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Fundamentos da Psicologia Comunitária 2022.

Claudiana Ramos da Silva

Prova I Bimestre

Partindo da reportagem Casa Grande & Senzala de Fabiana Morais, pretende-se traçar
um paralelo entre os fatos trazidos na mesma e alguns dos objetos de estudo da psicologia
comunitária, como as relações, representações, nível de consciência e pertinência a grupos
comunitários (Góis, 1993 citado por Campos, 1996a).

Inicialmente, pode se apontar que a reportagem mostra a relação de dominação que


existe entre meninas exploradas sexualmente e os homens responsáveis por tal exploração.
Como destaca Guareschi (1996), tal relação se apresenta quando uma parte toma a capacidade
da outra de executar uma ação, ou seja, seu poder. Os relatos demonstram que um dos poderes
que é usurpado dessas meninas é o decidir com quem ter relações sexuais. Isso não se
apresenta apenas nas situações de estupro apresentadas, mas também quando, por conta da
situação de vulnerabilidade em que vivem, elas são levadas a fazê-lo somente com quem
“pode pagar” e não com quem realmente queiram.

Relações de dominação como essa são reproduzidas e sustentadas através da ideologia


(Guareschi, 1996), a qual “se manifesta através de representações que o indivíduo elabora . . .
sobre aqueles aspectos da sua vida a que, explícita ou implicitamente, são atribuídos valores
de certo-errado, de bom-mau, de verdadeiro-falso” (Lane, 1989, p. 41), ou seja, valores
absolutos. É isso que permite a jornalista traçar um paralelo entre o livro Casa Grande &
Senzala de Gilberto Freyre e a realidade que narra: são as mesmas representações sobre a
mulher negra que sustentam os abusos sofridos pelas escravas e pelas meninas agora, que
sustentam a mesma relação de dominação.

A consciência da ideologia por trás das representações não é alcançada por algumas
das meninas que contam suas histórias na reportagem, como Carol e Stephanie. Envolvidas
em relações violentas com os companheiros, elas justificam a agressão afirmando que eles
têm razão por estarem com ciúmes. Ao não questionarem essa representação do ciúme como
algo natural que justifica a violência e ao agirem se submetendo a mesma, defendendo os
companheiros, essas meninas revelam sua alienação, “enquanto processo que envolve,
necessariamente pensamento e ação” (Lane, 1989, p. 41) e que naturaliza construções sociais
como o ciúme.

A representação acima é apenas uma dentre várias do nosso imaginário social que
atravessam a instituição que aqui podemos identificar como “prostituição”, por ser o espaço
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social onde elementos sociais como o papel da mulher negra e elementos psicológicos como o
desejo de ascender socialmente de Stephanie se articulam (Nasciutti, 1996). Esse sonho
individual não pode ser levado adiante com a forma com a qual ela vive, que é efeito das
relações que estabelece com os demais, estes orientados pelas representações do que seria
esse papel, como, por exemplo, manter relações a um preço muito baixo ou sem preço algum
já que é algo no qual ela “obtém prazer”.

A análise dessas representações conduz a uma análise da cultura, entendida como o


“conjunto de significados compartilhados que orientam a conduta dos indivíduos” (Campos,
1996b, p. 173), algo crucial quando se estuda comunidades como a das jovens foco da
reportagem. O grupo delas se caracteriza como comunidade, por outro lado, porque para além
do objetivo comum de ganhar dinheiro a partir das relações sexuais, também as une vínculos
afetivos: são amigas próximas como Carol, Sthepanie e Patrícia. Construir espaços para a
constituição de vínculos é justamente uma das coisas que a formação para atuar nesses
contextos comunitários deve priorizar, bem como a “valorização de projetos coletivos nos
quais os conhecimentos sejam instrumentos emancipatórios e, ao mesmo tempo, objetos de
análise e produção de pensamento” (Scarparo & Guareschi, 2007, p. 106). Afinal é nesse
espaço que a singularidade e a coletividade se articulam.

Essa comunidade, bem como a comunidade mais ampla da qual elas fazem parte,
ocupa um território que pelos relatos da reportagem é tomado pelo lixo, pelo que as pessoas
não querem mais e descartam ali. Partindo das ideias de Spengler (1976 citado por
Vasconcelos, 1996) ao apontar que “a arquitetura reflete a organização sócio-espacial de cada
época” (p. 140), podemos interpretar que esse lugar/espaço que é ocupado por essas jovens
reflete aquele que elas ocupam na estrutura social: o do indesejável e descartável. Também
Couchaux (1980 citado por Vasconcelos, 1996) reforça essa ideia ao destacar que nas
sociedades sedentárias o desmembramento do lugar está em estreita relação com o
desmembramento social. Ou seja, a divisão do espaço reflete uma divisão social.

