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REPRESENTAÇÃO DE ARQUITETURA COMO TECNOLOGIA

SOCIAL
ARCHITECTURAL REPRESENTATION AS SOCIAL TECHNOLOGY

REPRESENTACIÓN DE ARQUITECTURA COMO TECNOLOGÍA SOCIAL

EIXO TEMÁTICO: PROJETO, POLÍTICAS E PRÁTICAS

SILVA, Tiago Amaral da


Mestrando, Escola de Arquitetura da UFMG, NPGAU-UFMG
tiago.amaral96@gmail.com

SANTOS, Roberto E.
Professor-Doutor, Escola de Arquitetura da UFMG, NPGAU-UFMG
ro1234ro@gmail.com
RESUMO

O presente artigo tem por objetivo discutir a representação de arquitetura enquanto tecnologia.
Partindo dos pressupostos de que o saber tecnocrático é um tipo de código, de domínio dos arquitetos,
e de que as representações são ferramentas operativas desse saber, discutimos seus graus de
emancipação em face às relações sociais de dominação. Especulamos tais propriedades em diferentes
usos das representações, com base em três possibilidades, denominadas: tecnologia formal adaptada,
decodificação acrítica e interface. Analisamos tais possibilidades a partir da noção de rede tecnológica
heterogênea, buscando levantar os agentes e fatores que interagem em diferentes estágios de sua
composição. Damos ênfase na investigação das potencialidades de suas apropriações por grupos sócio-
espaciais envolvidos em atividades construtivas, tendo como horizonte sua emancipação e autonomia.
Finalizamos com a proposta de um experimento de uso de interfaces numa disciplina de projetos de um
curso de graduação em arquitetura e urbanismo.
PALAVRAS-CHAVE: Representação. Tecnologia social. Código. Interface.

ABSTRACT

This paper intends to discuss architectural representation as technology. Based on the assumption that
technocratic knowledge is a type of code, owned by architects, and that representations are operative
tools of this knowledge, we discuss their levels of emancipation in front of social relations of domination.
We speculate these properties in different uses of representations, based in three possibilities, named:
formal adapted technology, achritic decodification and interface. We analyze these possibilities from the
notion of technological heterogeneous network, seeking to raise the agents and factors that interact in
different stages of their composition. We focus in investigate the potentialities of their appropriations by
socio-spatial groups involved in construction activities, having as its horizon its emancipation and
autonomy. We finish with the proposal of an experiment to using interfaces in a project discipline from
an undergraduate course on architecture and urbanism.
KEYWORDS: Representation. Social technology. Code. Interface.

RESUMEN

Este estudio se propone a discutir la representación de arquitectura como tecnología. Basado en el


supuesto de que el conocimiento tecnocrático es un tipo de código, detenido por los arquitectos, y de que
las representaciones son herramientas operativas de ese conocimiento, discutimos sus grados de
emancipación frente a las relaciones sociales de dominación. Especulamos sobre tales posibilidades en
diferentes usos de las representaciones, con base a tres posibilidades, nombradas: tecnología formal
adaptada, decodificación acrítica e interfaz. Analizamos estas posibilidades desde la noción de red
tecnológica heterogénea, buscando encontrar los agentes y factores que interactúan en las diferentes
etapas de su composición. Destacamos la investigación del potencial de sus apropiaciones por grupos
socio-espaciales relacionados con las actividades constructivas, teniendo como horizonte su
emancipación y autonomía. Terminamos con la propuesta de un experimento para el uso de interfaces
en una disciplina de proyectos de un curso de pregrado en arquitectura y urbanismo.
PALABRAS-CLAVE: Representación. Tecnología social. Código. Interfaz.

Limiaridade: processos e práticas em Arquitetura e Urbanismo


INTRODUÇÃO

Delimitar o significado do termo “tecnologia” é tarefa difícil. Conforme indica Ruy Gama, sua
acepção é variável, pois, ao longo da história, associam-se à tecnologia contextos sociais muito
diferentes (GAMA, 1987, p.08), e não se pode investigar suas conotações apartadas de tais
contextualizações. A etimologia do termo indica que a tecnologia pode ser compreendida
como o estudo do modo de fazer ou do modo de produzir algo. Em grego, techné significa a
arte de fazer algo na prática. Mas, na perspectiva deste texto, que trata de sua incidência no
campo da arquitetura, a tecnologia, ou melhor, as tecnologias foram delimitadas em dois
grandes grupos, já que aí convivem possibilidades que chegam a ser diametralmente opostas,
considerando os modos de produzir o espaço. O primeiro é o das tecnologias hegemônicas.
São as tecnologias consolidadas pelo campo arquitetônico, predominantemente utilizadas e
impostas à produção do ambiente construído, ainda que isso não implique necessariamente
em sua adequabilidade. Para este primeiro recorte cabe discutir em profundidade o que
significa sua adequação, para quem e para o quê ela está orientada.

