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UNIVERSIDADE FEDERAL DO VALE DO SÃO FRANCISCO

Curso de Psicologia
Disciplina de Ética
Professora Dra. Edclécia Reino Carneiro de Morais

Claudiana Ramos da Silva


Kamylla Viana Dantas
Pedro Samuel Nascimento Barros
Viviane Conceição Silva
Williane Ferreira Viana Santos

Reflexões éticas acerca da eutanásia através do viés psicológico

Petrolina - PE
2023
Introdução

Em uma época na qual os avanços científicos, especialmente na área médica,


colaboraram para uma melhor qualidade de vida e para o fenômeno mundial do
envelhecimento da população, a luta pelo direito de morrer tem suscitado calorosos debates
nos mais diversos domínios do saber. Se por um lado é argumentado que o sujeito deveria
poder escolher sobre sua própria morte, por outro é questionada sua autonomia e destacada a
importância política, social e espiritual que a vida possui. Nesse contexto, a eutanásia,
“compreendida como morte serena e sem sofrimento” (CRUZ, 2005. p. 18), é palco central
em tais discussões.
De acordo com Andrade (2020), Francis Bacon foi o primeiro autor a utilizar a
terminologia “eutanásia”, referindo-se a uma morte fácil que viria através da mitigação da
dor. De forma semelhante, o Comitê de Ética Médica da Câmara dos Lordes a conceituou
como uma intervenção deliberada cuja finalidade seria cessar uma vida humana de maneira a
lhe atenuar um sofrimento intratável (ANDRADE, 2020). Na atualidade, a eutanásia se
caracteriza pela intervenção do médico na morte de um paciente cujo sofrimento –
ocasionado por alguma doença – é considerado insuportável e sem perspectiva de tratamento
efetivo. Nesse sentido, apesar de poder ser vista como uma demonstração de respeito e
empatia para com a dor do outro, a eutanásia é alvo constante de críticas negativas, como as
que se fundamentam na ideia de que esse processo poderia ser utilizado “de maneira
precipitada ou arbitrária por familiares de pacientes debilitados” (HON, 2017 apud
ANDRADE, 2020), bem como as que a consideram não outra coisa se não um assassinato,
um desrespeito à inviolabilidade do direito à vida.
Dentro da legislação brasileira, a eutanásia não conta com um regulamento próprio,
podendo, em caso de ocorrência, ser enquadrada em outros crimes, como omissão de socorro
ou auxílio ao suicídio, por exemplo. Ademais, ela também pode ser equiparada ao crime de
homicídio, sendo analisada a partir do art. 121 do Código Penal – “Matar alguém. Pena:
reclusão, de seis a vinte anos”. Por outro lado, há anos tramitou no Senado Federal o projeto
de lei 125/96, que pretendia estabelecer critérios para legalizar a prática da eutanásia. Tal
tentativa foi arquivada. Além desse, outro projeto de lei, dessa vez condenando a eutanásia,
também foi elaborado – o projeto de Lei nº 236/12 do Senado Federal (novo Código Penal):
“Art. 122. Matar, por piedade ou compaixão, paciente em estado terminal, imputável e maior,
a seu pedido, para abreviar-lhe sofrimento físico insuportável em razão de doença grave:
Pena – prisão, de dois a quatro anos” (ANDRADE, 2020). No popular, a temática da
eutanásia não possui muito destaque no país e, quando debatida, a maioria da população se
mostra contrária a ela. Como relembrou Andrade (2020), “a legalização da eutanásia também
conta com baixa adesão popular. Em pesquisa de 2007, apenas 36% dos brasileiros se
posicionaram a favor da eutanásia”. Tal pesquisa foi realizada pelo Datafolha.
Diante disso, pretende-se refletir acerca de como a psicologia está implicada nos
debates, reflexões e intervenções acerca desse tema, ou seja, como ela pode se envolver
nessas discussões enquanto ciência e profissão.

