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ROSAS E PENSAMENTOS OUTROS

Sumário

Apresentação
Capítulo I - Uma Rosa Vermelha
A outra Rosa Luxemburgo: a Rosa Mulher
Civilização ocidental e guerra Rosa Luxemburg no centenário do
seu assassinato
Tantas Rosas, um mesmo perfume Pensamentos não morrem
Capítulo II - Pétalas e poéticas
Dois naufrágios de Ulisses a ninguém
Atravessamentos entre filosofia e literatura no pensamento da
desconstrução
O testemunho do desenho: uma cortesia dos cegos
Saudades da literatura
Deslocamento e Nadificação: A Filosofia Trágica de Macabéa
O encontro entre dança e pensamento no processo criativo de Pina
Bausch
Capítulo III - Flores do político
Pensamentos outros do Direito: desconstrução, justiça,
hospitalidade, desobediência civil e revolução
Hospitalidade e vulnerabilidade: notas sobre ética em Judith
Butler e Jacques Derrida
A temporalidade da vingança e a doação do tempo no direito
Habermas nos trópicos: o conceito de esfera pública e o
contratualismo político brasileiro
Capítulo IV -Outros ramos e pensamentos outros
Observações sobre a poética política de Augusto Boal e a
insurgência de uma filosofia popular brasileira
Referências
A humanidade fabricada: identidade, violência e exclusão na
construção do imaginário moderno/colonial
Comportamento impróprio ao local de cultura
O real-segredo de Slavoj Žižek
Capítulo V - Raízes e Filosofias Populares Brasileiras
Tentáculos Digressões sobre uma filosofia sem idade ou de todas as
idades
Rosas negras para uma filosofia desde o Brasil: Lélia Gonzales,
Beatriz Nascimento e Helena Theodoro
Resistência, ódio e amor!
(Sobre)vida retirante: por onde nos conduz o sertanejo Severino?
A gira macumbística da filosofia brasileira
Referências
AUTORAS E AUTORES
Copyright
Conselho editorial
Para Maria Cristina Derzi
Queixo-me às rosas
Que bobagem
As rosas não falam
Simplesmente as rosas exalam
O perfume que roubam de ti
Cartola

No meio das trevas, sorrio à vida, como se conhecesse a fórmula


mágica que transforma o mal e a tristeza em claridade e em felicidade.
Rosa Luxemburgo
Apresentação
Rosas e pensamentos outros é um livro que começa a ser gestado em
outubro de 2019, na Universidade Federal de Uberlândia. Aquele momento,
que poderia apenas ter sido um encontro sem grandes desdobramentos,
como infelizmente o são muitos encontros acadêmicos, reunindo amigos,
amigos antigos e amigos recém feitos, alguns até mesmo não conhecidos,
ultrapassava os limites acadêmicos e, sobretudo devido ao infinito
acolhimento da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), seria um marco
na história do Grupo de Trabalho da ANPOF que, dali em diante, viria a se
chamar “Alteridade e Desconstrução”.
Criado em 2009, então coordenado pelo professor Rafael
Haddock-Lobo, e se reunindo pela primeira vez em Águas de Lindóia, no
XV Encontro no Encontro da ANPOF de 2010, o então GT “Desconstrução,
linguagem e alteridade”, hoje, “Alteridade e Desconstrução” cresceu, tomou
diferentes rumos, e vem se tornando um dos mais significativos no âmbito
da filosofia contemporânea. Nesse sentido, precisamos agradecer a Vinicius
Figueiredo, que estava à frente da ANPOF no momento da criação do GT e
que desde o início abraçou a iniciativa da sua criação, a Marcelo Carvalho,
que deu prosseguimento e incentivo aos trabalhos do GT, e a Adriano
Correia, atual diretor da ANPOF.
Devemos também agradecer, neste livro que marca também a
comemoração dos dez anos do GT, a Olgária Matos, carinhosamente
apelidada por nós de “madrinha do GT”, que, com seu carinho e seu
incentivo, provocou o ânimo necessário à criação do GT, bem como à
retenção do seu caráter aberto, amplo e nunca fechado na ideia de um único
autor. Pois, por mais que seja o pensamento de Jacques Derrida, com seu
apelo à abertura a outras vozes, que tenha nos motivado a dar esse passo,
sempre tivemos bem claro que um GT organizado em torno de um único
nome seria extremamente avesso ao próprio princípio da desconstrução.
Por isso, desde a criação do GT até hoje, o termo “alteridade”
venha ganhando mais e mais espaço, tomando inclusive a dianteira de nossa
proposta. Como Derrida, na esteira de Lévinas, sempre nos lembrou que o
outro vem primeiro, era previsível que, com o passar do tempo, mais
“outros” viessem se achegando a nós, e que, com isso, o GT precisasse de
um novo batismo. É, portanto, ao completar seus dez anos que o GT
“Desconstrução, linguagem e alteridade” passa a se chamar GT “Alteridade
e desconstrução” e, após as coordenações de Rafael Haddock-Lobo, Carla
Rodrigues e Georgia Amitrano, tem Marcelo de Mello Rangel à sua frente.
Outro fator de importante destaque é que, em seus encontros,
dentro e fora da ANPOF, para além de seus membros efetivos, professores e
alunos, o GT sempre teve por princípio convidar pesquisadores afins aos
temas que têm sido pesquisados, para que o debate não se restringisse ao
círculo de pessoas já conhecidas e que o GT mantenha uma interlocução
cada vez maior. Nesse sentido, precisamos também agradecer a Maria
Socorro Ramos Militão, Giovanni Fresu, Dirce Eleonora Nigro Solis e
Marcelo José Derzi Moraes que, muito mais do que simplesmente aceitarem
o convite, retribuíram com lindos textos, com amizade e com carinho, e
elevaram enormemente o nível das discussões.
De volta à Uberlândia, precisamos também lembrar que, ainda
que respeitando o caráter plural e aberto de nosso GT, o encontro aqui
publicado teve como objetivo homenagear o centenário de falecimento de
Rosa Luxemburgo e que, assumindo desde o início todo o trabalho de
organização e planejamento, teve Georgia Amitrano como sua maior
idealizadora. Agradecemos também a Alexandre Guimarães Tadeu de
Soares, então diretor do Instituto de Filosofia da Universidade Federal de
Uberlândia, um grande amigo do GT e cujo apoio foi imprescindível para a
realização de nosso encontro.
Esse livro é, portanto, uma colheita de lindas flores, rosas e outros
pensamentos, com tantos aromas e cores, certamente espinhos também, que
temos a imensa felicidade de aqui reunir.
O primeiro buquê é composto por três rosas vermelhas, que
ecoam tantas outras rosas, oferecidas a Rosa Luxemburgo e trazidas por
Maria Socorro Ramos Militão, Giovanni Fresu e Georgia Amitrano.
Em seguida, temos o florescimento poético que brota dos textos
de Elisa de Magalhães, Suelen Carvalho, Fransuelen Geremias Silva,
Guilherme Lanari Bo Cadaval, Carina Duarte Blacutt e Renata Tavares
Noyama (que abrilhantou nosso encontro com sua dança).
A dimensão política e do direito frutifica nos temas sempre tão
presentes e urgentes ao GT e que, aqui, saboreamos nos textos de Luciana
Pereira Queiroz Pimenta, Ana Luiza Gussen, Marcelo Corrêa Giacomini e
Luciano Severino de Freitas.
Como o princípio de alteridade sempre (des)norteou os encontros
do GT, é necessário que outras vozes e outros temas convoquem o
crescimento de nossos ramos em diferentes direções e, nesse sentido, os
textos de Samon Noyama, Diego dos Santos Reis, Pedro Paulo Guimarães
de Menezes e Gabriel Henrique Lisboa Ponciano nos fazem movimentar
para além de nossas questões mais habituais.
Por fim, como que chegando às raízes (sem chão e sem
fundamento) de questões relevantes a todo o GT, temos os textos com
sotaques brasileiros de Dirce Eleonora Nigro Solis, Marcelo José Derzi
Moraes, Marcelo de Mello Rangel, William Costa e Rafael Haddock-Lobo.
Só podemos desejar ao leitor que desfrute e despetale do mesmo
prazer que tivemos nesse encontro, que alia prazer acadêmico, aprendizado,
alegria, afeto e amizade.

Georgia Amitrano
Marcelo de Mello Rangel
Rafael Haddock-Lobo
Capítulo I - Uma Rosa Vermelha
A outra Rosa Luxemburgo: a Rosa Mulher

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Maria Socorro Ramos Militão
Introdução
Neste artigo, busco apresentar a outra face da revolucionária socialista
Rosa Luxemburgo, a Rosa mulher, que é praticamente desconhecida.
Procuro evidenciar a sua incansável batalha para tornar-se um Ser humano
completo, dar voz a essa outra Rosa ignorada e ainda mais desprezada que a
filósofa política.
Contudo, antes de apresentar esta sua outra face, é preciso situá-la no
contexto histórico do final do século XIX e início do XX, no qual atuou
como revolucionária e contribuiu com a reflexão sobre os grandes
problemas sociais e políticos do período, inserindo-se nos debates políticos
travados no interior do maior partido político de esquerda da Alemanha e
entre os círculos socialistas. Contexto em que se tornou respeitada pelo
elevado nível de produção intelectual e no qual resistiu, bravamente, ao
machismo e aos preconceitos presentes no interior do partido e na ultra
conservadora sociedade alemã. Porém, apesar de ter uma obra muito vasta,
2
a filósofa polaco-alemã é, ainda hoje, pouco conhecida entre os muitos
teóricos marxistas.
Em 15 de janeiro de 2019 registrou-se os 100 anos da morte de Rosa
3
Luxemburgo (1871-1919) , a combatente de primeira hora do revisionismo
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teórico que irrompeu no interior da social-democracia alemã , e, em sua
homenagem lanço, aqui, um olhar sobre a Rosa vermelha mulher, ignorada
e triplamente estigmatizada: como mulher, judia e comunista.
A Rosa vermelha revolucionária
Rosa Luxemburgo foi fundadora e líder da socialdemocracia polonesa,
líder da ala de esquerda da socialdemocracia alemã junto com Karl
5
Liebknecht (1871-1919) , e, como teórica da política, protagonizou e foi
mártir das revoluções Russa de 1905 e Alemã de 1918-19. Além disso, ela
rejeitou alianças de classes em prol de interesses nacionais, opôs-se com
vigor ao voluntarismo centralista do bolchevismo e ao fatalismo
revolucionário do “centro marxista”. E, como herdeira da Economia
Política de Marx, criticou alguns pressupostos da teoria da reprodução do
capital, algo que nenhum marxista ousou fazer, propondo-se a reformulá-la
e extraindo dela uma teoria do imperialismo.
Loureiro (2009) acentua que, apesar de ser uma cidadã alemã, Rosa
sentia-se como uma exilada por ser vista, pelos seus inimigos políticos,
como estrangeira, judia e revolucionária. Como judia, ela “era objeto de
perseguição. E como mulher, ela era, como todas as mulheres, o negro do
mundo” (LOUREIRO, 2009, p. 69). Estes foram os principais motivos que
a levaram a ser discriminada e perseguida por toda a vida.
Diante deste árido cenário, ela buscou viver de forma autodeterminada,
tendo sido uma das poucas mulheres politicamente ativas no interior do
partido, onde enfrentou o preconceito contra as mulheres que exerciam
papel em público, e que era largamente disseminado nos partidos de
esquerda. Este mesmo preconceito levou Rosa à perseguição que a tornaria
mártir da revolução na Alemanha, ao ser brutalmente assassinada em 15 de
novembro de 1919, junto com seu companheiro de luta Karl Liebknecht,
por militares de extrema direita, que depois apoiariam Hitler.
A autonomia de espírito foi, certamente, sua marca registrada. Mas,
além disso, e, sobretudo, Rosa tinha uma profunda identificação com as
massas de trabalhadores, uma total dedicação aos oprimidos e explorados,
um ódio mortal à injustiça, um desprezo ilimitado pela autossuficiência do
burocrata, sobretudo do burocrata acomodado que, a pretexto de servir os
trabalhadores, deles se servia. Estes sentimentos se manifestavam nela com
inigualável intensidade, dando a tudo o que fez e escreveu grandeza e força
excepcionais. Por isso, Rosa sentia não apenas amor e compaixão pelos
subalternos, mas também respeito, e se destacava pela
identificação com a massa, pela disposição de esclarecê-la, animá-la e se colocar incondicionalmente à sua testa, sem pretender comandá-la em sua
movimentação espontânea. Assim ela o disse e assim ela fez. Nenhuma fratura se interpunha entre sua proposta e sua ação (SINGER apud
LUXEMBURGO, 1984, VIII).

Por tudo isso eu a chamo de Rosa vermelha do proletariado, e mais


ainda por ela ter se tornado uma das maiores líderes socialistas da história,
tendo sido ela a levar a mulher a uma posição de destaque inimaginável à
época.
Naquele período de muitas revoluções sociais e políticas, a visão
histórica de Rosa mostrou-se superior aos que acreditavam no paulatino
ajustamento pacifico do capitalismo, porém, nenhuma das revoluções
vitoriosas produziu a sociedade que ela sonhava. A revolucionária alemã
criticou a única revolução da qual participou e dela foi a única líder mulher,
criticou especialmente a teoria da ditadura do proletariado que, em sua
visão, tinha no bolso uma receita pronta. Entendia ela, que o socialismo é
fruto do processo histórico “nascido da própria escola da experiência, no
momento das realizações da marcha viva da história (...)”, daí afirmar que o
socialismo não pode ser outorgado, introduzido por decreto
por uma dezena de intelectuais reunidos em torno de um pano verde. [...] os que governam de fato são uma dezena de cabeças eminentes, enquanto
que uma elite da classe operária é convocada de tempos a tempos para reuniões com o fim de aplaudir os discursos dos chefes e de votar
unanimemente as resoluções que lhe são apresentadas (LUXEMBURGO, 1988, p. 35-6).

Com presciência das tendências profundas, alguns fenômenos políticos


ocorridos após a sua morte, revelaram a grandeza e o alcance da obra de
Rosa Luxemburgo.
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No final do século XIX, o revisionismo que ficou conhecido como a
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doutrina de Eduard Bernstein (1850-Berlim-1932) , suscitou polêmicas
dentro da socialdemocracia alemã e em defesa das ideias marxianas
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levantaram-se, entre outros, Rosa, Plekhanov e Kaustsky , ao final, o
revisionismo foi repudiado no congresso do partido. Sobre a questão, Rosa
escreveu vários artigos entre 1898 e 1899, os quais foram reunidos,
posteriormente, na sua clássica obra Reforma ou Revolução?
O mérito das análises de Rosa estava no reconhecimento de que muitas
coisas haviam mudado e que cabia aos marxistas analisarem as novas
tendências do capitalismo e reavaliarem suas táticas sem cair na apologética
acadêmica sobre as virtudes de um capitalismo regulado, como defendia
Bernstein, e que Rosa refutou com grande conhecimento de causa. E isso
porque, em sua visão, a luta por reformas não se opunha como alternativa à
revolução, pelo contrário, constituía a única maneira de o proletariado se
educar politicamente para chegar ao poder. Assim, a luta sindical tinha o
caráter de trabalho de Sísifo, precisando ser constantemente recomeçada
para limitar a exploração aos seus termos “normais”, sem jamais aboli-la,
como sonhavam os revisionistas.
Rosa foi a primeira grande teórica e revolucionária do início século
XX, “a pensar a revolução como questão fundamental do pensamento e da
ação socialistas” e a evidenciá-la como um ato necessário, “como uma
espécie de martelo que quebra o muro que é o poder político, o poder das
classes dominantes – e isso exige uma ação revolucionária das classes
oprimidas” (LOUREIRO, 2009, p. 46). Esse é o primeiro ato que ela
resgata ao pensar na urgência da revolução socialista.
Em termos de prognóstico, a história dos 40 anos seguintes deu
carradas de razão a Rosa, pois o capitalismo mostrou-se incapaz de prevenir
suas crises, frustrando os que esperavam a progressiva estabilidade de sua
marcha. Mártir de um movimento que o nazismo e stalinismo enterraram,
ela renasceu como teórica da política e da economia após a Primeira Guerra
Mundial.
Em 1898, Rosa chegou a Berlim com sua tese embaixo do braço e
bateu à porta do partido socialdemocrata dizendo: “Cheguei para trabalhar
na socialdemocracia alemã”. E, ao mostrar que conhecia bem a situação
polonesa, os velhos membros do partido ficaram muito empolgados, porque
eles ignoravam tudo que se passava no Leste, e porque acreditavam que ela
seria adequada para desempenhar cargos próprios às mulheres. Contudo, o
que ela queria não era se ocupar da questão feminina (que era o lugar
destinado às mulheres) ou executar lutas pelo direito de votos das mulheres,
ela queria lutar em pé de igualdade com os teóricos do partido. Pretendia
ocupar os mesmos lugares que os homens no tocante às questões mais
relevantes, almejava desempenhar as funções historicamente negadas às
mulheres por estas serem julgadas incapazes de exercê-las. Por esta postura,
as feministas alemãs da década de 1970 a teriam considerado machista.
E a Rosa feminista?
A Rosa vermelha do proletariado não escreveu sobre o feminismo ou
sobre questões femininas, ela não era uma feminista strictu sensu, em
verdade era uma crítica do feminismo. Segundo Loureiro (2009), os líderes
da socialdemocracia alemã, Bebel, por exemplo, queriam que Rosa
colaborasse com Clara Zetkin (que era a feminista de carteirinha da
socialdemocracia alemã), que se ocupasse da “questão feminina”, mas Rosa
não era uma sufragista, isso não bastava para ela. Contudo, para além desse
aspecto, há outra dimensão que também leva Rosa a ter voz nas questões
sobre a mulher: a sua incansável luta para se construir como mulher livre no
plano pessoal e político, exposta em detalhes na vasta correspondência
escrita no cárcere e enviada aos amigos e namorados, e cujo conteúdo nos
inspira à reflexão sobre a mulher.
O mais interessante e que podemos nos aproveitar da questão feminina
em Rosa não é o que ela escreveu a respeito – cerca de treze páginas em
uma obra de quatro mil páginas – mas o seu modo de ser como mulher
independente, como alguém que ocupa o espaço público, justamente o
espaço do qual as mulheres estão excluídas por princípio. Ela faz isso com
muita garra e força, como uma mulher extremamente independente. É esse
espírito livre e a batalha para se tornar um Ser humano livre, que serve de
exemplo para as mulheres e homens das gerações posteriores.
Sobre o feminismo, o que é mais relevante investigar em sua vida
pessoal é o fato de ela ver a sociedade sob uma ótica feminina, e esta pode
ser apreendida nos seus registros pessoais preservados nas cartas do cárcere,
por meio das quais relata sua penosa construção como mulher independente
e, com isso, contribui para o nosso próprio autoconhecimento como
mulheres, com seu exemplo de luta contra os limites impostos às mulheres,
ainda presentes atualmente.
Ainda assim ela encarnava, ou melhor, era a própria carne do
feminino, porque sua história era traspassada pelo feminismo, ela dava
lições sobre o feminino na tessitura de sua própria vida. Nesse aspecto, não
seria exagero compará-la, do ponto de vista pessoal, com as muitas Marias
brasileiras, com Marielle Franco, com tantas desconhecidas e aguerridas
mulheres do Brasil, e de tantas outras espalhadas pelo mundo. A vida
pessoal de Rosa é a outra face da sua obra, que pode inspirar mulheres
letradas e iletradas, conhecidas ou anônimas que enfrentam a vida com a
mesma garra e determinação que animava a Rosa vermelha, defensora das
mulheres trabalhadoras, das mulheres comuns.
Essa face da filósofa mulher pôde ser conhecida a partir da análise do
conteúdo de suas cartas, e ela mereceu ser descoberta por ser uma figura
fascinante tanto por suas ideias políticas, quanto pela coerência e
integridade com que conduziu sua vida, e que pode inspirar muitas
mulheres. E, ainda, pela coragem e ousadia com que enfrentou preconceitos
profundamente enraizados na socialdemocracia alemã, onde às militantes
mulheres eram reservados os assuntos “femininos”, os quais, ainda hoje,
são considerados pouco sérios. Rosa jamais se conformou com os limites
impostos às mulheres, por isso rejeitava posições subalternas, funções de
bastidores delegadas às mulheres de sua época, como as de contabilista,
datilógrafa, secretaria, entre outras.
Ela queria estar na linha de frente e não aceitar papel secundário, o que
gerava grandes conflitos no interior do partido e a fazia conquistar muitos
inimigos. Como ocorre atualmente em alguns partidos, nos quais predomina
uma forma conservadora de organização que alimenta a cultura da
submissão, um aspecto social que precisa ser desconstruído na busca pela
democratização e ressignificação do espaço partidário como instância que
potencializa transformações sociais.
A incansável peleja para se construir como uma mulher livre, no plano
pessoal e político foi exposta, em detalhes, na vasta correspondência que
Rosa enviou aos amigos e namorados. Nas cartas escritas no cárcere,
encontramos um exemplo de mulher lutadora, sensível e inspiradora que,
ainda hoje, nos provoca reflexão sobre o lugar reservado à mulher na
sociedade capitalista. A jovem estudiosa e seguidora fiel da obra de Marx
enfrentou a hierarquia da organização político partidária, dando assim o
primeiro passo no caminho a que se propusera: construir-se como mulher
independente, no plano político e pessoal.
A escritora de cartas, a Rosa mulher
A biógrafa Elzbieta Ettinger relata que, quando a Rosa escritora de
cartas foi assassinada, houve uma grande comoção inclusive por parte dos
inimigos que condenaram o grau de brutalidade praticado contra ela. Na
mídia da época, Rosa foi vista como uma espécie de mulher bomba, uma
terrorista. Após a sua morte, a amiga Luise Kaustky, publicou as cartas que
ela tinha dirigido aos Kaustky e foi naquele momento que apareceu a outra
Rosa, ou melhor, a sua face até então ignorada, lírica, amiga dos amigos,
amante da natureza, uma Rosa que aos olhos de muitos era o oposto da
terrorista, da mulher revolucionária.
Aparecia, então, a mulher que sempre combateu as desigualdades de
gênero, o machismo, preconceitos, etc., e lutou pela felicidade que
englobasse todas as dimensões da existência humana. Emergia, então, a
Rosa impressa na vasta correspondência que escrevera na prisão e na qual
expões sua vida pessoal e suas relações com as pessoas mais próximas,
mostrando um pouco sobre essa outra personagem.
A Rosa mulher sempre foi hostilizada no ambiente machista da
esquerda, que temia sua independência de espírito e sua língua mordaz.
Certa vez, o socialista austríaco Victor Adler chamou-a de “idiota
venenosa”. Noutra ocasião, quando ela foi nomeada redatora-chefe de um
importante jornal socialdemocrata, enfrentou quase uma rebelião dos
colegas jornalistas que duvidavam de sua competência pelo fato de ela ser
mulher. E, com frequência, seus companheiros de partido se referiam a ela
tratando-a por “materialista histérica”. Isso, porém, não a paralisava, mas a
motivava a continuar lutando pela sua autonomia política e para ser uma
mulher livre.
Combatente de primeira hora na arena pública, ela enfrentou – e
venceu intelectualmente – os preconceitos arraigados na ultraconservadora
Alemanha da época e rompeu com o tradicional papel feminino de esposa e
mãe ou mesmo de secretária do marido. Neste cenário, buscando proteger-
se da sociedade alemã dominada pelo autoritarismo e patriarcalismo, ela
manteve discrição sobre suas relações amorosas: com Leo Jogiches (1867-
9 10 11
1919) , Costia Zetkin e Paul Levi .
A Rosa vermelha é, pois, a expressão de uma mulher que batalhou por
um espaço político num ambiente propriamente masculino: o partido, no
qual a dominação sobre a mulher se manifestava e se projetava desde o
momento de fala, um lugar que construía como espaço de visibilidade para
os homens e no qual a predominância masculina se impunha nas estruturas
de poder, como os cargos de Direção. Rosa enfrentou essa hierarquia desde
que ingressou no partido alemão, o qual apesar de ser um espaço árido para
uma mulher, não a impediu de buscar sua autonomia intelectual e política.
Por tudo que viveu, a revolucionária polaco-alemã passou a acreditar
que a mulher só obteria a completa libertação através de uma ampla e
profunda revolução social, por isso dedicou sua vida à causa. Eloquente e
articulada gostava de discursar para grandes grupos acerca das coisas que a
inspiravam e as coisas mais simples podiam fazê-la discursar por horas. Por
suas ideias e atuação política, Rosa era constantemente presa, muitas vezes,
nem acusação havia e ela era tirada de circulação como forma de
“prevenção” à sua intervenção política. Liberada, proibiam-na de escrever
ou falar sobre política. Era de fato uma mulher perigosa, pois, como
escreveu o jornalista americano Nicholas Kristof, o maior perigo para a
opinião consagrada não são bombas sendo lançadas, mais mulheres lendo
livros.
Construir-se como mulher foi uma tarefa difícil para Rosa
Luxemburgo, pois segundo Isabel Loureiro (2009, p. 70), ela não tinha o
padrão de beleza vigente na Alemanha, não era bonita: tinha um metro e
meio de altura, cabeça desproporcional, nariz grande e um problema no
quadril que a fazia mancar. Numa época em que o andar elegante era um
dos principais atributos femininos, ela quase sempre conseguia disfarçar
essa deficiência por meio do autocontrole e da roupa feita sob medida. A
filósofa polaca, que certamente sofria com isso, se protegia na medida do
possível com a auto ironia dizendo preferir empregadas altas e fortes,
temendo que seus visitantes pensassem ter chegado a uma casa de anões.
Para a biógrafa Elzbieta Ettinger este defeito físico foi determinante na sua
vida, porque a fez forjar uma excepcional força de vontade e tornar-se uma
aluna modelo, depois, oradora, polemista, jornalista e intelectual brilhante.
Também foi incansável no combate ao machismo, como se vê na carta
de 13 de janeiro de 1990, enviada ao seu companheiro Leo Jogiches (1867-
12
1919) , na qual mostra como enfrentava o machismo na política e dentro de
sua própria casa, além de apontar como o machismo é cultural e pode se
manifestar tanto entre homens iletrados quanto letrados, como era o caso do
seu grande amor, a quem criticava privadamente nos seguintes termos:
Querido Dziodzio!
Você é mesmo engraçado! Primeiro você me escreve uma carta com o tom mais agressivo, mas quando eu envio a resposta breve mal humorada,
você me diz ‘o tom de sua carta não me inspira a vontade de lhe escrever mais detalhadamente’.
Tu não percebes que toda a tua correspondência é redigida no tom das ‘cartas do mestre a seu caro aluno’ [...] quer se trate dos meus artigos, das
minhas visitas, da minha estada na casa dos Winter, das minhas assinaturas de jornal, das minhas roupas, das relações com a minha família – numa
palavra, não há uma única coisa que me diga respeito, sobre a qual eu te escreva, que em resposta não tenha que ouvir lições ou instruções. É chato
demais! Ainda por cima, porque é uma prática totalmente unilateral; pois do teu lado não me dás qualquer matéria para críticas e instruções, e de
minha parte não tenho o hábito nem o menor desejo de dar-te lições; aliás, se por caso te dou um conselho tu não pensas minimamente em segui-
lo. [...]
Tudo vem desse velho e deplorável hábito que se manifestou em Zurique que estragou completamente nossa vida comum, o mau hábito de fazeres
de mentor. Ao mesmo tempo sentias-te com vocação para me dar eternamente lições sobre todos os assuntos: consideravas que teu papel consistia
em fazer minha educação.
Teus conselhos atuais e tuas críticas a respeito de minhas ‘atividades’ na Alemanha ultrapassam e muito os limites de conselhos e observações
vindos de um amigo e transformam-se mais uma vez em lições dadas sistematicamente. [...] Vê só como te passei um sabão [...]. Beijos, tua Rózia.
(LUXEMBURGO, 1900 apud LOUREIRO, 2018, p. 221-2).

Esse comportamento de Leo impedia a conciliação entre vida pública e


privada que Rosa tanto almejava e que, nela, soava quase como uma
espécie de concepção de amor, segundo a biógrafa Elzbieta Ettinger. Tal
desejo foi evidenciado em muitas de suas cartas, numa de 1915, enviada a
sua secretária Mathilde Jacob, Rosa ironiza o comportamento da Sra.
Charlotte Von Stein (uma das amantes de Goethe), dizendo que quando
Goethe “a mandou passear, ela se comportou como uma verdadeira
maledicente; eu insisto que o caráter de uma mulher se revela, não quando o
amor começa, mas quando o amor acaba”. Noutra de 1917 à Sonia
Liebknecht, ela diz que o “amor era (ou é?) sempre mais importante e
sagrado que o objeto que o desperta”.
A apaixonada por tudo, ela se entregava de corpo e alma ao que fazia e
vivia, mas era também muito severa do ponto de vista moral, por isso em
carta de 1917, endereçada ao amigo Hans Diefenbach, fez duras críticas ao
comportamento da amiga feminista Clara Zetkin, que se recusava a
conceder o divórcio ao segundo marido. Sobre o episódio Rosa dizia ter
dificuldades em ter compaixão pela amiga e saiu em defesa do ex-marido
de Clara, afirmando o seguinte:
[...] porque eu não deveria sentir compaixão pelo outro lado, queimado vivo e que, a cada dia que Deus dá, precisa passar pelos sete círculos do
inferno de Dante? E mais: minha compaixão e minha amizade têm limites muito claros e acabam inexoravelmente onde começa a baixeza. Meus
amigos devem manter suas contas na mais perfeita ordem, e isso não somente nas contas públicas, mas também na vida privada. Proferir
publicamente grandes frases sobre a ‘liberdade do indivíduo’ e na vida privada escravizar uma alma humana por causa de uma paixão insensata –
isso eu não entendo e não perdôo (LUXMBURGO apud LOUREIRO, 2009, p. 70).
Como se vê, Rosa tem uma personalidade forte e passa uma
autoimagem de mulher dura consigo mesma, uma imagem de quem não se
deixa levar pelas tristezas ou se abater frente aos problemas, porém ela
oscila entre a delicadeza e a firmeza de caráter ao falar sobre a sua
depressão aos amigos mais próximos. Segundo Loureiro (2009), a biografia
de Ettinger é interessante porque ela expõe aspectos da personalidade de
Rosa que talvez ela não gostasse de mostrar, já que mostrava uma imagem
na vida pública que não correspondia exatamente àquela que expunha na
relação com Leo e é esse outro lado de Rosa que a biógrafa busca mostrar.
Uma relação que desde o início foi muito complicada, porque a escritora de
cartas parecia se sentir em uma posição de inferioridade em relação a seu
companheiro, primeiro porque ele era muito bonito e ela não. Ele tinha
dinheiro, ela não. Rosa escrevia bem, ele não; ela era a pena dele, afirma
Loureiro (2009).