O segundo grupo é o das tecnologias sociais, cujo significado também não está pacificamente
delimitado. De modo geral ele se refere ao uso de tecnologias para o benefício de grupos
sócio-espaciais 1 marginalizados. Ainda que nem todas as vertentes da tecnologia social
combatam diretamente as tecnologias dominantes, apostamos em seu uso como ferramenta
contra-hegemônica. A vertente mais próxima desse caráter é a da tecnologia social crítica,
definida por Kapp e Cardoso (2013) como uma conduta teórica que problematiza as
conjunturas de desenvolvimento das tecnologias e que tem como horizonte a autonomia dos
indivíduos e sua "emancipação de relações sociais de dominação e a construção de relações
sociais de cooperação.” (KAPP; CARDOSO, 2013, p. 97).

Neste artigo propomos pensar as representações de arquitetura como tecnologias sociais


conforme elas atuem como ferramentas democráticas de planejamento. É preciso que elas
permitam aos produtores e usuários - personagens quase sempre alheios à concepção dos
espaços que eles mesmos participam - criar, discutir e transmitir informações relativas a seus
processos de produção.

Entretanto, existem entraves profundamente enraizados no campo da arquitetura que


impedem a mobilização das representações como tecnologias sociais. O principal deles é o
projeto. Tal como foi apontado por Sérgio Ferro (2006) 2, o projeto é uma prática que, por
excelência, lança mão da linguagem cifrada do desenho arquitetônico, codificando
informações técnicas indispensáveis à construção e visando o controle dos canteiros de obras,
consolidando assim a dominação do saber técnico sobre o saber-fazer.

Esse papel perverso do desenho impõe uma ambiguidade à ação do arquiteto. Se por um lado
o arquiteto aparentemente tem domínio sobre as formas construídas no canteiro a partir do
desenho, por outro, ele é submetido à dominação pelo mesmo código com o qual opera.
Tanto o desenho quanto a ação tradicional do arquiteto são regidos pela lógica da produção,
cujos valores recaem sempre na rentabilidade e no lucro, mesmo quando disfarçados pelo

1Ao utilizar o termo “grupo sócio-espacial” nos referimos à conceituação estabelecida por Silke Kapp, que os define
como “(...) grupos para os quais o espaço é constitutivo e que, inversamente, constituem (produzem) espaço”
(KAPP, 2018).
2 Publicado originalmente em 1976.

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discurso da eficiência, da segurança ou da estética. Contudo, no recorte da produção
habitacional com vistas à autonomia, a transmissão e a compreensão da informação técnica
são aspectos essenciais para que as representações assumam o caráter de tecnologia social.

Mas, se a própria definição de tecnologia é imprecisa, como podemos analisá-la criticamente e


problematizar alternativas para sua transformação? Para isso nos valeremos da Sociologia e da
Filosofia da Tecnologia. É pressuposto que as representações de arquitetura atuam como
sistemas tecnológicos socialmente construídos. A partir das teorizações de Wiebe Bijker, John
Law e Andrew Feenberg 3, assumimos que as representações são tecnologias que estabelecem
relação dialética com os agentes e os fatores dos contextos sócio-espaciais em que se incluem.
Tal conjunto de relações é chamado de rede tecnológica heterogênea. Assume-se também o
princípio da simetria proposto por Bijker e Feenberg: será conferida a mesma importância às
diferentes possibilidades de desenvolvimento de uma determinada tecnologia ao longo do
percurso histórico da constituição da rede que contribui para sua concepção (ou construção).
Logo, assume-se que a posição atual das tecnologias de representação no campo da
arquitetura não se define por um determinismo progressista, de caráter evolutivo, mas sim
pelas variações sociopolíticas, econômicas e culturais do seu curso histórico, sejam elas
positivas ou negativas.

Com esse referencial nos propomos a discutir as representações de arquitetura como


tecnologias, abordando três de suas possibilidades de mobilização. Denominamos a primeira
delas - abrigada no campo das tecnologias hegemônicas - de “tecnologia formal adaptada”.
Sua definição pressupõe a importação de técnicas de um circuito econômico desenvolvido
para um circuito periférico, cuja adaptação local desconsidera as peculiaridades desse novo
contexto de aplicação.

A segunda, que chamamos de “decodificação acrítica”, pode num primeiro momento abrigar-
se equivocadamente no campo das tecnologias sociais, posto que reproduz aspectos das
tecnologias hegemônicas que a situam em posição dúbia. De certa forma, ela busca a
popularização dos códigos de linguagem por meio dos quais a representação de arquitetura
veicula informações técnicas, de modo que sejam compreendidos pelos agentes envolvidos na
produção do espaço. Contudo, tais tentativas de democratização não explicitam e tampouco
combatem as prescrições implícitas no desenho arquitetônico tradicional.

A terceira possibilidade é a da interface, que consideramos ter potencial de atuar


integralmente como tecnologia social. Ela estabelece condições para que o usuário pense o
espaço de forma autônoma, com ou sem representações tradicionais, incentivando-o a

3Os autores indicados são partidários da Sociologia da Tecnologia, campo teórico no qual se pressupõe a
composição das tecnologias como sistemas socialmente construídos, ou seja, como resultado das relações entre
agentes e fatores que atuam e colaboram para sua composição em um dado contexto sócio-espacial e sociocultural.
A construção social dos sistemas tecnológicos é um subcampo da Filosofia da Tecnologia, que se insere na vertente
da Teoria Crítica. Isso significa ir contra um viés instrumentalista, ou seja, ser contrário à ideia de que a tecnologia é
uma ferramenta neutra para a realização dos desejos e necessidades humanas, que segue um suposto parâmetro
histórico progressista de conhecimento ascendente. Ver: BIJKER, Wiebe. et al. The social construction of
technological systems. Cambridge: MIT Press, 2012 e NEDER, R. T. A teoria crítica de Andrew Feenberg:
racionalização democrática, poder e tecnologia. Brasília: Observatório do Movimento de Tecnologia Social na
América Latina - CDS/UNB/CAPES, 2010.

