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1.

Fundamentação das ciências dos espíritos (Augusto)


Fundamentação é o discurso ideal que serve de ideia reguladora, ou seja, meta para os
diálogos reais e um critério para criticá-los, quando não se ajustam a esse ideal. Por isso, urge,
na esfera da vida social, a ideia de que todos são interlocutores válidos, levados em conta para
que possam participar do diálogo em condições de simetria, sendo que as decisões válidas não
são aquelas fruto da maioria numérica, mas as que todos podem se reconhecer. (Kant, 2004).

Apel (1996) frisa que,


a fundamentação reside, no essencial, num argumento: não se trata de demonstrar a
tese por dedução axiomática a partir de princípios gerais, mas de mostrar uma
contradição performativa do adversário que provaria a necessidade absoluta do
princípio universal defendido em tese. (p.333).

As Ciências do Espírito são fundamentadas como ciências do autoconhecimento do espírito,


ciências, nas quais o espírito está referido, simultaneamente, à sua referência a outros
objectos, a si mesmo e conhece a si mesmo. Nisso reside a sua especificidade; e a
“compreensão”, enquanto conceito de método das Ciências do Espírito, também pode ser pela
primeira vez compreendida como conceito de método das Ciências do Espírito: a sua
compreensão do sentido é uma compreensão de si mesma. (Jaeschke, 2006)

Sobretudo elas dão acesso a um traço fundamental da vida espiritual: à historicidade do


espírito. Por isso não é um acaso que a sua conceitualização coincida com a fase inicial da
constituição das Ciências do Espírito, a época ao redor de 1800, quando ela é formulada por
Hegel de forma concisa, mas penetrante, nos seguintes termos: “o que nós somos, somos ao
mesmo tempo historicamente”. (Hegel, 1995, p.6)

1.1. Fundamentação das ciências do espírito em Hegel (Silva)


O tema dominante e mais original de Hegel é a sua preocupação com a história. A obra mais
importante de Hegel chamou-se filosofia da história e foi publicada como uma série de lições
entre 1822 e 1831.

Segundo Bronowski e Mazlish (1960) salientam que,


Para ele, a história é o grande transformador, o grande motor, é a justificação de todos
os acontecimentos da existência; ela é a realização física do espírito de todos os
homens. E se os homens fazem a história, é com o objectivo de que a história faça
estados […] mas mais do que isso – e este é o contributo de Hegel para uma ciência
em desenvolvimento do homem – ele sugere que o homem é a sua história; e que só
um entendimento da história pode tornar o homem capaz de se compreender a si
mesmo. (p.455)

É fundamental à Filosofia da História hegeliana, pois a consideração central da filosofia da


história sistémica de Hegel, é a de que a razão governa o mundo. Todas essas definições da
ideia são importantes para a Filosofia da História madura de Hegel, pois a Filosofia da
História vem exprimir em seu resultado a efectividade da razão na História, porquanto tem a
liberdade do movimento especulativo do Espírito como sua característica fundamental.

Para Hegel apud Bronowski e Mazlish (1960),


A história é sempre de grande importância para um povo quando por meio dela se
torna consciente do movimento do seu progresso do seu próprio espírito, que a si
mesmo expressa em leis, usos, costumes e feitos. A história apresenta a um povo sua
própria imagem numa condição que, desse modo, se torna objectivo. (p.456)

Na representação, o Espírito se põe enquanto determinidade diante de outra determinidade. A


determinidade imediata com a qual o Espírito se depara é a natureza. Por isso, tanto a natureza
quanto o Espírito só são determinados um mediante o outro. Enquanto que o que caracteriza a
ideia lógica é o ser-dentro de-si e o que caracteriza a natureza é o ser-fora- de-si da ideia, o
que caracteriza a determinidade do Espírito é a idealidade, “[...] o suprassumir do ser-outro da
ideia, o seu retornar e ser retornada de seu Outro para si mesma[...]” (Hegel, 1995, p. 16).

Hegel (1995) continua frisando que,


[...] Portanto, ainda na forma mais acabada, à qual a natureza se eleva – na vida
animal -, o conceito não chega a uma efectividade igual à sua essência anímica, à
completa vitória sobre a exterioridade e finitude do seu ser-aí. Isso só ocorre no
espírito, que precisamente por essa vitória que nele se realiza, se diferencia da
natureza; de modo que essa diferenciação não é simplesmente o agir de uma reflexão
exterior sobre a essência do espírito. (p.17)

Entretanto, no Espírito que realiza a História Mundial, não há a exterioridade em relação a um


objecto passivo, mas o Espírito dirige-se a um objecto activo por si mesmo, que se pôs em
elaboração por si mesmo para ser o resultado de sua própria actividade, sendo essa actividade
seu próprio conteúdo. Nessa distinção entre a Natureza e o Espírito observa-se a ideia agindo
na natureza, no “fora-um-do-outro”, exprimindo nela, na natureza, sua contraditoriedade e
suprassunção em relação a si mesma, a qual a filosofia é espectadora.