A indissociabilidade entre vida pública e privada


As cartas evidenciam os diferentes momentos desta relação conjugal, e
em algumas há uma mistura curiosa de relatos pessoais do estado de
espírito de Rosa com prestações de contas políticas a Leo. Ela reclama
muito por ele não demonstrar sentimentos pessoais e interessar-se apenas
pela política, e essa luta pelo amor dele e pela felicidade pessoal dura muito
tempo, até que ela se cansa de zelar pela relação sozinha, e isso coincide
com a Revolução Russa de 1905 quando ele vai para a Polônia. Nesse
período Rosa conhece Costia Zetkin, com quem iniciou um relacionamento
amoroso totalmente diferente do anterior. E, ao tornar-se uma intelectual
independente, ela percebeu que o seu desejo de viver um grande amor ou
ter uma relação estável com Leo não se realizaria. Para Ettinger, a política
veio preencher esse lugar vazio, pois para Rosa,
a vida não consistia na Causa dos Trabalhadores (nome do Jornal do SDKP, fundado por Rosa e Leo), não consistia nos trabalhadores e na causa,
mas consistia em viver. Que ela e ele trabalhassem pela revolução não se discutia, mas que a vida se limitasse a ‘tal questão, ou tal panfleto, a este
ou aquele artigo’ era equivalente a matar a alma. Destruir os laços espirituais entre as pessoas para maior glória de uma ideia que buscava criar
esses laços era, para ela, uma aberração brutal (ETTINGER apud LOUREIRO, 2009, p. 70).

Tais questões a inquietavam ao ponto de ela se perguntar: A quem


serve a revolução? Porque deveria sacrificar a sua vida pessoal pela
humanidade? Se os que fazem a revolução estão condenados, não estaria a
revolução condenada? Se os revolucionários não são humanos, se não
entendem a arte de viver, como podem criar uma vida melhor para os
outros?
Sobre estas indagações, há uma carta endereçada a Sonia Liebknecht
em que ela comenta certa postura de Clara Zetkin, dizendo que nem todas
as mulheres querem se tornar agitadoras, datilógrafas, telefonistas, etc., há
belas mulheres – e a beleza aqui não é apenas um rosto bonito, mas também
delicadeza e graça interiores – que já são um presente dos céus por já
alegrarem os nossos olhos. Então, “Se Clara como Arcanjo à porta do
Estado futuro, com sua espada flamejante expulsar as Irenes, eu lhe
suplicarei de mãos postas: deixa-nos as doces Irenes, mesmo que elas como
os colibris e as orquídeas só sejam boas para enfeitar a terra. Sou a favor do
luxo sob todas as formas” (ROSA apud LOUREIRO, 2009, p. 70). Aqui,
Rosa expressa seu encantamento pela figura feminina, se solidariza com as
mulheres e expõe o amor que cultiva pelas artes, cultura, natureza e outros
elementos ocupam na vida humana e dos quais ela não abre mão.
Esse tipo de intervenção era incomum no interior do movimento
comunista e da esquerda em geral, que tende a sofrer de sentimento de
culpa. A águia vermelha, ao contrário, desejava uma vida culturalmente
rica, humanista clássica; ela conhecia bem a cultura francesa e russa, a
poesia alemã, cantava, pintava, frequentava ópera, etc., enfim, era uma
mulher talentosa, de formação burguesa clássica, herdada da mãe. Daí
querer que o socialismo englobasse essa cultura burguesa, por isso seria
vista como a primeira marxista ocidental do século XIX, pelo peso dado à
consciência, à subjetividade e pela forte ligação com a vida, com os
aspectos humanos da revolução socialista.
Não foi à toa que o poeta austríaco Karl Kraus (1874-1936), ao ler a
13
emocionante carta de Rosa sobre os búfalos – o búfalo que foi espancado e
que sangrava - escreveu um artigo sobre ela afirmando que: “Toda a
literatura viva da Alemanha não produz lágrimas como as dessa
revolucionária judia, nem nos faz ficar com a respiração suspensa, como
depois de lermos a descrição da pele do búfalo’” (LOUREIRO, 2009, p.
73). Por isso Karl defendeu que aquela carta figurasse, ao lado de Goethe,
nas cartilhas dos estudantes alemães.
Para ilustrar a emoção que Rosa desperta no jornalista, exponho abaixo
trechos da referida carta escrita na prisão e endereçada a sua amiga Sonia,
durante a guerra. Nela, Rosa diz:
Os soldados que conduziam a carroça diziam ser muito difícil capturar esses animais selvagens e ainda mais difícil utilizá-los para carregar fardos,
pois estavam acostumados à liberdade. [Eles] foram terrivelmente maltratados até compreenderem que perderam a guerra e que também para eles
vale a expressão vae victis [ai dos vencidos]. [...] em Breslau, trabalham sem descanso puxando todo tipo de carga e com isso não demoram a
morrer. Há alguns dias [...] uma carroça cheia de sacos entrou no pátio [da prisão]. A carga era tão grande que os búfalos não conseguiam transpor
a soleira do portão. O soldado que os acompanhava, um tipo brutal, pôs-se a bater-lhes de tal maneira com o grosso cabo do chicote que a vigia da
prisão, indignada, perguntou-lhe se não tinha pena dos animais. ‘Ninguém tem pena de nós, homens’, respondeu com um sorriso mau, e pôs-se a
bater ainda com mais força [...]. Os animais deram finalmente um puxão e conseguiram transpor o obstáculo, mas um deles sangrava [...].
Sonitchka, a pele do búfalo é proverbialmente espessa e resistente, e ela foi dilacerada. Durante o descarregamento, os animais permaneciam
imóveis, esgotados, e um deles, o que sangrava, olhava em frente e tinha, na cara escura e nos olhos negros e meigos, uma expressão de criança
em prantos. Era exatamente a expressão de uma criança que foi severamente punida e que não sabe por qual motivo, por quê, não sabe como
escapar ao sofrimento e a essa brutal força [...]. Eu estava diante dele, o animal me olhava, as lágrimas saltaram-me dos olhos – eram as lágrimas
dele. Ninguém pode sofrer mais por um irmão querido do que eu sofri na minha impotência com essa dor silenciosa. [Naquele] estábulo sombrio,
o feno mofado, repugnante, misturado com a palha apodrecida, os homens desconhecidos, assustadores e, - as pancadas, o sangue que corre da
ferida aberta [...]. Oh! Meu pobre búfalo, meu pobre irmão querido, aqui estamos os dois tão impotentes e mudos, mas somos uma só dor, na
impotência, na saudade. [...] Diante de mim, a guerra desfilava em todo o seu esplendor (LUXEMBURGO apud SCHÜTRUMPF, 2017, p. 128).

Observando as palavras da autora polaca, podemos ter uma dimensão


de grau de humanidade e a intensidade com que ela se entregava à vida e a
tudo que a cercava. Repare o que ela diz sobre a sua incansável busca
felicidade, em carta a Leo de 17 de maio de 1898:
Apesar de tudo o que você me disse antes da partida, eu, teimosa, reclamo que quero ser feliz. É verdade, tenho uma vontade desgraçada de ser
feliz e estou disposta a negociar diariamente a minha dose de felicidade com a teimosia de uma mula (LOUREIRO, 2005, p. 27).

Este desejo remonta a juventude, quando ela aspirava ter uma vida
“normal”: casar, ter filhos, etc., mas Leo era o revolucionário típico,
“durão”, acostumado à luta política clandestina, por isso unir prazer e dever
não estava nos seus planos, e ela o censurava por ele só pensar na “causa
política”, lamentando pela conflituosa relação que a fazia sentir-se infeliz.
Para Charles Rapoport, que os conhecia bem, “Rosa era sentimental e
apaixonada, romântica e sensível ao extremo e não tinha medo de expor
essa sensibilidade”. Observe como ela expressa esse romantismo e
sensibilidade ao manifestar sua vontade de ser mãe a Leo, em carta de 6 de
março de 1899,
[...] Querido, sabes o que ontem caiu em cima de mim, durante o meu passeio no Tiergarten? Não estou exagerando! De repente um pequeno de
três a quatro anos, de finos cabelos loiros, vestido com um terninho encantador, enrolou-se nas minhas pernas e pôs-se a olhar-me fixamente com
seus olhinhos redondos. Senti de repente uma vontade louca de pegá-lo, fugir com ele, levá-lo para casa e guardá-lo como se fosse meu! Ah, meu
querido, será que nunca terei um bebê? (LOUREIRO, 2005, p. 69).

A incompatibilidade entre a o desejo de relação amorosa convencional


e a dedicação integral de Leo à política, levou Rosa a afastar-se de seu
amado como mulher, à medida que ela se tornava independente
intelectualmente e passava a ser respeitada no interior da social-democracia,
embora a parceria intelectual entre ambos tenha permanecido.
A filósofa marxista não conseguiu atingir seus objetivos, apesar de ter
lutado com afinco para não sacrificar a felicidade individual em favor da
política, de ter combatido a fragmentação imposta pelo capitalismo e ter
brigado para tornar-se um ser humano completo. Ela expôs todas estas lutas
e desejos nas cartas do cárcere ao recordar os passeios pelos campos e
montanhas, em companhia de amigos ou sozinha. Numa de 2 de maio de
1917, à amiga Sonia, revelava que era na natureza que restaurava as
energias perdidas no embate político, daí dizer:
[...] no fundo eu me sinto mais em casa num pequeno canto de jardim como aqui, ou no campo, sentada na grama, cercada de abelhas [...] do que
num congresso do partido. Para você posso dizer tudo isso sem preocupação: você não vai farejar logo uma traição ao socialismo. Você sabe que
eu, apesar de tudo, espero morrer no meu posto: numa batalha urbana ou na penitenciária. Mas o meu eu mais profundo pertence antes aos meus
passarinhos que aos ‘camaradas’ (LOUREIRO, 2005, p. 27-28).

E esta parece ser uma face de Rosa que interessa a poucos.


Ela sabia que o ser humano completo só poderia realizar-se numa
sociedade igualitária e justa, numa sociedade socialista, construída apenas
pela “luta de classes revolucionária do proletariado”, por isso se dedicava à
revolução, mas se recusava a viver apenas a dureza da vida estritamente
política. Daí dizer a amiga Luise Kautsky, em carta de 18 de setembro de
1915, que, “apenas por descuido é que rodopio no turbilhão da história
mundial, quando na verdade nasci para ser guardadora de gansos”. E
confessar a Costia Zetkin, em carta de 1914,
Como sempre na vida, estou em marcante contradição com o que faço. Como pretendo fundar novamente o Jornal, tenho cinco reuniões por
semana e trabalho pela futura organização, mais intimamente não desejo senão sossego e dar adeus para sempre a toda essa atividade sem sentido;
agora eu não precisaria de nada além de estar só com Mimi [a gata] e poder passear e ler quando me fosse conveniente, e de fazer meu trabalho
científico, por mim mesma, em silêncio. Mas da maneira mais mecânica atiro-me novamente à luta e garanto para mim mesma um eterno
desassossego (LUXEMBURGO, 1914 apud LOUREIRO, 2018, p. 19).

Essas manifestações tipicamente femininas frequentes em suas cartas


revelam seus estados de alma aos amigos e amigas, sem medo de ser
censurada. Nelas, se mostra uma mulher dedicada à política e à vida
pessoal, ao lamentar o fato de gastar a vida apenas com a luta árdua por um
mundo belo e justo. A biógrafa Henriette Holst, diz que “Ela não era uma
pura natureza política, simplista, como os grandes dirigentes políticos e
revolucionários de todos os tempos, como [...] Robespierre ou Lênin”
(HOLST apud LOUREIRO, 2005, p. 29), por exemplo. Ela era uma mulher
generosa com os amigos e consigo mesma, tal como demonstra na carta de
24 de dezembro de 1917, a Sônia Liebknecht, onde diz carinhosamente:
Sonitchka, meu passarinho, queria responder-te imediatamente! [...] mas tinha o que fazer [...]. Então preferi esperar uma oportunidade, pois é
melhor poder tagarelar com você à vontade. Ontem [...] pensava: como é estranho eu viver permanentemente numa alegre embriaguez, sem
nenhuma razão particular. [...] aqui estou eu deitada, quieta, sozinha, enrolada nos véus negros das trevas, do tédio, da falta de liberdade, do
inverno – e apesar disso meu coração bate com uma alegria interior desconhecida, incompreensível, como se sob um sol radiante eu estivesse
atravessando um prado em flor. No escuro sorrio à vida, como se eu conhecesse algum segredo mágico que pune todo mal e as tristes mentiras,
transformando-as em luz intensa e felicidade. E, ao mesmo tempo, procuro uma razão para esta alegria, não encontro nada, e tenho que sorrir
novamente – de mim mesma. Creio que o segredo não é outro senão a própria vida; a profunda escuridão noturna é bela e suave como veludo,
basta saber olhar (SCHÜTRUMPF, 2015, p. 124-26).

Esse traço de personalidade sensível também se expressa na rejeição a


uma vida compartimentada e ao trabalho burocrático, como relata a Clara
Zetkin, em de julho de 1917,
Sabes o que decidi? Depois da guerra, simplesmente, não te permitirei mais participar de reuniões e, de minha parte, acabei para sempre com todas
essas reuniões. Quero ficar ali onde há grandes coisas, onde se ouve o bramir do vento, no meio da turbulência; estou farta da rotina cotidiana e tu
também, com certeza (LOUREIRO, 2018, p. 19).

Nesta carta, ela mostra ser o oposto do burocrata de partido, para quem
a política é sinônima de conchavos e de acordos espúrios, como é o caso de
“velhos e bem comportados companheiros da defunta social-democracia
alemã, para quem as carteirinhas de filiação são tudo, os homens e o
espírito, nada” (LOUREIRO, 2005, p. 29). Ela lutava por todas as minorias
e por todos os oprimidos – trabalhadores, negros, judeus, e mulheres,
especialmente –, por isso era vista como um problema nos grupos que
atuava, ficando sempre mais à esquerda dos esquerdistas.
O reconhecimento público
Rosa se juntou a Lênin contra a guerra imperialista e pelo socialismo
no início da Primeira Guerra Mundial, quando ocorreu a traição da maioria
14
dos dirigentes da II Internacional . Lênin a conhecia bem e a respeitava
muito, por isso ele rendeu lhe homenagem póstuma no discurso de abertura
15
do Congresso da III Internacional , e a defendeu com firmeza diante de
seus críticos da social democracia alemã, dizendo
A esses (críticos) responderemos com um velho ditado russo: ‘Às vezes as águias descem e voam entre as aves do quintal, mas as aves do quintal
jamais se elevarão até as nuvens’. Rosa equivocou-se em muitas coisas, a respeito da independência da Polônia, na análise dos mencheviques em
1903, na sua teoria da acumulação de capital [...], equivocou-se no que escreveu na prisão de 1918 (corrigiu a maioria desses erros no final de
1918 e início de 1919, quando voltou à liberdade). Mas, apesar de seus erros, foi e continua sendo uma águia (LOUREIRO, 2005, p. 22).

A águia polonesa foi vilipendiada como mulher pelos seus assassinos


e, após ser espancada, levou um tiro na cabeça, foi enrolada em arame
farpado e jogada nas águas do canal Landwehr.
Após a morte de Rosa, Trotsky escreveu sobre ela dizendo: “Desde o
primeiro dia da revolução [...], não, desde a primeira hora da revolução,
Rosa Luxemburgo lançou uma campanha contra o machismo e contra o
patriotismo em nome da independência do proletariado e da
internacionalização da revolução. Ela era respeitada até por aqueles que
discordavam dela, embora tenha morrido sem saber disso”.
A contragosto de seus algozes, a Rosa rebelde permanece viva após
100 anos, viva na consciência dos comunistas de todo o mundo, conforme
queria Bertold Brecht ao escrever em sua lápide: “Aqui jaz Rosa de
Luxemburgo, judia da Polônia, vanguarda dos operários alemães, morta
por ordem de seus opressores. Oprimidos, enterrai as vossas desavenças!”.
Foi precisamente por este chamamento de Brecht, que dei voz, aqui, à
águia polonesa, a mais importante mulher representante do socialismo
alemão e que se tornou mundialmente conhecida pela militância
revolucionária das causas socialistas.
BIBLIOGRAFIA
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VARES, Luiz Pilla. Rosa, a vermelha - textos escolhidos. São Paulo: Busca Vida, 1988.
Civilização ocidental e guerra Rosa Luxemburg no centenário do
seu assassinato

16
Giovanni Fresu

A trágica morte da Rosa Luxemburgo, na véspera da profunda virada


autoritária que levou à afirmação dos fascismos na Europa, assume um
significado simbólico que ainda hoje não deixa de impressionar. A
mobilização forçada de milhões de camponeses e operários como carne de
canhão na Primeira guerra mundial, depois do conflito, despertou uma
época marcada pela política de massa, a radicalização das lutas sociais, os
processos revolucionários na Rússia, na Hungria, na Alemanha e na Itália
entre 1917 e 1921. A estação da fascistização da luta política, que legitimou
o direito de eliminar fisicamente adversários e ideologias críticas, encontra
a sua primeira paradigmática manifestação exatamente no assassinato da
Rosa Luxemburgo, para depois desencadear toda a sua violência
devastadora finalizada ao restabelecimento das velhas relações passivas
entre as classes. No pleno difundir-se da rebelião de janeiro de 1919, no dia
15, as tropas paramilitares de milicianos chamados Freikorps, raptaram e
assassinaram Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht com a explicita vontade
de apagar o conflito social acabando com dois dos seus mais significativos
representantes. Cinco anos depois, na Itália, uma quadrilha de milicianos
fascistas reservou o mesmo destino para o deputado socialista Giacomo
Matteotti, que poucos dias antes havia denunciado as fraudes eleitorais e,
sobretudo, tinha realizado um dossier sobre a corrupção do governo de
Benito Mussolini, envolvido num escândalo de propinas em troca de
conceições ilimitadas à companhia de petróleo norte-americana Sinclair
Oil. Um caso, eu acho, bastante semelhante ao da Marielle Franco.
Como a colega Maria Socorro Militão nos explicou na mesa da
abertura da segunda feira, o debate sobre o revisionismo assume
importância fundamental também por causa de Rosa Luxemburgo, que
chega à Alemanha em 1898, justamente no momento mais agudo do debate
suscitado pelos escritos de Bernstein. Em meio ao confronto com as teses
revisionistas, Rosa Luxemburgo afirma-se por sua competência no campo
dos estudos econômicos marxistas e chega a assumir um papel de destaque
na socialdemocracia alemã. Pessoalmente, eu tive a oportunidade de tratar
essas questões, assim como o problema da dialética entre espontaneidade e
organização e as questões relativas à interpretação do Capital de Marx,
17
dentro do meu livro Lenin leitor de Marx , publicado no Brasil em 2016.
Hoje gostaria de falar de um outro tema luxemburguiano que sinteticamente
pode ser resumido no título “Civilização ocidental e guerra”.
* * *
Ligada ao intelectual socialdemocrata Karl Kautsky por um longo
relacionamento de colaboração política, que remonta à luta contra o
revisionismo nos anos de transição do século XIX para o século XX, Rosa
Luxemburgo rompe definitivamente com o teórico da Segunda
Internacional em 1910 (embora o desacordo entre os dois estivesse sendo
cevado há alguns anos), encaminhando-se num processo que leva o seu
definitivo afastamento da socialdemocracia alemã. Esse distanciamento do
maior partido do movimento operário de então tem como seu primeiro
grande momento de ruptura o debate sobre o uso das greves políticas de
massas e sobre os efeitos, para o movimento operário alemão, das lições da
revolução russa de 1905.
A segunda e definitiva ruptura de Rosa Luxemburgo com o seu velho
partido dá-se por conta da “trégua parlamentar”, que leva os
socialdemocratas a apoiar a expansão imperial da Alemanha e até a votar no
parlamento a favor dos créditos de guerra a despeito do princípio do
internacionalismo proletário. A declaração do grupo socialdemocrata ao
Reichstag, de 04 de agosto, continha em si os típicos termos da defesa
nacional ameaçada, da retórica patriótica, e a essa seguia-se a mudança de
atitude da imprensa do partido, a trégua social dos sindicatos, a dissolução
da internacional e a intoxicação chauvinista das massas populares. A força
devastadora da Primeira guerra mundial, que superou em dimensão, furor e
profundidade todas as que existiram antes, é denunciada no artigo intitulado
Escombros publicado em 30 de setembro de 1914.
Por todo lado o cortejo arrasador desta guerra mundial nada deixa atrás de si, em vastas extensões de terra e mar, senão escombros. Escombros de
cidades e aldeias, escombros de fortificações, escombros de canhões e fuzis despedaçados, escombros de gigantescos navios de guerra e de
pequenos torpedeiros. E, de primeiro, escombros de felicidade humana aniquilada. Pilhas de corpos humanos dilacerados, misturados com
18
horrendos cadáveres de cavalos, cães, de gado em decomposição, morto de fome ou carbonizado .

Tudo isso assinalava a capitulação dos princípios socialistas de


solidariedade internacional, substituídos pelos argumentos de
“oportunidades nacionais”: armar os proletários dos diversos países, uns
contra os outros, passa a ser justo e legítimo, abrindo-se um abismo
instransponível entre os princípios teóricos gerais da Internacional e a
prática perseguida pelo seu mais importante partido.
Mas o corto circuito teórico político, que depois levou o maior
partido operário do mundo a apoiar a guerra imperialista, teve modo de
manifestar-se já alguns anos atrás, entre 1905 e 1907, diante das aspirações
coloniais da Alemanha, dividindo a socialdemocracia em duas posições
opostas: de um lado a rejeição e a oposição aberta ao imperialismo; de
outro lado a sustentação de uma política colonial positiva.
A questão colonial representa uma passagem de notável importância
também em relação à temática do determinismo positivista da escola
socialdemocrata. É de fato sobre a base dessa impostação e de um certo
eurocentrismo típico daquele socialismo, que se pode justificar e sustentar
uma política colonial positiva por parte das potências ocidentais e a
exploração que isso comportava. O ponto de partida era uma concepção da
história da evolução humana que deveria realizar-se – em todas as latitudes
do planeta – com as mesmas etapas e as mesmas fases de transição do modo
de produção feudal ao capitalista, que culminaria no socialismo. Em virtude
dessa europeização forçada dos domínios coloniais seria possível acelerar o
processo evolutivo daqueles países libertando-os das estruturas
socioeconômicas arcaicas, de instituições despóticas e feudais. Em
substância o colonialismo havia se avizinhado ao socialismo. Mas além
disso a corrente de direita da socialdemocracia acabou por capitular mesmo
às justificações “humanitárias” do imperialismo. As razões da expansão
colonial, na literatura da época, eram inclusive legitimadas como dever de
tutela dos povos “primitivos”, com a missão civilizadora do Ocidente.
Após do choque de 04 de agosto de 1914, Rosa Luxemburgo escreve A
Reconstrução da Internacional, onde denuncia a traição do grupo dirigente
socialdemocrata e o viravolta de Karl Kautsky, que chegou a justificar e
sustentar o voto nos créditos de guerra por meio de uma absurda fórmula
verbal (na qual recitava: “A socialdemocracia pode ser um instrumento de
paz mas não um meio contra a guerra”), cunhada com o único objetivo de
alcançar uma improvável coerência entre aquela escolha, o marxismo e as
ações precedentes da socialdemocracia.
Para Kautsky a socialdemocracia lutou com coerência para evitar a
guerra, mas no momento em que esta estoura, deve valer somente o novo
problema: “vitória ou derrota”, entendendo-se com essa frase não a vitória
ou a derrota das massas populares, mas da própria nação em guerra. A
respeito dessa posição Rosa Luxemburgo usa de ironia para mostrar como
ela introduz duas normas de comportamento opostas para o movimento
operário: uma para o tempo de paz; outra para o tempo de guerra. Repare-se
que no primeiro vale internamente a luta de classes e, externamente, a
solidariedade internacional; já na segunda, vale internamente a
solidariedade de classe e externamente a luta fratricida entre trabalhadores
dos diversos países. Desse modo Kautsky termina por transformar a famosa
conclusão do Manifesto em “proletários de todos os países uni-vos em paz e
degolai-vos em guerra!” Para Luxemburgo, Kautsky e os grupos
parlamentares e de dirigentes do partido chegaram, com suas posições, a um
nível de degeneração bem mais grave do que o do revisionismo de
Bernstein:
Segundo o materialismo histórico, elaborado por Marx, toda a história passada é uma história das lutas de classe. Segundo o materialismo revisado
19
por Kautsky, é necessário acrescentar: salvo nos períodos de guerra” .

Assim, se Bernstein contestava o materialismo histórico porque


concebia uma teoria da evolução histórica “pela catástrofe”, Kaustsky, deste
modo, introduz uma nova concepção da evolução histórica, que se dá “aos
trambolhões.
Por suas atividades contra a guerra, em 18 de fevereiro de 1915, Rosa
Luxemburgo é presa; no cárcere, escreve o ensaio A crise da
socialdemocracia, publicado depois da sua libertação, que se deu em abril
de 1916, sob o pseudônimo de Junius, para evitar de ser novamente
incriminada e presa. Passado à história com o nome Juniusbrochüre, é
considerado uma das mais efetivas contribuições à análise da guerra
imperialista, e é provavelmente um dos mais belos textos de Rosa
20
Luxemburgo contra a guerra . «A guerra reduziu em pó os resultados de
quarenta anos de trabalho do socialismo europeu» determinando a implosão
da Internacional dos trabalhadores. A aprovação dos créditos de guerra e a
proclamação nacional dos partidos socialistas alemã, francês e inglês
reforçou o imperialismo jogando as massas populares na miséria, nos
massacres e no horror da guerra. Era preciso desmascarar os verdadeiros
moventes da guerra, desmontando as argumentações retoricas e as mentiras
sobre a exigência da defesa nacional.
Segundo Rosa Luxemburgo (A crise da socialdemocracia 1916) as
razões do conflito são reconduzíveis ao processo de transformação
monopolista da economia e no consequente elo entre os interesses do
Estado Nação e os do capitalismo nacional, que se traduzem, entre os
séculos XIX e XX, na competição colonial entre as diversas potências e na
corrida armamentista. «A guerra mundial vinha sendo preparada havia
décadas, com a maior publicidade, à luz do dia, passo a passo, hora a
21
hora» .
As últimas quatro décadas do século XIX geralmente são definidas
como a época da Segunda Revolução Industrial. Sem qualquer exagero
determinista, tratou-se de um processo internacional que em pouco tempo
transformou radicalmente sistemas de produções, relações sociais,
dinâmicas políticas e também estilos de vidas. Estas mudanças produziram
uma confiança sem limites no progresso industrial e científico, que
contribuíram para que se afirmassem os mitos do positivismo filosófico e
do determinismo econômico social. O positivismo representou a base
cultural de fundo da sociedade europeia nas suas principais manifestações,
incluída a filosofia, entre 1840 e a Primeira Guerra Mundial, uma fase
histórica marcada por profundas mutações que se estenderam sobre cada
22
momento da vida humana . A principal revolução que, nesse contexto,
levou à internacionalização do mercado e da produção foi a dos meios de
transporte, em primeiro lugar com a idade áurea das ferrovias e a realização
de ligações antes impensáveis, como a linha de trem New York - San
Francisco (símbolo da conquista do Oeste) realizada entre 1862 e 1869; a
Transandina entre Chile e Argentina, acabada no ano de 1910; a
Transiberiana (1891-1904) entre Moscou e Vladivostok. A aplicação das
descobertas científicas na navegação favoreceu a construção de navios
maiores e mais velozes, com a realização de novas rotas: em 1869 foi
finalizado o Canal de Suez, que devolveu ao Mar Mediterrâneo a sua antiga
centralidade como lugar de conexões entre Ocidente e Oriente; em 1859 foi
realizado o Canal de Kiel, que aumentou as comunicações no Mar do Norte;
em 1914 foi a vez do Canal de Panamá. Hoje se fala muito da chamada
globalização, mas na verdade a maior internacionalização dos mercados
23
ocorreu neste período histórico que antecede a Primeira Guerra Mundial .
Tudo parecia levar à unificação mundial de mercados e confins, mas na
realidade política e econômica, estes são anos de protecionismo e forte
competição pelo controle territorial da Ásia, África e América Latina, com
um enfrentamento sempre maior entre as grandes potências ocidentais. Em
tal sentido foi lida a crescente agressividade do imperialismo alemão, que
resultou, nos anos noventa, em uma poderosa potencialização da frota naval
militar para conter o domínio marítimo inglês. Estava claro, segundo Rosa
Luxemburgo, que a competição se transformaria em guerra entre as
potências, pois recém se havia procedido à repartição da Ásia e da África e
já a expansão capitalista determinava uma nova repartição.
A Inglaterra apodera-se do Egito e cria para si um poderoso império colonial na África do Sul; a França ocupa Túnis, no Norte da África, e
Tonquim, na Ásia Oriental; a Itália põe os pés na Abissínia; a Rússia completa suas conquistas na Ásia Central e penetra na Manchúria; a
Alemanha obtém as primeiras colônias na África e no Pacifico; e, por fim, os Estados Unidos entram na dança obtendo, com as Filipinas,
“interesses” na Ásia oriental. Esse período de dilaceramento febril da África e da Ásia que, a partir da guerra sino-japonesa de 1895, desencadeou
24
uma cadeia quase ininterrupta de guerras sangrentas, culminou na grande campanha da China e terminou com a guerra russo-japonesa de 1904 .