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produzir suas próprias espacialidades conforme necessidades e desejos particulares e a
expressá-las à sua maneira.

Ainda que a segunda possibilidade esteja carregada de boas intenções, ela se insere na lógica
de solução de problemas. Grosso modo, ocorre nela uma simplificação das questões
implicadas da produção do espaço. As situações-problema acabam, na maioria das vezes,
reduzidas a soluções clássicas, rápidas e superficiais ou a paliativos de abrangência parcial.
Trata-se de uma lógica reformista que não vai na raiz dos problemas, ignorando o fato de que
as situações que busca resolver não são passíveis de serem solucionadas sem reestruturações
radicais dos pressupostos e contextos sociais onde estão inseridas. Neste sentido, ela é
análoga à vertente engajada das tecnologias sociais delimitada por Kapp e Cardoso (2013).
Suas soluções pragmáticas podem apaziguar os problemas em um primeiro momento, pela
inclusão imediata dos indivíduos marginalizados. Mas, ao analisar amplamente a conjuntura
social ela não se sustenta e “(...) parece não ir longe o suficiente para uma reorientação do
desenvolvimento tecnológico, particularmente no que diz respeito à moradia.” (KAPP;
CARDOSO, 2013, p. 96).

A terceira possibilidade se insere na lógica de problematização de soluções: reconhece que a


abertura dos códigos é necessária, e almeja ir além, questionando as estruturas sociais que o
geram e se utilizam dele como estratégia de controle e de reprodução de desigualdades
sociais. Sem uma análise crítica da conjuntura social que ratifica a distinção e a distribuição
desigual do espaço, a simples decodificação das representações não passa de pretexto para
uma participação superficial e muitas vezes inócua dos usuários.

A interface aposta na construção de representações dialógicas, capazes de comunicar a


concepção com o saber-fazer das práticas construtivas, incentivando o indivíduo a agenciar
seus espaços de forma autônoma. Tal mudança não é automática e requer um processo
contínuo de assessoramento por parte do arquiteto com desenvolvimento de métodos de
orientação do pensamento e o combate das posturas paternalista e assistencialista.

O presente artigo visa, portanto, discutir as contextualizações teóricas, entraves e


potencialidades das três possibilidades tecnológicas. Evidenciaremos como o uso das
tecnologias sociais pode significar um potencial emancipatório em detrimento das tecnologias
hegemônicas, investigando possibilidades de inserção de assessorias técnicas por meio de
interfaces na prática arquitetônica.

OS COMPONENTES DA REDE

Representar é apresentar aspectos da realidade de um objeto em outro meio, seja ele físico,
virtual ou híbrido. Os métodos de transcrição da realidade para um meio de representação são
efetuados por intermédio de linguagens que, assim como as tecnologias, são socialmente
construídas e passíveis de variações em seu percurso histórico. As representações de
arquitetura compartilham as propriedades das tecnologias socialmente construídas: seu
processo histórico de conformação está em constante modificação, variando em função dos
agentes e fatores com os quais interagem.

É possível construir uma genealogia das representações de arquitetura tendo como ponto de
partida um propósito operativo, no qual os desenhos eram utilizados como ferramentas
voltadas para a resolução dos problemas de produção internamente aos canteiros, e que vai

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até o momento em que o desenho passa a ter um caráter de antecipação, de pré-visão, e,
portanto, de controle prévio e externo do momento prático da produção.

Contudo, não é objetivo deste artigo realizar tal reconstrução histórica de forma exaustiva.
Indicaremos o percurso das mudanças de forma esquemática, a partir da relação entre
agentes e fatores envolvidos na produção do espaço e adotando o pressuposto da composição
de redes tecnológicas heterogêneas. Consideramos como agentes os personagens que
participam da produção do espaço, indicados aqui como arquitetos, operários ou usuários.
Consideramos como fatores os contextos históricos, as tendências do pensamento e os
propósitos, todos em constante modificação. As conexões entre tais componentes formam
distintos arranjos entre as etapas do processo de produção do espaço, a saber: a etapa de
concepção, a etapa de produção e a etapa de uso. Demonstramos tais arranjos em três
momentos.

No primeiro momento da rede os atores e etapas do processo mesclavam-se entre si. Havia
integração da concepção com a produção, sendo que a representação não era mais que um
modo de pensá-las concomitantemente. O ato de representar era um modo de resolver
problemas relativos à construção paralelamente a ela, não havendo a necessidade de
transportar o desenho para um meio que fosse distinto do próprio canteiro. O uso, por sua
vez, ditava as demandas do que deveria ser concebido e produzido. Chamamos a esse estado
da rede de operativo, pois conjugava, em diálogo, todas as fases de produção do espaço.

