas essas
questões, as mulheres ainda fazem parte do “grupo de risco da covid-19” — tanto por
serem mais velhas quanto por apresentarem algum tipo de comorbidade, pois segundo
esse estudo, dentre as 219 entrevistadas, 86 relataram apresentar pelo menos um tipo de
comorbidade.
Como podemos notar, essas estatísticas, lidas a partir de uma visão feminista
neoabolicionista, para além de enquadrar a prostituição como uma forma de exploração
sexual, encara essa atividade como uma estratégia de sobrevivência acionada por vítimas
(passivas) que se encontram em situações de extrema pobreza e vulnerabilidade social
(caderno de campo, 04/10/2021). Por isso, segundo Madalena:

O movimento feminista abolicionista, além de ensinar para essas mulheres o


feminismo, a objetificação da mulher, o machismo que elas sofrem, o racismo
que muitas sofrem (...) deveria também se preocupar em criar mecanismos para
ajudar essas vítimas a saírem dessas situações desumanas (...) nós somos acho

6
que a única instituição/coletivo que faz isso no Brasil”. (caderno de campo,
04/11/2021).

Segundo Laura Agustín (2005), esses discursos em torno da prostituição e das


pessoas que a exercem funciona como um “conceito de gênero”, revelando e reafirmando
certas (re)construções de gênero, sexo e sexualidade. Neste caso, podemos notar que essas
categoriais têm sido lidas a partir de uma chave binária que (re)produz e visualiza apenas
a “sujeição” que envolve as relações desiguais e hierárquicas entre pessoas que seriam
“oprimidas” ou “vítimas” pelo simples fato de serem “mulheres” “vendendo sexo” para
“homens” que por si só já são classificados como “opressores” ou “algozes” nesse
sistema.
Para além dessas construções baseadas em como determinados setores
abolicionistas estão percebendo, traduzindo, acionando e regulando a sexualidade e o
gênero (Chapkis, 1997; Piscitelli, 2005; Blanchette e Silva, 2017); as pesquisas de
Adriana Piscitelli (2013; 2014), Thaddeus Gregory Blanchette, Ana Paula da Silva e
Andressa Raylane Bento (2013) revelam o quanto que essa categoria moral e regulatória
de vítima da prostituição vem sendo (re)produzida e acionada ao longo da última década
por conta também das próprias indefinições legais e confusões conceituais que
contribuem para que as noções de prostituição, turismo sexual, tráfico de pessoas e
exploração sexual sejam com frequência consideradas como sinônimos. Segundo
Piscitelli (2014), essas ambiguidades legais neste cenário de crescimento de visões
neoabolicionistas, acabam favorecendo para que essas noções sejam lidas
majoritariamente a partir de uma certa noção de “exploração sexual” que atrelada às novas
configurações da sexualidade assinaladas por Sérgio Carrara (2012; 2015), passa a ser
diretamente articulada à noção de “violação do consentimento” (Piscitelli, 2014).
Carrara discute a partir da literatura etnográfica brasileira sobre práticas, valores,
identidades e intervenções públicas relativas à sexualidade, as transformações que estão
acontecendo no nível das políticas sexuais e que refletem diretamente sobre o próprio
“dispositivo da sexualidade”12 (Foucault 2017 [1976]). O autor toma a emergência da

12
O filósofo Michel Foucault, em História da sexualidade 1: a vontade de saber, interessado em mapear
os diferentes mecanismos de poder que compõem e sustentam a sociedade moderna, revela o “dispositivo
da sexualidade”. Para o autor, esse dispositivo (essa máquina de fazer e de fazer falar), característico das
tecnologias de saber-poder do século XIX, se fez (e se faz) a partir da articulação de um conjunto de quatro
estratégias (“histerização do corpo da mulher”; “pedagogização do sexo”; “socialização das condutas de
procriação” e “psiquiatrização do prazer perverso”), que permitiu a constituição de um saber sobre
determinados indivíduos. Por fim, esse saber, esse conjunto de estratégias, técnicas e discursos, sobre o
sexo tornou esses corpos e suas subjetividades acessíveis as práticas (regulatórias) de poder.

7
noção de “direitos sexuais” e a crescente utilização da “nova linguagem dos direitos
humanos” como aspectos centrais desse processo de transformação — revelando a
possibilidade de que um “novo” regime secular da sexualidade já estar em curso.