Exemplar da penetração imperialista era o caso turco. Na Turquia do


fim dos anos cinquenta operava o imperialismo inglês, que foi sendo
substituído pelo alemão exatamente a partir da construção da rede
ferroviária e da aquisição de todas as concessões para a gestão do tráfego e
a gestão dos edifícios e direitos de comércio. As enormes somas de capital
exportados à Turquia são o resultado do vínculo orgânico entre o Deutsche
Bank, as maiores empresas de aço da Alemanha e a expansão da dominação
política e militar alemã: “O custo dessa empresa colossal é, naturalmente,
fornecido pelo Deutsche Bank com um sistema muito extenso de dívida
pública, e assim o Estado turco torna-se responsável, por toda a eternidade,
pelos senhores Siemens, Cwinner , Helferich etc., como tinha sido antes em
25
relação ao capital inglês, ao francês e ao austríaco” .
A altíssima remuneração dos capitais investidos era complementada
pela submissão mais completa dos países em questão e os empréstimos
alemães, na verdade, constrangiam o Estado Turco a tomar mais e mais
somas para pagar a juros, mais ou menos como acontece hoje por meio do
Fundo Monetário Internacional. A rede ferroviária foi implantada em um
país árido, com uma condição econômica atrasadíssima, portanto o que não
foi arrecadado por meio do tráfego de mercadorias e pessoas teve que ser
coberto com uma “quilometragem de garantia” anual, com o qual o Estado
Turco se comprometeu a pagar o que estava faltando para se alcançar o
montante previsto pelos interesses econômicos.
Com essas operações foram alcançados dois resultados diversos: a economia rural da Ásia menor tornou-se objeto de um bem organizado sistema
de sujeição aos benefícios e lucros do capital bancário e industrial europeu, neste caso, particularmente, alemão. Com isso aumentaram as esferas
de interesses da Alemanha na Turquia, que deram a eles os motivos e as razões para uma proteção política da Turquia. Simultaneamente ao
aparato necessário para a exploração econômica dos camponeses, o governo turco se apresenta como uma ferramenta obediente, um vassalo da
26
política externa da Alemanha .

Aquilo que, portanto, distingue o imperialismo das velhas formas de


domínio colonial é o fato de que o imperialismo tem todo o interesse de que
o Estado subjugado continue a existir como entidade institucional
formalmente independente, guardando as aparências de um sujeito íntegro,
“livremente” submetido à hegemonia estrangeira, porque essa é a mais
completa garantia da manutenção da situação existente. Portanto,
sustentando essa política, o grupo dirigente socialdemocrata tinha a séria
responsabilidade de ter entregue à classe dominante uma nova grande
“massa de manobra”, para servir de “carne de canhão” em nome dos
interesses nacionais: o proletariado.
No movimento operário estava entranhada uma retórica chauvinista e
belicista, e se levava os trabalhadores a crer que havia alguma identidade
entre os interesses imperialistas do Reich e os das classes subalternas. Com
tal fim, todas as publicações de propaganda socialdemocratas haviam sido
colocadas a serviço da guerra, e unilateralmente se pretendia suprimir o
conflito entre capital e trabalho em nome da concórdia de classe e da
harmonia nacional.
Mas segundo a revolucionaria polonesa o conflito de classe não é uma
invenção socialdemocrata e não pode ser evitado e suprimido por decreto,
portanto se, de um lado, o partido e o sindicato procederam ao desarme da
classe trabalhadora, não o fizeram, entretanto, os capitalistas, os quais
ulteriormente agravaram os níveis de exploração e opressão das massas,
introduzindo em troca uma paz social que reforçava o seu domínio.
Para Rosa Luxemburgo o mundo do trabalho não deveria
identificar-se com nenhum campo militar, e tanto a vitória de um quanto a
de outro levaria igualmente ao irromper de um novo conflito mundial no
curso de poucos anos, porque a paz ainda não poderia reduzir as
contradições Interimperialistas entre as potências. A ideia de uma paz
“democrática e sem anexações”, com o desarmamento e a abolição da
diplomacia secreta, era absolutamente utópica enquanto continuassem a
existir as relações capitalistas de produção, assim, a verdadeira saída para o
movimento operário não se encontrava no terreno da diplomacia burguesa,
mas em decretar-se “guerra à guerra”.
Os votos dados pelo SPD para os créditos de guerra no
Reichstag, e o mesmo comportamento observado entre os trabalhistas
ingleses e os socialistas franceses em seus próprios países, marcaram a crise
irreversível da Segunda Internacional, ao lado da qual se desenvolve uma
tendência mais radical que no setembro de 2016 se reúne na Conferência
Internacional de Zimmerwald, onde Rosa Luxemburgo e Lenin lançam a
famosa palavra da ordem “transformar a guerra imperialista em guerra civil
para o socialismo”.
A denúncia do nacionalismo exasperado e da desumanização e a
destruição da civilização provocada pelo imperialismo levou Rosa
Luxemburgo a afirmar que a humanidade estava diante de uma bifurcação
que inevitavelmente teria conduzido ou ao socialismo ou à barbárie. Rosa
não teve o tempo de conhecer diretamente a objetivação dessa barbárie nas
ímpias ideologias fascistas, todavia, é exatamente na ideia de civilização
ocidental abordada por ela que devemos pesquisar para entender a origem
desse inédito fenômeno autoritário.
O fascismo representa um grande buraco negro na história europeia,
diante do qual muitos intelectuais não conseguem esconder o próprio
embaraço ideológico. Nesse sentido, o esquema logico clássico da
autodefesa ideológica na retorica de uma parte do mundo liberal consiste
em apresentar o fascismo como um fenômeno que nada tem a ver com o
álbum de família da burguesia europeia. Ao invés de estudar as
responsabilidades endógenas do colapso liberal diante da barbárie fascista,
o revisionismo histórico tende a considerar essa tragédia uma consequência
do fanatismo totalitário bolchevique, não o produto histórico do
colonialismo e do seu legado ideológico autoritário e racista de dominação
absoluta de uma civilidade (a ocidental) sobre as outras. Contrariamente a
essa narração, que considera o fascismo um parêntese irracional alheio que
interrompeu a paulatina progressão para a liberdade do velho continente, é
exatamente nas premissas coloniais da civilização ocidental que devemos
pesquisar as origens desse fenômeno.
O meu mestre, Domenico Losurdo, dedicou muitos estudos à crítica do
revisionismo histórico e à hagiografia do pensamento liberal, todavia, isso
nunca significou desconhecer os méritos e os pontos de força dessa tradição
filosófica, mas escolher o terreno real da história superando as multíplices
remoções e transfigurações que caracterizaram a sua narração apologética.
Assim, no livro Contra-história do liberalismo, ele mostrou que as três
nações consideradas o berço do moderno mundo liberal (Inglaterra,
Holanda e EUA) foram protagonistas da mais criminal obra de opressão da
liberdade individual e de extermínio da história da humanidade: o comercio
dos e escravos. O exemplo histórico mais brutal e integral de
desumanização e genocídio que o Ocidente impôs ao resto do mundo não
aconteceu apesar do liberalismo, mas contando com o apoio sincero dos
grandes nomes da intelectualidade liberal Smith, Calhoun, Lieber, Fletcher
e o mesmo Locke (dono de escravos e acionista da Royal African
Company). Os mesmos grandes pais da chamada “pátria da liberdade”
Washington, Madison e Jefferson (todos donos de escravos) foram também
responsáveis do primeiro antecedente histórico da solução final imposta às
seis nações de nativos americanos pelo Congresso dos EUA. Não
casualmente Hitler utilizou o exemplo da conquista do Oeste para legitimar
a sua ideia de espaço vital, e se inspirou exatamente na epopeia do “far
West” quando imaginou de reservar aos povos do leste europeu a mesma
sorte das tribos de nativos exterminadas pelos colonos norte-americanos. O
paradoxo maior do liberalismo, como sublinhou Losurdo, é que a
escravidão não foi um fenômeno que sobreviveu como rastro do passado
apesar das três grandes revoluções liberais, pelo contrário, essa pratica
desumana encontrou a sua máxima expansão exatamente depois dessas
grandes viradas históricas que por um lado afirmaram a universal dignidade
humana, mas, por outro, limitaram esse atributo de humanidade só aos
27
povos europeus .
A longa história do colonialismo, a academia onde o Ocidente
experimentou tanto a ideologia quanto a prática da dominação absoluta de
uma civilidade sobre as outras, fica totalmente omitida pelas principais
interpretações históricas liberais do fascismo. Em todas essas leituras, que
inevitavelmente acabam interpretando o fascismo e o comunismo como
irmãos gêmeos do mesmo totalitarismo, o movimento de Mussolini seria o
fruto do fanatismo ideológico desencadeado pela Revolução de outubro.
Completamente ocultada é a conexão entre a natural propensão colonialista
do capitalismo e as heranças ideológicas da mentalidade imperial nos
fermentos radicais do nacionalismo que favoreceram o surgimento do
fascismo. Limitar o estudo sobre as raízes do fascismo ao período entre
1914 e 1945 corresponde exatamente a essa necessidade ideológica. Pelo
contrário, para compreender o fenômeno fascista (além da tradição
colonial) é necessário enquadrá-lo historicamente, pois sem considerar as
profundas mudanças que marcam a economia, a organização social e a
política internacional entre o final do século XIX e a Primeira Guerra
Mundial, torna-se difícil expor racionalmente o que este movimento tem
representado.
Os processos de mundialização da economia não são um fenômeno
recente, mas uma tendência que atravessou em profundidade toda a fase de
expansão da economia desde a Revolução Industrial e, também, de
diferentes formas, as fases precedentes. A mundialização das relações
sociais e produtivas burguesas é uma tendência imanente à história dessa
classe intimamente revolucionária, desde a sua afirmação sobre a velha
sociedade aristocrático feudal.
A ocupação colonial e o direito à expropriação das terras dos povos
incivis, incapazes de frutificar as suas riquezas no sentido da civilização
europeia, encontraram várias formas de legitimação na filosofia da
liberdade, entre elas aquela do ícone mais venerado pela apologia liberal, o
último grande filosofo que justificou e defendeu a escravidão com absoluta
convicção: John Locke.
Na bíblia do liberalismo, O segundo tratado sobre o governo, o valor
supremo da defesa da vida, conectado aos princípios de liberdade,
independência e autonomia, implica o direito de dispor plenamente dos
bens que o indivíduo transforma com o seu trabalho. Segundo Locke, no
estado de natureza, a terra e os seus produtos são de propriedade comum de
todos os homens, todavia, o indivíduo assume na sua esfera individual todas
28
as coisas que transforma por meio do próprio trabalho .
A terra até quando fica abandonada produz poucos frutos, mas se
cultivada oferece aos homens os produtos essenciais à sobrevivência deles,
isso mesmo acontece com os outros bens que ele utiliza na vida cotidiana.
Cada indivíduo se especializa numa determinada atividade, transformando o
mundo em torno de si, portanto, a especialização e a divisão social do
trabalho seriam a origem da propriedade privada e da atividade econômica
do homem. O que Smith e Hegel definem como sociedade civil ou
econômica. A propriedade seria a medida da capacidade empreendedora, da
habilidade e da energia que cada indivíduo consegue exprimir, o uso da
moeda, por sua vez, estende a propriedade além dos limites do uso pessoal e
das necessidades individuais. Essa teoria é fundamento principal da teoria
econômica do liberalismo depois desenvolvida por Adam Smith. A
propriedade privada, exatamente porque alicerçada no trabalho, empenha
toda a natureza do indivíduo encontrando uma legitimação ético religiosa
como dever do homem de frutificar os bens que a natureza lhe oferece. Mas
nessa maneira Locke apoia e teoriza a legitimidade também da expansão
colonial inglesa e o direito de ocupar as terras que os povos “selvagens”,
ainda menores, não conseguem transformar em riqueza.
Com a expansão colonial e ainda mis com o industrialismo temos a
extensão das relações não apenas produtivas, mas também ideológicas, da
sociedade burguesa e a criação de um único mercado mundial no qual todos
os outros continentes tornam-se função subalterna do crescimento
econômico da Europa. Segundo Marx e Engels, na origem desse processo
encontramos a premissa histórica do desenvolvimento da produção das
manufaturas, que por sua vez levou ao esvaziamento progressivo da velha
sociedade corporativo-feudal que limitava o sistema produtivo e de troca e a
liberdade de iniciativa econômica. Um devir (acontecido entre 1400 e 1600)
estritamente legado à estação das grandes descobertas geográficas e, por
consequência, da revolução nos comércios mundiais gerada pelo afirmar-se
do colonialismo. Apesar dos meios protecionistas, que cada nação sempre
conservou, também nas fases mais avançadas da liberdade de troca,
universalizou-se o padrão da concorrência que submeteu o comercio
transformando todo os lucros em capital industrial. Isso determinou a
sempre mais rápida circulação e centralização dos capitais, destruindo as
velhas formas produtivas e completando a vitória das cidades sobre os
campos, ou seja do capital sobre a renda fundiária. Na Ideologia Alemã esta
etapa fundamental é definida como o pressuposto do terceiro período da
propriedade privada, aquele da revolução industrial com a qual, por efeito
da interdependência produtiva e comercial entre as nações, começa a
história mundial na qual todas as relações são finalizadas às exigências da
produção industrial.
No Manifesto do Partido Comunista, Marx e Engels descrevem ainda
com mais capacidade de síntese o processo de internacionalização da
produção, do consumo e do abastecimento das matérias-primas. Uma
condição de interdependência que determina novas exigências, envolvendo
também a produção imaterial, num processo que “das literaturas nacionais e
locais se desenvolve para uma única literatura mundial”:
Impelida pela necessidade de mercados sempre novos, a burguesia invade todo o globo. Necessita estabelecer-se em toda parte, explorar em toda
parte, criar vínculos em toda parte. Pela exploração do mercado mundial a burguesia imprime um caráter cosmopolita à produção e ao consumo
em todos os países. (...). Devido ao rápido aperfeiçoamento dos instrumentos de produção e ao constante progresso dos meios de comunicação, a
burguesia arrasta para a torrente da civilização mesmo as nações mais bárbaras. Os baixos preços de seus produtos são a artilharia pesada que
destrói todas as muralhas da China e obriga a capitularem os bárbaros mais tenazmente hostis aos estrangeiros. Sob pena de morte, ela obriga todas
as nações a adotarem o modo burguês de produção, constrange-as a abraçar o que ela chama civilização, isto é, a se tomarem burguesas. Em uma
29
palavra, cria um mundo à sua imagem e semelhança. .

No terceiro volume de O Capital está indicado com mais precisão


como o controle das colônias ‒ não só como destinação das mercadorias,
mas como lugar para onde exportar capitais e explorar mão de obra a baixo
custo ‒ apresenta-se como uma resposta à queda tendencial da taxa de
lucro. Marx assinala que a divisão dos países subdesenvolvidos entre as
potências capitalistas é uma tendência destinada a aumentar
exponencialmente e que ela não corresponde às velhas formas do
colonialismo original, mas assume uma função avançadíssima, voltada a
garantir uma nova remuneração dos capitais, indispensável para compensar
30
aquela queda tendencial . Esse processo, vislumbrado já por Marx, encontra
o seu máximo desenvolvimento na parte final do século XIX quando, como
escreveu Lenin, o capitalismo se transformou em imperialismo.
Entre 1860 e 1870 alcança-se o apogeu da livre concorrência. Com a
crise de 1873 começa a delinear-se o sistema dos cartéis. Depois, entre 1890
e 1903 (ano do começo de uma nova crise), observa-se um crescimento nos
negócios e nas trocas que levam a uma maior concentração e centralização
dos capitais. A organização por cartéis se torna a base de toda a vida
econômica, e não mais um fenômeno transitório ligado a um momento da
conjuntura. Ligada a essa evolução do modo de produção ocorre uma
crescente contraposição internacional dos interesses nacionais. A
interpretação científica do aumento da conflitualidade entre as grandes
potências capitalistas pelo domínio dos países coloniais até o estouro da
primeira guerra mundial, produz um violento enfrentamento político e
intelectual no começo do XX século. O primeiro trabalho que se refere às
transformações nas modalidades de domínio e expansão do capitalismo é
31
Imperialism, escrito no 1902 pelo economista John Atkinson Hobson ,
32
depois, no 1910 o intelectual marxista Rudolf Hilferding editou O capital
financeiro, um trabalho indispensável no percurso de análise sobre as
transformações nas relações entre capital bancário e produtivo
Em comparação com o colonialismo clássico, cuja finalidade estava na
exportação de mercadoria, o capitalismo monopolista tem a tarefa de
exportar capitais. A luta pelo controle do mercado mundial leva, portanto, a
divisão internacional do trabalho para a esfera de influência dos grupos
monopolistas e dos Estados que encarnam os interesses deles. Por isso a
consequência última e a natureza mesmo do imperialismo ficam no
dispositivo da guerra, porque, com a conclusão da divisão do planeta, uma
nova divisão do mesmo é o único modo para sair da estagnação e da crise
econômica. O desastre da Primeira Guerra Mundial onde foi experimentado
também o estado de exceção com a supressão das liberdades individuais e
coletivas, acontecimento em ausência do qual é impossível imaginar o
surgimento da ideologia fascista, foi a tradução concreta deste processo,
numa fase em que as contradições entre as potências capitalistas não são
mais passíveis de resolução.
A transformação do capitalismo em imperialismo tem duas
consequências fundamentais para o quadro que leva ao nascimento do
fascismo: 1) o processo de concentração e centralização dos capitais acaba
por destruir a função econômico-produtiva da pequena e média burguesia (a
base social do fascismo), que, como escreve depois Gramsci, torna-se
essencialmente uma classe política, especializada na intermediação, com
características parasitárias; 2) o conflito permanente, para o controle
mundial das áreas coloniais sob a influência das nações imperialistas, torna
a potência militar o instrumento fundamental do enfrentamento político ao
nível internacional e a guerra mesma uma exigência vital funcional à
evolução social e ao progresso nacional, com funções de palingênese na
ininterrupta luta entre “civilidade” e “incivilidade”.
Esse segundo elemento é central no desenvolvimento do nacionalismo
antes e depois da primeira guerra mundial, porque fornece a ferramenta
ideológica que determina os assuntos essenciais do fascismo. Um dos seus
conceitos chave é o do direito “ao espaço vital”, mas esse princípio não é
uma descoberta de Corradini, Mussolini ou Hitler, pelo contrário faz
organicamente parte da cultura política das potências ocidentais na idade do
imperialismo e, mais em geral, da ideologia do colonialismo, que considera
lícito dominar e explorar civilidades “inferiores” ou “primitivas”. O
racismo e a cientifica desumanização dos “incivis” são imanentes ao
colonialismo, que se serviu das teorias sobre a existência de uma hierarquia
da humanidade para legitimar o sistema criminal de dominação dos
ocidentais sobre os povos coloniais.
Num contexto marcado pela crise de hegemonia do velho liberalismo e
a radicalização social da chamada política de massa, os fascismos surgiram
reafirmando primeiramente o conceito básico do nacionalismo: “a Nação
acima de tudo”. No seu nacionalismo exasperado, todos os fascismos
sempre consideram o conflito social entre capital e trabalho (ponto
nevrálgico da história do movimento operário em todas as suas vertentes)
não só uma dialética destruidora dos interesses nacionais, mas um câncer
que precisa de ser extirpado com a violência devastadora da cruzada. Nesse
sentido, definir o fascismo uma ideologia de esquerda seria como dizer que
o satanismo é uma religião cristã.
Pelo contrário, a sua base ideológica se encontra antes de mais nada no
antissocialismo e no ódio contra o princípio do Internacionalismo dos
trabalhadores. Rosa Luxemburgo o compreendeu perfeitamente: numa fase
marcada pela crise orgânica do capitalismo mundial, no campo das lutas
hegemônicas, a dialética da política internacional teria se desenvolvida
através da contraposição entre nacionalismo e socialismo. Nesse sentido, já
no dezembro de 1914 um famoso artigo-manifesto que proclamava o
princípio da solidariedade Internacional:
Não! O terrível massacre reciproco de milhões de proletários a que assistimos atualmente com horror, essas orgias do imperialismo assassino que
ocorrem sob os nossos rótulos hipócritas de “pátria”, “civilização”, “liberdade”, “direito dos povos” e arrasam países e cidades, violentam a
33
civilização, espezinham a liberdade e o direito dos povos, constituem uma clara traição do socialismo .

Concluindo, a partir das reflexões da intelectual polonesa, podemos


concluir que o fascismo não pode ser expulsado do terreno real da história,
sendo reduzido à objetivação político-coletiva da “banalidade do mal”; o
fascismo não foi um parêntese irracional, um método, nem o fruto de uma
psicose que derrubou as defesas morais da civilidade europeia surgida fora
do seu corpo social e da sua cultura. O fascismo é um movimento social e
uma ideologia original historicamente determinada, o fruto de especificas
condições sociais e culturais funcionais a de terminadas exigências de
classe. Mas apesar das condições excepcionais que determinaram o seu
aparecimento, ligadas à crise de hegemonia das classes dirigentes
tradicionais na Europa da primeira metade do século XX, esse movimento
representou a tentativa de instaurar a ideologia tradicional do colonialismo
e do imperialismo dentro dos mesmos confins ocidentais. A sua verdadeira
raiz totalitária, portanto, se encontra nessa história que gerou a forma mais
extrema e orgânica de totalitarismo que a humanidade conheceu: a
escravidão.
Rosa Luxemburg entendeu perfeitamente e antecipadamente as
perspectivas desse devir; o primeiro conflito mundial não era um simples
furacão destinado a ser suplantado pelo céu azul e o sol da paz e da
harmonia universal, pelo contrário era apenas a madrugada de uma fase
histórica caraterizada pelas formas mais profundas e desumanas de
violência, brutalidade e dominação.
A guerra [escreveu] representa uma guinada para o mundo. É uma ilusão imaginar que precisamos apenas sobreviver, como um coelho esperando
34
o fim da tempestade debaixo de um arbusto para, em seguida, recair alegremente na velha rotina .

Nesse sentido, podemos concluir que o fascismo é o produto das


contradições objetivas e subjetivas das sociedades liberais em crise, mas
também um desenvolvimento político e cultural não alheio à brutal
civilização europeia que submeteu e escravizou os chamados “povos
primitivos”. Não reconhecer esses elos orgânicos recusando-se de
historicizar premissas e causas racionais desse fenômeno, inevitavelmente,
leva à utilização das categorias anti-históricas da teratologia, que pretendem
representar a realidade como resultado inexplicável da loucura, da
monstruosidade e da deformidade.
Tantas Rosas, um mesmo perfume
Pensamentos não morrem

35
Georgia Amitrano

Este é um texto, como sempre uma fala, um diálogo com amigos em


um encontro do meu Grupo de pesquisa. Um evento quase faraônico que
ocorre no mês de Outubro de 2019. Esse evento que busca congregar vários
pensamentos em grupos diferentes, emerge em um Brasil e um mundo
afogados em obscuridades, em um momento histórico de tentativas de
apagamentos das memórias. Neste imposto exílio do pensamento é que as
homenagens ocorrem e, sob o título Rosas e pensamentos Outros, trazemos
à tona rastros, verdades e ficções que pareciam perdidas.
Em um texto mentiroso, como todas as minhas escritas, digo
homenagear Rosa Luxemburgo. Todavia, nas mentiras entremeadas de
verdades, homenageio pessoas. Rosa é meu pano de fundo. E já que falo de
homenagens, tenho de escolher quais homenagens a fazer na hora de minha
fala.
Ora, sou uma mulher que crê que o feminino começa na mulher, seria
o originário da diferença radical com o homem. Todavia, para mim, esse
feminino não se fixa no sexo ou gênero. Ele se estende a tudo que fugiu e
foge à norma do falocentrismo. Assim sendo, trago em minha alma, como
os amigos antes de mim, neste encontro, o fizeram, muitos buquês de Rosas
para entregar. São muitas essas flores de cheiros e variadas cores...
E, como é necessário pedir licença à ancestralidade, entrego aqui
minhas primeiras Rosas. Que comecem as homenagens!!!!!
Como não dizer de minhas origens?
Minha avó Edith − mulher fechada, sisuda, austera −, que saiu, no que
reza lenda, ‘sozinha’ de Salvador, por volta de seus 17, para o Rio de
Janeiro, a Capital então do Brasil. Trabalhou na casa dos ditos padrinhos,
onde provavelmente fazia trabalho doméstico, trabalhou em casa de
crianças órfãs, casou-se e teve quatro filhos. Abandonada pelo marido,
costurou, lavou para fora e criou seus filhos. Minha bisavó Maria Amália,
de quem sei muito pouco. Mãe de vó Edith, era filha portugueses, casou-se
com um negro. Como toda boa lenda, diz-se que meu tataravô colocava
tábuas nas janelas para que as filhas não pudessem ter contato com
ninguém. E foi com preto e, muito jovem que essa mulher se casou.
Imagino a bagunça na família.
Minha mãe Dyrce, em plena década de 1960 vai morar com um
homem desquitado, meu pai. Sozinha com minha avó e os irmãos, ajudou a
criar a caçula, sustentou casa, ouviu muito do mundo, trabalhou até os 70 e
tantos anos e se encontra viva para ver o legado que deixou.
Peço licença ao meu legado baiano/carioca, Edith, Maria Amália e
Dyrce...
Mas sou uma carioca de tempero baiano, com pitadas fortes da Itália e
de Portugal, sou fruto da miscigenação de mulheres fortes, Vó Maria, a
minha avó portuguesa. Como eram minhas avós, austera, quieta e de olhar
profundo em suas cadeiras de rodas. Dona Ruth e Dona Angélica, minhas
tias, muita Italianas, de risadas largas, e que comandavam e dominavam
uma família inteira. Resta, todavia, nas primeiras Rosas, aquela que não é
ancestralidade, mas se foi muito cedo. Uma prima, de pouca convivência,
tanto pela idade quanto pelos rumos da vida, Anna Cândida, menina linda,
inteligente e bem afrontosa, uma mistura de minha família Italiana com o
lado pernambucano de seu pai
A estas mulheres fortes peço passagem...
E se rosas começam pela família é porque as entrego as mulheres das
minhas casa, e minha casa também é a acadêmica, que hoje atende pelo
nome de IFILO-UFU:
Para Ana Maria, a Rosa Vermelha que desbravou, por um longo tempo
sozinha, esses espaço dos homens.
Para Luciene, minha Rosa Amarela, linda e forte, como doçura de água
de rio, por vezes calma, outras com corredeiras.
Para Maria Socorro, essa Rosa Branca, mãe sem saber, ou sabendo.
Uma lutadora, amiga e companheira.
Para Fillipa, meu encontro acidental. Essa linda traz consigo uma força
e uma paz que me fazem sentir bem...Rosas que são Rosas.
Na figura de Bárbara, a ainda aluna, trago vários botões, os quais irão
desabrochar nesses femininos que compõe @s alun@s do meu Instituto.
Rosas para Dirce, minha coordenadora eterna, uma amiga. Uma mãe
de águas calmas e, por vezes, violentas, nunca vi, mas é o que dizem, e eu
acredito.
A essas mulheres, peço passagem também.
Ora, pelo que sei, o feminino não é mulher, é um olhar, um jeito de
fazer. Não está preso ao gênero, mas, antes, na força e na doçura de quem
tem amor para dar. Assim, minhas rosas são entregues aos homens que me
formaram, me formam e a quem tenho amor.
Meu pai, Jorge Amitrano, que não está mais entre nós, mas me ensinou
o valor da festa, da alegria e de manter a cabeça sempre elevada.
Claudio, meu irmão.
Meu eterno orientador Guilherme, um pai que me resta na Terra.
Alexandre, que ganha Rosas por ser quem é.
Rafael Cordeiro, Jairo, para esses entrego as rosas que sei que
encaminharão aos homens bons de meu Instituto.
Rafael Haddock-Lobo e Marcelo Rangel, meus amores. E, sem
palavras maiores, apenas sei que deveria lhes dar buquês e não apenas uma
flor.
Marcelo Moraes, meu guerreiro.
E muitos faltarão, mas as Rosas, sempre Rosas, lhes são entregues
também.
E no curso das homenagens, quero mais que homenagear, dedicar essa
fala a duas mulheres. E, como no dia da apresentação deste texto, as
lágrimas me vêm aos olhos.
Ora, aprendi na escola da vida que rosas tem cores e, pensando a quem
dedicar esse texto, diálogo ou homenagem, principalmente após as falas de
Rafael Haddock-Lobo, Marcelo Rangel, Marcelo Moraes e Dirce Solis,
entendi o que deveria fazer, ou melhor, sentir.
E quem são essas mulheres que não mais estão andando entre nós?
A primeira, é uma linda ruivinha que conheci faz uns vinte anos no GT
Filosofia Contemporânea. Essa menina foi falar de arte em outra dimensão
no dia 22 de setembro, Noeli Ramme, a ti dedico esse texto.
A outra mulher é aquela a quem me refiro como minha Dindinha. Uma
mulher violentada na loucura do mundo. Dayse era louca ou fora
enlouquecida, morre com 47 anos e se torna um corpo morto, justamente,
por ser ela mesma uma diferença última, radical e absoluta.
Não nego que Dindinha adoecera, mas a mulher física, casada com
artista plástico nunca se curvou às normas impostas. E, talvez, por essa
razão, por uma inteligência para fora dos costumes, lhe destituíram um
saber possível. Por vezes acusada de louca ou má, dela tenho maravilhosos
ensinamentos e lembranças. A ti, Dayse Contocani, dedico essa fala.
Comecemos...
A flor que chamamos de rosa se outro nome tivesse inda teria o
mesmo perfume [...] se outro nome que tivesses, ainda assim teria
a mesma perfeição tu tens agora.
36
- Chama-me somente de amor
Uma epígrafe desconfigurada de Romeu e Julieta e uma pergunta
provocativa. Por um lado, Rosas com outros nomes exalam o mesmo
perfume; por outro, a provocação dada na questão, ‘seria a filosofia
feminina? Dois problemas, uma única realidade: tantas verdades, muitas
mortes.
É portanto a partir destas duas observações que me dou a liberdade
poética e filosófica de construir meu texto. Um texto que emerge da minha
condição feminina enquanto outro originário nesse mundo falocêntrico. Um
Outro que se desvela na possibilidade de verificação de apagamentos,
execuções, tentativas de emudecimento. Esse é um outro feminino
filosófico. Sim, a filosofia tem Rosas, muitas e esquecidas no curso da
história, e ela tem seu poder feminino, execrada na sua feminilidade, como
se o feminino não pudesse filosofar...
A ambiguidade da sentença se impõe no fato de a filosofia poder ser
uma mulher!!!!
Ora, é diante desse contexto que faço aquilo que creio ser o meu
melhor dos mundos possíveis − seja na escrita, seja no discurso, na fala
deslocada −, minha vontade constante de apresentar e homenagear a
filosofia, nas suas mais variadas possibilidades. E, é no conceito de
homenagem, na hospitalidade que me encerra, que me apresento, nas
fraturas do meu ser, como boa e má, humana, ou não (?), acolhedora ou
hostil, bem como ser aquela que aponta o dedo dentro da ferida. É nesse
posicionamento deslocado que trago Rosa, trago a Rosa Luxemburgo.
Todavia essa Rosa vermelha não vem só, traz consigo, nas formas
diferenciadas da execução, a Rosa Marielle, sempre presente, a Rosa Mary
Wollstonecraft, a Rosa Olympe de Gouges, as Rosas cantoras do rádio
brasileiro, as Rosas escritoras, escultoras. Trago nas mãos as amantes
execradas e apagadas, que para poucos importa seus escritos filosóficos e
científicos, estas tantas Rosas Heloísas sempre predicadas a um possível
Abelardo.
Ora, entre preâmbulos ou começos, creio que não me convém aqui
falar da obra dessa Rosa, a Luxemburgo, mas obviamente, e rasteiramente,
esta parte de seu legado não será esquecido, pois, sendo feminina e
executada, está sempre presente. Há os limites do meu conhecimento e há
tantos outros importantes femininos na sua dedicação ao fazer filosófico
que não ouso escrever do que pouco sei.
De fato, para além da obra, me interessa a execução de Rosa. Sua
morte, a tentativa de seu apagamento. A execração de seu nome − seja na
lama que se joga em seu rosto (que no meu imaginário se encontra virada
com a face para o chão após um tiro na nuca), seja no desconforto ao se
dizer de seu pensamento ou de sua opção por uma liberdade sexual − se dá,
de fato, por ela, Rosa, não saber seu papel de mulher.
Interessa-me, assim, saber o porquê de as Rosas morrem...
E diante desta breve introdução das razões de se matarem as Rosas,
nas mais distintas formas de se matar alguém, é que a filosofia e o feminino
emergem como um reflexo a ser desvendado. Afinal, seria a filosofia
feminina? Respondo, ou tento responder a essa questão mais à frente.
Antes, porém, falemos das Rosas, e comecemos pela Vermelha, dentre
outras vermelhas que existem.
Rosa Luxemburgo Ou uma Rosa Vermelha
37
Escrevera Bertold Brecht ,
A Rosa vermelha agora também desapareceu.
Onde se encontra é desconhecido.
Porque ela aos pobres a verdade há dito
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Os ricos do mundo a extinguiram .
Ora, Rosa é assassinada por querer construir um Socialismo livre. Para
ela, “as massas devem aprender a exercer o poder no próprio exercício do
poder; não existe nenhuma outra forma de lhes ensinar essa arte”. Seu
legado político consiste na noção de que a vida pública ativa, fundada no
debate e na liberdade de expressão, é fundamental para o sucesso de
qualquer projeto revolucionário. Todavia, ao me deparar com sua execução,
sempre me vem à mente uma outra Rosa revolucionária. Nos livros de
história sobre a Revolução Francesa aparece a girondina Olympe de
Gouges, aquela que, em 3 de novembro de 1793, fora decapitada no auge
do terror francês. Há uma nota de sua morte, na qual se lê: “Olympe de
Gouges, nascida com uma imaginação exaltada, tomou o seu delírio por
uma inspiração da natureza: quis ser Homem de Estado [grifos meus].
Ontem a lei puniu esta conspiradora por ter esquecido as virtudes que
convêm ao seu sexo”. Obviamente (e me parece que o óbvio sempre tem de
ser reforçado para não tão poucos), estas mulheres foram mortas por
questões políticas, e sendo política o discurso, há muitas formas do
dizer/fazer político.
A Rosa polonesa vermelha é executada por uma série de questões que
envolvem o comunismo, a Rosa francesa, a que escrevera a Declaração
universal dos Direitos das Mulheres, é decapitada por não se enquadrar no
modelo jacobino; ambas, todavia, pecaram mais, muito mais que seus
discursos e escritos políticos, elas esqueceram sua condição de mulher.
Trocaram a casa, os filhos, o oikos, o doméstico pelo político, pela ideia de
uma liberdade igual ao daqueles que se encontram conceituadamente
homens. E o que resta disso é mais que uma Rosa Vermelha que não se
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sentia bela , é a mulher que escolhe ser sublime, e isso é muito para um
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universo onde o sublime é masculino ...
**** (Uma ironia neste parêntesis, que não é só parêntesis, que
abro aqui sobre Kant, mas poderia ser qualquer outro, ou pelo
menos certa maioria de filósofos) Lembremos, a beleza é atributo
feminino (como queria Kant − para quem somos o “belo sexo”,
estamos na grandiosa categoria do belo, sendo que a beleza
feminina não se ajusta com a profundidade do conhecimento −,
em Observações sobre o sentimento do belo e do sublime, nós
Mulheres estamos fadadas aos sentimentos piedosos de bondade e
compaixão. E, fazendo o bom uso destes atributos, nos
encontramos mais protegidas dos nossos demais atributos, tais
como a malícia e a ironia ou a sátira. Já os homens, por natureza,
estão destinados a tudo que é nobre e sublime. E sublime, para
41
Kant, possui um lugar mais elevado que o “belo” .
Mas quero voltar à Rosa, a vermelha, e deixar Kant de lado.
Em 15 de Janeiro de 1919, no calor da crise revolucionária que
permanecia aberta depois da revolução de novembro de 1918, que derrubou
o Kaiser, Rosa Luxemburgo, após várias coronhadas na cabeça, foi
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executada com um tiro na nuca. Ao seu lado estava Karl Liebknecht , que
merece suas honras, mas de quem não falarei. Não é o momento dele...
Rosa teve seu corpo lançado nas águas do canal Landwehr, este
somente foi resgatado em Março do mesmo ano. Li em algum lugar que
encontraram seu sapato próximo ao canal ou ao corpo de Karl. Não sei bem
a veracidade deste fato que narrarei, mas consta que seu sapato estava na
lama e dela, sem corpo (pois este fora jogado nas águas para desaparecer,
diferente do corpo de Karl que ficara exposto para ser encontrado), resta a
lama do sapato.
Rosa, Rosa, Rosa, não te comportaste como uma mulher deveria, és
como Jezabel!!!! Deliraste e quiseste ser homem da política, de teu corpo,
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nada, apenas a lama do sapato...
Rosa morre de muitos modos, pois é executada na incapacidade da
alteridade se concretizar. E, mais ainda, como a bela Medusa que é
enfeiada, assim a Rosa é descrita, feia, coxa, fora das escrituras, não sabia
nem seu lugar no feminismo... resta-lhe o sapato e nome na lama.
Mas pensamentos não morrem, e esta é só uma dentre tantas Rosas...
E é nesse compasso, ou descompasso, nesta necessidade de dragar um
lago, retirar corpos femininos putrefatos da lama dos canais, que
homenagear Rosa é homenagear Olympe ou Marielle, Nísia, Virgínia,
Hilda, Anais, Carolina de Jesus e tantas outras. E no jogo das palavras, na
ciranda, no jongo, em um Delta de vênus específico, no furor da ventania, a
brisa pode aplacar a dor. E, SIM, filosofia também se faz com poesia. E,
justamente por isso, minha Rosa Vermelha fala das Rosas que quiseram
apagar e esquecer...
Tantas Rosas, mesmo perfume!!!
E de Rosa à Marielle, ambas sempre presentes, vejo nos escritos da
primeira, a que quiseram deixar ser apenas lama de sapato, um pouco do
que quero dizer para continuar este texto e homenagear as Rosas e
Marielles, deixando-as sempre presentes. Diz a minha Rosa Vermelha em a
Revolução Russa:
Liberdade somente para os partidários do governo, somente para os membros de um partido – por mais numerosos que sejam –, não é liberdade.
Liberdade é sempre a liberdade de quem pensa de modo diferente. Não por fanatismo pela “justiça”, mas porque tudo quanto há de vivificante,
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salutar, purificador na liberdade política depende desse caráter essencial e deixa de ser eficaz quando a “liberdade” se torna privilégio .

