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NOS NERVOS, NA CARNE, NA PELE

UMA ETNOGRAFIA SOBRE PROSTITUIÇÃO TRAVESTI E O MODELO


PREVENTIVO DE AIDS
Larissa Maués Pelúcio Silva

Resenha por Camila Iribarrem

Afinal, quem são as travestis? Para responder a essa pergunta


é preciso enveredar por essas trilhas, seguir os códigos
territórios, fixar-se nesses corpos que não cansam de ser
nômades. (SILVA, 2007, p.34)

Minha busca por compreender as trilhas seguidas por Larissa Maués Pelúcio Silva, para
compor sua tese de doutoramento, que agora pretendo expor nessa breve resenha apresentada
à disciplina Leituras em Gênero, foi carregada por uma movimentação mental tão nômade
quanto a própria travestilidade que autora aborda em sua pesquisa, (me valendo da
terminologia utilizada por ela). Quero dizer com isso, que a leitura que fiz, para além do
exercício mental de interpretação reflexivo, me trouxe à luz, questionamentos sobre as
predefinições de identidade ou identidades, que ultrapassando as análises sobre gênero, me
fazem questionar meu próprio direcionamento enquanto etnógrafa, no sentido de que a
compreensão das identidades sociais, está sujeita a se desfazer no próprio fazer etnográfico do
campo de pesquisa, por vezes tão nômade e necessariamente flexível quanto a própria
categoria travestilidade se apresenta na abordagem sobre gênero desenvolvida pela autora.

Como o exposto pela mesma (p.37), “toda essa pluralidade na experiência travesti não
implica a impossibilidade de definição conceitual, mas alerta para o perigo de se propor
categorias teóricas sem a necessária flexibilidade para enfrentar o que acontece no espaço
empírico”. O ethos dessa flexibilidade que se reflete em sua tese, também passou pela análise
de dois comitês de ética, conforme aponta a autora em seu capítulo introdutório, subintitulado
“ Tese, trocas e ética”( p.45), onde discorre sobre o processo de autorização burocrático
realizado tanto pela Universidade de São Carlos, quanto pela Universidade de São Paulo, e os
contextos sobre a negociação de campo com seus interlocutores. De acordo com ela, mais
constrangedor e complicado foi a burocratização e assinatura de autorizações por parte dos
clientes de seus interlocutores protagonistas( os travestis). Recordando as palavras da autora

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“entre os T’Lovers, por exemplo, esse instrumento, ainda que garantisse anonimato, os
deixava mais temerosos que seguros”.

Utilizando como instrumento de aproximação uma câmera fotográfica, e entre tensões


de campo, que segundo ela ocorreram como aspectos integrantes da pesquisa, sem condições
excepcionais que mereçam uma narrativa etnográfica, Silva (2007) desenvolveu sua tese com
apoio e contribuições inquestionáveis dos envolvidos em seu trabalho, demonstrando uma
desenvoltura impressionante sobre circunstâncias e condições que alguns pesquisadores
poderiam encontrar bloqueios em seu desenvolvimento. Do meu ponto de vista, tentei
apreender durante a leitura da tese, posicionamentos e posturas diante de interlocutores
narrados pela autora, que tomei como fontes de conhecimentos práticos de convivência social,
ou melhor dizendo (dicas) valiosas para quem pretende transitar pela diversidade de
universos urbanos, como os vivenciados pela autora. Outro método relevante explorado por
ela e que na atualidade tende a ganhar cada vez mais adeptos, por se fazer muitas vezes
imprescindível em tempos de pandemia do coronavírus, é a utilização de meios virtuais para
realização de seu campo de estudo.