No segundo momento, que chamamos de representativo, surgiram métodos de sistematização


gráfica da representação de arquitetura. A partir de então ela foi reproduzida e pensada como
um simulacro fora do âmbito do canteiro. Nessa conjuntura, o saber técnico atribuído ao
arquiteto fez com que ele se tornasse parte de uma configuração na qual a etapa de
concepção se dissociou daquelas das de produção e uso. Representar passou a ter o sentido de
prescrever, na concepção, aquilo que deveria ser feito nas demais fases. Surgiu um
descompasso entre os agentes do processo, abrindo precedentes para o controle de um deles
sobre os demais.

No terceiro momento, que chamamos de codificado, ocorreu a cisão total entre as etapas. A
representação, além de ser apresentada em um meio alheio ao canteiro, passou a ser
codificada em linguagens matemáticas. A concepção dominou a fase de produção, cujos únicos
correspondentes diretos passaram a ser os produtores, subordinados a um conhecimento
técnico supostamente superior. Os usuários, na ponta do processo, ficaram restritos ao uso de
arquiteturas produzidas à revelia de suas necessidades e das quais não possuíam prerrogativa
de modificação.

Entender a cisão gradual entre as fases de produção do espaço e o controle, que se delineia do
arquiteto sobre os demais atores, permite entender como a composição das redes pode
abrigar desde uma relação de autonomia (do grego auto+nomos, onde os indivíduos
determinam suas próprias regras) até uma completa heteronomia (hetero+nomos, agir sobre a
regra imposta por outro). Especulamos como as tecnologias sociais poderiam reaproximar as
representações da posição autônoma.

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TRÊS MODALIDADES

Ainda que as práticas contemporâneas se voltem para uma posição heterônoma, há pontos de
fuga para outras possibilidades de atuação - que não estão livres de críticas. A título de
ilustração apresentamos um exemplo atual de tecnologia hegemônica e dois exemplos de
contra condutas que tentam subvertê-la, com maior ou menor êxito.

Tecnologia formal adaptada

Tomamos esse conceito emprestado do texto Notas para uma tecnologia apropriada à
construção na América Latina do arquiteto argentino Victor Saúl Pelli (1986). O que chamamos
de tecnologia formal adaptada é indicado pelo autor como “tecnologia formal periférica”. Ela
constitui a adaptação das “tecnologias formais centrais”, produzidas nos países desenvolvidos
(análogas às tecnologias hegemônicas). Mas tal adaptação não é integral, uma vez que as
tecnologias formais periféricas reúnem fragmentos das tecnologias formais centrais
transferidos a nosso contexto de forma descontextualizada e incompleta:

Essa transferência merece ser analisada tanto por seu conteúdo quanto pela
maneira que ocorre: em geral, indicam que a inserção da tecnologia
“central” em nossas sociedades mantém semelhança muito pequena com a
forma de inserção dessa tecnologia em suas próprias sociedades de origem.
Nos países centrais os produtos e modos tecnológicos mantém coerência
com a organização formal da sociedade e são controlados, utilizados e
finalmente gerados (e também, eliminados) de acordo com os fins da
sociedade de origem. (...) Nossas sociedades não elaboram nem a tecnologia
nem a capacidade de controlá-la. Também carecem, de um modo geral, de
base infraestrutural adequada para sustentá-la. (PELLI, 1986, p.20).

Transpondo a abordagem de Pelli para as tecnologias de representação, identificamos os


perigos da adaptação inadequada de uma tecnologia hegemônica a contextos marginalizados.
Transmitir uma tecnologia não significa transmitir o conhecimento que a produz ou as bases
estruturais que a sustentam. Além de uma transmissão incompleta, isso resulta num
instrumento de desmobilização das possibilidades de desenvolvimento de tecnologias
autênticas por parte dos grupos sócio-espaciais.

A mera transferência de tecnologia para um grupo marginalizado é de pouca valia caso esse
grupo não detenha o conhecimento ou as condições necessárias de direcioná-la para suas
necessidades. É necessário ir além e desenvolver métodos que promovam a absorção crítica
das tecnologias centrais nestes contextos.

Softwares de representação gráfica tridimensional são exemplos de tecnologias formais


adaptadas nas representações. Sua popularização vinculou-se a uma promessa de mudança
dos paradigmas da representação arquitetônica, que subverteriam a clássica tríade de cortes,
plantas e elevações. Nas plataformas de tipo CAD (Computer Aided Design), essa lógica é
apenas reproduzida, e se há uma facilidade de aprendizado, ela fica restrita ao campo dos
arquitetos em formação. Nas plataformas do tipo BIM (Building Information Model) e NURBS
(Non Uniform Rational Basis Spline) realmente há uma inovação no caráter generativo das
formas, mas que intensifica a codificação da concepção e a restringe ainda mais a um corpo
técnico especializado. Quando há a ausência de uma abordagem crítica da utilização dessas

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ferramentas, elas permanecem reproduzindo os modos tradicionais de produção do espaço,
acirrando a predominância da fase prescritiva e dificultando sua difusão em contextos locais.