E é sobre liberdade e execução dessas libertinas que meu texto, dentro


do texto de Rosa pretende chegar. Ser partícipe do feminino implica
execração. É a histeria, o non sense, a necessidade de emudecimento, o riso
cínico no canto dos lábios dos tantos cínicos que fingem não nos entender, e
que beiram ao ridículo. E, voltando-me a Kant (que parece me perseguir e
eu o profanar), “sapere aude”, ou melhor, eu, MULHER, ouso saber! E já
que falo e escrevo em português, liberdade e filosofia, para além de
andarem de mãos dadas, são palavras femininas e, sendo femininas,
predicam feminilidades. Em outras palavras, me remetendo a um texto
belíssimo de Deleuze e Guattari, O que é a Filosofia, lembro que filosofia
não é sabedoria ou conhecimento, é amor ao saber, philia. E amor, nas
possibilidades de Eros, não cabe como sentimento na filosofia dos
‘machos’, daqueles que mesmo executados em crueldades hediondas, ainda
têm seus corpos deixados para serem encontrado. Podem até ser jogados na
lama, mas quase nunca lhes resta apenas um sapato.
Como uma Sofia distópica de Rousseau, que deveria ser educada para
servir ao homem, as rupturas com esse educar implicam o medo do
efeminamento de uma sociedade. Todos os aspectos sensíveis são
predicados femininos, e predicados femininos são menores, pecaminosos,
fracos, frágeis. Mas amar é feminino, e feminino não é, nem nunca foi,
necessariamente ser mulher. E tudo que a filosofia é se dá no feminino, na
vontade de descobrir, de desvelar, de conhecer, de comer do fruto sempre
proibido... Eva ou Rosa, ou Olympe, ou os homens que escreveram
femininamente bem.
Derrida, então, parece gritar em altos brados, mas são gritos entre
sussurros, vozes que ecoam aos meus ouvidos, numa ausculta peculiar. O
deslocar como desconstrução, e, pervertendo ou profanando Derrida, a
desconstrução, a minha pelo menos, estaria no impossível e o impossível se
dá como, atravessando e transgredindo com Derrida, ‘aquelA’ que chega.
E no finalizar desse texto, caminhando para um ponto final, numa
curva cheia de pontos finais, tomo duas características débeis e frágeis
(ironia completa minha) desse feminino de tantas Rosas, a saber; a
hospitalidade e a responsabilidade (responsabilidade para certos atributos,
diriam alguns), esta última que não desenvolverei aqui.
A hospitalidade, como característica do feminino, emerge no
acolhimento, na abertura incondicional ao outro. Ora, este legado de
Lévinas me traz a ideia do quão radical é o conceito desde a sua origem.
Afinal, hospedamos o estrangeiro, mas dele sempre desconfiamos, e, na
hospitalidade, a hostilidade também não escapa. Um atributo interessante
para o feminino, hospitaleira, mas podendo ser sempre hostil.
Na verdade, prefiro o modo Lévinas e Derrida de ler essa
hospitalidade.
**** (Eu e meus parênteses, que não são parêntesis) Em Derrida
a hospitalidade não emerge como um problema ético específico,
um problema de direito ou uma questão política, mas como “a
eticidade propriamente dita, o todo e o princípio da ética”. O
feminino, assim, é acolhedor por excelência. E, como está em
Lévinas, é necessariamente associado à mulher este acolhimento
hospitaleiro. Derrida recupera as ligações levinasianas entre
feminino e alteridade para dizer que essa precedência do
acolhimento seria aquilo que Lévinas nomeia como a
feminilidade da mulher, a alteridade feminina. Nas palavras de
Lévinas, grifadas por Derrida:
A casa que funda a posse não é posse no mesmo sentido que as coisas móveis que ela pode recolher e guardar. Ela é possuída, porque ela é,
doravante, hospitaleira ao seu proprietário. O que nos remete à sua interioridade essencial e ao habitante que a habita antes de todo habitante, ao
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acolhedor por excelência, ao acolhedor em si – ao ser feminino .

Ora, o que funda é o feminino, este substantivo da língua grega


formado a partir do feminino do particípio presente do verbo “ser”, εἶναι,
einai, a substância, a ousia (οὐσία). O amor é atributo feminino, a
hospitalidade é feminina, a philia é feminina, a ousia é feminina. A casa é
feminina!
Tantas Rosas, sempre um mesmo perfume... E não adianta restar
apenas um sapato na lama, ou ossos de mãos e pés, tampouco apagamentos
imaginários; afinal, pensamentos não morrem. E como dizia o poeta, na
feminilidade de sua escritura, e na profanação feminina desta Rosa que aqui
escreve...
Muitos passarão, mas Rosas sempre passarinho
As Rosas estão presentes!!!!!!!
Capítulo II - Pétalas e poéticas
Dois naufrágios de Ulisses a ninguém
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Elisa de Magalhães

Inicio este texto pedindo licença, pedindo agô a Oxalá, que vem antes
de todos, èpa Babá. Peço agô também a meu Pai, Logum Edé, Loci Logum.
Peço agô, ainda a Iemanjá, pois que vou atravessar o mar, desde o
Mediterrâneo até o Brasil, Odoyá. Peço agô ainda a Exu, e que esse Orixá
possa me abrir os caminhos nessa longa travessia. Laroyê.
* * *
Na Odisseia, a viagem de Ulisses ou Odisseu para Ítaca, sua terra
natal, de volta da Guerra de Tróia que durou 10 anos, o herói grego coloca-
se à prova e enfrenta desafios quase intransponíveis. Para sair vivo deles,
Ulisses usa ardis os mais variados, na medida em não teria força física para
enfrentá-los de frente. Foram precisos subterfúgios e armadilhas para
ultrapassá-los um a um. A volta do herói é contada em 24 cantos no grande
poema homérico, que li na tradução de Trajano Vieira. Na orelha do livro,
assinada por Claude Calame, o helenista e antropólogo suíço alerta
Em contraste com o retorno de Agamênon, que termina no sangue conjugal em Micenas; diferentemente do retorno de Menelau, que conduz o
herói junto da bela Helena ao Egito, o itinerário de Ulisses assume um contorno etnográfico: confronto com seres no limite do humano, entre o
divino e o animal, jovens mulheres sedutoras e capciosas como Circe e Calipso, monstros canibais e antissociais como os Ciclopes e os Lestrigões,
numa geografia de fábula. Desenha-se assim, em contraste, por meio da interrogação, uma imagem da civilização dos homens; (CALAME, in
HOMERO, 2011)

A Odisseia é o livro que sucede a Ilíada. Diferentemente do primeiro,


que é considerado uma epopeia, a história do retorno de Ulisses, embora em
forma de poema, assemelha-se mais a um romance, assumindo Ulisses a
característica de um herói universal, ou como prefere Calame, “uma
imagem da civilização dos homens”. Em Dialética do Esclarecimento, no
primeiro excurso, sobre Ulisses, Theodor Adorno corrobora com essa visão
A viagem errante de Tróia a Ítaca é o caminho percorrido através dos mitos por um eu fisicamente muito fraco em face das forças da natureza e
que só vem a se formar na consciência de si. O mundo pré-histórico está secularizado no espaço que ele atravessa; os antigos demônios povoam a
margem distante e as ilhas do Mediterrâneo civilizado, forçados a retroceder à forma do rochedo e da caverna, de onde outrora emergiram no
pavor dos tempos primitivos. Mas as aventuras contemplam cada lugar com seu nome, e é a partir delas que se pode ter uma visão de conjunto e
racional do espaço. (ADORNO, p. 24)

De acordo com Adorno, o mito Ulisses, na epopeia Odisseia vai, aos


poucos, sendo destruído, na medida em que ele vai aderindo a uma razão
ordenadora, cada obstáculo o vai transformando em sujeito, ele vai se
tornando esclarecido, a mentira deliberada vai se tornando um método e
Ulisses vai se aproximando do processo civilizatório. “A astúcia, porém, é o
desafio que se tornou racional.”(ADORNO, p. 30). Desafiar o mito, é
expor-se e sucumbir a ele. É cumprir seu destino. Ulisses descobre uma
falha, uma lacuna que, mesmo entregando-se e cumprindo o destino do
mito, frustra-o, quebra esse contrato prévio, e é Ulisses quem derrota e mata
o mito. Assim acontece com a Sereias, episódio no qual o herói Ulisses,
premido pela curiosidade de ouvir o canto das sereias e pela inevitabilidade
do percurso a cumprir, faz-se amarrar no mastro de sua embarcação, tampa
os ouvidos de sua tripulação de modo a ficarem surdos, entrega-se ao prazer
da audição, mas não aos braços das semideusas: cumpre o destino de passar
por ali, mas frustra-o e isso mata as sereias.
Da mesma maneira, com o gigante ciclope Polifemo. Desta vez, por
perceber que seu nome, ao mesmo tempo que pode se referir a ele,
Oudisseus, também pode ser ninguém, Oudeis. Assim, depois que o gigante
come quase todos os seus companheiros, Ulisses se dá conta de que pode
salvar-se negando-se, fazendo-se desaparecer através da palavra.
Os dois actos contraditórios de Ulisses no encontro com Polifemo – sua obediência ao nome e seu repúdio dele – são, porém, mais uma vez a
mesma coisa. Ele faz profissão de si mesmo negando-se como Ninguém, ele salva a própria vida fazendo-se desaparecer. (ADORNO, 1985. p. 30-
31)

Para salvar-se, Ulisses ganha a confiança de Polifemo, dá vinho a ele,


dizendo que vinho vai muito bem com carne humana, como se já estivesse
conformado com o destino mitológico a cumprir, quando o gigante dorme
bêbado, fura seu único olho com uma madeira em brasa. Gritando de dor, o
gigante pede ajuda aos seus e quando perguntado quem fez aquilo, ele
responde: ninguém. E Ulisses, junto com alguns poucos companheiros
sobreviventes, escapa.
Não à toa, Ulisses está ardendo, junto com Diomede, em dupla chama
no oitavo círculo do Inferno em A Divina Comédia, de Dante Alighieri.
Dante quer saber onde Ulisses morreu, no que ele responde, no canto
XXVI:
[...] “Quando

decidi que de Circe me afastasse,


que um ano me enleou lá por Gaeta,
antes que Enéas assim a nomeasse,

nem de filho ternura, nem afeta


pena do velho pai, nem justo amor
que alegraria Penélope dileta,

em mim puderam vencer o fervor


que me impelia a conhecer o mundo,
e dos homens o vício e o valor;

e me atirei ao mar aberto e fundo,


com um só lenho e a pequena companha
que inda era o meu haver fido e jucundo.

De costa a costa fui até a Espanha,


até o Marrocos e a ilha dos sardos,
e outras que aquele mar à volta banha.

Éramos eles e eu, velhos e tardos


ao chegarmos do angusto estreito à frente,
onde Hércules ergueu os seus resguardos
para que o homem mais além não tente.
Já os mares de Sevilha transcendidos,
como os de Ceuta, à esquerda mão jazente;

‘Ó irmãos’, disse eu, ‘que por cem mil, vencidos,


perigos alcançastes o Ocidente;
a esta vigília dos nossos sentidos,

tão breve, que nos é remanescente,


não quereis recusar esta experiência
seguindo o Sol, de um mundo vão de gente.

Considerai a vossa procedência:


não fostes feitos para viver quais brutos,
mas para buscar virtude e sapiência.’

Meus companheiros fiz tão resolutos


pra viagem, com tão curta oração,
que não seriam mais dela devolutos.

Voltada a popa pra a manhã, já são


asas os nossos remos, na ousadia
do voo, apontando pra sinistra mão.

Do outro polo as estrelas toda via


agora à noite, enquanto, rebaixado,
do chão do mar o nosso não surgia.

Cinco vezes reaceso e cancelado


fora o lume que a lua de baixo banha,
depois do fundo passo ultrapassado,

quando surgiu-nos diante de uma montanha,


pela distância, escura, e alta tanto
que nunca eu conhecera outra tamanha.

Nossa alegria logo volveu-se em pranto,


que um redemoinho dela levantou,
e feriu o lenho num fronteiro canto.

Três vezes, co’a água toda, ele rodou;


na quarta, erguida a popa, foi arrojado,
proa abaixo, como a alguém agradou;

até que o mar sobre nós foi fechado”. (ALIGHIERI, 1998, p. 178-180)

Ulisses é condenado ao fogo do inferno justamente pela tentativa de


chegar ao ocidente, preterindo amores e filhos. É no limite da civilização
que sucumbe a embarcação de Ulisses e companheiros. Essa é a sua
condenação.
O poeta grego Kaváfis, fala de um outro Ulisses, ou toma um caminho
diferente de Calame, Adorno e Alighieri, em seu poema Ítaca. Nele Ulisses
não é herói, ele tem medo. Tanto medo que os Ciclopes, os Letrigões e
Poseidon são somente espectros que só aparecerão se convocados. Eles
vivem na alma do Ulisses anti-herói. Aqui não há indício de romance, nem
civilização ocidental. Kaváfis mostra que o lento retorno de Ulisses não é,
exatamente, o caminho do esclarecimento, mas é da ordem da experiência.
Ele diz:
Quando partires em viagem para Ítaca
faz votos para que seja longo o caminho,
pleno de aventuras, pleno de conhecimentos.
Os Lestrigões e os Cíclopes,
o feroz Poseidon, não os temas,
tais seres em teu caminho jamais encontrarás,
se teu pensamento é elevado, se rara
emoção aflora teu espírito e teu corpo.
Os Lestrigões e os Ciclopes,
o irascível Poseidon, não os encontrarás,
se não os leva em tua alma,
se tua alma não os ergue diante de ti

Faz votos que seja longo o caminho.


Que numerosas sejam as manhãs estivais,
nas quais, com que prazer, com que alegria,
entrarás em portos vistos pela primeira vez;
para em mercados fenícios
e adquire as belas mercadorias,
nácares e corais, âmbares e ébanos
e perfumes voluptuosos de toda espécie,
e a maior quantidade possível de perfumes;
vai a numerosas cidades egípcias,
aprende, aprende sem cessar dos instruídos.

Guarda sempre Ítaca em seu pensamento.


É teu destino aí chegar.
Mas não apresses absolutamente tua viagem.
É melhor que dure muitos anos
e que, já velho, ancores na ilha,
rico com tudo que ganhaste no caminho,
sem esperar que Ítaca te dê riqueza.
Ítaca deu-te a bela viagem.
Sem ela não te porias a caminho.
Nada mais tem a dar-te.

Embora a encontres pobre, Ítaca não te enganou.


Sábio assim como te tornaste, com tanta experiência,
já deves ter compreendido o que significam as Ítacas. (KAVÁFIS, 2006, p.101-103)

Em Ítaca não há nada, nem houve nada. O que houve foi sua viagem.
Kaváfis apresenta um Ulisses medroso, volúvel, aberto a todas as
experiências, que se porta diante da vida, não como herói, mas surpreso e
boquiaberto diante do mundo. Um acumulador de experiência.
Poderia pensar a mitologia em torno do herói Ulisses, a partir do
encontro com Nausicaa, ou a partir das mulheres que são fundamentais na
trajetória do herói da Odisseia. Náufrago, nu, sujo, ele é acolhido por
Nausicaa, já encantada por Atena, deusa que acompanha e protege Ulisses,
na costa da Esquéria, lar dos feácios. Aí, não só Nausicaa o acolhe, como o
veste para que possa chegar à cidade e ter com seu pai e pedir-lhe meios
para continuar seu retorno à Ítaca. Mas, ele só pode falar com o pai de
Nausicaa, se passar por Arete, sua mãe, e abraçar-lhe os joelhos. É a partir
da hospitalidade e do acolhimento que ele pode continuar empreendendo
seu retorno. Penso ser significativo demais esse gesto, bem como o papel de
todas as mulheres na Odisseia, desde Penélope. Todo o tempo, a mulher
trai, seduz, sim, mas sobretudo, acolhe, hospeda, ensina, protege, conduz.
Outro Ulisses, cujo nome é uma clara referência ao personagem de
Homero, professor de filosofia de Loreley em Uma Aprendizagem ou o
livro dos Prazeres, de Clarice Lispector, coloca a aluna numa espécie de
Odisseia até o entendimento. Logo no início de sua trajetória, ela se
reconhece num estado bicho, de “não entender”:
E era bom. “Não entender” era tão vasto que ultrapassava qualquer entender – entender era sempre limitado. Mas não entender não tinha fronteiras
e levava ao infinito, ao Deus. Não era um não entender como um simples de espírito. O bom era ter uma inteligência e não entender. Era uma
bênção estranha de ter a loucura sem ser doida. Era um desinteresse manso em relação às coisas ditas do intelecto, uma doçura de estupidez.
(LISPECTOR, 1982, p. 44)

A passagem de Loreley, a Lóri, pelo mar, a experiência e o prazer do


mergulho, foi fundamental para finalmente poder pensar: “Havia
experimentado alguma coisa que parecia redimir a condição humana,
embora ao mesmo tempo ficassem acentuados os estreitos limites dessa
condição.” (LISPECTOR, 1982, p. 150). Foi esse reconhecimento, ou esse
entendimento, como preferia Ulisses, que o levou a aceitar: “Você está
pronta, Lóri. Agora eu quero o que você é, e você o que eu sou.” Este
Ulisses acabava de se reconhecer como ninguém; enquanto Lóri
mergulhava na sua trajetória rumo ao conhecimento, ele naufragava mais
uma vez na sua condição Oudeis, ninguém, apenas sendo – já não tinha o
que ensinar: estava sem linguagem.
Como a reforçar a relação entre os dois Ulisses, eis que surge um
terceiro: quando o Ulisses de Homero chega em casa após 10 anos, é o
velho cão dele que o reconhece, mais ninguém. Talvez tenha sido por isso
que Clarice deu ao seu próprio cão, também, o nome de Ulisses –
“precisava amar uma criatura viva que me fizesse companhia”, aponta
Elizama Almeida, em texto para o site do IMS, no qual transcreve frase de
Clarice, reconhecendo no cão um estar sem linguagem: “Que inveja tenho
de você, Ulisses, porque você só fica sendo”. Embora o cão sendo sem
linguagem, ele e ela falavam a mesma língua, que somente os dois
entendiam: “É assim: dacoleba, tutiban, ziticoba, letuban. Joju leba, leba
jan? Tutiban leba, lebajan. Atotoquina, zefiram, Jetobabe? Jetoban. Isso
quer dizer uma coisa que nem o Imperador da China entenderia.”
Encerro mencionando um outro Ulisses, de Joyce, ao qual seguramente Clarice teve acesso, tanto por ser amiga do tradutor como do editor. Diz
ele, em certo trecho, quase ao fim do romance que: “À volta do mundo por uma esposa. Um bom número de histórias havia nesse particular tópico
(...). [Mas] Nunca a respeito da esposa fujona que retorna (...).” (JOYCE, 1966, p. 650)

BIBLIOGRAFIA
ADORNO, Theodor & HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento/Fragmentos Filosóficos – 1947. Tradução Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia – Inferno. Tradução Ítalo Eugênio Mauro. São Paulo, Ed. 34, 1998.

HOMERO. Odisseia. Tradução Trajano Vieira. São Paulo: Ed. 34, 2011.

JOYCE, James. Ulisses. Tradução Antonio Houaiss. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.

KAVÁFIS, Konstantinos. Poemas / Konstantinos Kaváfis. Tradução Ísis Borges Belchior da Fonseca. São Paulo: Ed. Odysseus, 2006.

LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

REFERÊNCIAS DA INTERNET
ALMEIDA, Elizama. https://claricelispectorims.com.br/ensaio/ulisses-um-pouco-neurotico/, setembro de 2017. Consultado em outubro de 2019.
Atravessamentos entre filosofia e literatura no pensamento da
desconstrução

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Suelen Carvalho

Minha pesquisa de mestrado gira em torno do problema de uma certa


ficcionalidade na sua relação com a escrita filosófica e a escrita literária, ou
seja, como a filosofia, ou qual filosofia, performatiza uma cena de
ficcionalidade ou simplesmente a renega. Por isso, a partir da leitura de
Essa estranha instituição chamada literatura, de Jacques Derrida, vou
acompanhar aqui como a literatura se apresentou ao filósofo da
desconstrução como abertura ao questionamento da metafísica. E aqui os
polos opositores em jogo são verdade e mentira, filosofia e literatura.
Parto então de uma das respostas de Derrida quase ao final da
entrevista conferida a Derek Attridge, em 1989, na Califórnia, que entrou
na coletânea de textos Acts of Literature e, em 2014, teve sua tradução
brasileira publicada aqui. Ao refletir sobre o elo complicado, mas ainda sim
uma ligação solidária entre a história da literatura e a tradição metafísica,
Derrida aponta para uma distinção que irrefletidamente somos levados a
48
considerar, a distinção entre ‘vida real’ e a outra . Qual seria essa outra
vida, que não é apreendida como a “real”?
Refletir sobre essa diferença, esse ato de afastamento entre uma e
outra, no espaço da literatura e da filosofia, pode permitir, de certa maneira,
a aproximação de uma compreensão da ficcionalidade que atravessa a
escrita e seus restos.
Quando penso em ficção, estou no corpo da vida, entre a vida
enquanto tal e o “como se” dessa vida. Não entraria em um jogo do falso
como oposto da verdade, da mentira perversa, do engano inescrupuloso que
desconsidera a existência de outro. Trata-se de uma outra, outra vida que é
também vida, outra “vida real” entre tantas também reais. De certo modo,
naquilo da vida onde está tanto o literário, quanto o filosófico, naquilo do
corpo de quem escreve, no corpo da escrita, no texto, no espaço que dá
passagem ao autobiográfico, o singular, o iterável.
Impossível não ouvir aqui ecos de Verdade e Mentira no sentido
extramoral, de Nietzsche, sobre o insurgir da metáfora, da língua e da
razão, no qual descortina-se o espaço de passagem da ficcionalidade da
linguagem entre o impulso de verdade, do qual o ser humano não pode
renunciar, e o dar nome ao que se manifesta na vida. Mesmo no apagamento
deste ato de linguagem, entre o impulso nervoso, a palavra, o nome e a
coisa, resta um vinco de nada que foi dobrado e redobrado, que eu ouso
pensar como espaço de atravessamento da ficção.
Ao se tratar de literatura, e sua estranheza, no pensamento da
desconstrução, busco esse vinco, esse espaço de atravessamento na redobra
da redobra, nos atravessamentos de marcas e traços, o vinco no vinco que
esfacela o próprio vinco. Para Derrida, a literatura como experiência de
aniquilamento do nada.
É essa experiência de aniquilação do nada, com o nome de literatura, que interessa o nosso desejo. Experiência do Ser, nada mais, nada menos, à
49
beira do metafísico [au bord du métaphysique], a literatura talvez se mantenha à beira de tudo, quase mais além de tudo, inclusive de si própria .