Com sua fala de pesquisadora experimentada entre as sociabilidades que ela própria
construiu junto aos seus interlocutores e territorialidades marcadas em sua narrativa na
relação entre as identidades (categorias êmicas classificatórias p.18), e territórios ocupados
por esses sujeitos, a autora se utiliza do conceito de “código território”, criado por Guattari e
utilizado por Perlongher (2005), no sentido de que “ a expressão código território se refere a
relação entre o código e o território definido” ( p.34) . Esses conceitos fundamentam a tese de
Larissa Silva desde sua introdução, a partir do capítulo “Trilhas iniciais”, em que autora deixa
explicita sua orientação teórica, baseada na Teoria Queer, além da sua abordagem sobre
antropologia da saúde e o modelo preventivo de Aids, a partir de sua experiência pessoal no
Programa “Tudo de Bom!”, alocado pela Agência Pública de Saúde da Cidade de São Paulo,
durante seu campo de observação participante, desenvolvendo uma abordagem crítica sobre
“os valores normativos universalizantes, que não são necessariamente compatíveis nem com a
lógica social que preside a organização das chamadas populações alvo, nem com os valores
diferenciais que lhes servem de base” (p.023).

Silva destaca em sua narrativa introdutória que a princípio a abordagem de sua tese se
voltava mais especificamente sobre o estudo do modelo preventivo de Aids entre os travesti,
entretanto ao se deparar com o universo que constitui sua ab rodagem, não foi possível deixar
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de desenvolver o estudo que realizou sobre gênero a partir dos conceitos pautados na teoria
Queer. Nesse sentido, Judith Butler, em especial seus ensaios “ Problemas de Gênero:
Feminismo e subversão de identidade”(1990) e “Botty that Matter: On the discursive limits of
sex” (1993), são os mais expressivos na tessitura narrativa desenvolvida pela autora,
associada a temática Foucaultiana sobre saúde e sexualidade. Ela afirma ser “difícil não
recorrer a Foucault quando se fala de doença e sexualidade, sobretudo no âmbito desse
trabalho, no qual a Aids, com seu status de doença sexual, transmissível, incurável, se
vincula a um segmento social que tem na sexualidade sua marca de “desvio” e sobre seus
corpos o olhar de diferentes instâncias de “saber” e “poder”, para ficarmos com termos
foucaultianos”. (p. 38). Ao referenciar Butler, a autora questiona o binarismo sexual, enfoca a
desnaturalização das identidades, dos gêneros e corpos. E questiona: ( p. 39)

Existiria o sexo biológico independente dos significados


culturais a ele atribuídos? Haveria, assim, um sexo pré-
discursivo? Para Butler, não. Numa crítica a proposta feminista
construtivista que, ao diferenciar sexo/ natural e gênero/
cultural mantêm o binarismo intacto, a filosofia propõem um
exercício lógico. “Se o gênero são os significados culturais
assumidos pelo corpo sexuado, não se pode dizer que ele
decorra de um sexo desta ou daquela maneira ( Butler 2003,
p.24). Pois se assim for como o sexo se diferenciaria de
gênero? O que se infere daí é uma relação mimética entre os
termos, o último restringindo o primeiro, que por sua vez,
restringe o outro. E mais, se o sexo for tomado como
naturalmente dado e, por isso, independente do gênero
socialmente construído, nada impediria então, que sobre um
sexo masculino, se inscrevesse um gênero feminino .

A partir da ênfase dada pela autora sobre seu lugar de fala enquanto pesquisadora,
ancorando sua proposta teórico conceitual e metodológica, sua investigação participante foi
subdividida em “cinco espaços de convivência” (p.27), localizados no estado de São Paulo,
parte na cidade de São Carlos e outra na capital, seguinte forma: “ 1) Visita a casa de travestis
da cidade; 2) Ponto de prostituição local, com menor ênfase no comparecimento a eventos em
boates; 3) Acompanhamento de reuniões do projeto preventivo do DST AIDS Cidade de São
Paulo Tudo de Bom !4) Incursões a campo com agentes de prevenção do referido projeto (
travestis e michês) 5) Participação nos Dia T ( Encontro dos T Lovers), grupo mais ou menos
organizado de homens que gostam de ter sexo com travestis.” Além de sua sociabilidade em
boates e festividades, que também fizeram parte de seu campo de pesquisa.