De modo geral, nesse novo regime, desde que sejam consentidas e que não
coloquem a si próprio ou a terceiros em risco, quaisquer manifestações da
sexualidade (e também das expressões de gênero) podem idealmente pleitear o
direito de cidadania, articulando suas demandas na linguagem dos direitos
humanos. A esse regime secular da sexualidade corresponderia, portanto, uma
nova sensibilidade social, cujo foco gira em torno de outros pontos. De um lado,
em torno do sexo entre pessoas desigualmente investidas de poder (sobre o qual
passa a pairar a sombra da violência presumida). De outro, em torno daqueles e
daquelas que parecem exercer pouco ou nenhum controle sobre seus próprios
impulsos e paixões. Desse modo, aumenta a inquietação (que às vezes assume a
dimensão de pânico moral) em relação a fenômenos como a pedofilia, o assédio
sexual, o abuso sexual, o turismo sexual, a exploração sexual, a compulsão sexual
etc. (Carrara, 2015, p.332).

Destaca ainda que esse processo não se trata de uma sucessão de regimes, mas de
uma coexistência de diferentes regimes de regulação da sexualidade, que ao se
articularem, colidirem ou se enfrentarem, tais regimes acabam desenhando diferentes
políticas sexuais e “estilos de regulação moral” (p.325). Para ele, essa noção de “direitos
sexuais” que está ancorada tanto na ideia de “consentimento” quanto na de “controle
sobre o sexo” (que deve ser exercido pelo próprio indivíduo), produz um novo cenário
em que o sexo “problemático” passa a ser o sexo “não consentido” e o “não responsável”.
A partir dessa nova gramática moral de regulação da sexualidade elaborada por
Carrara (2012) e com base no trabalho desenvolvido por Laura Lowenkron (2013),
Piscitelli (2013) conclui que a noção de “exploração sexual” vem sendo lida por diversos
setores sociais — sejam eles, estatais ou não — como expressão de violação do
“consentimento” das pessoas que exercem a prostituição, justificando, assim, a sua
repressão. Lowenkron (2015) ainda aponta outra importante alteração em torno desses
conceitos utilizados para qualificar o debate em torno do “tráfico de pessoas” — que,
como já explicitado, é compreendido como uma atividade vinculada ao “trabalho sexual”,
à “prostituição” ou à “exploração sexual”, a depender dos arranjos legais nacionais e
quem se utiliza desses termos; para ela, essa alteração além de seguir um movimento de
negação da “agência” para o “consentimento”, acaba deslocando a ideia de
“consentimento” para a preocupação com a “vulnerabilidade”.
Laura Lowenkron (2015) demonstra que esse reordenamento do “sexo
heterossexual e reprodutivo” ao “sexo consentido e seguro” (Lowenkron, 2012),

8
alimentado pela complementariedade e as tensões entre os conceitos de “vulnerabilidade”
e “consentimento” tem produzido alguns resíduos próprios “nos campos político e
jurídico contemporâneos a partir da aproximação entre alguns aspectos da definição e da
gestão do abuso sexual infantil e do tráfico de pessoas para fim de exploração sexual”
(Lowenkron, 2015, p.230). Lowenkron destaca algumas maneiras em que a
“vulnerabilidade” tem sido construída:

Sendo entendida ora como atributo individual relacionado à incapacidade


“natural” de discernimento/racionalidade, ora como categoria relacional que
evoca as noções de assimetria ou desigualdade de poder, articuladas à
impossibilidade de oferecer resistência, e ora como constructo moral associado
ao ideal de passividade e inocência em oposição às ideias de agência,
responsabilidade e culpa. (Lowenkron, 2015, p.245).

As ambiguidades em relação às noções de vulnerabilidade e abuso de poder


adquirem particular relevância nas abordagens preocupadas com a visão de
pessoas de regiões pobres do mundo, particularmente mulheres (Piscitelli,
2010:369), pois fazem com que mulheres jovens de países do terceiro mundo, por
articularem diferentes fatores de vulnerabilidade (gênero, idade, classe social e
nacionalidade), sejam entendidas como lócus privilegiado da passividade e,
portanto, da vitimização. (Lowenkron, 2015, p.241).