A ciência psicológica no debate acerca da eutanásia


Segundo Sinclair (2020) embora a psicologia tenha contribuído em vários ramos da
pesquisa envolvendo questões de fim de vida e os estudos relacionados à eutanásia tenham
crescido, eles continuam limitados. Algumas áreas em que a necessidade de pesquisa foi
identificada são os efeitos da prática da eutanásia nos profissionais de saúde envolvidos, nos
sobreviventes e na sociedade em geral e a compreensão dos múltiplos fatores que influenciam
a tomada de decisão em fim de vida.
Dessa forma, uma das maneiras pelas quais a psicologia se faz presente no debate
acerca da eutanásia é na consideração das prováveis consequências ou implicações de uma
futura descriminalização. O argumento do declive escorregadio tem sido empregado nas
discussões acerca do tema com êxito (GÁLVEZ, 2013). Ele sustenta que a aceitação da
eutanásia pode fazer com que seu pressupostos sejam gradativamente utilizados em outras
situações até que leve a consequências indesejáveis ou ainda que possa predispor
“psicologicamente as pessoas a aceitarem outros tipos de situações indesejáveis” (TORRES,
2003, p. 481). Nesse sentido, a psicologia se insere no debate na medida em que seus estudos
podem esclarecer se esse argumento é de fato válido, ao investigar se essa tendência
psicológica realmente existe. Como aponta Gálvez (2013) “o êxito do argumento do declive
escorregadio depende então de que se possa oferecer alguma explicação psicológica
convincente” (p. 89, tradução nossa).
Além dessa possível implicação para a sociedade em geral, a psicologia também pode
contribuir para a compreensão dos efeitos dessa prática em setores intimamente envolvidos
na questão. Pensando a eutanásia como uma prática onde se possibilita a abreviação da vida
de um paciente considerado incurável, é lógico se pensar que tal ação ocorra,
majoritariamente, no âmbito hospitalar. Nesse sentido, uma classe que também acaba por ser
diretamente afetada por essa discussão e pela possível descriminalização da eutanásia no
Brasil é a classe médica. De acordo com Cruz (2005), os médicos “vêm de uma graduação
em que apenas a cura e a vida são valorizadas”, o que faz com que seja difícil para eles
lidarem com a ideia de que o cuidado final para com certo paciente envolveria cessar-lhe a
vida. Assim, a eutanásia, sendo “uma questão polêmica, perpassada por conflitos de valores
fundamentais e princípios que regem a vida e a dignidade humana” (GUIMARÃES et al,
2016), não seria vista pelos médicos simplesmente como a garantia de autonomia do
paciente, mas também como uma prática que se choca diretamente com sua função máxima
de aliviar o sofrimento do doente, de curá-lo. Ademais, uma descriminalização possibilitaria
a obrigatoriedade de o profissional realizar o desejo do paciente e tornar-se seu “algoz”.
Nesse contexto, mesmo isento de uma punição legal, o médico estaria à mercê de seus
próprios julgamentos, perpassados por todo um histórico acadêmico onde a vida é
considerada o bem máximo do ser humano e a função da medicina é mantê-la. Dessa forma, a
prática da eutanásia causaria no profissional da medicina um sofrimento emocional que se
relacionaria tanto à perda de um paciente quanto ao sentimento de falha em não ter
conseguido salvá-lo.
Segundo Torres (2003) tampouco “se pode desconsiderar as motivações do gesto
eutanásico, os aspectos psicodinâmicos, inclusive as motivações inconscientes” (p. 480).
Dessa forma, a compreensão dos fatores psicológicos envolvidos na tomada de decisão pela
eutanásia, ou seja, nesse processo de escolha também é um ponto de investigação que pode
contribuir para o enriquecimento do debate acerca do tema.
A prática psicológica e a eutanásia