Aniquilar o nada é a questão filosófica da literatura para Derrida. A


literatura, que ao mesmo tempo institucional e selvagem, ao mesmo tempo
subversiva e conservadora, funda e suspende a instituição, do nada cria algo
que conta, relata, narra, redobrando em labirintos aquele impulso
metafórico “original” que insurge atravessado, sem princípio que possa ser
capturado. A literariedade que, de certa maneira, constitui a experiência do
Ser, a ficção do sujeito, a ficção da assinatura, a ficção no como se escreve,
à beira do metafísico.
Há uma dominação, uma dominante, um modelo metafísico, e então há contraforças que ameaçam ou minam essa autoridade. Essas forças de
50
“ruína” não são negativas, participando da força produtiva ou instituidora daquilo mesmo que elas parecem estar atormentando.

Nesse trecho Derrida aponta na escrita a morada desse tormento,


dessas contraforças, o estranhamento, ao mesmo tempo interessante, a coisa
mais interessante do mundo, porque o como se escreve literatura pode ser
mais desestabilizador aos pressupostos metafísicos que textos literários e
filosóficos que questionam de forma mais severa, mais temática e objetiva,
a metafísica. Entra a questão do estilo, a questão do como se escreve.
Nesse sentido, no atravessamento entre filosofia e literatura habita o
abalo da autoridade e pertinência da questão “o que é”, tão cara à filosofia,
que faz estremecer “todos os regimes associados da essência ou da
verdade”. A literatura é sendo o abalo, mesmo que vários pressupostos
metafísicos habitem várias formas de literatura, de linguagem, gramática e
cultura, “o ser ou estar-suspenso da literatura neutraliza o pressuposto que
51
ele comporta ”, se mantem vinco e à beira.
Esse poder neutralizador, que não remete aqui a um desejo de
neutralidade ou universalidade da escrita, dependente e independente, é tão
dúbio, ambíguo e contraditório quanto o traço de ficcionalidade que traz
consigo. Somos mantidos no estranhamento. É assim que Derrida se
aproxima da literatura, no pasmo. À primeira vista, a literatura se apresenta
instituição tão constitutiva de cânone, história e hierarquia quanto a
filosofia, porém causa um certo assombro, devido a fluidez de suas leis. “A
52
lei da literatura tende, em princípio, desafiar ou suspender a lei” , escreve
Derrida.
É tendo em vista esta estrutura paradoxal da literatura, tudo dizer e
tudo calar, essa instituição sem instituição, dessa coisa que interpõe o que
se faz memória, experiência, acontecimento e singularidade, que vou buscar
brechas de leitura sobre o traço de ficcionalidade que, a partir do
pensamento da desconstrução, atravessaria toda escrita, seja literária ou
filosófica, seja de qualquer gênero.
É também ao pensar o traço ficcional de toda escrita, ecoando ainda a
metaforicidade nietzschiana, que pretendo refletir sobre as fronteiras, ora
deslocadas, ora apartadas, entre filosofia e literatura. Em Essa estranha
instituição chamada literatura, Derrida conta que escreve na tentativa de
não renunciar nem uma, nem outra, movido por um desejo
“autobiográfico”. O termo é usado no esforço de adequação para dar nome
a algo que atravessa esse espaço - mais uma vez - estranho entre filosofia e
literatura, que permanece enigmático e em aberto.
Derrida conta que em sua experiência de escrita pairam três perguntas:
quem sou eu? Quem é esse eu? O que está acontecendo? Ele afirma que seu
sonho adolescente era que as respostas a essas questões fossem seladas em
sua própria assinatura, “na verdade como uma assinatura, na própria forma
53
de selo” . Suas primeiras leituras eram diários, confissões, textos em
primeira pessoa, tais como os de Nietzsche, “o filósofo que fala em
primeira pessoa, ao passo que multiplica nomes próprios, máscaras e
54
assinaturas.”
Talvez o autobiográfico acene justamente para o que pretendo discutir
na minha pesquisa, ou seja, a escrita tanto literária quanto filosófica terá
sempre a marca de uma singularidade, de uma assinatura, do corpo de quem
escreve, do lugar de onde se escreve, do tempo em que se escreve: a
questão do estilo, do como, da performativa da escrita.
Esse traço de singularidade, o umbigo-marca do vínculo entre escrita e
quem assina, faz do acontecimento escrita, aquilo que interceptaria dentro
de si, ao mesmo tempo, o arquivo do “real” e da “ficção”. Nesse sentido,
Derrida aponta para as dificuldades “não em discernir, mas em separar a
55
narrativa histórica, a ficção literária e a reflexão filosófica” imprimindo o
tema da totalidade, a literatura como espaço do “dizer tudo”, no sentido de
dizer qualquer coisa ou de dizer todo e tudo o necessário.
Dizer tudo é, sem dúvida, reunir, por meio da tradução, todas as figuras uma nas outras, totalizar formalizando; mas dizer tudo é também transpor
[franchir] os interditos. É liberar-se [s’affranchir] em todos os campos nos quais a lei se impõe como lei. A lei da literatura tende, em princípio,
desafiar ou suspender a lei. Desse modo, ela permite pensar a essência da lei na experiência do “tudo por dizer”. É uma instituição que tende a
56
extrapolar [déborder] a instituição .

Talvez seja nesse extrapolamento que se irrompa uma certa


ficcionalidade, podemos sim dizer que na escrita tudo pode ser criado, tudo
pode passar a existir. “O espaço da literatura não é somente o de uma ficção
instituída, mas também o de uma instituição fictícia, a qual, em princípio,
57
permite dizer tudo” .
Na possibilidade de pensar o impensável, de pensar o impossível e
assim entrever o invisível, a ficção seria o muro quase imperceptível que
atravessaria a relação com o outro, o que é todo outro, com aquela outra
vida que mencionei no início. “Rapidamente me interessei tanto por uma
forma de literatura que carregava uma questão sobre a literatura, quanto
por um tipo filosófico de atividade que interroga a relação entre fala e
58
escrita.”
O que é mais interessante para Derrida na literatura não é o exercício
da invenção, da leitura de romances e contos simplesmente. Seu interesse
está “na possibilidade da ficção, na ficcionalidade”, no desejo de analisar
como essa ficcionalidade se dá no jogo da escrita e seus movimentos que
criam a língua na língua. Tal necessidade irreprimível não passa sem abrir
espaços, criar moradas e deixar rastros que vão perturbar tanto a língua
quanto a linguagem em toda escrita, inclusive a filosófica. “Gosto de uma
certa prática da ficção, a intrusão de um simulacro eficiente ou de um
59
distúrbio na escrita filosófica.”

BIBLIOGRAFIA
DERRIDA, Jacques. Demorar. Maurice Blanchot. Tradução de Flavia Trocoli e Carla Rodrigues. Florianópolis, SC: Edusc, 2015.

DERRIDA, Jacques. “Che cos`é la poesia?”. Trad. Tatiana Rios e Marcos Siscar. In: Inimigo Rumor. n. 10. Rio de Janeiro: 7 Letras, maio 2001.

DERRIDA, Jacques. Essa estranha instituição chamada literatura. Tradução: Marileide Dias Esqueda. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.

DERRIDA, Jacques. Gramatologia. Tradução: Miriam Chnaiderman & Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Perspectiva, 2006.

DERRIDA, Jacques. Margens da Filosofia. Tradução: Joaquim Torres Costa & António M. Magalhães. Campinas: Papirus, 1991, p. 249 – 313.

DERRIDA, Jacques. Nietzsche e a Máquina. In: “Revista Trágica: estudos sobre Nietzsche”, v. 9, nº 2, pp. 94-134. Tradução: Guilherme Cadaval & Rafael Haddock Lobo, 2016.

HADDOCK-LOBO, Rafael. Experiências abissais, ou, Sobre as condições de impossibilidade do real. Rio de Janeiro: Via Verita, 2019.

HADDOCK-LOBO, Rafael. Para um pensamento úmido: a filosofia a partir de Jacques Derrida. Rio de Janeiro: Nau: Ed. PUC-Rio, 2011.
NIETZSCHE, Friedrich. Sobre verdade e mentira. Tradução Fernando de Moraes Barros. São Paulo, SP: 2008.
O testemunho do desenho: uma cortesia dos cegos

60
Fransuelen Geremias Silva

Testemunhar sem falar


Estamos diante do quatro O par de sapatos (1886), de Vincent Van
Gogh, o que ele testemunha para o nosso olhar? Talvez a verdade. A
verdade da pintura está aí, mas Vincent Van Gogh pintou o par de sapatos e
foi embora, de modo que resta aí uma verdade, sem que se possa dar
testemunho dessa verdade. E, por isso, o talvez (DUQUE-ESTRADA,
2006). Um talvez que indica que tudo poderia ser de outro modo já que não
há nada que testemunhe essa verdade ou a fundamente tal como ela envolve
a pintura. Assim, falamos de um talvez que não se refere a uma dúvida ou
especulação, ao contrário, um talvez como reconhecimento da
impossibilidade de se atingir a verdade que, sendo impossível, se suspende
no próprio acontecimento.
Tais quase-afirmativas já anunciam um pensamento desconstrutivo que
aqui pretendemos falar e o desejo de não pensar mais a verdade como
adequação – sujeito e objeto - ou desvelamento daquilo que se mostra na
pintura - como Shapiro e Heidegger interpretaram o par de sapatos de Van
Gogh. Para Derrida, a história da metafísica ocidental não considerou
suficientemente outras instâncias que escapam ao significado e ao desígnio
(aquilo que o autor ou a obra almeja). Nesse passo, a desconstrução conduz
o testemunho da imagem àquilo que fora deixado de lado, na história da
filosofia, ou seja, ao insignificante, ao invisível, ao desenho, ao rastro
inscrito, que não aparece, apenas acena (SERRA, 2015), constituindo-se no
testemunho da imagem. Derrida contrapõe à primazia da luz e da
visibilidade uma certa condição de cegueira daquele que testemunha o
visível da obra, já que aquele que testemunha experimenta um
acontecimento em direção a (sob o desejo de) uma verdade que, todavia,
não pode ser alcançada e, como tal, não pode ser restituída.
Colocar esse privilégio em questão nas artes ditas espaciais, fazendo
referência àquilo que tradicionalmente se chama de artes visuais, mostra
uma necessidade de pensar e falar de outra maneira sobre o testemunho da
verdade na pintura. Por isso, Derrida escolhe falar do desenho (traço) e não
da pintura (cor e forma). Tal opção decorre do desejo de pensar a imagem a
partir da noção de rastro, um rastro a ser compreendido como o percurso
por um conjunto de camadas sobre o traço, de modo a caracterizar aquilo
61
que Derrida chamou de uma experiência da différance . No caso do
desenho, essa é uma experiência lida nem com o inteligível nem com o
sensível, como veremos.
Na desconstrução, a pintura e o desenho são interessantes para pensar
não apenas o privilégio dado ao olhar pela história da filosofia, mas também
para deslocar a ideia de que a desconstrução se confina à análise do texto
discursivo. Na verdade, a desconstrução é, também, desconstrução do e no
discurso. Mas seria um equívoco limitar a desconstrução ao campo
discursivo, na medida em que a desconstrução se volta para todo o
centramento da razão, construído pela metafísica, ao longo da história da
filosofia, aquilo a que Derrida denomina logocentrismo (centramento da
62
razão que, na metafísica, é inseparável da phoné ). Nesse caso, se ao falar
das artes ditas visuais, que se apresentam como silenciosas, a desconstrução
atuaria sempre no entre dos seus mutismos e no discurso que provocamos
nelas.
Em Pensar em não ver (2012, p. 27), Derrida nos lembra que o fato de
uma obra de arte espacial não falar pode ser compreendido sob duas
perspectivas, a saber, como algo completamente estranho às palavras que,
dessa forma, perpassa por um desejo de resistir contra a autoridade e a
hegemonia discursiva. E, por outro lado, o outro lado da mesma moeda, seu
mutismo absoluto respinga na experiência que os seres falantes têm dessas
obras silenciosas, recebendo-as sempre como um discurso em potencial,
como se as obras fossem cheias de discursos virtuais, tão ou mais
autoritários que a linguagem discursiva. Assim, pode-se dizer que o
testemunho da pintura ou do desenho só pode ocorrer dentro de um
espaçamento que abarca o silêncio singular da obra e o gesto de provocação
que fazemos para que ela diga sempre algo a mais.
Por esta razão, é possível entender que a pintura (estranha às palavras,
em um primeiro momento) é capaz de testemunhar no seu próprio
63
espaçamento enquanto obra, que, no seu acontecimento temporal, difere
do espaço e demora enquanto obra, remetendo sempre a outros elementos.
Quando falamos de espaçamento, fazemos referência à preferência de
Derrida (2012) em pensar a pintura e o desenho como “artes espaciais” e
não visuais o que, consequentemente, implica em compreender o
testemunho da pintura sob duas perspectivas, de um modo econômico e
estratégico.
Primeiro, ao falar de “artes espaciais”, a testemunha da pintura ou do
desenho não seria mais somente aquela que viu com seus próprios olhos, já
que espaço não é necessariamente aquilo que é visto, como falaremos mais
adiante. Segundo, implicaria em descontruir a polaridade entre imagem e
linguagem discursiva, deslocamento já enunciado agora há pouco, uma vez
que é possível reconhecer algum discurso, em algum lugar, nas artes
espaciais, porque, mesmo que não haja nenhum discurso explícito, o efeito
do espaçamento da obra já implica uma textura em uma rede de diferenças
e referências que lhe dá uma estrutura testemunhal (DERRIDA, 2012a,
p.29).
Em Demorar: Maurice Blanchot (2015), Derrida nos lembra que o
testemunho é um ato performativo por meio do qual se compromete a
alguma coisa, por meio do qual se confirma de um modo performativo que
se fez algo, “que me aconteceu, a mim, só a mim, o segredo absoluto do que
estive em posição de viver, ver, entender, tocar, sentir e ressentir”
(DERRIDA, 2015, p.52). Falo de um ato de testemunhar que não se
contenta apenas a narrar uma informação, a descrever, a constatar - isso ele
faz também-, mas falo de um ato performativo.
Uma testemunha não só narra algo perante o tribunal, ela também se
engaja naquilo que diz, produz algo, recorre a sua responsabilidade de dizer
o instante e a instância do seu lugar (no tribunal, isso ocorre através de um
juramento) para declara a verdade, de modo que tal verdade não é mais algo
dado antecipadamente, sobre o qual se trataria apenas de reproduzir. Talvez
por isso o ato performativo de testemunhar é da ordem da invenção e, por
isso, a testemunha clama pela crença na verdade do seu testemunho, pois
foi a única a ter visto, tocado, sentido a singularidade de um momento.
Testemunhar é sempre tornar pública a experiência singular – ora não há
obra de arte particular. A pintura ou o desenho podem não narrar, em um
primeiro momento, uma história discursiva, mas eles se oferecem como
64
testemunhos de acontecimentos , com um desejo de tornar público tudo
aquilo que resta na pintura no seu momento presente:
A assinatura não deve ser confundida nem com o nome do autor, com o patronímico do autor, nem com o tipo de obra, pois não é nada além do
acontecimento da obra em si, na medida em que ela atesta de uma certa maneira (...) o fato de que alguém fez isso, e é isso que resta. O autor está
morto – não sabemos nem mesmo quem ele ou ela é- mas isso resta. (DERRIDA, 2012a, p.35)
Derrida ainda nos lembra que apesar de termos a impressão de que
essa assinatura é de iniciativa dela ou dele, artista, tal assinatura já é
“produzida pelo futuro perfeito da contra-assinatura, que terá de vir assinar
aquela assinatura”. (DERRIDA, 2012a, p.37). Assim, quem assina a obra se
lança a dar testemunho a um “outro” atraído por uma paixão inseparável de
tudo confessar, de tudo tornar público, “de tudo dizer ao outro e de se
identificar com tudo, com todo o outro, abrindo assim novos problemas de
responsabilidade diante da lei e para além do direito estatal” (DERRIDA,
2015, p.37). Desse modo, quem contra-assina (um outro), expressa todo o
desejo de ter acesso a essa confissão, criada e impossível de ser alcançada.
Talvez, por isso, o testemunho seja sempre uma questão relacionada à
verdade, mais precisamente à veracidade daquele que se lança ao outro num
desejo de tudo confessar ou da obra em questão em repetir uma coisa ou
alguém no seu instante singular:
Dizendo: Juro dizer a verdade lá onde fui o único a ver ou a entender, e onde sou o único a poder declarar, é verdade na medida em que só importa
o meu lugar, nesse instante, teria visto ou entendido ou tocado a mesma coisa, e poderia repetir exemplarmente, universalmente, a verdade de meu
testemunho. A exemplaridade do “instante” o que torna uma “instância”, se é que me entendem, é a sua singularidade, como toda exemplaridade,
singular e universal. (DERRIDA, 2015, p. 50)

Mas se testemunhar implica repetir uma coisa, a repetir um instante de


algo, Derrida nos lembra que esse instante está para fora do instante daquilo
que se testemunha. O acontecimento é indivisível e resiste à divisão, mas o
testemunho exige a divisão do acontecimento. E no momento em que o
testemunho é divisível, ele não é mais confiável, não tem mais o valor que a
atestação pretende de maneira absoluta. Nesse passo, se o testemunho
reivindica dar testemunho “em verdade, da verdade, para verdade” (en
vérité de la vérité, pour la vérité), o pensamento de Derrida rompe com a
primazia de um testemunho da verdade como adequação ou a percepção das
coisas como si, pois reconhece que “se é um testemunho, já é uma
repetição, ao menos uma receptibilidade, mais de uma vez, mais de um
instante em um instante[...] Ele está sempre na iminência de se dividir, de
onde vem o problema da idealização”(DERRIDA, 2015, p.50).
Desde a repetição, daquilo que habita o interior do testemunho, este já
está afetado pela virtualização, pela desaparição e invisibilidade, por isso,
atua como uma certa experiência de cegueira, no sentindo de
impossibilidade de apreender algo ou de situar algo já ocorrido. Dessa
forma, como lembra Alice Serra (2015), o testemunho se instaura menos
por uma vinculação direta (com algo, alguém ou a verdade) e tanto mais por
instaurar uma cena que, por alguma circunstância ou contexto, atua como
testemunho. Cabe ressaltar, todavia, que o testemunho não se restringe
apenas àquele ato, já que o testemunho sempre atua na condição de rastro e
remissão a outros.
Rastro e cegueira no testemunho
Derrida em Pensar em não ver – escritos sobre as artes do visível
(1979-2004) demostra um grande interesse na maneira pela qual a história
da metafísica ocidental, de modo bastante insistente, concebeu uma certa
65
autoridade no olhar, na visão ou na visibilidade , até mesmo uma relação
entre o “saber” e o “ver” (DERRIDA, 2012c, p. 171) o que,
consequentemente, deu uma certa autoridade à testemunha, que foi vista
como capaz de desvelar a verdade ou de adequar sua percepção à coisa, a
partir do que viu, tocou e sentiu:
É em meio a essa situação que eu me debatia no momento em que acreditei (...) que o que dominava o logos ocidental, a filosofia, os discursos
ocidentais, a cultura ocidental, especialmente sua forma filosófica, era precisamente a visão, a referência ao menos metafórica ao visual. (...). O
que chamamos de intuição, intueri, significa ver, o intuicionismo é uma teoria do ver imediato. O valor de fenômeno (phainesthai) é o que brilha,
o que se vê, trata-se ainda de um privilégio do visível. O valor de evidência, o valor de clareza, até mesmo o valor de verdade, a aletheia ou o
desvelamento é a não dissimulação, o que se mostra e que estava escondido, é o desocultado, o desmascarado. (...) E mesmo a palavra “teoria”,
theorein, é “olhar”. A teoria da contemplação, o privilégio do teorético é um privilégio da visão; portanto esse privilégio da ótica foi dominante,
(...) acredito que ele dominou de fato toda a história da metafísica. (DERRIDA, 2012b, p. 81).

Portanto, esse modelo ótico perpassado pela evidência e pelo olhar


remete muito precisamente ao privilégio dado apenas a uma das funções
66
vitais dos olhos : a de ver, de ver vir, isto é, de nos proteger de tudo aquilo
que vem em nossa direção. Mas Derrida também nos lembra que, muito
frequentemente, tal privilégio é também transbordado para privilégio dado
às mãos, usadas para precipitar e antecipar o que está diante de nós, “De
Platão a Husserl, os valores, digamos, oculares ou ópticos [...] isto é, os
valores transidos de luz, estavam a serviço do que chamo de [...] uma
figuralidade que privilegia o tocar, o contato” (DERRIDA, 2012b, p.84).
Ora esse desejo pela percepção visual, o olho que intui, ou pela
apreensão, mão que pega sem distância nenhuma entre o tocante e o tocado,
aquele contato direto (le toucher) ou aquelas mãos que antecipam o que
vem em nossa direção, reflete na própria estrutura conceitual que a
filosofia Ocidental sempre buscou fundamentar. Uma filosofia que, ao se
estruturar dentro de uma arquitetura conceitual, desejou a repetição da coisa
como o mesmo, desejou apreender a coisa e, até mesmo, acreditou na
restituição da ideia ou coisa, seja presentificando-a ou (re)presetificando-a
67
(a pensar na fenomenologia ). E esse desejo, obviamente, é resultado da
própria valorização da presença (sejam os estados mentais, de Descartes, ou
os atos intuitos, de Husserl, ou a presença do mundo material, dos
empiristas) dada pela filosofia Ocidental.
68
Tal autoridade ocular manifesta-se na abordagem testemunhal da
pintura, ou melhor, do desenho - já esse é o nosso tema - por exemplo, a
partir do momento que se crê na possibilidade da obra de arte testemunhar
através daquilo que ela mostra, que dá a ver, que os olhos dão a ver. É o que
ocorre quando, em um processo interpretativo, busca-se adequar o desenho
a algo ou alguém ou quando se utiliza do desenho visível para desvelar uma
verdade da obra, como Derrida demonstrou em Restituições, último capítulo
de A verdade em pintura (2005), texto dedicado às interpretações de
Schapiro e de Heidegger sobre do par de sapatos pintado por Vincent Van
Gogh.
No texto mencionado, Derrida retoma o ensaio de Meyer Schapiro
intitulado de The Still Life as a Personal Object (1968), no momento em
que o historiador interpretou o quadro de Van Gogh como retratando os
próprios sapatos de Van Gogh, quando de sua estadia em Paris. Também o
texto de Heidegger, A origem da obra de arte (2014), quando restituiu os
sapatos à vida no campo, em especial, a uma camponesa. Enquanto
Schapiro procurou fontes históricas para adequar os sapatos ao próprio
pintor, Derrida aponta que Heidegger, apesar de recusar a ideia de verdade
da obra como adequação e correlação, restituiu os sapatos a uma origem
certa e determinada, não restando nenhuma dúvida quanto à sua verdade.
Essa disputa de restituições, trazida à tona por Schapiro e Heidegger,
ilustra muito bem aquela vontade que falamos agora mesmo de voltar às
coisas mesmas e de se apropriar daquilo que aparece. Para Derrida, existe
uma certa impossibilidade de restituição, a partir do testemunho da obra, a
um suposto pintor ou uma suposta camponesa – a uma origem qualquer-,
pois toda interpretação sobre os sapatos gira em torno de restos e rastros em
um solo sem fundo na tela (DERRIDA, 2005, p. 377). Talvez ambas as
interpretações fossem possíveis, mas não desvelam a verdade da obra, pois
não consideram aquilo que escapa ao olhar e à presença, ou seja, a própria
condição de rastro do traço, de maneira a encetarem a obra em suas
compreensões.
Diante desse privilégio do olhar, da visão e do desejo da verdade,
Derrida propõe pensar especificamente o desenho a partir da experiência do
traço, que aqui iremos aproximar da experiência do rastro, que se mistura à
experiência do próprio desenho, “ a experiência do que vem colocar um
limite entre espaços, tempos, figuras, cores, tons, mas um limite que é ao
mesmo tempo condição da visibilidade e invisível” (DERRIDA, 2012b, p.
87). Para Derrida, a experiência do olhar consiste no amor pelo traço, de
modo a perceber que aquilo que o desenho mostra como visibilidade, o
traço traçado, se dá a ver sem se dar ele mesmo a ver, como o seu quase-
conceito de rastro:
O rastro é verdadeiramente a origem do sentido em geral. O que vem a afirmar mais uma vez, que não há origem absoluta do sentido em geral. O
rastro é a diferência que abre o aparecer e a significação. (...) origem de toda repetição, origem da idealidade, ele não é mais ideal que real, não
mais inteligível que sensível, não mais uma significação transparente que uma energia opaca e nenhum conceito metafísico pode descrevê-lo
(DERRIDA, 2017, p. 80)

Pensar a origem do desenho a partir do traço, em especial, do traço que


traça deixando seu rastro, é assumir que a apropriação à coisa mesma
simplesmente é da ordem do impossível. O rastro tem como origem o
próprio rastro, ou seja, não há origem capaz de ser restituída. Dessa forma,
não falamos do conceito de rastro derivado de uma presença empírica, mas
do rastro que sempre escapa à própria presença por se remeter sempre ao
outro ou a outra coisa, de modo a se furtar ao jogo da presença e da ordem
logocêntrica do visível e do espaço. Assim, não estando presente, não se dá
a ver, sua origem se torna invisível e, por isso, é uma experiência daquilo
que não lida nem com o inteligível nem com o sensível, sendo, de certa
maneira, cega. Isso significa dizer que não só o artista atua como um cego,
ao traçar o traço como quem vaga pela noite, como também o espectador,
diante das obras, já que este não consegue presentificar uma origem visível
e certa. Com isso, Derrida nos faz pensar no próprio des(poder) que
perpassa o olhar.
Em Memórias de cego: o auto-retrato e outras ruínas (2010), Derrida,
a fim de descontruir a hierarquia concedida ao olhar, à visibilidade como
fonte de certeza e de verdade, propõe três aspectos que se entrecruzam, para
ilustrar a maneira pela qual a experiência do olhar perpassa a da cegueira.
No primeiro aspecto, denominado de a perspectiva do ato gráfico, Derrida
nos lembra do rompimento originário que acontece entre o traço, movido
pela mão que avança na superfície, com a percepção, de modo que o artista
inscreve o traço como quem caminha em uma noite, sem ver. É como se o
traço fugisse ao desígnio, já que não se pode ver o vir ou ver e, ao mesmo
tempo, desenhar. Assim, pode-se dizer que o traço está sempre em oscilação
com a memória e, por isso, fala-se em memórias de cego.
Mesmo se o desenho é mimético, como se diz, reprodutivo, figurativo, representativo, mesmo se o modelo está precisamente diante do artista, é
preciso que o traço [trait] proceda da noite. Ele escapa o campo da visão. Não somente porque não é ainda visível, mas porque não pertence à
ordem do espectáculo, da objectividade especular – e aquilo que ele então faz advir não pode ser mimético em si. (DERRIDA, 2010, p. 51)

No segundo aspecto, denominado por retraimento[retrait] ou o


eclipse, a inaparerência diferencial do traço [trait], Derrida procurar falar
do traço já traçado da superfície, e não mais do seu rompimento, mas do
que resta dele na folha. Uma restância que não é da ordem da visibilidade
“na medida em que, o que lhe resta de espessura colorida, tende a extenuar-
se para a marcar a orla única de um contorno: entre o dentro e fora de uma
figura” (DERRIDA, 2010, p. 57). Estando no entre do dentro e do fora, do
traçamento, o traço se divide, ou melhor, ele é a própria divisão sem,
contudo, poder se constituir como uma identidade. Evidentemente, existe
algo desenhado, no entanto, o que Derrida pretende lembrar é que existe um
traço que escapa à experiência da visibilidade, de forma que o traço resta
invisível em identidade, desestabilizando todo juízo de verdade como
adequação e desvelamento do fenômeno.
Por último, o aspecto da retórica do traço, quando o desenho chama a
palavra, o título da obra ou a legenda. Derrida deixa claro que tal questão
não visa a restaurar a autoridade do dizer sobre o ver, trata-se antes de
compreender como essa relação se complementa. Para Derrida, com o
retraimento do traço e sua invisibilidade, nunca saberemos se, por exemplo,
os autorretratos de Henri Fantin-Latour, é o próprio autorretrato do pintor.
Mesmo que tivéssemos certeza, ao observar unicamente a obra, não é
possível saber “se ele [artista] se mostra em vias de se desenhar ou de
desenhar outra coisa – ou ainda a si mesmo como outro” (DERRIDA, 2010,
p.71). Assim, qualquer interpretação da imagem avança como uma
cegueira, sem que se possa ver.
O que nos resta?
Diante dos aspectos delineados por Derrida só nos resta que o
testemunho do desenho é uma cortesia dos cegos. Só aquele que se coloca
como um cego é capaz de compreender o testemunho dado pelo desenho o
que, consequentemente, implica que “nenhuma autenticação pode mostrar,
presentemente, o que vê a testemunha mais segura, ou antes o que ela viu e
guarda na memória caso não tenha sido arrebatada pelo fogo” (DERRIDA,
2010, p. 108). A obra está lá testemunhando um acontecimento, em nome
da verdade, no entanto, uma verdade que foge à atestação ou ao
desvelamento do artista e do espectador.
O testemunho do desenho e a experiência do próprio avança em meio
às escuridões da noite, já que nada mais é possível de restituição ou, no
caso de nossa abordagem, nada justifica a devolução dos sapatos de Van
Gogh a algo, alguém ou algum cenário. A desconstrução, ao desconstruir o
modelo ótico da filosofia Ocidental, nos conduz a pensar sobre uma certa
impossibilidade de testemunhar a verdade da imagem, como prova,
informação ou certeza, já que o testemunho do desenho é submetido a
diversas linguagens, discursos e práticas que oscilam entre o visível e o
invisível, a visibilidade e a cegueira, a percepção e a memória.
Talvez a desconstrução da autoridade do olhar faça agora alguns olhos
se encherem de lágrimas, olhos que estavam, até então, certos do seu poder
de ver. Acostumados a compreenderem a obra como testemunhos vivos e
presentes, têm seus corações partidos e descobrem a outra função dos olhos:
a de chorar, “no fundo, no fundo do olho, este não seria destinando a ver,
mas a chorar” (DERRIDA, 2010, p. 130). Com isso, as vistas se embaçam
e revelam a cegueira, cegueira esta que revela, ao mesmo tempo, o
cegamento advindo da primazia do visível.