Levando em conta essa densa discussão teórica, podemos notar que o próprio
termo “mulheres em situação de prostituição”, introduzido no Brasil a partir dos anos
2000, por uma equipe do Secretariado Nacional da Pastoral da Mulher Marginalizada que
“atendia mulheres em situação de prostituição” na cidade São Paulo (Skackauskas, 2014),
reflete essa preocupação com a “vulnerabilidade”. Esse termo, fortemente ligado à ideia
de que a prostituição é uma “violência contra as mulheres oprimidas”, é atravessada por
ideias que traduzem, (re)produzem e acionam gênero, sexualidade e classe somente na
chave da “desigualdade” e da “opressão”, o que acaba, por consequência, produzindo um
movimento em que “a capacidade de consentir perde todo o espaço para uma implacável
noção de vulnerabilidade” (Efrem Filho, 2017:46). Para Efrem Filho (2017), essa lógica
que retira o “querer” e o “desejo”, ou seja, o “consentimento”, das ações empreendidas
por certos sujeitos, acaba, consequentemente, depositando-as na conta de uma certa
“implacável noção de vulnerabilidade estrutural”.
Assim, por mais que certos sujeitos tenham “escolhido” e “desejado” realizar
certas ações — salientando que essas escolhas, quereres e desejos são (re)produzidos
dentro de certos “campos de possibilidade” (Fonseca, 2004; Pasini, 2005) — esse forte e
crescente movimento regulatório, profundamente ligado às “novas linguagens dos

9
direitos humanos” e da “violência” (Carrara, 2015; Lowenkron, 2015), ao produzir uma
ideia de “vulnerabilidade suposta”, ou seja, de caráter estrutural, acaba, por consequência,
produzindo uma ideia um tanto quanto perigosa de “violência presumida”, enquadrando,
assim, certos sujeitos como “vítimas absolutamente vulneráveis” à “violência” —
inclusive aqueles, ou melhor, aquelas, que não se veem enquanto tal (Efrem Filho, 2017).
A partir da análise de alguns textos sobre turismo sexual produzidos pela mídia
brasileira, Piscitelli (2010 [1996]) explora como algumas categoriais de diferenciação
social são mobilizadas por esses setores para produzir um certo contexto que podemos
enquadrar a partir da ideia de “vulnerabilidade estrutural” para construir a imagem da
menina que é “empurrada” para a prostituição. Neste texto, Piscitelli mostra como que
essas narrativas construídas pela mídia brasileira acionam diversas histórias de “violência
sexual”, “abuso sexual” ainda na infância que essas “meninas” teriam sofrido até mesmo
por parentes e como esse contexto de vulnerabilidade frente à violência corroborou para
que entrassem na prostituição. Observando esse material, a autora aponta dois fatores que
ganham destaque nessas produções: “a situação de extrema pobreza” e uma
“configuração particular e altamente desigual de gênero” (p.21). Situações e
configurações essas que, segundo Piscitelli (2010), se expressam “na erotização de corpos
femininos muitos jovens e na violência sexual da qual são vítimas as meninas, geralmente
no seio da família” (p.21). Já nas matérias sobre o mercado do turismo sexual
internacional, Piscitelli destaca como essas categoriais de diferenciação (gênero,
sexualidade, classe e geração) vem sendo operadas a partir de “cor” e “nacionalidade”
para construir um certo cenário de “violência estrutural” na medida em que essas
categorias de diferenciação estão sendo (re)produzidas e empreendidas por esses setores
apenas na chave da “desigualdade” e da “opressão”.
Em campo, tenho notado um movimento muito semelhante desse coletivo para
(re)atualizar o termo “mulheres em situação de prostituição”. Apesar de concordar com
grande parte dessas formulações feministas neoabolicionistas contrárias à
regulamentação/legalização da prostituição aqui expostas resumidamente, é de extrema
importância pontuar que esse coletivo vem de certa forma recusando certos discursos
ligados à ideia de que todas as mulheres seriam igualmente “vítimas” da prostituição, em
conversa, uma das integrantes do coletivo ao argumentar contra a
regulamentação/legalização da prostituição pontua essa ideia explicitamente:

10
(...) a regularização serviria apenas para regularizar aqueles que já se
beneficiam da exploração das prostitutas, além de apresentar um risco
maior de exclusão social das mulheres atendidas pelo coletivo, dado que,
dificilmente essas mulheres seriam englobadas pelo então regularizado
mercado do sexo no Brasil, podendo cair na ilegalidade (escritos do
coletivo, 2021).