Decodificação acrítica

A decodificação tem como objetivo difundir os códigos técnicos para o público leigo,
inteirando-o das simbologias, operações e dispositivos que até então eram exclusivas do
campo arquitetônico. É um esforço de democratização que, embora bem intencionado, não
chega a alterar a heteronomia do processo. Tal estratégia tecnológica é reformista e joga sob
regras estabelecidas de antemão. Devemos questionar se, de fato, trata-se de uma mudança
efetiva saber operar as linguagens de representação quando elas reproduzem um processo de
cisão que não altera a realidade dos grupos sócio-espaciais. Por mais decodificadas que as
linguagens sejam, elas insistem na lógica prescritiva do espaço, replicando um arranjo
produtivo de controle típico das tecnologias hegemônicas.

Chamamos essa estratégia de decodificação acrítica, pois, apesar das boas intenções, ela não
discute as raízes do problema. Em curto prazo sua solução parece adequada, mas não dispõe
de fôlego suficiente para transformar efetivamente as estruturas vigentes, reproduzindo a
produção heterônoma do espaço.

Faz parte dessa postura um pragmatismo imediatista que busca soluções rápidas para os
problemas, estabelecendo apenas mudanças paliativas. Exemplo disso são as iniciativas de
solução do déficit habitacional por mutirões autogestionários supostamente participativos: a
urgência de sua resolução é inegável, mas fornecer o domínio das linguagens para que os
usuários tomem a rédea da produção de suas habitações reproduzindo práticas hegemônicas
da construção civil muitas vezes só colabora na perpetuação de arquiteturas de má qualidade
e que ressoam os problemas recorrentes. Evidentemente há casos em que é necessário se
enquadrar em recortes institucionais que prescindem de projetos predefinidos para que tais
experiências avancem, mesmo que constrangidas. O que se propõe não é uma censura a tais
situações, mas sim a reflexão crítica para que conste no horizonte a superação estrutural
destas condições.

Para além de fornecer as ferramentas que permitam ao usuário representar e planejar o


espaço habitado, são necessários métodos que permitam a problematização e expressão de
necessidades, por vezes ainda latentes. O arquiteto não precisa atuar heteronomamente
prescrevendo e dominando como o processo produtivo deve ocorrer. Pelo contrário,
propomos que ele seja ator essencial nos processos de assessoramento técnico, concebendo
ferramentas que colaborem com processos emancipatórios.

Interface

Ao se propor como uma alternativa imediata para problemas presumidamente assumidos


pelos técnicos, a decodificação acrítica assume uma postura assistencialista, tal como definida
por Baltazar e Kapp (2016) com base no conceito de “necessidades” do filósofo Ivan Illich.
Nesse caso as necessidades são ditadas pela percepção alheia de um indivíduo externo sobre
uma comunidade. Mesmo que com boas intenções de uma “atitude missionária”, esse
indivíduo define como necessidade aquilo que ele imagina ser melhor para o grupo, tomando
como base parâmetros próprios. Em contraposição a esse assistencialismo missionário
apresenta-se a possibilidade da assessoria, caracterizada por:

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(...) uma assimetria assumida entre técnicos e assessorados em vez de uma
pretensa simetria; a abertura para algum ganho de autonomia, individual e
coletiva, em vez da criação de novas dependências; a ampliação do
imaginário acerca do espaço e de sua produção em vez da adesão a
pressupostos abstratos e soluções técnicas que ainda desqualificam
conhecimentos e práticas dos assessorados. (BALTAZAR; KAPP, 2016, p.05).

Um instrumento pelo qual o arquiteto pode praticar a assessoria é a interface: denominação


genérica para um objeto, jogo, processo ou situação que prescinde de um processo aberto,
plenamente participativo e independente de mediações efetuadas por um técnico (BALTAZAR;
KAPP, 2016). Os agentes envolvidos numa interface desenvolvem e problematizam suas
demandas em relação às espacialidades que pretendam construir, modificar ou refletir sobre.

Focaremos no exemplo de interfaces nas quais a representação de arquitetura é utilizada


objetivamente para buscar maior autonomia e engajamento dos usuários na produção de seus
próprios espaços. As ferramentas apresentadas atuam na lógica de orientação do pensamento
e visam métodos pelos quais as representações possam ser operacionalizadas por não-
arquitetos, inspirando sua participação ativa. Elas convergem para a tentativa de incluir o
usuário nos processos de tomada de decisão, ressignificando o uso das representações no
contexto de aprendizados sócio-espaciais.

O primeiro exemplo é o Flatwriter: um software desenvolvido de forma teórica por Yona


Friedman, em 1967. Nesta interface o usuário elabora a planta de sua futura habitação a partir
de uma combinação de variantes. A habitação concebida ocuparia módulos da chamada “Vila
Espacial”, projeto utópico também desenvolvido por Friedman, baseado na ideia de estruturas
de uso livre que ocupariam continuamente cidades já consolidadas (FRIEDMAN, 1971).

A interface do Flatwriter opera a partir de um conjunto de opções predefinidas que podem ser
escolhidas e recombinadas pelo usuário num processo de múltiplas etapas, gerando diversas
possibilidades (Figuras 1 e 2). Nessas etapas, o usuário executa escolhas tanto de caráter
formal (número, tamanho e posição dos espaços), como de caráter comportamental
(frequência de uso, conexões e preferências sobre cada espaço). O objetivo é que o usuário
consiga gerar uma representação gráfica que planeje o espaço a ser construído, atendendo a
seus desejos e especificidades.