BIBLIOGRAFIA
DERRIDA, Jacques. Gramatologia. Trad. Miriam Chanaiderman; Renato Janine Ribeiro. – São Paulo: Ed. Perpectiva, 2017.

DERRIDA, Jaques. Demorar: Maurice Blanchot. Florianópolis: Editora UFSC, 2015.

DERRIDA, Jacques. As artes espaciais: uma entrevista com Jacques Derrida. In: ___. Pensar em não ver – escritos sobre as artes do visível (1979-2004) Org. Ginette Michaud, Joana
Masó, Javier Bassas. Trad. Marcelo Jacques Moraes – Florianópolis: Ed. Da UFSC, 2012, p. 17-61

DERRIDA, Jacques. Pensar em não ver. In: Pensar em não ver – escritos sobre as artes do visível (1979-2004) Org. Ginette Michaud, Joana Masó, Javier Bassas. Trad. Marcelo
Jacques Moraes – Florianópolis: Ed. Da UFSC, 2012, p. 63-90

DERRIDA, Jacques. Com o desígnio, o desenho. In: Pensar em não ver – escritos sobre as artes do visível (1979-2004) Org. Ginette Michaud, Joana Masó, Javier Bassas. Trad.
Marcelo Jacques Moraes – Florianópolis: Ed. Da UFSC, 2012, p. 163-190.

DERRIDA, Jacques. Memórias de cego: o auto-retrato e outras ruínas. Tradução de Fernanda Bernardo. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.

DERRIDA, Jacques. Restituciones. In: La verdade en pintura. Tradução María Cecillia Gonzalez y Dardo Scavino. Buenos Aires: Paidós, 2005, p. 269-396

DUQUE-ESTRADA, E.M. “A literatura é a coisa mais interessante do mundo, talvez mais interessante que o mundo”. In: Confraria do vento, no. 11, novembro / dezembro de 2006,
versão eletrônica. Endereço do sítio:http://acd.ufrj.br/~confrariadovento/numero11/ensaio04.htm , último acesso em 30 de novembro de 2006.

HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. In: _________. Caminhos de Floresta. Trad. Irene Borges Duarte. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004. P.6-94.

SCHAPIRO, Meyer. The Still life as a Personal Object- note on Heidegger and Van Gogh. In: Simmel, M.L. (ed.) The reach of mind: Essays in Memory of Kurt Goldstein. Nova
York: Springer Publishing Company, 1968.

SERRA, Alice M. A ‘restância’ do traço e a desconstrução da origem na estética quase-transcendental de Jacques Derrida. Artefilosofia (UFOP), v. 10, p. 120-134, 2011.

SERRA, Alice M. Do fenômeno pleno ao testemunho que falta: gradações da verdade em Husserl, Marion e Derrida. Philosophica (Lisboa) , v. 45, p. 83-104, 2015.
Saudades da literatura

69
Guilherme Cadaval
O que é estranho é a lentidão desse movimento. A mão move-se num tempo pouco humano, que não é o da ação viável, nem o da esperança mas,
antes, a sombra do tempo, ela própria sombra de uma mão deslizando irrealmente para um objeto convertido em sua sombra. Essa mão
experimenta, em certos momentos, uma enorme necessidade de agarrar: ela deve agarrar o lápis, tem de fazê-lo, é uma ordem, uma exigência
70
imperiosa.

Há algo de ordinário no movimento de uma mão que se estende a fim


de agarrar qualquer coisa. Como a banalidade de uma ação que se lança e se
concretiza, o simples gesto de tomar em mão um lápis, de tocar-lhe a ponta
sobre a folha, empenhando seus esforços na realização de um trabalho entre
outros: a escrita, a literatura. De maneira que acreditaríamos haver aí,
atuando, uma sorte de poder que torna concreta, real, alguma ideia prévia,
como aquela que primeiramente comandou à mão agarrar o lápis e levá-lo à
folha. O que move esta mão que escreve, senão o sentimento de ter algo a
dizer, e de poder realmente dizê-lo? Mais do que isso: o sentimento de
poder realizar alguma coisa no mundo, de poder transformá-lo, fazendo
brotar, no encontro entre a caneta e o papel, o que, um momento atrás, não
existia.
Contudo, essa mão que se movimenta numa ânsia de transformar,
de fazer brotar o que antes de sua ação não havia, move-se num tempo
pouco humano, sombra do tempo, ela mesma sombra de uma mão,
deslizando irrealmente para um objeto convertido em sua sombra. Diríamos
talvez aí que este é realmente o trabalho do que se chama o “literário”, um
trabalho de fato irreal, uma vez que tudo o que realiza não passa de ficção,
71
“manifestação passiva na superfície do mundo” . Pois o trabalho literário, o
trabalho do literário, dispõe do mundo como sombra: “um escritor sempre
pode se dar como ideal chamar um gato de gato”, mas, aí, “é mais
72
mistificador do que nunca, pois um gato não é um gato” .
E isto não porque aquilo que o escritor escreve seja de fato irreal,
“ficcional” – no sentido de que foi francamente “inventado”, e habita, por
isso, algum lugar além do mundo, em oposição a sua concretude palpável –,
mas porque este gato que ele escreve não tem limites, foi de fato retirado de
qualquer temporalidade viável aonde um gato – este gato que, no entanto,
eu não posso nunca chamar honestamente – pode existir. Não se trata, pois,
de dizer que este espaço literário se opõe ao que se chama realidade – em
primeiro lugar, porque o que se escreve é ainda “real”: se escrevo, produzo
qualquer coisa de real, que tem existência, possui um lugar no mundo: “a
literatura também está a seu modo ‘na vida’, na ‘vida real’, como dizem
73
irrefletidamente os que creem na distinção entre a ‘vida real’ e a outra” .
Tratar-se-ia, antes, de enxergar a estranha relação do espaço literário com o
que se supõe ainda a “realidade”, relação que se dá nesse tempo pouco
humano, que não diz tão somente respeito ao tempo de uma ação
determinada qualquer.
O gato que escrevo, não posso acariciá-lo, tampouco alimentá-lo,
ouvi-lo miar, acompanhar essa existência que se desenrola num momento,
depois outro. Se acompanho este gato que escrevo, perco de vista o gato
verdadeiro. Se vou atrás do escritor que escreve o gato, logo esqueço o gato
que realmente passeia entre minhas pernas aqui e agora. No entanto, o
problema que o escritor representa “é bem mais sério”: “A verdade é que
ele arruína a ação, não porque disponha do irreal, mas porque coloca à
nossa disposição toda a realidade. A irrealidade começa com o tudo. O
imaginário não é uma estranha região situada além do mundo; é o próprio
74
mundo como conjunto, como o todo” .
O irreal, de que o literário é irrefletidamente acusado, não é
simplesmente um outro mundo mais pálido, antes o mundo enxergado
desde a perspectiva do todo, tomado imediatamente em seu conjunto, onde
tudo está de uma vez presente em sua ausência. “Ora”, diz Blanchot, “não
75
agimos no infinito, não realizamos nada no ilimitado” . Assim, o ato pelo
qual o escritor “produz essa coisa real que se chama livro”, é um ato que
“desacredita qualquer ato”, uma vez que substitui “o mundo das coisas
determinadas e do trabalho definido por um mundo onde tudo é agora dado,
76
e nada precisa ser feito além de gozá-lo pela leitura” .
Com efeito, o escritor, que não tem como seu fundamento e
segurança nem ao menos o gato verdadeiro, que não tem nada de verdadeiro
– que, quando busca se aproximar, já imediatamente se afasta, sendo, ele
mesmo, esse afastamento – só pode ir do nada ao tudo. Com a “negação
global de todas as realidades particulares que nele se encontram”, pela qual
o escritor vem a ter exatamente nada, pela qual nega a possibilidade de
realizar qualquer ação concreta – começa, de fato, para Blanchot, a criação
literária. A criação literária implica, nisso, a morte do mundo, o assassinato
mesmo de todas as coisas, ainda que uma palavra escrita indiferentemente
não possa fazer sangrar a ninguém.
Pois, no que diz respeito à literatura e ao ato próprio do escritor,
não se trata de negar isto ou aquilo, negar esta árvore a fim de construir
uma morada, mas de uma negação global que nega até mesmo esta negação
particular que ainda teria sucesso em produzir uma morada, assim
retornando ao seio do mundo. Pergunta Blanchot:
O que pode um autor? Primeiro, tudo: ele está agrilhoado, a escravidão o pressiona, mas, se ele encontrar, para escrever, alguns momentos de
liberdade, ei-lo livre para criar um mundo sem escravo, um mundo onde o escravo, agora senhor, instala a nova lei; assim, escrevendo, o homem
acorrentado obtém imediatamente a liberdade para ele e para o mundo; nega tudo o que ele é para se tornar tudo o que ele não é. Nesse sentido, sua
obra é um ato prodigioso, a maior e a mais importante que existe. Mas olhemos mais de perto. Se se der imediatamente a liberdade que não tem,
ele negligencia as verdadeiras condições de sua alforria, negligencia o que deve ser feito de real para que a ideia abstrata de liberdade se realize.
77
Sua negação a ele é global.

De maneira que, acompanhando Derrida, poderíamos dizer que a


questão que move a literatura, no que ela é o seu colocar, a cada vez, de
modo singular, a questão acerca de sua origem, “foi imediatamente a
questão do seu fim. Sua história se constrói como a ruína de um
monumento que basicamente nunca existiu. É a história de uma ruína, a
narrativa de uma memória que produz o acontecimento por relatar e que
78
nunca terá estado presente” . Construir-se como ruína significa que a
literatura, no que arruína a ação viável de um tempo humano, no que
inquieta a tranquilidade de uma palavra que se acredita presente, restituindo
à fala o substrato de realidade que ela representa, não redunda no simples
nada, faz subsistir ainda, insiste em fazer subsistir a ruína enquanto estranha
presença, enquanto aquilo que está impossibilitado de desaparecer, pois a
ausência de um sentido tranquilizador entre a palavra e o mundo permanece
ainda, por força do espaço literário, tendo sentido, o sentido de uma
linguagem que já não apresenta a coisa, mas a sua falta, o fato de que a
coisa já sempre falta onde quer que haja a palavra – a literatura aparecendo,
talvez, neste sentido, como a única possibilidade de que subsista alguma
“realidade”.
Assim, quando Georges Bataille escreve sobre a situação de
Emily Brontë, em “A literatura e o mal”, afirma que só “a literatura podia
desnudar o jogo da transgressão da lei – sem a qual a lei não teria fim –
79
independentemente de uma ordem a criar” . A literatura não pode,
certamente, oferecer um fundamento ou se oferecer como fundamento; não
pode, afirma Bataille, “assumir a tarefa de organizar a necessidade coletiva.
Não cabe a ela concluir: ‘aquilo que eu disse nos obriga ao respeito
80
fundamental pelas leis da cidade” . Nesse sentido, uma vez que é
inorgânica, é também sumamente irresponsável, pois, “por seu movimento”,
diz Blanchot, “nega, no final das contas, a substância que representa. Essa é
sua lei e sua verdade. Se renunciar a isso para se ligar definitivamente a
81
uma verdade exterior, cessa de ser literatura” . Desde a literatura, uma
ordem não se estabelece, não passa a vigorar – ela não tem, afinal, o poder
do decreto que impõe ao mundo organizar-se a partir de sua pronunciação,
ainda que um livro seja “o futuro de muitas outras coisas, e não apenas
82 83
livros” , ainda que “ao mudar a língua” , tal como na letra de uma
legislação, muda-se mais do que a língua. Mas ela opera justamente na
transgressão, a qual não é uma transgressão determinada desta ou daquela
lei – a particularidade está para ela interditada, uma vez que significaria
engajar-se diretamente no mundo, reconhecer a sua realidade –, mas
imediatamente a transgressão de toda lei, a liberdade inteira na qual tudo é
permitido, tudo pode ser dito, não há limite.
O que faz parecer, então, que a literatura, este espaço literário
pelo qual é irresistivelmente atraído aquele que deseja fazer literatura, não
diz respeito realmente a nada, nada pode, é sempre apenas irreal, sendo o
espaço fechado de uma liberdade irrestrita, mas particular, de uma solidão
que somente um pode habitar, pelo qual apenas um se interessa e se
empenha, mas que, ao menos enquanto literatura, não modifica realmente
nada no mundo. Porém, este “um” solitário, o escritor – talvez lhe acometa
justamente como tarefa converter essa solidão, esse espaço fechado porque
ilimitado, em todo o mundo, substituí-lo ao mundo. Do nada ao tudo, da
negação global que torna o nada, tudo, a literatura faz da solidão e do
isolamento do escritor a febre do mundo. Pois a “obra criada pelo solitário e
fechada na solidão traz em si uma visão que interessa a todos, traz um
julgamento implícito sobre as outras obras, sobre os problemas da época
84
[...] e sua indiferença se mistura hipocritamente à paixão de todos” .
O escritor deseja, ainda, junto a essa negação global que o possui
e que ele não tem escolha senão levar a cabo, realizar-se no mundo; quer,
realmente, passar da literatura à existência, essa negação que o dispõe “não
se satisfaz com a irrealidade em que ela se move, pois quer se realizar”, de
sorte que “ela não cessa de empurra-lo para a vida do mundo e a existência
pública para levá-lo a conceber de que modo, escrevendo, ele pode se tornar
essa mesma existência”. “É então”, diz Blanchot,
que ele encontra na história esses momentos decisivos em que tudo parece ser questionado, em que lei, fé, Estado, alto mundo, mundo de ontem,
tudo mergulha sem esforço e sem trabalho no nada [...]. Esses períodos são chamados revolucionários. Nesses momentos, a liberdade pretende se
realizar na forma imediata do tudo é possível, tudo pode ser feito [...]. Momentos fabulosos, com efeito: neles a fábula, neles a palavra da fábula se
faz ação. Se tentam o escritor, nada mais justificado. A ação revolucionária é, em todos os pontos, análoga à ação tal como é encarnada pela
85
literatura.
Este deve ser o gozo do escritor: que a fábula, a palavra da fábula,
se faça aquilo que ele mesmo, enquanto ser solitário e impotente, nunca
alcança: que se faça ação. Assim, nesses momentos decisivos, “ninguém
tem mais direito à sua vida, a uma existência efetivamente separada e
fisicamente distinta [...]. Cada cidadão tem, por assim dizer, direito à morte:
86
a morte não é sua condenação, é a essência do seu direito” . Esta morte,
entenda-se, não é a “pura insignificância” do morrer, o “ponto vazio da
liberdade”, a “manifestação do fato de que essa liberdade é ainda abstrata,
87
ideal (literária)” ; não é, diz Bataille, a mera “passagem da vida à
88
decomposição” . Esta morte de que fala aqui Blanchot parece ser, de fato,
o anúncio da morte, o fato de que ela já se encontra anunciada em cada
ação, em cada movimento, minha “palavra é a advertência de que a morte
89
está, nesse exato momento, solta no mundo” .
A linguagem é esse anúncio, a “morte real é anunciada e já está
presente em minha linguagem [...]; minha linguagem significa
essencialmente a possibilidade dessa destruição; ela é, a todo momento,
90
uma alusão resoluta a esse acontecimento” e – a “literatura está ligada à
91
linguagem” (Blanchot, 2011a, p. 330). Este espaço literário, como análogo
a um espaço revolucionário, coloca a linguagem em jogo, ou melhor, a
atitude habitual, tranquilizadora, que a linguagem corrente tem para com o
mundo. Para esta, é “como se o gato vivo e seu nome fossem idênticos,
como se o fato de nomear não consistisse em reter dele somente a ausência,
92
o que ele não é” ; ou então, se a palavra de fato “exclui a existência do que
designa, remete-se ainda a ela pela inexistência que se tornou a essência
93
dessa coisa” . E assim, nomear “o gato é [...] fazer dele um não gato, um
gato que cessou de existir, de ser o gato vivo, mas não por isso fazer dele
94
um cão, mesmo um não cão” . Nisto que Blanchot chama a “linguagem
corrente”, ainda que apague a existência do gato vivo uma vez que passa
para a palavra, entende que esta “leva a que o próprio gato ressuscite plena
95
e certamente como sua ideia e como seu sentido” . A linguagem corrente
admite, pois, a morte, mas apenas porque ela é imediatamente apagada,
infinitamente diferida, uma vez que a palavra restitui a vida. Não se encara,
então, a morte, senão como acontecimento já sempre afastado, mais ou
menos superado.
A linguagem literária, pelo contrário, “é feita de inquietude”. Ela
oscila, de fato, pois, por um lado, “numa coisa, só se interessa por seu
sentido, por sua ausência, e essa ausência ela desejaria alcançar
96
absolutamente nela mesma e por ela mesma” . Mas, por outro lado, a
negação só pode se realizar a partir da realidade do que ela nega; a linguagem tira seu valor e seu orgulho de ser a realização dessa negação; mas,
no início, o que se perdeu? O tormento da linguagem é o que lhe falta pela necessidade que tem de ser o que falta. Ela não pode nem ao menos
nomeá-lo [...]. Algo desapareceu. Como encontrá-lo, como me voltar para o que é antes, se todo o meu poder consiste em fazer o que é depois. A
97
linguagem da literatura é a busca desse momento que a precede.

A literatura retorna, então, à linguagem, não porque se


despreocupe da coisa e queira alcançar a ausência, que a linguagem é, nela
mesma, mas porque a linguagem, subitamente, já não sendo, ou já não
preenchendo simplesmente esta ausência, toma forma como estranha
presença. Se há pouco a linguagem era um obstáculo, o poder que consiste
em fazer o que é depois, quando todo o desejo e toda paixão se voltam para
o que é antes, agora “ela é minha única chance. O nome deixa de ser a
passagem efêmera da não existência para se tornar um bolo concreto, um
98
maciço de existência” . Aí, tudo
o que é físico tem o primeiro papel: o ritmo, o peso, a massa, a figura, e depois o papel sobre o qual escrevemos, o traço de tinta, o livro. Sim,
felizmente, a linguagem é uma coisa: é a coisa escrita, um pedaço de casca, uma lasca de rocha, um fragmento de argila em que subsiste a
99
realidade da terra.

Diríamos, assim, quem sabe, que a linguagem literária, talvez apenas a


linguagem corrente embriagada de si mesma, se dá na assunção de um certo
estilo, de infinitos estilos. Esta preocupação com o ritmo, o peso, a massa,
indica que a linguagem está subitamente aberta a uma profusão de estilos
que não mais dissimulam a morte trabalhando no subterrâneo de cada
palavra ao entregar a idealidade do sentido, mas se colocam diante dela,
junto a ela, ao mesmo tempo louvando-a e zombando-a. Não é somente que
a palavra seja a manifestação do que se perdeu, do não existente –, mas a
materialidade da palavra, o maciço de existência que vem a ser a
linguagem, lançada no trabalho do literário, tornam-se a manifestação
concreta da relação em geral com o mundo. Quer dizer, a relação com isto
que está antes da palavra e sempre já se terá retirado para que haja em
absoluto palavra, mas que retorna, não “idealmente”, não sob a forma
estática de um sentido ideal, senão que uma vez que a própria palavra não
se coloca tão somente no lugar disto que falta, mas deixa-se afetar por isto,
assombrar por um ritmo que não é nem bem a falta, nem a palavra que a
preenche – um estilo que não diz exatamente nada, que não tem “sentido”,
mas que é o sinal de que ali vida e morte não se opõem simplesmente,
tampouco se unem, mas lutam, e dançam, e cantam. Os estilos, mais, ou
menos do que a palavra, são a lembrança do que, ao fim e ao cabo, não há,
nunca houve, nunca esteve presente, mas deste fundo insondável a vida
pode brotar, a cada vez, marcada singularmente pelo seu direito à morte.
Bibliografia
BATAILLE, G. A literatura e o mal. Tradução: Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.

BLANCHOT, M. O espaço literário. Tradução: Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.

BLANCHOT, M. A literatura e o direito à morte. In: “A parte do fogo”. Tradução: Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 2011a.

DERRIDA, J. Essa estranha instituição chamada literatura. Tradução: Marileide Dias Esqueda. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.
Deslocamento e Nadificação: A Filosofia Trágica de Macabéa

100
Carina Duarte Blacutt

O presente trabalho apresenta parte da pesquisa desenvolvida no


programa de pós graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, na área de estética. Trata-se de, submergindo nas personagens
femininas de Clarice Lispector, fazer transbordar sua filosofia. Não a
filosofia de Clarice, mas uma filosofia das personagens, abordadas aqui
como personagens quase conceituais.
Em entrevista publicada originalmente no jornal o Globo, no dia
10 março de 1964, Clarice Lispector explica brevemente como constrói os
seus personagens: “O processo de formação de um personagem é parte
inconsciente e parte consciente, pelo menos assim nascem os meus
personagens” (Lispector, 2011, p. 23). Clarice inúmeras vezes sinaliza a
independência de seus personagens, certa necessidade e involuntariedade na
sua criação. Dando continuidade a essa independência e fundamentando-se
no conceito de personagem quase conceitual, esse último capítulo apresenta
os conceitos da última filósofa clariciana.
José Castelo (2012, p. 82) afirma que alguns personagens são
101
seres míticos representativos e simples . Partindo desse princípio de análise
esse recorte transita na filosofia contida na personagem nordestina Macabéa
enquanto personagem filosofal dos conceitos de nadificação e
deslocamento.
Quem é Macabéa?
Em seu último romance, A Hora da Estrela, publicado em 1977, um
pouco antes de ser internada e vir a falecer na cidade do Rio de Janeiro,
Clarice Lispector conta a história de Macabéa, uma mulher nordestina de 19
anos de idade, órfã de infância, miserável, que mal tem consciência de
existir depois de perder seu único elo com o mundo, uma velha tia de quem
sofria muitas humilhações, privações afetivas e de recursos materiais. De
baixa escolaridade, estudou até a terceira série, viaja para o Rio de janeiro
onde divide um quarto com quatro moças balconistas das lojas
Americanas.
Trabalha como datilógrafa em uma distribuidora e gasta suas
horas ouvindo rádio relógio. A remuneração é baixa e é aceita pela
personagem, que não tem perspectiva de outra colocação profissional. Em
meio a uma relação de submissão ao chefe, de quem também sofre
humilhações, Macabéa apaixona-se por Olímpico de Jesus, um metalúrgico
nordestino que sonha em ser um importante político. Ele logo a trai com
Glória, colega de trabalho de Macabéa. Desesperada, a nordestina segue o
conselho de sua colega e procura uma cartomante que prevê um futuro
luminoso, bem diferente do que a espera.
Para contar a história: o narrador Rodrigo SM, que não apenas
trata da narrativa da retirante nordestina, mas também do vínculo da ficção
com o próprio narrador e os dilemas da própria escritura na narrativa.
Rodrigo SM é articulado pela crise identitária existencial vivida e assolado
por um sentimento de responsabilidade pelas contradições sociais do país.
102
É comum entre os estudiosos de Clarice Lispector adotar a
perspectiva de que Rodrigo SM é a própria autora em uma tentativa ineficaz
de esconder sua perspectiva, de certa forma, autobiográfica. Segue assim
que o leitor é levado a participar do ofício do escritor na medida que ele
problematiza o seu trabalho, o ato de escrever ficções.
Por que escrevo? Antes de tudo porque captei o espírito da língua e assim as vezes a forma é que faz conteúdo. Escrevo portanto não por causa da
nordestina mas por motivo grave de força maior, como se diz nos requerimentos oficiais, por “força da lei”. (LISPECTOR. 1998. p.18)

O objetivo dessa pesquisa, todavia, é o se ater à filosofia das


personagens quase conceituais, aqui a personagem Macabéa,
especificamente. Segue que não aprofundaremos nessa reflexão feita pelo
narrador de a Hora da Estrela, mas sim nas reflexões contidas na
personagem nordestina.
Após receber diversas críticas de que a sua obra era
demasiadamente intimista e psicológica, A Hora da Estrela na sua criação
consciente, se assim podemos dizer, é uma tentativa de Lispector realizar
uma obra realista aonde traz para construção de Macabéa o ar meio perdido
do nordestino retirante na cidade do Rio de Janeiro. Para Clarice,
transgredir os seus próprios limites de classe a fascinou e foi quando pensou
em escrever sobre a realidade da classe desfavorecida. Esse realismo vai se
dar na intrínseca reflexão das consequências da desigualdade social na
criação de subjetividade e na percepção de realidade da desigualdade
brasileira.
Pois era muito impressionável e acreditava em tudo o que existia e no que não existia também. Mas não sabia enfeitar a realidade. Para ela a
realidade era demais para ser acreditada. Aliás a palavra ‘realidade’ não lhe dizia nada. (Ibidem. p. 34)
Essa reflexão de criação de subjetividade se dá de forma radical,
não só quanto à construção de identidade de uma retirante nordestina, mas
também na inacessibilidade da classe pobre à cultura. Em uma
metalinguagem, o narrador/autora faz uma autocrítica, incluindo a própria
obra A Hora da Estrela. Uma obra crítica à desigualdade, porém não
acessível à classe desfavorecida. A Hora da estrela não é ideológica ou
panfletária. É um assovio no escuro.
(Se o leitor possuir alguma riqueza e vida bem acomodada, sairá desse para ver como é às vezes o outro. Se é pobre, não estará me lendo por que
ler-me é supérfluo para quem tem uma leve fome permanente. Faço aqui o papel de vossa válvula de escape e da vida massacrante da média
burguesia. Bem sei que é assustador sair de si mesmo, mas tudo o que é novo assusta. Embora a moça anônima da história seja tão antiga que
podia ser uma figura bíblica. Ela era subterrânea e nunca tinha tido floração. Minto: ela era capim.) (Ibidem. p. 30-31)

Clarice define o romance como uma história de uma moça tão


pobre que só comia cachorro quente. Porém a história não se limita à
superficialidade, é uma acentuada reflexão sobre a relação social na
possibilidade de construção da identidade e a nadificação causada pela
alienação.
Esta história acontece em estado de emergência e de calamidade pública. Trata-se de livro inacabado porque ele falta a resposta. Resposta esta que
espero que alguém no mundo me dê. Voz? É uma história em tecnicolor para ter algum luxo, por Deus, que eu também preciso. Amém para nós
todos. (Ibidem, p.10)

A Hora da Estrela evidentemente não guarda nenhum dos


aspectos mecanizados e de espelhamento do realismo clássico. É sim uma
profunda reflexão a respeito não só da complexidade do real e da nossa
incapacidade de fisgá-lo, mas também sobre a problemática do
conhecimento do passado para construção de uma identidade daquilo que
define o que é ser no mundo.
Por que escrevo sobre uma jovem que nem pobreza enfeitada tem? Talvez porque nela haja um recolhimento e também porque na pobreza de
corpo e espírito eu toco na santidade eu que quero sentir o sopro do meu além para ser mais do que eu pois tampouco sou. (Ibidem. p. 21)

Clarice Lispector cria, então, seu último romance, num livro a que
ela atribui 13 títulos diferentes. São eles: A Culpa é Minha, A Hora da
Estrela, Ela Que Se Arranje, O Direito ao Grito, Quanto ao Futuro,
Lamento de um Blue, Ela Não Sabe Gritar, Uma Sensação de Perda,
Assovio no Vento Escuro, Eu Não Posso Fazer Nada, Registro dos Fatos
Antecedentes, História Lacrimogênea de Cordel, Saída Discreta Pela Porta
dos Fundos.
Em 1985, Susana de Amaral dirige, então, o filme A Hora da
Estrela, com roteiro adaptado do livro. Em sua versão cinematográfica o
narrador é excluído para dar maior ênfase à personagem Macabéa e sua
vivência de desconstrução e construção de identidade. Construção que se dá
por meio do contexto social, da interação com outros personagens e, ainda,
da reflexão sobre a essência do eu e de sua identidade.
Quanto a moça, ela vive num limbo impessoal, sem alcançar o pior nem o melhor. Ela somente vive inspirando e expirando, inspirando e
expirando. Na verdade - para que mais que isso? O seu viver é ralo. Sim. (...) Incompetente para vida. Faltava-lhe o jeito de se ajeitar. Só
vagamente tomava conhecimento da espécie de ausência que tinha de si em si mesma. Se fosse criatura que se exprimisse diria: o mundo é fora de
mim, eu sou fora de mim. (Ibidem. p. 23-24)

Algumas adaptações são feitas para que na sua forma


cinematográfica possa expressar aquela inexatidão da identidade. Um
exemplo é quando, após ser ameaçada de demissão por seu patrão
Raimundo, Macabéa vai ao banheiro e se vê refletida no espelho como uma
imagem turva e manchada, que a impede de ver com nitidez sua imagem
103
refletida . Seria uma tentativa de Suzana de Amaral de explicitar as
consequência do não reconhecimento de si mesma como ser ou como
identidade? No livro Macabéa não vê seu reflexo no espelho e em seguida
vê seu rosto deformado, o que se assemelha a um delírio. A busca pela
identidade e sua relação com a noção de ser no mundo se torna evidente no
momento da morte de Macabéa: “Agarrava-se a um fiapo de consciência e
repetia mentalmente sem cessar: eu sou, eu sou, eu sou. Quem era, é que eu
não sabia. Foram buscar no próprio profundo e negro âmago de si mesma o
sopro de vida que Deus nos dá.” (Ibidem. p.84)
Essa moça não sabia que ela era o que era. Assim como um cachorro não sabe que é cachorro. Daí não se sentir infeliz. A única coisa que queria
era viver. Não sabia porque não se indagava. Quem sabe, achava que havia uma gloriazinha em viver. Ela pensava que a pessoa é obrigada a ser
feliz. Então era. (Ibidem. p. 27-28)