Madalena conta, em conversa informal, que fundou o coletivo para: “ajudar outras
mulheres pobres, negras e velhas, assim como eu, a sair da prostituição”, para ela, a
prostituição é uma “situação desumana que a gente entra por pura necessidade e quer sair
amanhã (...) é por isso que aqui nós utilizamos o termo mulheres em situação de
prostituição, não como trabalhadoras sexuais” (caderno de campo, 04/06/2019). Em
conversa, uma das integrantes do coletivo ao argumentar contra a
regulamentação/legalização da prostituição, dizendo que isso produziria “maior
exploração dos corpos vulneráveis de mulheres negras e pobres”, explicita do porquê que
o coletivo defende a utilização da categoria mulheres em situação de prostituição nesse
contexto particular:

(...) aqui na região é diferente, estamos falando da “baixa prostituição”,


não de prostitutas que ganham fortunas ou de estudantes de ciências
sociais que resolveram ser prostitutas. Prostitutas de classe média não
conseguem falar sobre essa realidade, essas mulheres se prostituem para
sobreviver, não é por escolha, entraram nessa vida por serem pobres,
periféricas e, grande parte, por serem mulheres negras. Além disso,
muitas das mulheres que recebemos aqui no coletivo são mais velhas,
grande parte tem mais de 45 anos – essa idade é considerada avançada
para a profissão, por conta disso, elas acabam ganhando ainda menos
nesse mercado, tem senhoras aqui que estão fazendo programa por 15
reais – elas só continuam nessa vida por falta de oportunidades e por
serem as responsáveis pela principal fonte de renda de suas famílias, ou
seja, recorrem à prostituição por necessidade (caderno de campo,
09/06/2018).

Levando em conta a particularidade desses discursos regulatórios em torno da


(re)construção da figura moral da mulher em situação de prostituição, podemos notar que
esse coletivo além de interseccionar um discurso neoabolicionista mais geral que, de
acordo com as pesquisadoras Adriana Piscitelli (2014) e Andreia Skackauskas (2014;
2017), apoia-se na (re)construção e regulação moral de que todas as mulheres seriam
“vítimas da prostituição”, tem se apoiado também na ideia de que a prostituição é
fortemente “demarcada pela desigualdade de gênero, de identidade de gênero, classe e
raça” (escritos do coletivo, 2021). Além de demarcar a prostituição a partir da
11
(re)construção dessas categorias a partir da chave da “desigualdade” e da “opressão”,
podemos observar também que sexualidade e geração são categorias que ganham certo
destaque neste contexto. Para além dessa particular forma de (re)construção e regulação
dos marcadores sociais da diferença (França, Macedo e Simões, 2010)13, podemos notar
também que o fato de muitas das mulheres serem as principais provedoras de suas
famílias, sustentarem filhas(os), netas(os) e bisnetas(os) é também importante para a
(re)construção desse contexto de “vulnerabilidade estrutural”.
Essa específica lógica de (re)produção e regulação de marcadores sociais,
acionada para produzir esse contexto de “vulnerabilidade estrutural” pode acabar
assumindo, nas palavras de Lowenkron (2015), um certo sentido (um tanto perigoso)
“fantasmático” quando:

comparecendo menos como uma situação de desvantagem social que limita o


acesso a certos bens materiais e simbólicos e, com isso, a possibilidade de
escolha, do que como uma exigência moral de corresponder a um ideal de vítima
(Lowenkron, 2015: 251).

Esse sentido “fantasmático”, por partir de uma leitura de que a “vulnerabilidade


estrutural” só pode ser lida como oposta à “resistência” e a “agência”, acaba,
consequentemente, produzindo uma ideia de que essas categorias de diferenciação só
podem ser lidas através de processos de “vitimização” e “passividade” (Gregori, 1993).
Essa lógica acaba produzindo, por um lado, uma certa ideia de que essas mulheres em
situação de prostituição seriam “vítimas”, incapazes de “ação”, “decisão” e
“negociação”, absolutamente assujeitadas (Gregori, 1993). Essa lógica já se faz perigosa
por si só pelo simples fato de que essa imagem de “vítima” absoluta é um tanto quanto
ilusória, arduamente fabricada e acionada por determinados sujeitos nas mais variadas
situações, como apontou Maria Filomena Gregori (1993) e, posteriormente, Cynthia Sarti
(2011; 2014) e Efrem Filho (2017).
Acionada e empreendida por setores abolicionistas da prostituição, os efeitos
dessa lógica — em que diversas populações estão sendo enquadradas como “vulneráveis”
— se tornam ainda mais perigosos uma vez que a consequência direta desse
enquadramento pode contribuir para propiciar a própria repressão da prostituição

13
O termo “marcadores sociais da diferença”, de inspiração nos estudos de gênero e pós-coloniais
construcionistas, vem sendo utilizado em análises recentes que têm se dedicado a pensar como gênero,
sexualidade, “cor”/“raça”, classe e geração, por exemplo, operam em entrecruzamentos (França, Macedo e
Simões, 2010). Além disso, é necessário salientar que esses estudos e linhas de pesquisas se voltam tanto
para os efeitos de sujeição dos “marcadores articulados” quanto para os recursos e modos de agência que
essas articulações possibilitam (Almeida, Moutinho, Simões e Schwarcz, 2018).