Analisando as políticas públicas destinadas a esse público, percebemos como a


concepção de mudança que as norteia é aquela originada da concepção de comunidade da
psicologia comunitária norte-americana, porque a entende como modernização de setores
atrasados (Sawaia, 1996). As meninas são o setor problemático da sociedade, que precisa ser
alvo de ações para se integrar a ela. A sociedade em si não tem problemas, não se destinam
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políticas a ela nem aos homens que praticam abusos e reproduzem relações de dominação,
apenas às próprias meninas.

A importação de modelos teóricos estadunidenses como esse, presente nos primeiros


cursos de psicologia no Brasil, é justamente o que a psicologia na comunidade questiona
quando do seu surgimento, levando os psicólogos a atuarem com populações de baixa renda e
promoverem a organização política das mesmas (Freitas, 1996).

Outra característica dessas políticas é que elas servem apenas para atenuar os
problemas de um público específico, que no caso da reportagem pode-se considerar mais
amplamente as vítimas de exploração e/ou os usuários de drogas já que como ela mesma
destaca não há projetos específicos para as mulheres, mas não os resolvem de todo, até porque
não são de um público específico mas de toda a sociedade como apontado mais acima. Apesar
das várias passagens das meninas pelo Departamento da Polícia da Criança e do Adolescente,
elas continuam a voltar para as ruas. Tal como destaca Silva (2010) os programas de
enfrentamento a pobreza - entendida por ela como uma categoria mais adequada do que
exclusão ao contexto brasileiro, no qual fala-se de pessoas que nunca estiveram incluídas para
serem excluídas - são políticas de inserção ao agirem apenas sobre os efeitos do
disfuncionamento social e não de forma preventiva como as políticas de integração.

Apesar disso, os programas citados na reportagem parecem repetir um mesmo modelo,


apenas mudando de roupagem, e também por isso parecem continuar inefetivos. Não há uma
reflexão acerca deles tampouco e não conseguem alcançar o objetivo da Psicologia
Comunitária de transformar os indivíduos em sujeitos (Campos, 1996a) ainda quando ela se
mostre tão propícia a promover discussões nesse campo através do seu arcabouço teórico,
como apontado ao longo do presente texto.
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Claudiana Ramos da Silva

Referências

Campos, R.H.F. (1996a). Introdução: a psicologia social comunitária. In R.H.F. Campos


(Org.), Psicologia Social Comunitária: da solidariedade à autonomia (pp. 09-15).
Petrópolis: Vozes.

Campos, R.H.F. (1996b). Psicologia comunitária, cultura e consciência. In R.H.F. Campos


(Org.), Psicologia Social Comunitária: da solidariedade à autonomia (pp. 164-177).
Petrópolis: Vozes.

Freitas, M.F.Q. (1996). Psicologia na comunidade, da comunidade e psicologia (social)


comunitária – práticas da psicologia em comunidades nas décadas de 60 a 90, no
Brasil. In R.H.F. Campos (Org.), Psicologia Social Comunitária: da solidariedade à
autonomia (pp.54-80). Petrópolis: Vozes.

Guareschi, P. (1996). Relações comunitárias - relações de dominação. In R.H.F. Campos


(Org.), Psicologia Social Comunitária: da solidariedade à autonomia (pp. 81-99).
Petrópolis: Vozes.

Lane, S.T.M. (1989). Consciência/alienação: a ideologia no nível individual. In S.T.M. Lane


& W. Codo (Orgs), Psicologia social: o homem em movimento (pp.40-47). São Paulo:
Braziliense.

Nasciutti, J.C.R. (1996). A instituição como via de acesso à comunidade. In R.H.F. Campos
(Org.), Psicologia Social Comunitária: da solidariedade à autonomia (pp.100-126).
Petrópolis: Vozes.

Sawaia, B.B. (1996). Comunidade: a apropriação científica de um conceito tão antigo quanto
a humanidade. In R.H.F. Campos (Org.), Psicologia Social Comunitária: da
solidariedade à autonomia (pp. 35-53). Petrópolis: Vozes.

Scaparo, H.B.K, & Guareschi, N.M.F. (2007). Psicologia social comunitária e formação
profissional. Psicologia & Sociedade, 19(Ed.Esp.2), 100-108.

Silva, M. O. S. (2010). Pobreza, desigualdade e políticas públicas: caracterizando e


problematizando a realidade brasileira. Revista Katálysis, 13(2), 155-163.

Vasconcelos, N.A. (1996). Qualidade de Vida e Habitação. In R.H.F. Campos (Org.),


Psicologia Social Comunitária: da solidariedade à autonomia (pp.127-163).
Petrópolis: Vozes.

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