Macabéa transborda uma filosofia sobre o desamparo, o


deslocamento e a alienação da subjetividade. É uma busca social entre a
realidade e o delírio. E esse desamparo para personagem Macabéa é o
estranhamento do estrangeirismo. O estranhamento, enquanto operação
subjetiva, implica a possibilidade de romper um sistema de expectativas
social e institucionalmente localizado, e deslocar do centro os
automatizados sentidos hegemônicos orientadores da vida capitalista. Esse
estrangeirismo leva a inferência: Ela é nada em lugar nenhum. A nordestina
busca por sua identidade de forma involuntária, ao mesmo tempo que
lembra e esquece de sua infância violenta com sua tia velha. Macabéa é
uma estrangeira na vida e está tão perdida em seu próprio romance que
mesmo seu nome é sintoma de deslocamento.
O conceito de identidade nasce da ideia de ser, isto é, a percepção
da identidade é pautada na reflexão sobre o conceito de existir e se
relacionar no mundo. A identificação é inerente ao ser humano e o
reconhecimento do ser e das coisas são uma atividade importante para o
conhecimento da realidade. “Quando acordava não sabia mais quem era. Só
depois é que pensava com satisfação: sou datilógrafa e virgem, eu gosto de
Coca-Cola. Só então, vestia-se de si mesma, passava o resto do dia
representando com obediência o papel de ser.” (Ibidem. p.36). Para
diminuir a angústia do estrangeirismo, do deslocamento, do ser nada,
Macabéa contenta-se com identidades já pré-estabelecidas. Se veste de seu
lugar de trabalho, da moral aprendida com sua tia e de seu consumo.
Macabéa possui uma identidade social de moça nordestina e sofre
privações de oportunidade assim como outros nordestinos no seu contexto
social. E na incompletude desse ser surge a necessidade de identificar:
quem sou eu? “Se tivesse a tolice de perguntar quem sou eu cairia
estatelada e em cheio no chão. É que quem sou eu provoca a necessidade e
como satisfazer a necessidade? Quem indaga é incompleto.” (Ibidem. p.
15). A nadificação da sua identidade é consequência da alienação causada
pela profunda desigualdade social e privação de educação básica e
referências familiares ou relacionais. Macabéa é deslocada, sem local
adequado, e isso se explicita no significado intrínseco a seu nome. Essa é a
filosofia que emana da nordestina. O deslocamento e a nadificação da
identidade causada pela alienação.
Filosofia do deslocamento
- Escuta aqui: você está fingindo que é idiota ou é idiota mesmo?
- Não sei bem o que sou, me acho um pouco... de que? ... Quer dizer não sei bem quem eu sou.
- Mas você sabe que se chama Macabéa, pelo menos isso?
- É verdade. Mas não sei o que está dentro do meu nome. Só sei que eu nunca fui importante... (Ibidem. p. 56)

Os livros dos Macabeus, parte integrante dos livros deuterocanônicos


da bíblia, contam a história das lutas travadas contra os soberanos
selêucidas para obter a liberdade religiosa e política do povo judeu. Seu
título provém do sobrenome de Judas Macabeu, principal herói dessa
história.
O primeiro livro dos Macabeus descreve os adversários que se
enfrentam: o helenismo conquistador, que encontra cúmplices em certos
judeus, e a reação da consciência nacional, devotada à Lei e ao Templo. De
104
um lado Antíoco Epífanes , que profana o templo e desencadeia a
perseguição, do outro Matatias que lança o apelo a guerra santa.
- Eu também acho esquisito mas minha mãe botou ele por promessa Nossa Senhora da Boa Morte se eu vingasse, até um ano de idade eu não era
chamada porque não tinha nome, eu preferia continuar a nunca ser chamada em vez de ter um nome que ninguém tem mas parece que deu certo.
(Ibidem. p.43)

O corpo do primeiro livro se divide em três partes, contando a


história dos três filhos de Matatias, que assumem a direção da resistência.
“O valente Judas e seus irmãos conquistaram grande glória diante de todo
Israel bem como entre nações aonde chegava seu renome, a tal ponto que se
aglomeravam em torno deles para aclamá-los.” (MACABEUS I, cap. 5,
vers. 63). Na primeira parte Judas Macabeu obtém uma série de vitórias
sobre os generais de Antíoco, purifica o templo e consegue para os judeus
liberdade de viver segundo seus costumes.
O livro dos Macabeus, a história do herói Judas Macabeu e sua
resistência judia contra os helenistas, entretanto não fazem parte do cânon
escriturístico dos judeus, sendo reconhecidos apenas pela igreja católica.
Segue, então, o primeiro deslocamento de Macabéa: simbolicamente
homenageada pela mãe com nome de um herói que não é reconhecido por
seu próprio povo. O nome da nordestina simboliza o deslocamento da
palavra e seu objeto correspondente. Macabéa é heroína sem consciência de
si ou de seu povo, e sem lugar.
Pois que a vida é assim: aperta-se o botão e a vida acende. Só que ela não sabia qual era o botão de acender. Nem se dava conta de que vivia numa
sociedade técnica onde ela era um parafuso dispensável. Mas uma coisa descobriu inquieta: já não sabia mais ter tido pai e mãe, tinha esquecido o
sabor. E, se pensava melhor, dir-se-ia que havia brotado da terra do sertão em cogumelo logo mofado. (LISPECTOR. 1998. p.29)

A ausência de memória da sua origem leva a uma ausência de


construção de identidade. Macabéa não possui referência de passado, por
isso se encontra deslocada no presente. Lembra apenas vagamente de uma
infância também deslocada, onde foi criada não por seus pais, mas por uma
tia que a tratava com violência e em ambiente precário.
Pálida e mortal a moça era hoje o fantasma suave e terrificante de uma infância sem bola nem boneca. Então costumava fingir que corria pelos
corredores de boneca na mão atrás de uma bola e rindo muito. A gargalhada era aterrorizadora por que acontecia no passado e só imaginação
maléfica a trazia para o presente, saudade do que poderia ter sido e não foi. (Ibidem. p. 33)

A nadificação da nordestina é consequência de sua infância de


miséria. Essa nadificação é a ausência de possibilidade uma construção de
identidade autêntica. “Ela não era nem de longe débil mental, era à mercê e
crente como uma idiota. A moça que pelo menos comia não mendigava,
havia toda uma subclasse de gente mais perdida e com fome.” (Ibidem. p.
30). Macabéa é o nada, é a impossibilidade de criação de discurso, de
posicionamento ou consciência social. Sua interação com a comunidade é
mecânica; seus valores, atitudes e discursos são apenas reprodução do senso
comum, de forma incompreendida.
A datilógrafa vivia numa espécie de atordoado nimbo, entre céu e inferno. Nunca pensara em ‘eu sou eu’. Acho que julgava não ter direito, ela era
um acaso. Um feto jogado na lata de lixo embrulhado em um jornal. Há milhares como ela? Sim, e que são apenas um acaso. Pensando bem: quem
não é um acaso na vida? (Ibidem. p. 36)

A miséria iminente impossibilita Macabéa de ter comportamentos


básicos para interação social, como a higiene pessoal e coerência de
discurso mediante diálogo. “- Olhe, você não reparou até agora, não
desconfiou que tudo que você pergunta não tem resposta?” (Ibidem. p.49)
sinaliza Olímpico, seu namorado, única relação social mais aprofundada
que Macabéa desenvolve.
Aliás cada vez mais ela não sabia explicar. Transformara-se em simplicidade orgânica. E arrumar um jeito de achar nas coisas simples e honestas a
graça de um pecado. Gostava de sentir o tempo passar. Embora não tivesse relógio, ou por isso mesmo, gozava o grande tempo. (Ibidem. p. 63)

Para Macabéa, o deslocamento se dá em radicalidade, que retira


qualquer senso de sentido e direção. A inferência aqui é que a nordestina é
perdida enquanto pessoa identitária porque a miséria traz consigo
necessidades mais urgentes que normas sociais. “O céu é para baixo ou para
cima? Pensava a nordestina. Deitada, não sabia. Às vezes antes de dormir
sentia fome e ficava meio alucinada pensando em coxa de vaca. O remédio
então era mastigar papel bem mastigadinho e engolir.” (Ibidem. p.32).
Essa nadificação é um modo de ser e também pode ser chamado
de cotidianidade. Na cotidianidade é comum ignorar a si mesmo. Os
indícios de responsabilização, como por exemplo um pedido de desculpas
ao seu patrão quando questionada da ausência de higiene no seu trabalho, é
apenas um modo operante social, automático, e não uma reflexão de
correção, responsabilização ou aprimoramento das suas atitudes. “Só uma
vez fez uma trágica pergunta: quem sou eu? Assustou-se tanto que parou
completamente de pensar.” (Ibidem. p.32). A nordestina age no mundo de
forma impensada e das vezes que o pensamento ou a reflexão aparece, ela
rapidamente afasta para que não lhe cause angústia.
Em Macabéa podemos ver emergir a busca pela identidade,
porém a ausência de uma base sólida de sustentação para esse
questionamento, como memória de origem ou relação social não
mecanizada, impossibilitam a formação de um conceito identitário de si.
Macabéa quase reflete. É personagem quase conceitual. “Talvez a
nordestina já tivesse chegado à conclusão de que a vida incomoda bastante,
alma que não cabe bem no corpo, mesmo a alma rala como a sua.” (Ibidem.
p.32). Emana de Macabéa reflexão de conceito filosófico de identidade e
esta é tolhida pela miséria.
Maca, porém, jamais disse frases, em primeiro lugar por ser de parca palavra. E acontece que não tinha consciência de si e não reclamava nada, até
pensava que era feliz. Não se tratava de uma idiota mas tinha a felicidade pura dos idiotas. (Ibidem. p. 69)

A ausência relacional da nordestina impossibilitou o


desenvolvimento de discurso. É seu contexto que traz a inferência de sua
conceituação, a saber, a impossibilidade de construção de identidade e
posicionamento da classe oprimida diante da profunda desigualdade social.
A deficiência na memória de passado interfere na noção de causa e
consequência e estabelece uma percepção determinista, com a naturalização
da sua miséria.
Mas um dia viu algo que por um leve instante cobiçou: o livro que Seu Raimundo, dado a literatura, deixara sobre a mesa. O título era Humilhados
e Ofendidos. Ficou pensativa. Talvez tivesse pela primeira vez se definido numa classe social. Pensou, pensou e pensou! Chegou à conclusão que
na verdade ninguém jamais a ofendera, tudo que acontecia era porque as coisas são assim mesmo e não havia luta possível, para que lutar?
(Ibidem. p. 40)

A ausência de memória e de educação básica fazem de Macabéa


alienada de sua situação social. Não existe nela consciência de si e,
consequentemente, de classe social. A impessoalidade da personagem se
representa nas relações não autênticas consigo, com os outros ou com o
mundo. Macabéa se apresenta como impessoal em diversos momentos em
que parece estar alheia de toda e qualquer responsabilidade, como por
exemplo quando questionada sobre o empenho de suas atividades
desenvolvidas no trabalho. Ela simplesmente não age e não demonstra que
sente responsabilizada, apenas continua realizando o trabalho da mesma
forma mecanizada.
Ou seja, a não responsabilização por seus atos, aquela
participação que não existe, se dá porque efetivamente não participa da
relação de interação social. Macabéa não procede porque não é. “Mas vivia
em tanta mesmice que de noite não se lembrava do que acontecera de
manhã. Vagamente pensava de muito longe e sem palavras o seguinte: já
que sou, o jeito é ser.” (Ibidem. p. 34)
Na relação com Olímpico de Jesus a nordestina experimenta sua
primeira tentativa de construção de identidade. Para ela, Olímpico seria
quem a salvaria de sua nadificação, transformando-a em alguém. “Macabéa
ficava contente com a posição social dele porque também tinha orgulho de
ser datilógrafa, embora ganhasse menos que um salário mínimo. Mas ela e
Olímpico eram alguém no mundo. ‘Metalúrgico e datilógrafa’ formavam
um casal de classe.” (Ibidem. p. 45). Ela vê em seu namorado a abertura
para construção de identidade, porém ainda aprisionada em modelos sócias
hegemonicamente pré-estabelecidos.
Pensar era tão difícil, ela não sabia de que jeito se pensava. Mas Olímpico não só pensava como usava palavreado fino. Nunca esqueceria que no
primeiro encontro ele a chamara de ‘senhorinha’, ele fizera dela alguém. Como era um alguém, até comprou um batom cor-de-rosa. (Ibidem. p. 54)

Em Olímpico, Macabéa vê possibilidade de construção de


identidade através de uma relação social verdadeira e não protocolar ou
superficial, como as outras interações que tinha, tanto no trabalho como
com suas colegas de quarto. Sua relação amorosa abre a possibilidade de
construção de memória de origem, ou seja, base para uma identidade
definida: a esposa.
Entretanto a ausência de base para comportamento social dificulta
e, em certa medida, impossibilita a relação de se concretizar. Sua fala
atravessada por diversas impressões, sem encadeamento lógico,
transformava a tentativa de abertura de si para construção de identidade em
um fracasso. “- Sabe o que mais eu aprendi? Eles disseram que se devia ter
alegria de viver. Então eu tenho. Eu também ouvi uma música linda, eu até
chorei.” (Ibidem. p.51). Na tentativa de mostrar como é, a nordestina
profere discurso deslocado, sem sentido, como colcha de retalho de
sensações que perpassam seu nada interior. Sua relação com Olímpico não
se dá por encontros, mas por desencontros em seus diálogos e infortúnios
do acaso. “Você só sabe mesmo é chover”, diz Olímpico para a nordestina,
após o terceiro encontro em meio a tempestade.
- Olhe, Macabéa...
- Olhe o quê?
- Não, meu Deus, não é “olhe” de ver, é “olhe” como quando se quer que uma pessoa escute! Está me escutando?
- Tudinho, tudinho!
- Tudinho o quê, meu Deus, pois se eu ainda não falei!
(Ibidem. p.54)

Os seus diálogos eram sempre deslocados, ausentes de sentido,


ocos. Macabéa remotamente dava-se conta de que não dissera uma palavra
verdadeira. Suas respostas eram sempre automatizadas, sem reflexão ou
autenticidade. Apenas reproduzia o que já havia escutado ou perguntava
constantemente para Olímpico aquilo que não entendia. Julgava Olímpico
mais sábio que ela, ou seja, alguém.
- Você sabia que na rádio relógio disseram que um homem escreveu um livro chamado Alice no País das Maravilhas e que era também um
matemático? Falaram também em “élgebra”. O que é que quer dizer “élgebra”?
- Saber disso é coisa de fresco, de homem que vira mulher. Desculpe a palavra de eu ter dito fresco porque isso é palavrão pra moça direita.
(Ibidem. p. 50)

Vemos em Macabéa a idiossincrasia do nordestino retirante nas


grandes cidades, seu deslocamento na sociedade capitalista, o
embrutecimento gerado pelas desigualdades sociais e, ainda sim, uma busca
por compreender o mundo e a si mesma. João Cabral de Melo Neto em A
Educação pela Pedra fala sobre as palavras do sertanejo.
Daí porque o sertanejo fala pouco:
as palavras de pedra ulceram a boca
e no idioma pedra se fala doloroso;
o natural desse idioma fala à força.
Daí também porque ele fala devagar:
tem de pegar as palavras com cuidado,
confeitá-las na língua, rebuçá-las;
pois toma tempo todo esse trabalho.
(MELO NETO, 2008, p. 202)

Macabéa não tem esse cuidado de enfeitar palavras. Macabéa


tateia como um cego em busca de um objeto perdido. A nordestina não
compreende as palavras e busca compreende-las em poucas oportunidades
com o seu amado Olímpico. Macabéa não sabe o que dizer porque não se
lembra o que deve ser dito e esse não saber é a sua própria identidade
desconexa ou obscura.
Todo ato da fala é um ato de memória e, portanto, de
esquecimento. Como as memórias de Macabéa são deslocadas na sua
construção de identidade, ela pouco fala ou dialoga com aqueles que estão
presentes na sua convivência. “Ela era calada (por não ter o que dizer) mas
gostava de ruídos. Eram vida. Enquanto o silêncio da noite assustava:
parecia que estava prestes a dizer uma palavra fatal.” (LISPECTOR. 1998.
p.33)
A nordestina não dialoga porque o caminho entre ela e o mundo é
interrompido em seu princípio. A consciência de si é fundamento para
construção de relação com o outro. O deslocamento consequente da
ausência de memória e a nadificação de identidade causada pela miséria
eminente transbordam o pensamento de Macabéa, uma filósofa quase
conceitual.

Bibliografia
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SARTRE, Jean Paul. Esboço para uma teoria das emoções. Porto Alegre: L&PM, 2009.
O encontro entre dança e pensamento no processo criativo de Pina
Bausch

105
Renata Tavares Noyama

O encontro entre pensamento e dança é uma questão. Talvez somente


aos meus olhos ela tome alguns contornos de questão imprescindível,
porque vivo a experiência da dança como muito fundamental, e me
pergunto se é possível falar dela com palavras. Talvez esta proposta de texto
seja, portanto, apenas um diálogo com o espelho. Mas o que me faz pensar
que é possível pensar esta questão com algum grau de importância é a
experiência criativa em residências artísticas com o método de criação
coreográfica de Pina Bausch.
Faço aqui um relato de duas experiências semelhantes, nas residências
artísticas promovidas pelo Grupo de Pesquisa FLOEMA, da Universidade
Federal de Santa Maria, dirigido pelo Professor Dr. Marcelo de Andrade
Pereira, com o bailarino Eddie Martinez, integrante do Tanztheater
Wuppertal Pina Bausch. Foram eventos que duraram, o primeiro, três
semanas, em dezembro de 2015 e o segundo, quatro semanas, entre
novembro e dezembro de 2018, no campus da UFSM, em Santa Maria –
RS. Em ambos, Eddie Martinez dirigiu um grupo de aproximadamente 16
bailarinas e bailarinos para criar uma peça através do método de perguntas e
respostas desenvolvido por Pina ao longo de seu trabalho à frente do
Wuppertal Tanztheater. Procuro, com isto, numa costura muito tênue, dizer
que para dançar, dentro da perspectiva de Pina, foi preciso pensar e não
pensar, e para pensar, foi preciso dançar e não dançar.

O que é dança-teatro?
O hibridismo entre dança e teatro, que surgiu da vertente alemã da
dança moderna do início do século XX precisa, em primeiro lugar, ser
entendido como um apagamento de fronteiras entre os dois campos. E de
maneira bastante radical, radical o suficiente para transformar ambos os
conceitos. O termos tanztheather, primeiramente usado por Rudolf Von
Laban para descrever suas danças corais, começou a ser usado ao longo da
primeira metade do século XX por alguns coreógrafos, mas de forma mais
esporádica, com a intenção de tentar nomear um gênero independente, ou
seja, de marcar posição contrária a estéticas tradicionais. Um exemplo disto
é o uso deste termo por Kurt Jooss em sua famosa peça A Mesa Verde, uma
composição intensa que põe o dedo na ferida da Guerra e precisava ser
claramente diferenciada de um balé convencional. Mas apenas no final da
década de 70, quando a Companhia de Wuppertal estava sob a direção de
Pina Bausch há alguns anos, é que o termo passou a significar propriamente
uma forma de trabalhar, um resultado, uma estética, um gênero. Por isso o
nome de Pina Bausch é o primeiro a vir a tona quando se pensa em dança-
teatro.
Uma questão que deve ser colocada é a de que tais fronteiras,
definições de que algo é ou não e dança, ou de que algo é ou não e teatro
pertencem a um entendimento de arte que é o justamente o que se pretende
questionar. A dança-teatro é inequivocamente um exemplo de arte pos-
dramática, o que significa um questionamento não somente do lugar e do
conceito do drama burguês, mas também de suas raizes mais antigas e
profundas, filosóficas por excelência. Portanto, cabe antes de tudo evitar
uma interpretação superficial de que possa se tratar de algum tipo de
colagem, junção, ou mero jogo aleatório de composição.
Com a palavra ausdruckstanz, dança de expressão, Rudolf von Laban
iniciou uma atitude nova em relação à dança de sua época. Ate aquele
momento a dança era uma arte cuja compreensão se dava plenamente
dentro dos parâmetros da representação, e além de primordialmente
mimética, era uma arte de valores declaradamente aristocráticos. A dança
moderna como um todo, ou seja, os movimentos de rompimento com o balé
clássico que surgem tanto na Europa quanto nos Estados Unidos na virada
do século XIX para o XX tem como ponto em comum a busca de uma
movimentação mais expressiva e menos presa a formas pré-estabelecidas.
Mas a vertente europeia desenvolveu-se dando mais ênfase a certa noção de
conteúdo, a não se orientar somente por uma movimentação livre do corpo,
(ou melhor, orientando-se sim por esse propósito mas com certa intenção “a
mais”). Mais do que Martha Graham ou Merce Cunningham, Kurt Jooss,
Pina Bausch e outros tinham uma espécie de crença de que a dança pode
quase falar uma linguagem “universal”, e dizer o que as palavras não
podem dizer. Ou ao menos eles declaravam esta intenção de modo mais
enfático do que os norteamericanos.
Em uma entrevista de 1999, Christopher Bowen pergunta a Pina
Bausch se ela se via parte deste movimento da performance do final do
século XX, em que as pessoas estão falando sobre seus problemas, sobre a
condição humana, diretamente para o público, mais do que através de
personagens históricos ou ficcionais. E Pina Bausch diz:
Eu tenho certeza de que você assiste a muito mais performances do que eu. Eu não vejo tantas, portanto é muito difícil para mim responder isto. O
que nós estamos fazendo é ainda uma abstração. Não é algo privado; há sentimentos que pertencem a todos nós. Se você for realmente honesto,
não é privado, porque nós conhecemos todos estes sentimentos. Nós temos os mesmos desejos; todos nós sentimos medo. Existem diferenças – o
gosto, o sabor é diferente. Mas nós estamos todos juntos, e esta é a riqueza – todas as possibilidades – que eu celebro em minhas peças. (apud
Climenhaga, 2013, p. 101)

Este tipo de afirmação como “há sentimentos que pertencem a todos


nós” é um pouco assustadora, geradora de uma desconfiança justa,
principalmente nos filósofos calejados pela vida das mais justas
desconfianças. E então soa impossível o diálogo ao qual eu me referia
acima. Dança e filosofia nem sempre tem encontros amistosos. Por isso a
intenção deste texto e de ser mais uma narrativa do que uma prova de
qualquer coisa. Ele trata apenas de sensações vividas por mim durante estas
duas experiências de residência artística em dança-teatro.
Mas são sensações que coadunam com as falas de Pina Bausch.
Esta foi uma experiência em que todos nós, bailarinas e bailarinos, tivemos
106
de buscar formas de dizer sem palavras , aquilo que todos nós sentimos,
aquilo que nos ocupa a todos, aquilo que pertence a todos nós. E é claro que
até temos palavras para estes sentimentos: desejo, amor, decepção, sonho,
raiva, tristeza, etc. As questões mais humanas são as questões que Pina
coloca. Mas trata-se de dizê-las com a maior verdade possível, que já não é
mais a verdade intelectual. Trata-se de dizê-las com o corpo, com o gesto,
um gesto que será compreendido também com o corpo, sem que ninguém,
nem no palco nem no público, nomeie este processo.
No momento das buscas nós não somos bailarinos e coreógrafa, e sim seres humanos. Fazemos isto como um trabalho manual, e nenhum de nós
representa nenhum papel. Eu não quero contar nenhuma história se não pudermos atrás dela tornarmo-nos anônimos. Nossos temas e motivos tem
a ver com o desejo. Consequentemente, o fato de que todos queremos ser amados. Quando eu na peça 1980 pergunto: de que você tem medo é,
portanto, porque todos temos medo de algo. [...] As palavras e as questões vêm, portanto, de todos nós. Elas nascem em várias línguas, em várias
horas e dias, porque querem expressar algo muito preciso. Que é em cada momento diferente (apud Koldehoff, 2016, p. 124, tradução nossa).

Há que se cuidar aqui do mais sutil, que é perceber que nesta


proposta de trabalho estão excluídas justamente dois pilares do pensamento
tradicional eurocêntrico, de bases filosóficas: a representação e o
isolamento da subjetividade. Quando se olha de fora, para o trabalho de
Pina Bausch, não é imediato que se dê toda ênfase a isso. Mas vivendo-o
desde o meu próprio corpo, é para mim inegável que a criação é um
processo em que pequenos relances de gestos, movimentos, verdades muito
humanas e viscerais, que não chegam à cena através da representação, vão
compondo um todo com coerência, mas sem imposição. Ao mesmo tempo,
a subjetividade e o anonimato deslizam um sobre o outro, uma vez que a
criação é coletiva, e traz histórias muitas vezes muito pessoais, sem que ao
pessoal seja dada qualquer ênfase.
Insisto em repetir: parece que essa afirmação joga muita coisa sobre os
ombros de Pina Bausch. É claro que não foi a intenção dela desconstruir a
filosofia. A única coisa que afirmo aqui é que para se fazer um trabalho
como Pina Bausch pensa que ele deve ser feito, é preciso se desvencilhar
das formas impostas da filosofia. Ao mesmo tempo, a profunda
desconstrução exigida para que se chegue a falar através do gesto, ao modo
de Pina Bausch, também é uma experiência filosófica.
O método de perguntas e respostas
Isto acontece através de um método que foi sendo desenvolvido por
Pina aos poucos, ao longo de seu trabalho no Wuppertal Tanztheater. Suas
primeiras obras, das quais se poderia dizer que atendem mais à ideia de
teatro dramático por seguirem um enredo determinado, eram coreografadas
inteiramente por ela. Mas aos poucos, Pina foi se movendo em direção a um
trabalho mais fragmentado, construído a partir das respostas dos bailarinos
às suas questões. De modo muito breve, a descrição do processo seria a
seguinte: Pina propunha questões, palavras, frases, obras, quaisquer coisas
que lhe parecesse servir de motivação para a criação, dentro de um
determinado tema, busca ou interesse. E ela se sentava atrás de uma grande
mesa com muitos papéis onde fazia inúmeras anotações (às quais ninguém
tinha acesso) a partir do que as bailarinas e bailarinos apresentavam a ela.
Depois de intensas semanas ou meses em que todos criavam movimentos
durante toda a jornada de trabalho, Pina montava a peça, a partir do
“material” produzido. Uma quantidade inacreditável de coisas interessantes
era sempre posta de lado, porque o sentido não era aproveitar tudo de
bonito que se tivesse produzido e sim colocar juntas as ideias que
pertenciam à peça. Este “pertencer” também não tem um sentido pré-
definido. Tudo se define através de algo mais próximo da intuição e do
instinto do que da concatenação racional.
É muito difícil sondar o mistério deste processo em que Pina
observava, atrás da mesa, e como eram as interferências dela que dirigiam o
processo criativo das bailarinas e bailarinos. Mas há que se ressaltar que
havia um processo de escuta muito interessante. Pina o coloca em termos
bastante claros:
A única coisa que eu posso fazer, já que eu não conheço ‘o público’, é: ‘eu sou o público’, quando faço uma peça. Eu sou o termômetro. O que eu
sinto, vejo, o que me faz rir e do que eu sinto medo: isto é o que mostramos. O que é interessante é que apesar de todas as diferenças, os
sentimentos são estranhamente idênticos (Bausch apud Koldehoff, 2016, p. 125, tradução nossa).