12
(Piscitelli, 2014), para além dos controles sobre determinados fluxos populacionais
(Carrara, 2014). Intensificando também para fomentar a ideia política da necessidade de
regulação e intervenção estatal dessas diversas atividades ligadas às economias sexuais
(ver Agustín, 2005; Silva, Blanchette e Bento, 2013; Piscitelli, 2014; 2016).
Na medida em que essa lógica (re)produz um ideal de vítima da prostituição
absolutamente vulnerável atrelada à uma leitura de determinadas categoriais de
diferenciação a partir de processos de “vitimização” e “passividade”, ela acaba, por fim,
(re)produzindo também uma certa hierarquia entre “vítimas” e “mais vítimas”, para além
da própria imagem da “vítima absolutamente vulnerável”. Essa lógica, por exemplo, já se
faz diferente da lógica empreendida por outros setores abolicionistas, em que a prostituta,
independentemente deste específico cenário de “extrema vulnerabilidade”, é sempre lida
como uma “vítima” pelo único e simples fato de “ser mulher”.
Levando em consideração o argumento de uma das integrantes do coletivo,
podemos notar, primeiramente, um certo movimento que produz uma diferenciação
hierarquizante e regulatória entre mulheres pobres e mulheres de classe média que se
prostituem, em que as primeiras, por estarem em uma situação econômica menos
favorável que as segundas, teriam menos oportunidades de exercer outras atividades
econômicas, assim, essas mulheres estariam em situação de prostituição não por escolha,
mas por falta de opções mais rentáveis. Assim, essas mulheres pobres seriam de certa
forma “mais vítimas” do que essas outras de classe média, por isso, mulheres em situação
de prostituição.
Para além desse marcador social de classe, os argumentos empreendidos nessas
falas revelam também como geração vem sendo articulada para hierarquizar “vítimas” e
“mais vítimas”, apesar de em muitos contextos, “mulheres mais jovens serem lidas como
mais vulneráveis” (Piscitelli, 2010), neste contexto, em especial, mulheres mais velhas14
têm sido lidas como mais vulneráveis do que mulheres mais jovens. Por não conseguirem
“fazer mais tanto dinheiro como antes”, por muitas apresentarem problemas de saúde,
pelo fato de serem mães, avós e bisavós, responsáveis financeiramente por todas essas
pessoas, por terem grandes “dificuldades em conseguir emprego em outros lugares”, por
serem grupo de risco da covid-19, entre outros fatores.

14
Ressalto aqui que a categoria êmica mais velhas precisa ser pensada de forma relacional e contextual,
além de levar em consideração as proposições das antropólogas Guita Grin Debret e Donna M. Goldstein
(2000) que destacam o quanto é indispensável pensar geração e curso da vida a partir tanto da relação e
interação com outras diferenças sociais quanto do próprio caráter performático das experiências etárias.