O primeiro princípio fundamental trazido no Código de Ética Profissional do


Psicólogo diz que “O psicólogo baseará o seu trabalho no respeito e na promoção da
liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, apoiado nos valores
que embasam a Declaração Universal dos Direitos Humanos” (ROMARO, 2014, p. 17). Ou
seja, é dever do psicólogo prezar pela autonomia e pela qualidade de vida dos indivíduos e,
justamente por conta disso, o trabalho psicológico se faz importante e necessário no debate
acerca da eutanásia, visto que a maior parte dos argumentos contrários acabam
menosprezando a autonomia humana e também, por consequência, prolongando o sofrimento
de um indivíduo. Obviamente é preciso olhar para um caso com cuidado ético para que se
tenha certeza que a decisão pessoal não está sendo tomada por problemas psicológicos ou
algo desse tipo, visto que “as restrições ao exercício dos direitos fundamentais só podem ser
feitas em casos excepcionais, sempre devendo ser analisado o caso concreto, observando-se
as condições de cada indivíduo e suas necessidades individuais.” (SOUZA; FRANÇA, 2022,
p. 2963). Contudo, "não cabe ao Estado impedir ao indivíduo a liberdade de renunciar ao
viver quando tal condição lhe implica degradação física ou psicológica" (BARBOSA;
LOSURDO, 2017, p. 182), e é dever do psicólogo, como já mencionado, de acordo com os
princípios fundamentais que orientam sua prática, lutar para que o direito de autonomia e
liberdade do sujeito sejam garantidos.
É de conhecimento o direito que o paciente que sofre com uma doença incurável,
iniciar um tratamento, mesmo que seja paliativo ou até mesmo interrompê-lo. Ele tem essa
autonomia garantida, mas quando o mesmo solicita o direito à morte digna - respeitar a
autonomia do indivíduo em poder escolher o modo e o momento adequado de partir, de
acordo com seus próprios valores, a própria personalidade - isso não lhe é permitido,
independente da sua consciência e da sua subjetividade. A pessoa que luta para conseguir
realizar a eutanásia tem a consciência de que sua doença é incurável, as medicações são
apenas paliativos, e não almejam viver uma vida se não for digna. Terminar seus dias em um
hospital sem afeto, seus familiares vê-lo cheio de fios, aparelhos, sua vida se esvaindo aos
poucos e sem ter nenhuma autonomia, ou seja, tornar-se dependente do outro, não é a
maneira que deseja viver esse indivíduo. A escolha da morte digna não é o fim do sofrimento
físico ou psíquico, mas sim estar em boas condições para se despedir da família, amigos, até
de si mesmo com toda a sua autonomia intacta. É com esses princípios que os solicitantes por
eutanásia lutam para descriminalizar - que seja alterada a lei, que não seja considerado
homicídio, mas sim um direito de morrer. Oliveira e Japulo (2005) relatam uma opinião da
professora Débora Diniz que diz: “Eutanásia não é assassinato. Viver é sempre fazer
escolhas, inclusive a escolha de morrer”, tendo como base dois princípios éticos: Dignidade e
Consciência. Diante desses princípios a psicologia tem um papel importante, o psicólogo
deve manter sempre o respeito à integridade e liberdade daquele que está decidindo, seja o
próprio enfermo ou a família diante da impossibilidade dele, respeitando incondicionalmente
o ser que se apresenta frente uma escolha por vezes difícil, que é justamente a escolha de
quando se deve morrer (CRUZ, 2005),muito além de se posicionar contra ou a favor.
Voltando aos princípios fundamentais no que tange ao fazer ético do profissional de
psicologia, o segundo diz respeito a uma forma de trabalhar que vise a promoção da saúde e
qualidade de vida das pessoas (ROMARO, 2014), e, como vimos, existem situações em que
esse bem-estar não pode ser proporcionado, como no caso de doenças incuráveis e
incapacitantes. Cabendo ao psicólogo o papel de acolher o paciente e seus familiares em sua
decisão final, que em países em que a legislação permite, pode ser a opção pela eutanásia,
instruindo sobre o processo de morrer e do luto com ambos, além de propiciar conforto
auxiliando para a elaboração de um um ambiente em que se sinta seguro, vivencie o afeto da
família, seja ouvido e cuidado. Como traz Cruz (2005), ao profissional restaria o respeito
ilimitado ao ser humano que se encontra diante dele vivenciando seu último ato de vida.

Considerações finais

Diante do exposto, entende-se que as reflexões acerca da eutanásia são importantes,


embora não tão debatidas na sociedade brasileira, e que a psicologia pode contribuir para elas
com seus conhecimentos e com os princípios que orientam sua atuação, sendo atravessada
pelo tema tanto como campo de estudos quanto campo de prática.
REFERÊNCIAS

ANDRADE, O. M. Status legal da eutanásia e ortotanásia no Brasil.Revista Jus Navigandi,


Teresina, ano 26, n. 6691, 26 out. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/81213.
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BARBOSA, G.S.S; LOSURDO, F. Eutanásia no Brasil: entre o Código Penal e a dignidade


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GÁLVEZ, Í. Á.. Sobre el argumento de la pendiente resbaladiza en la eutanasia. Dilemata,


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GUIMARÃES, M. M; CARVALHO, M. A. F; SIMÕES, I. A. R; LIMA, R. S; Eutanásia e


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OLIVEIRA, L.C.; JAPULO, M. P. Eutanásia e o direito à vida. Migalhas de peso, [S.l.], 13


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2023.

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