Já a abordagem etnográfica da tese foi dividida em sete capítulos, sendo estes: 1)


Território e Tempo ; 2) Gêneros rígidos em corpos fluidos; 3) Prevenção e SIDADAnização;

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4) TUDO DE BOM para as travestis 5) A invisibilidade dos normalizados 6) Culpa, acusação
e pressão; 7) Casa , corpo e pessoa. O primeiro capítulo, marca a espacialidade de
investigação da pesquisadora a partir das territorialidades relacionadas as identidades de
gênero entre as travestis. “ Ruas, becos esquinas, praças, bares, casas noturnas, cinemas,
boates, compõem a tessitura do mercado do sexo; são pontos de encontro, aprendizado,
desavenças e alianças” (p.40)

O segundo capítulo, versa em especial sobre as categorias êmicas como ( travestis tops, as
europeias, as ninfetas, veteranas), e as representações de gênero que as travestis encarnam,
incluindo outras relações imbricadas, como os papéis de marido, a classificação dos clientes e
como tudo isso se integra as práticas eróticas e medidas preventivas , não somente no sentido
de precaução de doenças, como na manutenção de suas próprias vidas. No capítulo três a
autora aborda o concito de SIDAdanização em alusão a expressão cidadanização discutida por
Luiz Fernando Duarte et al, correlacionando as abordagens enquanto metáfora antropológica
para responsabilização dos próprios sujeitos por sua saúde, por meio da politização do modelo
de saúde preventivo implicado ao universo de sua abordagem.

O capítulo quatro retrata o Projeto tudo de Bom!, e a metodologia desenvolvida pelo


mesmo no sentido de uma prevenção dialogada. A autora apresenta o a forma de atuação do
projeto e a leitura dessa abordagem como “uma triangulação dessas relações”, ( agentes-
sujeitos-instituição). No capítulo cinco, a abordagem se volta para clientela das travestis, com
enfoque do recorte da pesquisa sobre os T-lovers. De acordo com a autora, nesta seção, ela
procura “deslocar das travestis para as falas e representações desses homens, a fim de discutir,
pelo prisma da masculinidade hegemônica, como (de que forma) sexualidade, práticas
eróticas e prevenção à Aids se cruzam e se chocam, num discurso em que a doença é
encapsulada pela tensão de uma vida em segredo e culpa”. ( p.42)

O capítulo seis, para além da discussão sobre os significados da doença e do sofrimento, a


abordagem aponta sobre a “visibilidade dada às travestis a partir da Aids”. Nesse sentido
estão incluídas as análises das falas das soropositivas, em geral atual no movimento social e
agentes de prevenção. A autora defende uma confrontação sobre dois modelos do
adoecimento, o pautado pela biomedicina e o outro orientado pela medicina popular. A
finalização da tese, em seu capítulo sete, retrata a condição de entrada na casa da cafetina e a
oposição que se coloca à casa paterna, ainda mais do que a rua. Ali recebem ensinamentos de
suas mães ou madrinhas sobre técnicas corporais, modos de vida, cuidados com o corpo e a
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saúde, em um espaço regulado por inúmeras regras que fazem parte desse universo. É também
na casa das cafeínas que aprimoram sua performatividade, outro conceito central que autora
aborda para o entendimento sobre a materialização de um gênero intrinsecamente relacionado
aos cuidados, técnicas de transformações do corpo e consequentemente a saúde física. Mais
uma vez a autora traz à luz o conceito de performatividade reapresentado na etapa final dessa
tese pelo “conceito Butleriano, tomado por sua vez, pela linguística de John Austin”.

Pra finalizar essa resenha, destaco o último trecho introdutório da tese de Larissa Silva,
que esclarece em poucas palavras o aspecto conclusivo de sua narrativa; “proponho que a
centralidade dos valores estético-morais na constituição da travestilidade, esvazia a força de
certas mensagens preventivas, sobretudo quando o discurso não se faz acompanhar de uma
política de saúde que possa atender demandas que vão para além daquelas referidas às DST/
Aids, marcando as travestis como pessoas historicamente ligadas ao perigo”.

Referências

SILVA, Larissa Maués Pelúcio. Nos nervos, na carne, na pele: uma etnografia sobre
prostituição travesti e o modelo preventivo de AIDS. Tese (Doutorado em Ciências
Humanas). Universidade Federal de São Carlos, 2007.

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