Somente no Espírito Absoluto é que esse movimento de retorno se consuma plenamente, pois
Hegel (1995) diz que:
[...] só nesse espírito a ideia se compreende, não só na forma unilateral do conceito ou
da subjectividade, nem tampouco só na forma também unilateral da objectividade ou
da efectividade, mas na unidade consumada desses seus momentos diferentes, isto é,
em sua verdade absoluta (p. 20).

O manifestar-se do Espírito é a criação do mundo enquanto ser do Espírito, em que se afirma


a verdade, a sua liberdade. E disso pode-se extrair a definição hegeliana do Absoluto,
porquanto o Espírito se manifesta enquanto sua própria verdade, sob a qual a História do
Mundo é concebida.
Nas palavras de Hegel (1995),
O absoluto é o espírito: esta a suprema definição do absoluto. Encontrar essa
definição e conceber seu sentido e conteúdo, pode-se dizer que foi essa a tendência
absoluta de toda a cultura e filosofia; nesse ponto insistiu toda religião e ciência, só a
partir dessa insistência pode-se conceber a história mundial. (p. 26)

Desse modo, a filosofia da história hegeliana só é concebida a partir da ideia enquanto


Espírito em seu retorno a si mesmo. A História Mundial se direcciona no sentido de
reconhecer a ideia de que a razão, enquanto Espírito em sua liberdade, rege o mundo, já que a
História Mundial é a manifestação do Espírito em seu retorno a si mesmo.

1.2. Fundamentação das ciências do espírito em Dilthey (Muavia)


Wilhelm Dilthey nasceu em 1833, em Biebrich, na Alemanha, vindo a falecer,
repentinamente, em 1911. Filho de pastor calvinista, à semelhança do pai, tornou-se também
pastor. Segundo os biógrafos, em pouco tempo, Dilthey deixou a carreira religiosa para se
dedicar ao ensino de filosofia na universidade.

O pensamento de Dilthey amplia seus horizontes e os problemas se multiplicam, ligando-se


uns aos outros. Entretanto, o núcleo para o qual todos esses problemas convergem e do qual
partem é sempre o da fundamentação das ciências do espírito.

Segundo Reale &Antiseri (2006);


Dilthey pergunta-se nos Estudos para a fundamentação das ciências do espírito
(1905): "De que modo as ciências do espírito podem ser delimitadas pelas ciências da
natureza?" Onde estão a essência da história e sua diferença em relação as outras
disciplinas? Pode-se alcançar um saber histórico objectivo? Na obra citada e em outra,
intitulada A construção do mundo histórico nus ciências do espírito (1910), ele
apresenta em forma definitivo seu projecto de fundamentação das ciências do espírito.
(p.38)

Dilthey apud Reale &Antiseri, (2006) sustenta que aquilo que é comum As ciências do
espírito, ou seja, o que constitui seu domínio, é isto: 0s estados de consciência se expressam
continuamente em sons, em gestos do rosto, em palavras, e tem sua objectividade em
instituições, Estados, Igrejas e institutos científicos: precisamente nessas conexões é que só
move a história.

“O alvo do esforço intelectual de Dilthey era fundamentar o conjunto de ciências que tinham
como objeto o mundo humano, denominado por ele como “ciências do espírito”
(Geisteswissenschaften)” (Amaral, 1987, p.5).
1.2.1. A Tarefa de Fundamentação Filosófica da Intuição Histórica
A crítica de Dilthey (2010) à Escola Histórica nos oferecer um insight sobre o ponto de
partida imaginado por ele para uma investigação histórica:
É por isso que ela [a Escola Histórica] também não chegou a um método explicativo,
nem conseguiu tampouco erigir, em virtude de uma intuição histórica e de um
comportamento comparativo, uma conexão autônoma entre as ciências humanas ou
conquistar uma influência sobre a vida. (p. 4).

Assim, em Dilthey (2010), está em questão se a fundamentação moderna das ciências


oferecida por Descartes, Locke, Hume e Kant, de carácter empirista (a posteriori) ou
transcendental (a priori), é capaz de abarcar o interesse investigativo que todo historiador,
todo jurista ou todo político reflexivo têm em seu coração.