13
Podemos notar também um movimento por parte desse coletivo que também
racializa essa população para (re)produzir essa ideia de que essas mulheres são
“absolutamente vítimas” (Piscitelli, 2010), na medida em que as categorias “pobres e
negras” têm sido mobilizadas em conjunto. Ainda que esse coletivo “atenda” mulheres
que se autoidentificam como brancas, para produzir esse contexto de “vulnerabilidade
estrutural” para, por fim, (re)construir essa categoria de mulheres em situação de
prostituição, esse coletivo acaba racializando certos corpos “pobres” e “sexualizados”
(Moutinho, 2014). Essa lógica empreendida pelo coletivo para (re)construir essa imagem
da mulher em situação de prostituição é utilizada nos discursos públicos de Madalena e
do coletivo.
Entretanto, além desse movimento que produz diferenciações e hierarquizações
entre “mulheres pobres” versus “mulheres de classe média” e “mulheres velhas” versus
“mulheres jovens”, há o processo de racialização de classe que finda por construir essa
imagem da mulher em situação de prostituição que é “vítima absolutamente vulnerável
da prostituição”. Em campo, acompanhando as relações cotidianas entre as integrantes do
coletivo e as mulheres em situação de prostituição tenho percebido que a própria
organização vem desenvolvendo certos mecanismos de controle de “vulnerabilidade”
para medir quem receberá ou não certas ajudas “mais assistencialistas”. Em conversas
com as fundadoras e demais integrantes, percebi que os recursos são escassos frente à real
demanda. Assim sendo, as fundadoras dizem que é necessário produzir e seguir certos
critérios para escolher quem receberá ou não a ajuda.
Segundo elas, há diversos fatores que são levados em consideração para identificar
e selecionar àquelas que receberão a ajuda. Há fatores considerados mais objetivos, como,
por exemplo, se a tal beneficiária é ou não cadastrada no sistema, se sim, se ela frequenta
regularmente os espaços do coletivo; e fatores considerados menos objetivos, aqueles que
precisam ser analisados “caso a caso”, por exemplo, o que as fundadoras e as outras
integrantes do coletivo têm (re)produzido e nomeado como “nível social de
vulnerabilidade”: “se a mulher é mais velha, ela provavelmente ganha menos, se ela tem
filhos e netos para criar, a situação só piora (...) assim, são essas as mulheres que têm
prioridade na nossa lista” (caderno de campo, 27/09/2019).
Em campo, um dos integrantes me disse certa vez: “não temos muitas fraldas para
distribuir para as mães, então a gente precisa escolher quem está pior, essas mulheres que
vieram aqui e pediram, por exemplo, elas são jovens, mas são negras, provavelmente
ganham menos na pista”. Aqui, podemos perceber que “raça” vem sendo acionada de

14
forma diferente, em vez de ser lida em conjunto com “classe”, passa a ser lida de forma
separada, produzindo assim, uma outra hierarquização entre mulheres classificadas como
negras ou brancas, em que as primeiras, produzidas como “mais vulneráveis” do que as
segundas, acabam sendo “mais vítimas”.
Madalena certo dia, estava explicando para Silvia do porquê que ela sofria mais
do que Silvia na vida, neste dia, Silvia, uma mulher branca nordestina com mais de 50
anos, estava dizendo o quanto a sua vida estava difícil: “a prostituição não está mais me
dando nada, faz tempo que não consigo nada (...) estou tentando fazer faxina, mas eu não
aguento trabalho pesado, fico muito cansada, estou gordinha (...) e a gente ainda é
discriminada por ser pobre e puta” (04/12/2021).

Assim que Silvia fala o quanto é difícil ser pobre e puta, Madalena diz: “e eu que
sou PPP? Pobre, preta e puta! Eu sofro muito mais. Imagina a minha vida sendo
pretinha assim? Toda retinta (...).
Neste dia, Madalena havia chamado uma parceira de luta do movimento de
moradia. Ela, uma mulher jovem e negra da pele escura, ouviu a discussão e
disse: existe o racismo estrutural, a gente sofre preconceito, eu tenho a pele retinta
também, sofro muito mais do que as pretas que têm pele clarinha, não vem me
dizer que é igual, porque não é igual.
Pelo olhar de Silvia, percebi que ela ficou extremamente incomodada com essa
conversa.
Ela diz: mas eu também sofro. (caderno de campo, 04/12/2021).

Em conversa, certo dia, Silvia me revelou que também já havia sofrido xenofobia
em um atendimento médico:

Ela era do postinho sabe, eu entrei no consultório dela (...) abri a boca e ela disse:
“mais uma nordestina hoje, vocês não cansam de vir pra São Paulo não? (...) eu
fiquei muito incomodada sabe, respirei fundo e disse que era do Piauí. No fim ela
disse: “você precisa diminuir esse ‘bucho’, você está ficando muito gorda, seu
colesterol está muito alto, isso vai piorar a sua pressão. (caderno de campo,
04/12/2021).

Contrastando essas lógicas e mecanismos, podemos perceber que na mesma


medida em que essa categoria de mulheres em situação de prostituição acaba produzindo
uma certa imagem de vítima absolutamente vulnerável da prostituição, fortemente
atrelada às “vulnerabilidades estruturais”, produzidas neste particular contexto a partir da
articulação de certos marcadores sociais da diferença, lidos somente na chave da
“opressão”, da “desigualdade”, da “passividade” e da “vitimização”; essas
“vulnerabilidades estruturais” quando acionadas e administradas nesse cotidiano de
trabalho do coletivo, acaba por minar essa ideia de vítima absolutamente vulnerável da

15
prostituição na medida em que esse contexto de escassez de certos recursos materiais
acaba produzindo certas hierarquizações entre as próprias vítimas em situação de
prostituição.

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