Figura 1: Organograma de processo da interface Flatwriter. Fonte: FRIEDMAN, 1971.

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Figura 2: Teclas iniciais para inserção da informação e escolha das opções pelo usuário na interface. Fonte: FRIEDMAN, 1971.

Passando do suporte digital ao físico há o Jogo da Maquete, uma interface desenvolvida pelo
grupo de pesquisa MOM para facilitar a concepção e a discussão de projetos de arquitetura
com o público leigo. Sua aplicação inicial destinou-se à assessoria de um grupo cigano, para
auxiliá-lo no entendimento dos sistemas construtivos tradicionais, uma vez que seus
integrantes estão acostumados a produzir habitações temporárias com tendas. Conforme
ilustra a figura 3, o jogo constitui-se de uma base modulada em quadrados de 60 cm na escala
1:25, sobre a qual se encaixam elementos construtivos e mobiliários. O módulo de 60 cm foi
escolhido pois é compatível com elementos construtivos comuns no mercado (MOM, s.d.). As
paredes, sólidas ou com aberturas para esquadrias, são encaixadas nos sulcos da base
modulada, permitindo ao usuário delimitar ambientes, analisar suas dimensões, proporções e
articulações, gerando uma representação tridimensional de sua futura habitação. Ao propor
uma base aberta na qual elementos modulares podem ser encaixados facilmente e
continuamente alterados para a visualização e prospecção de novas soluções, o jogo dá
abertura para que um leigo se engaje na concepção e apreenda o espaço a ser construído.

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Figura 3: Interface jogo da maquete, com suas peças de encaixe na base modulada. Fonte: MOM, s.d.

As duas interfaces descritas acima têm diferenças cruciais em relação a seus suportes e
formatos de apresentação, bem como em suas lógicas de interação, mas um ponto em comum
permeia ambas: elas focam-se na etapa de concepção. Apesar de disporem de estruturas com
diferentes graus de abertura a fim de promover a participação do usuário, permitindo assim
que eles problematizem e concebam seus espaços, elas ainda se pautam no paradigma
prescritivo. Elas subvertem o uso hegemônico das linguagens de representação, criando novas
metodologias de concepção apropriadas aos grupos sócio-espaciais. No entanto, ainda são
necessárias outras estratégias aliadas a essas interfaces que garantam maior integração das
fases de produção do espaço.

Neste sentido, outras interfaces produzidas pelo grupo MOM têm uma abordagem voltada
para o momento da produção e para o esclarecimento de informações que permitam uma
produção do espaço adequada ao contexto da habitação informal. É o caso dos gabaritos de
obras, como por exemplo, o escadômetro e o estruturômetro. Ambos fornecem informações
de pré-dimensionamento de elementos construtivos de forma simples e direta, sem negar que
o conhecimento por trás dessas operações é complexo. Com isso, apresentam uma resolução a
um problema recorrente: a preocupação dos autoconstrutores a respeito da estabilidade
estrutural de suas habitações, mesmo produzindo estruturas superdimensionadas e sem sinais
aparentes de patologias construtivas (SILKE et al, 2012). São interfaces que, para além da
função prescritiva, instigam os usuários a aprofundar-se em conhecimentos do canteiro,
demonstrando que eles podem ser adequados às suas realidades.

APONTAMENTOS PARA UM EXPERIMENTO

Até aqui discutimos a intenção emancipatória das tecnologias sociais em relação aos
produtores e usuários. Entretanto, entendemos que a prática de assessoramento só é efetiva
quando é capaz de mudar a mentalidade e a atuação daqueles que têm domínio - ainda que
relativamente - sobre o processo. Para isso propomos um experimento didático baseado no
conceito de interface numa disciplina de projetos em um curso de graduação, visando uma

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possível e futura operacionalização como ferramenta de concepção projetual capaz de
incorporar os demais participantes da produção do espaço.

A Oficina Integrada de Arquitetura, Urbanismo e Paisagismo: problemas de parcelamento do


solo e assentamentos habitacionais é uma disciplina do curso noturno de graduação em
arquitetura e urbanismo da UFMG. Nela são problematizadas situações específicas de projeto
e desenvolvidas soluções para o parcelamento de uma gleba e o projeto arquitetônico de um
conjunto de edifícios de uso habitacional ou misto, de caráter popular. Partindo do
pressuposto de que tais habitações destinam-se a população marginalizada, propomos um
método de ensino baseado no desenvolvimento de interfaces como tecnologia social visando a
autonomia dos futuros habitantes no desenho, construção e uso das habitações.

A disciplina está estruturada em dois módulos. O primeiro destina-se ao parcelamento urbano


e paisagismo, ambos orientados pelo comportamento da água em meio urbano. Ele é
desenvolvido a partir de uma maquete topográfica de caráter processual que facilita o
entendimento das operações de movimentação de terra, para que depois sejam representadas
em linguagem técnica.

No segundo módulo é desenvolvido o projeto arquitetônico do edifício. Nessa etapa,


discutem-se estratégias de implantação, conforto ambiental, tectônica, circulações, áreas
comuns, infraestruturas e, finalmente, elabora-se o detalhamento das unidades habitacionais.
Tradicionalmente ela é desenvolvida com representações de arquitetura típicas: croquis de
estudo à mão e experimentações em softwares de modelagem tridimensional, que em seguida
tornam-se representações em planta, corte, elevação e perspectivas. Embora bem
compreendidas pelos alunos, elas podem não ser as mais adequadas para o público leigo. A
noção das espacialidades propostas e de como eles podem intervir em suas habitações fica
opaca e restrita ao código simbólico próprio das faculdades de arquitetura.