Por conseguinte, a tarefa de fundamentação das ciências humanas coincide com a busca da
“conexão proposicional que se encontra na base tanto do juízo do historiógrafo, quanto das
conclusões do economista nacional e dos conceitos dos juristas e que permite definir a sua
segurança” (Dilthey, 2010, p.5).

Em nossa interpretação, ao se propor fundamentar as ciências do espírito humano, Dilthey


não levou em conta apenas o tipo metodológico de investigação das ciências positivas, mas
procurou um outro núcleo essencial para a constatação do elemento humano enquanto
possibilidade histórica, ou seja, da historicidade do ser enquanto humano. A “historicidade” é
percebida por Dilthey como o elo fundamental entre o humano e a vida: o ser do homem é
compreendido desde seu núcleo mais íntimo, a Vida, e desde sua expressão mais própria, a
história.

Por conseguinte, a obra de Dilthey (2010) é marcada pela consciência de uma dupla tarefa: (1)
do ponto de vista científico, procura esclarecer e estabelecer a estrutura efectivamente
determinante do mundo humano em sua totalidade positiva e, desta forma, oferecer uma
ontologia particular para o desenvolvimento do que hoje chamamos “ciências humanas”; (2)
do ponto de vista filosófico, porém, a própria Vida, como o acontecimento nuclear e vital da
existência, tornou-se tema de sua pesquisa.

1.2.2. A experiência vivida e o compreender (Marsada)


Já na introdução as ciências do espírito, Dilthey tinha insistido na diversidade do objecto de
tais ciências é, em primeiro lugar, o homem nas suas relações sócias, ou seja, na sua história.
A historicidade essencial ou constitutiva do homem e, em geral, do mundo, é a primeira tese
fundamental de Dilthey. Em segundo lugar, o mundo histórico é constituído por indivíduos
que, enquanto indivíduos psicoficas vivas são elementos fundamentais da sociedade: é por
isso que o objectivo das ciências do espírito é o de reunir o singular e o individual na
realidade histórico-social, de observar como as concordâncias (sócias) agem na formação do
singular. (Abbagnano, 2000)

Dilthey indica a necessidade de uma compreensão da vida em suas complexas estruturas de


sentido: há uma estrutura na vida humana constituída de unidades psíquicas, formada por
nexos, algo dado originariamente pela relação eu e meio (Amaral, 1994).

Schnadelbach (1984) diz que,


Dilthey deseja fornecer uma filosofia de todo o homem, e acreditar na totalidade de
sua realidade psicológica e histórica: assim, a psicologia, a história do
desenvolvimento e a filosofia transcendental entram em uma associação característica.
A tese central de Dilthey é que as ciências humanas (Geisteswissenschaff) devem ser
fundamentadas na conexão da experiência vivida. (p. 58)

A “compreensão de si próprio” e a “vivência”, no seu sentido de reciprocidade, constituem as


bases para a percepção do outro. As informações da averiguação hermenêutica consistem
sempre em “manifestações da vida”, ou seja, expressões de uma vida interior que nos liga a
ela, de modo que podemos acessá-la.

Nas palavras de Dilthey (2010):


[...] o ponto de partida da vida e da conexão permanente com ela formam o primeiro
traço fundamental na estrutura das ciências humanas; já que as ciências humanas
repousam sobre a vivência, a compreensão e a experiência de vida. Essa relação
imediata, na qual se encontram a vida e as ciências humanas, conduz, nesta ciência, a
um conflito entre as tendências da vida e a sua meta científica (p. 95).

Nos estudos sobre fundamentos das ciências do espírito e na construção do mundo histórico
dilthey viu na expressão e no compreender os elementos que, unido a experiencia vivida dão a
esta ultima universalidade, comunicabilidade e objectividade constituindo, portanto,
justamente com ela, atitude fundamental das ciências do espírito. (Abbagnano, 2000)

O compreender é deste ponto de vista, o reviver e o reproduzir a experiencia de outrem: é


assim possível um sentir em conjunto com os outros e em participar das suas emoções.

Segundo Dilthey apud Abbagnano (2000):


o compreender é o encontro do eu no tu; mas o espírito atinge graus sempre superiores
de conexão, e esta identidade do espírito no eu, no tu, num qualquer sujeito de uma
comunidade, em qualquer sistema de cultura e, finalmente, na totalidade do espírito e
na história universal, torna possível a colaboração das diversas operações nas ciências
do espírito. (p.174)
1.2.3. As Ciências da Natureza e as Ciências do Espírito (o renegado)
“As ciências modernas passaram a corresponder, em termos conceituais, às ciências da
natureza cunhadas a partir do séc. XVII e, em termos de produção de resultados, foi exigido
das ciências humanas o mesmo progresso e desenvoltura daquelas”. (Dilthey apud Gadamer,
1997, p. 339)

Ainda assim, a resposta de Dilthey ao positivismo permanece presa aos referenciais de uma
cientificidade baseada na noção de metodologia. Seu objectivo era fornecer às ciências do
espírito (Geisteswissenschaft) uma metodologia e uma epistemologia que, embora se
adequando às suas peculiaridades próprias, fossem tão rigorosas e respeitáveis quanto aquelas
das ciências naturais (Naturwissenschaft).

Dilthey apud Reale (2007) salienta que,


As ciências do espírito diferenciam-se das ciências da natureza, em primeiro lugar,
porque estas têm como seu objeto fatos que se apresentam dispersos na consciência,
procedentes de fora, como fenômenos, enquanto que nas ciências do espírito se
apresentam desde o íntimo, como realidade e, originalmente, como uma conexão viva
(…). A natureza a explicamos; a vida anímica a compreendemos.(p.176)

Dilthey diverge dos critérios de distinção estabelecidos por outros autores e réplica
particularmente a concepção de Windelband que se fundamenta na diferença entre a
abordagem “nomotética” (pesquisa das leis e relações gerais) e “ideográfica” (atenção ao
particular e histórico), sendo a primeira característica das ciências naturais, aí incluída a
psicologia, e a segunda das ciências do espírito, por ele denominadas como históricas.

Dilthey (1951), ousamo-lo;


Embora alguns aspectos do método científico-natural possam desempenhar um papel
subsidiário para as ciências do espírito, existem diferenças patentes entre as
metodologias próprias a cada um desses campos. Logo de início, o exercício de
observação dos objectos externos dota o pesquisador da natureza de uma atitude
espiritual completamente distinta daquela empregada na “revivência histórica, na
compreensão simpática, profunda, dos estados humanos ou históricos” (p.305).

Trata-se, assim, de uma diferença radical de atitudes metodológicas. Dilthey adopta aqui a
distinção já antes estabelecida por Gustav Droysen entre “explicar” (Erklären) e
“compreender” (Verstehen). Enquanto o método científico-natural baseia-se na “explicação”
pelo esclarecimento das conexões causais, as ciências do espírito se fundam na
“compreensão” enquanto apreensão de sentido.

É a compreensão e a atitude crítica a ela associada que definem, portanto, a metodologia


adequada às ciências do espírito, o método hermenêutico: “a transferência do próprio eu a
algo exterior e a consequente transformação desse eu através do processo de compreensão”
(Dilthey, 1951, p.304).

A seguinte passagem de Dilthey (`1951) evidência de modo claro as diferenças em jogo:


Num caso, pois, abstracção; no outro, reversão à vida plena por uma espécie de
transposição. Num caso busca-se para a individuação razões explicativas hipotéticas,
enquanto no outro se experiencia suas causas na vida mesma. Por isso, a compreensão
da realidade histórico-social concreta representa, para cada uma das ciências
sistemáticas do espírito, o fundamento das outras operações metodológicas. (p.306-7).

1.2.4. Os fundamentos da ciência do espírito: compreender e explicar


A intenção de se estabelecer uma nova epistemologia na fundamentação das ciências do
espírito exige uma nova problematização filosófica do papel da ciência. Desse modo, a
‘Introdução às ciências do espírito’ visa a reestabelecer os princípios e condições
filosóficas do conhecimento científico.

Segundo Dilthey (1951),


Pertence à natureza de nosso objecto que as evidências de que se necessita para
resolver esta questão remontam às verdades que há que se colocar como
fundamento do conhecimento, tanto da natureza quanto do mundo histórico-
social. Assim entendida, esta tarefa, que se funda nas necessidades da vida
prática, coincide com um problema que planteia o estado de teoria pura. ( p.12)

Assim, Dilthey (1951) propõe uma definição geral para as ciências do espírito,
procurando integrar nela as características constitutivas do conhecimento empírico com as
exigências do método histórico-crítico. Desse modo, toda ciência do espírito reúne três
aspectos:
As ciências do espírito, (...) unem em si três classes distintas de afirmações.
Dessas, umas expressam algo real, que está dado na percepção: contém o
elemento histórico do conhecimento. Outras explicam o comportamento uniforme
dos conteúdos parciais dessa realidade, que se separam por abstracção: constituem
seu elemento teórico. As últimas expressam juízos de valor e prescrevem normas:
nelas reside o elemento prático das ciências do espírito. Fatos, teoremas, juízos
estimativos e normas: dessas três classes de proposições se compõem as ciências
do espírito. (p.36)

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