Nossa proposição é de que os estudantes desenvolvam interfaces que os auxiliarão na


concepção dos edifícios e ao mesmo tempo atuem como suportes de veiculação da
informação técnica. Projetar desde o início com tais interfaces visa orientá-los quanto à
possibilidade de abertura e permanente modificação das habitações, assim como a formular
estratégias de apresentação das espacialidades ao interlocutor. Pensar por interfaces induz à
problematização das soluções desde seus estágios iniciais, conscientizando sobre as
consequências de uma prescrição heterônoma e garantindo que a transmissão da informação
não se dê por tecnologias familiares aos arquitetos, mas sim por suportes dialógicos em que
todos os participantes do processo estarão a par das escolhas tecnológicas utilizadas para
planejar, representar e produzir o espaço.

A metodologia inicialmente escolhida para a experimentação foi o uso de maquetes físicas,


com as quais seriam pensadas as diversas escalas do edifício e suas articulações. A primeira
escala é a da implantação, que seria desenvolvida com uma maquete topográfica elaborada na
primeira etapa da disciplina, cujo objetivo seria o de refletir acerca da inserção do edifício no
entorno urbano. A segunda escala é a da articulação do edifício, para pensar as soluções
tectônicas, espaciais e infraestruturais que do edifício como um suporte coletivo. A terceira
escala é a do detalhamento do módulo construtivo-espacial, cujo objetivo seria o de detalhar a
habitação e demonstrar estratégias que permitam ao usuário pensar possíveis modificações do
espaço de sua unidade.

Limiaridade: processos e práticas em Arquitetura e Urbanismo


A divisão do edifício em escalas apoia-se na lógica Open Building, criada na década de 1960
pelo arquiteto holandês John Habraken 4. De modo sumário, ela propunha a produção de
habitações em larga escala, mas que pudessem ser personalizadas pelo usuário. Para isso,
Habraken dividiu o edifício em duas instâncias: o suporte (estrutura de longo prazo e coletiva)
e o recheio (estruturas individuais, de responsabilidade do morador, que podem ser
modificadas continuamente).

Em função do isolamento social decorrente da pandemia do COVID-19, o desenvolvimento


presencial da disciplina foi frustrado. Ao ser transferida para a modalidade de ensino remoto
emergencial (ERE) foi necessário pensar novas estratégias de desenvolvimento das interfaces.
O desenvolvimento de maquetes físicas não fazia mais sentido, uma vez que a interação
coletiva e tátil dos alunos na produção destas representações não poderia ocorrer.
Adaptando-se à lógica digital, pensamos então em novas interfaces: Para a escala da
implantação, os alunos desenvolveram animações que simulam uma chuva e o escoamento
das águas no relevo, a partir do plugin MSPhysics do software Sketchup. Isto os ajudou a
entender de modo didático o caminho das águas em representações que antes eram
demonstradas bidimensionalmente com curvas de nível. Para a articulação do edifício e de
seus módulos, propusemos aos alunos que articulassem interfaces para explicar o espaço
construído, e como alterá-lo, para uma família fictícia. As propostas de instrumentos
operativos pensadas por eles foram diversas, como propor a operacionalização de maquetes
virtuais interativas, elaborar manuais que expliquem os sistemas construtivos do edifício e até
mesmo desenvolver métodos de levantamento de demandas e assessoria junto aos futuros
moradores.

Subverter a lógica de cisão das fases de produção do espaço relaciona-se à ruptura da


prescrição restritiva do espaço construído. Interfaces que permitem a contingência e a
eventualidade na ocupação e na apropriação dos espaços subvertem os princípios das
tecnologias hegemônicas: ao invés de projetar produtos acabados, propomos que sejam
projetados processos.

Sintetizando os objetivos da proposta, entendemos que um experimento de formação para a


atuação de arquitetos como assessores técnicos de grupos sócio-espaciais deve atender às
seguintes diretrizes:

A. O desenvolvimento de suportes e linguagens de representação apropriadas ao público


leigo;

B. Evitar o simples reformismo dos métodos de projetação e representação vigentes,


fugindo de uma decodificação acrítica das linguagens que pode parecer benéfica, mas
que apenas reproduz uma lógica familiar ao campo arquitetônico e restrita àqueles
que dominam seu conhecimento;

C. Projetar com o intuito de ampliar as possibilidades de atuação autônoma dos usuários


marginalizados, combatendo a resolução imediata de problemas;

D. Pensar soluções técnicas e espaciais que permitam adaptação contínua do espaço,


para que este seja construído por meio de soluções técnicas acessíveis aos usuários;

4 Ver HABRAKEN, Nicholas John et al. El Diseño de Soportes. Barcelona: Gustavo Gili, 1979.

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E. Foco no processo de desenvolvimento das interfaces e do projeto, e não no produto
final.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Se o horizonte emancipatório e autônomo almejado pelas interfaces fosse alcançado um dia,


como ele seria? William Morris nos dá uma pista em sua utopia de “lugar nenhum”, descrita
em seu livro de 1890 e caracterizada como uma sociedade na qual:

(...) A erudição não foi universalizada, porque o conhecimento erudito


passou a ser apenas um tipo de conhecimento entre outros, do qual se
ocupa quem quer (...). Não existem jornadas prescritas, idade para começar
ou encerrar a vida produtiva, exército industrial ou coisa semelhante,
porque cada um trabalha no que gosta, se e quando quiser, por prazer no
processo e no produto. (KAPP, 2016, p. 03-04).

No texto em que analisa a utopia de Morris, Silke Kapp enfatiza que o “lugar nenhum” não foi
produto de uma conscientização instantânea. Sua formação vem de uma mudança gradual da
sociedade e de suas estruturas que, assim como as tecnologias, é de constituição “(...) histórica
e não absoluta. Da mesma maneira que surgiu historicamente, pode mudar.” (KAPP, 2016, p.
05).

Nossa aposta nas interfaces enquadra-se nessa postura: espera contribuir para uma sociedade
que tem como horizonte a liberdade, onde todos agentes do processo de produção do espaço
atuem como gostem e estejam a par dos modos de construir e modificar seu espaço - se assim
o desejarem. Não podemos prever como isso de fato vai ocorrer, até porque a prescrição de
uma sociedade autônoma seria um contrassenso. Ela deve formar-se e ajustar-se pela vontade
e pelo benefício da coletividade de seus participantes.

Entretanto, enquanto nossa construção social e histórica não chega ao “lugar nenhum”,
propomos que a ferramenta da interface seja utilizada como método para democratização da
informação e do saber-fazer sobre o espaço. Para os usuários e produtores, esperamos que
elas possibilitem levantar questionamentos sobre as lógicas hegemônicas e sobre como a cisão
das fases de produção do espaço carrega consigo a imposição de interesses heterônomos
sobre demandas próprias. Para os arquitetos, esperamos que elas incitem a uma nova forma
de atuação, atrelada mais ao assessoramento que a uma solução pragmática e acrítica dos
problemas. Nem sempre é possível subverter completamente o status quo de modo
instantâneo: o reformismo e a prescrição ainda rondam as proposições em maior ou menor
grau. Mas, ao apostar em práticas que ao menos nos façam pensar criticamente em outras
possibilidades, acreditamos que nosso olhar se mantém fixo no horizonte da emancipação.

...

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal


de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

Agradecemos ao NPGAU-UFMG pelo apoio e colaboração no desenvolvimento da pesquisa


que deu origem a este artigo.

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REFERÊNCIAS

BALTAZAR, Ana Paula; KAPP, Silke. “Assessoria técnica com interfaces”. IV ENANPARQ - Encontro da
Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo. Porto Alegre, 25 a 29
de julho de 2016.

BIJKER, Wiebe ; HUGHES, Thomas Parke; PINCH, Trevor J. (Ed.). The social construction of technological
systems: New directions in the sociology and history of technology. Cambridge: MIT Press, 1987.

FERRO, Sérgio. O canteiro e o desenho. In: ________; ARANTES, Pedro Fiori (org.). Arquitetura e
trabalho livre. São Paulo: Editora Cosac Naify, 2006. pp. 105-199.

FRIEDMAN, Yona. The Flatwriter: choice by computer. Progressive architecture. Vol. 03, pp. 98-101,
1971.

GAMA, Ruy. A tecnologia e o trabalho na história. São Paulo: Nobel / Edusp, 1987.

HABRAKEN, Nicholas John et al. El Diseño de Soportes. Barcelona: Gustavo Gili, 1979.

KAPP, Silke; CARDOSO, Adauto Lúcio. Marco teórico da Rede Finep de Moradia e Tecnologia Social–Rede
Morar TS. Risco: Revista de Pesquisa em Arquitetura e Urbanismo (Online), N. 17, pp. 94-120, 2013.

KAPP, Silke. Grupos sócio-espaciais ou a quem serve a assessoria técnica. Revista Brasileira de Estudos
Urbanos e Regionais. Vol. 20, pp. 221–236, 2018.

KAPP, Silke. Lugar nenhum. PISEAGRAMA. Belo Horizonte, N. 09, pp. 02–09, 2016.

KAPP, Silke; BALTAZAR, Ana Paula et al. Arquitetos nas favelas: três críticas e uma proposta de atuação.
In: Anais do IV Congresso Brasileiro e III Congresso Ibero-Americano de Habitação Social: ciência e
tecnologia "Inovação e Responsabilidade". Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2012.

MOM. Jogo da Maquete. In: MOM: Morar de outras maneiras, sem data. Disponível em:
<http://www.mom.arq.ufmg.br/mom/index.html>. Acesso em: 27 de janeiro de 2020.

NEDER, R. T. A teoria crítica de Andrew Feenberg: racionalização democrática, poder e tecnologia.


Brasília: Observatório do Movimento de Tecnologia Social na América Latina - CDS/UNB/CAPES, 2010.

PELLI, Víctor Saúl. Notas para uma Tecnologia apropriada à construção na América Latina. In: MASCARÓ,
Lucia. Tecnologia & Arquitetura. São Paulo: Nobel, p. 11-32, 1989.

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