Trata-se, é claro, de uma aposta. Não há aqui nenhuma busca de


objetividade de conceitos. Mas no estranhamente idêntico é que se encontra
toda a força das obras de Pina Bausch. E sem dúvida alguma é a forma
como se conduz o processo de criação que leva a esta comunicação tão
direta de sentimentos. São alguns aspectos importantes, ao meu ver:
primeiro, a aparente aleatoriedade das questões, que forçam a criatividade a
mudar de foco e objetivo o tempo todo, em seguida, a forma como se
desconstrói o movimento em cada um dos momentos em que demonstramos
algo a quem está conduzindo o processo, e por último, a maneira como se
cuida deste movimento, e se o desmonta, e recria, e remonta, e desloca,
enfim, todo um processo de desconstrução de pensamento ao longo desta
criação coreográfica.
Santa Maria, Centro de Convenções, Eddie Martinez e nós
A Universidade Federal de Santa Maria recebeu estas duas residências
artísticas na Sala de Ensaios do seu Centro de Convenções, que era um
espaço amplo, com chão de madeira, espelhos e janelas de vidro do chão ao
teto ao longo de toda a parede externa. As sensações deste lugar que se
tornou a casa destas bailarinas e bailarinos durante o período das
residências são nítidas em minha memória e em ambas as experiências
foram todas muito marcantes. Não é possível reproduzi-las aqui, mas é
importante dizer que cada um de nós se atirou nos processos emocionais
mais intensos possíveis, a fim de oferecer respostas às questões de Eddie.
Na primeira residência, as questões foram: 1. Vida; 2. Risco; 3.
“Love me” (era uma foto de um cartão postal onde havia esta frase); 4. Uma
releitura de três movimentos que Eddie demonstrou; 5. Dia Mundial do
Combate à AIDS; 6. Soletre casa (Soletrar era sempre soletrar com o corpo,
demonstrando de alguma forma as letras da palavra com seu movimento);
7. Poema Sujo; 8. Butoh; 9. El Niño (fenômeno climático). 10. Terra natal;
11. Algo frágil; 12. Sussurro; 13. Chão movente; 14. Movimento em
compasso ternário; 15. Ficar preso entre duas coisas; 16. Assim que eu
coloco a minha mão sobre...; 17. Confiança; 18. Uma imagem de Chagall,
que ficou disponível na sala; 19. Movimento que pode ser feito
infinitamente; 20. Respire vida; 21. Soletre expelir; 22. Design; 23.
Superstição; 24. Asas; 25. Exílio; 26. Tique nervoso; 27. Sucumbir,
entregar-se; 28. Camadas de silêncio; 29. Repentino; 30. Substitua e
desloque (para ser feito em grupo); 31. Chuva fina; 32. Movimentos com
cabeça, quadril, ombro, cotovelo e mão; 33. O corpo como instrumento
musical; 34. Adagio; 35. Metamorfose; 36. Movimentos feitos com uma
cadeira; 37. Soletre beleza; 38. Imagens de cinco quadros de Anthony
Gormley; 39. Movimento do grupo subindo pela parede; 40. Duetos em que
deveria se alternar a pessoa que estava guiando; 41. Soletre amor, com a
ideia de mais difícil, melhor, mais rápido e mais forte; 42. O cão sem
plumas; 43. Soletre vento; 44. Revolução; 45. Impulsivo, compulsivo; 46.
Sufocante.
Na segunda residência, as questões foram: 1. Soletre seu nome
em movimento; 2. Provocar; 3. Um quadro de Basquiat (cuja imagem ficou
disponível); 4. Soletre Basquiat; 5. Som de excitação; 6. Toque o parceiro
como se fosse um instrumento; 7. Soletre “alucinação” fazendo os
movimentos somente contra a parede; 8. Duas formas diferentes de entrar
no palco; 9. Mão, quadril, ombro, cotovelo, mão, dedo (deveria haver
movimentos com todas estas partes do corpo, ficando nítido o que estava se
movendo primordialmente); 10. Uma imagem de refugiados que ficou
disponível para nós; 11. Antes que o vento o sopre para longe; 12. Os sete
pecados capitais;13. Soletre pecado, com movimentos só da cintura para
cima; 14. Algo que você faz para se acalmar; 15. Feio e bonito ao mesmo
tempo; 16. A releitura de sete movimentos que Eddie demonstrou; 17. Com
glitter, brilhante; 18. Variações de tipos de nado (craw, costas, peito e
golfinho); 19. Três pontos de gentileza em seu corpo; 20. Beijo entre duas
pessoas, mas não com os lábios; 21. Fúria silenciosa; 22. Uma imagem de
uma porta medieval, que ficou disponível para nós; 23. Gaúcho; 24. Um
objeto (um objeto real, seu ou dos que estavam disponíveis); 25. A imagem
de Guernica, com o comando “seja Guernica em movimento”. 26. Soletre
Abracadabra; 27. Abandono imprudente; 28. Por que você ama a cor
verde?; 29. Hábito peculiar; 30. Seu alterego; 31. Soletre desejo; 32.
Flutuar, tremer, cavar, cair, circular, arremessar dardo; 33. Criar padrões no
chão: hexágono, triângulo e quadrado.
Como se pode ver, seria impossível comentar sobre todos os
processos iniciados por essas questões. A multiplicidade tem esse papel
muito forte de suscitar tantas imagens quando possíveis, e em cada pessoa
de diversas formas, e isso criava um contínuo caleidoscópios de ideias neste
jogo entre o criar e assistir aos outros criando. E pode-se perceber quão
diferentes eram as questões entre si, dando a impressão de que jamais se
poderia criar um todo coerente a partir delas. Não foi o que aconteceu.
Ambas as apresentações finais, que consistiram em uma “junção” dos solos
criados por cada um de nós, mostraram uma coerência inacreditável.
Outro ponto de grande relevância, como já dito, era o tratamento
que se dava a cada um dos movimentos, ou sequências, isto é, as
“respostas” que apresentávamos a Eddie quando considerávamos que
tínhamos algo pronto. Passávamos estas oito horas diárias na sala, todos
juntos criando coisas, não necessariamente na ordem pedida pelo bailarino,
mas também voltando atrás, recriando e muitas vezes refazendo algo por
solicitação dele. Ao apresentar para ele, todos davam espaço, e
observávamos as criações dos colegas. Tínhamos liberdade o tempo todo.
Mas a exigência mental e emocional era cada vez mais profunda. Cada vez
mais nos comprometíamos com a postura de não representar nada e sim
mostrar o que éramos, e além disso, para cada um, Eddie dava em particular
algumas orientações. Que eram propostas de desconstrução, sempre. Se
uma pessoa falava muito, ele solicitava que não fizesse nada com textos,
por alguns dias; se alguém fazia tudo para a direita, pedia que refizesse o
movimento todo ao contrário; e por aí vai.
Mas o que mais mexia conosco, e isto comentávamos entre nós, era a
falta de respostas. Eddie não dava respostas em termos de valor. Nenhum
movimento era bom, mau, bonito, feio, bem feito, mal feito, nada. Em geral
quando se apresentava algo, ele apenas falava “thank you”. E se havia algo
que ele queria solicitar, nos chamava à sua mesa para falar em particular.
Era isso. Um profundo encontro consigo mesmo, que não era julgado por
parâmetros visíveis, e do qual era exigido cada vez mais, no sentido da
honestidade.
O terceiro ponto importante era a retomada de tudo isto. Nenhum
movimento era perdido. Cada apresentação para Eddie era gravada em um
cartão de memória pessoal, cujos arquivos levávamos para casa para
analisar, e guardávamos para poder utiliza-los na criação dos solos. A partir
da segunda metade do tempo da Residência, Eddie sentava com cada um e
analisava os movimentos gravados, dando algumas indicações do que era
possível fazer com eles. Mais uma vez, nada era sagrado, nem bom, nem
mau, nem lindo, nem horrível. Tudo era algo que poderia dizer. E de cada
levantar de braço, ele poderia comentar algo, por exemplo: me diga como
você pode fazer este movimento se tornar outra coisa, com mais força, com
mais verdade, com mais convencimento? E levantava, fazia, mostrava o que
tinha em mente. Questionava-nos até o fim.
Em suma, nós repetimos muito, mudamos muito, refizemos tudo
muitas vezes. Até os últimos dias, não havia peça. Apenas nos últimos dois
ou três dias, ele estabelecia uma ordem de apresentação, juntava coisas, a
partir de tudo o que tinha anotado. Claro que se pode chamar isto de
colagem, mas é importante que não se perca de vista que o que se “cola”
não são imagens chapadas de revista. Quando se chega a um resultado que
pode ser posto junto, a quantidade de trabalho, de emoção trabalhada
naqueles movimentos, é incalculável. E é isto que dá coerência ao todo.
O diálogo entre dança e filosofia
Este texto, por um lado, não poderia pretender falar tudo sobre estas
experiências. Procurei algumas sensações que pudessem ao menos dar uma
ideia do quão intenso é o processo de desconstrução realizado nestas
vivências de dança-teatro. E por outro lado, apesar da óbvia ligação entre
elas e a filosofia de Jacques Derrida, dentre outros pensadores, é preciso
fazer uma ressalva. Nenhum filósofo, nenhum texto sobre desconstrução,
resume ou explica o que Pina Bausch faz. Porque a filosofia, ainda que uma
filosofia da desconstrução, ainda está na palavra, e não no corpo. A dança é,
justamente, como pretende Pina, diz o que as palavras não podem dizer.
Está entre a palavra e o silêncio, e está inteira, sem precisar de nada que a
justifique.
A ponte, se existe alguma, se há algum diálogo possível, é o
convite à filosofia para que chegue um pouco mais perto deste entre. Para
criar, dentro de uma experiência de dança-teatro com o método de Pina
Bausch, foi necessário pensar muito. Mas justamente este pensar era um
desfazer-se de todos os parâmetros já pensados, era um exercício de silêncio
e transformação do silêncio. Não tenho dúvidas de que falo de algo muito
difícil. E não quero soar pretensiosa, dizendo que a filosofia deveria ser
dança. Mas é fato que à filosofia, falta o corpo, e falta a honestidade do
corpo, especialmente esta que existe quando se propõe dançar para dizer
algo. Os limites e as fronteiras se apagam aqui. Não só as fronteiras entre a
dança e o teatro, mas também as fronteiras entre a palavra e o silêncio, e
entre a linguagem e o movimento.
Bibliografia
CLIMENHAGA, Royd (org.). The Pina Bausch Sourcebook. The making of Tanztheater. Londres: Routledge, 2013.
CLIMENHAGA, Royd. Pina Bausch. Londres: Routledge, 2009.

KOLDEHOFF, Stefan; PINA BAUSCH FOUNDATION (Org.). O-ton Pina Bausch. Interviews und Reden. Wädenswill: Nimbus, 2016.

LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-Dramático. Lisboa: Orfeu Negro, 2008.

PINA BAUSCH FOUNDATION. Une Répétition du Sacre. Paris: L’arche, 2013.

SÁNCHEZ, Lícia Maria Morais. A Dramaturgia da Memória no Teatro-Dança. São Paulo: Perspectiva, 2010.

SERVOS, Norbert. Pina Bausch Dance Theatre. Munique: K Kieser, 2008.


Capítulo III - Flores do político
Pensamentos outros do Direito: desconstrução, justiça,
hospitalidade, desobediência civil e revolução

107
Luciana Pimenta

Desejo começar de um Outro lugar. Talvez porque eu tenha tanto a


dizer sobre Outros lugares: esses espaços-tempos de vida e morte. Talvez
porque não se possa mesmo começar d’algum lugar que já não seja Outro.
Talvez eu queira começar do interior. Cresci no interior. Talvez crescer no
interior seja-já, perante o mundo, uma revolução por vir. Cresci ouvindo
minha mãe cantar Elis Regina. Desejo começar pela voz de minha mãe. A
voz de uma mulher: uma gênese Outra. Um começo que se dá, também,
pela voz de Elis, Outra Mulher, na voz de minha Mãe. Rastros de vozes,
tons e ecos. Cânticos que precedem minha voz, herdeira da voz de minha
mãe, Outra mulher mirando, ainda, uma mulher Outra, aquela que se quer
lembrar por ocasião dos 100 anos do seu assassinato: Rosa Luxemburgo.
Talvez seja, desde sempre, também aqui, onde a escrita me encontra mais
uma vez com Derrida, esse desejo de viver com os fantasmas, do qual não
escapamos. O desejo-tempo de aprender a viver tal qual se nos apresenta o
Exórdio a Espectros de Marx:
O tempo do ‘aprender a viver’, um tempo sem presente tutor, consistiria nisto, o exórdio nos encaminha para isto: aprender a viver com os
fantasmas, no encontro, na companhia ou no corporativismo, no comércio sem comércio dos fantasmas. A viver de outro modo, e melhor. Não
melhor, mais justamente (...). Furtivo e intempestivo, o aparecimento do espectro não pertence a este tempo, ele não dá tempo, que não este (...).
(DERRIDA, 1994, p. 11 e 13)

Não pertencendo ao tempo, o espectro remete à questão da justiça,


para além do presente vivo, o instante-já de Clarice Lispector em Água
Viva (LISPECTOR, 1998). Um momento espectral a partir do qual
questionamos o instante, sua dignidade, a dignidade do homem finito e
racional. Eis-me aqui. Entre muitos fantasmas. Questionando a
possibilidade de falar de pensamentos Outros do Direito. A começar pelo
direito a Outros modos de fazê-lo. Um direito que implica o direito de
assinar um texto que se atravessa de uma dimensão autobiográfica. Talvez
seja preciso reivindicar com seriedade o direito de escrever sempre a partir
de uma autobiografia. O direito a assinar o texto, sem que tenhamos que nos
esconder por detrás de terceiras pessoas de vozes passivas, cultuadas para
intocar o falacioso mito da neutralidade. Talvez esse deva-ser (dever-ser,
essa categoria tão própria do Direito) o primeiro lugar Outro do Direito.
Não apenas um lugar de fala, mas um lugar de escuta. Um lugar que escuta
as vozes que o estão a dizer, reivindicar, e desejar transformar: um direito
como literatura, não menos um direito fundamental à literatura.
Cresci no interior onde eu, menina, nada sabia sobre Rosa
Luxemburgo. O Rosa da gente era o Rosa do sertão. Aquele mesmo do
interior. O sertão é dentro. Mas talvez haja entre eles um elo, pr’além das
rosas assinadas em seus nomes: uma genealogia da ferocidade do mundo.
Lá onde os cantos duros da vida pedem que se cante. En-cante! Minha mãe
cantava! Dentre as muitas canções que tramam meu interior, O Medo de
108
amar é o medo de ser livre , ressoa nessas vozes, de Elis e minha mãe, que
me atravessam. Estamos, pois, sempre a começar pelo que já começou. Ali
onde o por vir do passado – expressão também colhida em Espectros de
Marx – apresenta a nós uma fenda, uma abertura, um lugar a caminho de
Outro. Sim. Não o por vir futuro, antes o por vir do aberto que se apresenta
a nós. O Direito por vir. A democracia por vir. As vozes vindas de nossos
próprios cantos.
A composição de O Medo de Amar é o medo de ser livre diz:
O medo de amar é o medo de ser
Livre para o que der e vier
Livre para sempre estar onde o justo estiver

O medo de amar é o medo de ter


De a todo momento escolher
Com acerto e precisão a melhor direção

O sol levantou mais cedo e quis


Em nossa casa fechada entrar pra ficar

O medo de amar é não arriscar


Esperando que façam por nós
O que é nosso dever: recusar o poder

O sol levantou mais cedo e cegou


O medo nos olhos de quem foi ver
Tanta luz

Façamos a travessia dessa canção. Vivamos a terceira margem. Estrofe


por estrofe nos servirão de epígrafe a cada uma das partes de nossa
construção.
O medo de amar é o medo de ser
Livre para o que der e vier
Livre para sempre estar onde o justo estiver

O medo de amar é o medo da desconstrução. Vejamos. Em Melancolia


de Abraão (2015), Michal Ben-Naftali faz a provocação:
A desconstrução dos ‘conceitos’ é dupla: ao mesmo tempo temática e performativa. [...] Esses ‘conceitos’ se veem assim rigorosamente
‘tematizados’. [...] ‘tremor’ suscitado pela desconstrução [...] ‘responsabilidade absoluta’. Não se pode ignorar o Eros da desconstrução [...].
Naquilo em que ela está sempre comprometida em uma relação com ‘objetos’ de seu amor, [...] você diz: ‘A desconstrução é a justiça’ (1994, p.
65-136), mas nunca ‘A desconstrução é o amor’ (BEN-NAFTALI in DERRIDA, 2015, p. 12).

Derrida responde:
[...] Abraão rompe e marca uma ruptura por entrar em uma relação singular com Deus. [...] Por que responder a Deus? Esse amor supõe a ruptura,
o sacrifício daquilo que nós, homens ou mulheres, chamamos o ‘amor’. [...] ele rompe todos os elos afetivos com o mundo dos humanos e com
seus próximos e, por isso, aliás, Kierkegaard diz, desse ponto de vista, que Abraão permanece criminoso, que ele é um criminoso. [...] Como se
ele odiasse aqueles que ama. [...] Abraão escolhe um amor contra o outro. [...] [...] Porque ele acha isso mais justo. A responsabilidade é um desses
conceitos que é mais fácil associar à ideia de direito e de justiça do que a ideia de amor.
[...] Como uma épokhé última? Sim…, responde Derrida, mas então portar em mim é tanto portar o ser vivo quanto o ser morto. (DERRIDA,2015,
p.15)

O medo de amar é, assim, também um medo de amar os mortos. Medo


de ser livre para o que der e vier e de estar onde o justo estiver. O medo de
amar é o medo da justiça, o medo de lançar-se ao impossível, ao estranho,
ao estrangeiro, ao que vem, ao que não se sabe, ao que pede que decidamos.
O medo de amar é o medo de ter
De a todo momento escolher
Com acerto e precisão a melhor direção

O medo de amar como o medo de escolher com acerto e precisão a


melhor direção coloca a questão do cálculo, que é o lugar do Direito. Força
de lei está a nos mostrar que o Direito calcula, enquanto a Justiça excede
todo cálculo. A justiça é, assim, uma desmedida e sua urgência não
comporta o cálculo. A questão da escolha, ganha, pois, os contornos da
différance no campo singularizado da decisão, proveniente do indecidível.
O indecidível não é somente a oscilação ou a tensão entre duas decisões. Indecidível é a experiência daquilo que, estranho, heterogêneo à ordem
calculável e da regra, deve entretanto – é de dever que é preciso falar – entregar-se à decisão impossível, levando em conta o direito e a regra. Uma
decisão que não enfrentasse a prova do indecidível não seria uma decisão livre, seria apenas a aplicação programável ou o desenvolvimento
contínuo de um processo calculável. Ela seria talvez legal, mas não seria justa. Mas, no momento de suspensão do indecidível, ela também não é
justa, pois somente uma decisão é justa. (DERRIDA, 2018, p. 46 e 47).

O sol levantou mais cedo e quis


Em nossa casa fechada entrar pra ficar

Quando o sol se levanta mais cedo ainda é noite. A noite é o lugar de


onde a desconstrução fala. Como a noite de Blanchot. Aqui o Sol - o sol que
ainda é noite - é Outro. Talvez um sol cego. Um sol que entra na casa
fechada. Um sol que deseja amar. A desconstrução é um sol que entra na
casa fechada. Aqui ela aparece na forma que conclama a hospitalidade. Não
há desconstrução sem hospitalidade. Essa que desafia o Direito, em nome
da Justiça, a rever suas teses sobre soberania e cidadania. A hospitalidade
desafia os limites geográficos e culturais que servem de sustentação ao
Estado Moderno, estruturado sob os eixos conceituais de “povo”,
“território” e “poder”. Perante esse Estado, aí onde um sol cego adentra a
casa, a desconstrução, enquanto justiça, é o próprio por vir.
Mas, por isso mesmo, ela talvez tenha um futuro, justamente um por-vir que precisamos distinguir rigorosamente do futuro. Este pede a abertura, a
vinda do outro (que vem) sem o qual não há justiça (...) A justiça permanece porvir, ela tem por vir, ela é por-vir, ela abre a própria dimensão de
acontecimentos irredutivelmente porvir. Ela terá sempre, esse porvir, e ela o terá sempre tido. (DERRIDA, 2018, p. 54).

Hospitalidade e por vir se encontram, pois, no elo da desconstrução, ali


onde a justiça é uma experiência de alteridade absoluta:
A justiça como experiência de alteridade absoluta, é inapresentável, mas é a chance do acontecimento e condição da história. Uma história sem
dúvida irreconhecível, claro, para aqueles que pensam saber do que falam quando falam essa palavra, que se trate de história social, ideológica,
política ou jurídica. (DERRIDA,2018, p. 55)

O medo de amar é não arriscar


Esperando que façam por nós
O que é nosso dever: recusar o poder

A desconstrução pede que arrisquemos. Não há certeza possível. Não


lugar de chegada que esteja posto. “O excesso da justiça sobre o direito e
sobre o cálculo (...) não pode e não deve servir de álibi para ausentar-se das
lutas jurídico-políticas, no interior de uma instituição ou de um Estado,
entre instituições e entre Estados” (DERRIDA, 2018, p. 55).
A desconstrução só existe se valendo dos indecidíveis, essas unidades
“que não se deixam mais compreender na oposição filosófica (binária) e
que, entretanto, habitam-na, opõe-lhe resistência, desorganizam-na, mas
sem nunca constituir um terceiro termo, sem nunca dar lugar a uma solução
na forma dialética especulativa” (DERRIDA, 2001, p. 49).
Assim, o amor ao direito, pede, antes, que se ame a justiça, seu Outro
impossível que orienta a transformação do direito. Esse amor à justiça
envolve, pois, o amor pela própria revolução, fazendo aparecer diante de
nós o fantasma de Rosa Luxemburgo que, por sua vez, já guarda em si a
aparecimento do fantasma de Marx.
No meio no caminho tinha uma morte: a morte de Engels, em 05 de
agosto de 1895. No ano seguinte, Bernstein iniciou a publicação de vários
artigos que contestavam e propunham a revisão do marxismo. Bernstein
afirmou que a teoria marxista não correspondia mais à realidade. Ele
afirmou que, embora o partido continuasse defendendo estas teses, sua
prática as negava. Para Bernstein, o partido deixa de ser revolucionário, no
sentido da Liga dos Comunistas, e tornara-se reformador, o que sugeria um
déficit entre a teoria (revolucionária) e a prática (reformista).
Bernstein acusou o partido de uma postura utópica, ao por permitir que
prevalecesse a crença de que a conquista do poder pelo proletariado
resolveria os problemas sociais. Ele tinha em mente a falência da tese
marxista de contínua proletarização da classe média e empobrecimento dos
trabalhadores. A realidade mostrava que a situação da classe operária estava
melhorando e que a classe média estava se multiplicando, inclusive com a
participação de setores do proletariado. Assim, ao invés de se acentuarem as
contradições, estaria ocorrendo o inverso.
As teses de Bernstein foram discutidas em outubro de 1899, no
Congresso de Hanover e também no Congresso de Lubeck, sendo em
ambos reprovadas. Mas, a recusa de suas teses não implicou na expulsão de
Bernstein do partido que, muito pelo contrário, veio a ser eleito para o
parlamento.
Reforma Social ou Revolução? (1986), de Rosa Luxemburgo, foi
escrito nesse contexto, entre de 21 de setembro a 28 de outubro de 1898,
quando publicou os artigos que foram reunidos no livro assim intitulado.
Por um caminho à margem de Bernstein, Rosa buscou restabelecer a
unidade entre teoria e prática. Sua crítica rejeitava qualquer contraposição
rígida entre reforma e revolução e dava ênfase ao nexo existente entre
ambas:
Reforma social ou revolução? Pode, portanto, a social democracia opor-se às reformas sociais? Ou pode impor a revolução social, a subversão da
ordem estabelecida, que é seu objetivo social último? Evidentemente que não. Para a social-democracia lutar dia-a-dia, no interior do próprio
sistema existente, pelas reformas, pela melhoria da situação dos trabalhadores, pelas instituições democráticas, é o único processo de iniciar a luta
da classe proletária e de se orientar para o seu objetivo final, quer dizer: trabalhar para conquistar o poder político e abolir o sistema salarial. Entre
a reforma social e a revolução, a social- democracia vê um elo indissolúvel: a luta pela reforma social é o meio, a revolução social o fim.
(LUXEMBURGO, 1986, p. 23).

Para Rosa Luxemburgo, o erro de Bernstein não consistia em defender


as reformas, mas no fato de realizar uma inversão na relação desta com a
revolução. O objetivo final era negado: a reforma, de simples meio da luta
de classes transformava-se no seu fim último. Para Rosa, o próprio
Bernstein exprimiu essas opiniões da maneira mais transparente e mais
característica ao escrever: “O objetivo final, qualquer que seja, não é nada;
o movimento é tudo”. (LUXEMBURGO, 1986, p. 23 e 24)
Contrariamente a Bernstein, que acreditava que certos fatores de
adaptação como as fusões, o sistema de crédito, os sindicatos, etc., anulam
as contradições do capitalismo e o salvam da ruína, Rosa pretendeu mostrar,
a todo instante, que os “fatores de adaptação” (LUXEMBURGO, 1986, p.
31), de que falava Bernstein, não anulavam a luta de classes e muito menos
as contradições do capitalismo.. Em relação ao Estado, sua crítica foi ainda
mais radical. Ela foi além da afirmação de que o Estado é um Estado de
classe. Para ela, era necessário compreender essa afirmação “nunca de
forma absoluta e rígida, mas na acepção dialética, como tudo o que se
relaciona com a sociedade capitalista”. (LUXEMBURGO, 1986, p. 55) A
perspectiva seria a fusão do Estado com a sociedade e a transferência de
suas funções para esta.
A concepção de Estado em Bernstein estava indissoluvelmente ligada
à sua concepção de democracia. Para ele, o socialismo aparecia então como
resultante do desenvolvimento pacífico e ininterrupto da democracia e das
instituições burguesas. A classe operária deveria submeter seu objetivo final
fundamental à sua defesa e garantia. Para Rosa, mais uma vez, os valores de
Bernstein estavam invertidos:
O movimento socialista é, atualmente, o único sustentáculo da democracia, não existindo nenhum outro. Verificar-se-á, então, que não é a sorte do
movimento socialista que está ligada à democracia burguesa, mas pelo contrário, é a democracia que se encontra ligada ao movimento socialista.
(...) Quem desejar o reforço da democracia desejará o reforço e não o enfraquecimento do movimento socialista; renunciar à luta pelo socialismo é
renunciar simultaneamente ao movimento operário e à própria democracia. (LUXEMBURGO, 1986, p. 97)

Nesse sentido, também em Rosa é a democracia é um devir e não algo


que se ponha como dado. A pensar com as categorias hermenêuticas, na
política e no direito, não há dado. Há o construído. Um construído que, em
Derrida, depende da desconstrução. Um construído que, na voz de Elis -
continuo ouvindo a voz de Elis e de minha mãe, enquanto sigo pensando
esses lugares outros do Direito - um lugar que nos pede para pensar, na
canção, o lugar de “recusa do poder”.
O sol levantou mais cedo e cegou
O medo nos olhos de quem foi ver
Tanta luz

O sol se levantou mais cedo e cegou o medo nos olhos de quem foi ver
tanta luz. Cegueira. Talvez seja dela, pois, que pensamentos outros do
Direito estejam a carecer. Saramago já o tinha anunciado, em Ensaio sobre
a cegueira (1995), onde a questão da animalidade também restou
vivenciada. E talvez essa cegueira seja, aqui, a própria possibilidade de
pensar a desobediência civil e seu elo com a desconstrução. Se voltarmos
no tempo, no tempo de uma fundamentação teológica do Direito, um tempo
medieval (talvez não muito distante do tempo-presente-vivo-morto do
Brasil contemporâneo), Tomás de Aquino, na Suma Teológica (2005)
justificava a obediência à lei injusta, em nome do bem comum, para evitar a
perturbação e a desordem. Não restava ali, por mando de Deus – “aqueles
que mandam, mandam em meu nome” qualquer espaço para a
desobediência.
Passados alguns séculos, em que pese o tempo não nos ter liberado de
afirmações como as de Edir Macedo (2019), de que suas filhas não devem
estudar para servir a Deus e não assumirem posições superiores à de seus
maridos, o tema da desobediência se coloca como uma pedra angular da
legitimidade. Talvez aqui se tenha o encontro da desconstrução tanto com o
amor quanto com o ódio. O amor e ódio legítimos. A justa ira (já
mencionada hoje na fala do Marcelo, pela manhã, ali onde o sol levantou
mais cedo e nos cegou).
Sim, falamos, com Derrida, de um lugar de cegueira. Um lugar que
nos devolve ao lugar do amor, ao saber de cor! Também um lugar para o
ódio. Ambos legítimos. Um lugar que nos devolve ao começo para
recebermos nossos mortos: a voz de minha Mãe, a voz de Elis, e as vozes
tão vivas de Marx, Rosa Luxemburgo e Derrida. Estão todos aqui. Aqui
estamos, em torno deles. Essa reunião é uma festa do amor, da
singularidade. Uma celebração da alteridade e dos mortos que nos fazem
tão vivos.
Esse semestre, venho dedicando meus os estudos de Direito e
Literatura ao Quarto de Despejo (2014), de Carolina Maria de Jesus. No
mês passado, fizemos em Belo Horizonte um Congresso de Direito,
Congresso sobre Direito, Memória, Democracia e Crimes de Lesa
Humanidade, realizado em Belo Horizonte, nos dias 28 e 29 de agosto de
2019. Nele apresentei, em conjunto com uma orientanda, um artigo
intitulado “A revolução Carolina Maria de Jesus e a necessidade de
superação da miséria brasileira”, um artigo onde procuramos desconstruir a
imagem montada de Carolina para desloca-la ao seu merecido lugar de
escritora e poeta. Um trabalho que nos conecta ao verdadeiro sentido da
desconstrução: “A desconstrução é a condição de possibilidade e a
promessa de uma revolução do político”, lembra Fernanda Bernardo (2011).
Assumamos essa promessa. Com amor! Com desobediência! O medo de
amar se desconstrua em nós, também o medo de odiar: o medo de odiar a
maldade, odiar o horror, odiar uma epistemologia racista e excludente,
modo de assim sermos livre – irresponsável e responsavelmente livres –
para seguirmos em busca da justiça.
REFERÊNCIAS
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desconstrucao-a-democracia-por-vir-385759.html Acesso em 20 de set. 2019.

DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: O Estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Tradução Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.

DERRIDA, Jacques. Força de lei: O fundamento místico da autoridade. Tradução de Leyla Perrone-Moisés, 3ª ed. São Paulo: Editora WFM Martins Fontes, 2018.

DERRIDA, Jacques. Melancolia de Abraão. In: Cada vez o impossível: Derrida. EYBEN, Piero. WALACE, Fabrícia Rodrigues. Org. Vinhedo: Editora Horizonte, 2015, p. 12 a 39.
Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

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JESUS, Carolina Maria de. Quarto de Despejo: diário de uma favelada. 10. ed. São Paulo: Ática, 2014.

LISPECTOR, Clarice. Água Viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

LUXEMBURGO, Rosa. Reforma Social ou Revolução. São Paulo: Ed. Globo, 1986.

MACEDO, Edir. Em vídeo Edir Macedo diz que proibiu filhas de estudarem antes de casar. In: Uol Notícias. Disponível em
https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2019/09/24/edir-macedo-diz-que-so-deixou-filhas-fazerem-faculdade-apos-casamento.htm. Acesso em 01 de out. 2019.

O MEDO DE AMAR É O MEDO DE SER LIVRE. REGINA, Elis (intérprete). In: Elis. 2002, CD. 12 músicas. 43min18s. Disponível em Spotify.

O MEDO DE AMAR É O MEDO DE SER LIVRE. GUEDES, Beto (compositor). O medo de amar é o medo de ser livre. In: O sal da terra (Best of). EMI Music, 2010. CD. 14
músicas. 47min54s. Disponível em Spotify.

PIMENTA, Luciana e ROBERTI, Marina. A revolução Carolina Maria de Jesus. In: CONGRESSO SOBRE DIREITO, MEMÓRIA, DEMOCRACIA E CRIMES DE LESA
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SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

TOMÁS DE AQUINO (Santo). Suma Teológica: justiça, religião, virtudes sociais. Volume 6 Seção 2: Parte 2: Questões 57-122. Trad. Aldo Vannuchi... [et al.], São Paulo: Ed.Loyola,
2005.
Hospitalidade e vulnerabilidade: notas sobre ética em Judith Butler
e Jacques Derrida

109
Ana Luiza Gussen

Derrida afirma que o impossível e o talvez perpassaram tudo que ele


escreveu sobre a hospitalidade incondicional. E aqui acho que o esforço que
se segue ecoa esse impossível e esse talvez. Este texto se constitui de
algumas notas feitas em minha pesquisa de mestrado, e são assim primeiras
notas de um tatear aberto.
Pensar a nossa capacidade de responder eticamente ao Outro implica,
grande parte do tempo, em pensar o Outro numa proximidade muito maior
do que desejamos e escolhemos – quando escolhemos. Fazer essa pesquisa
morando no Rio de Janeiro significa, às vezes, ouvir o barulho de tiro ao
longe, ouvir helicópteros e me encolher toda vez. É me assustar, ao mesmo
tempo, com essa rotineira violência e com o gesto mais corriqueiro ainda
que vem para dispensar meu espanto. É também verdade que marco minha
percepção na distância segura de um apartamento na zona sul, de um corpo
que não se faz alvo para essas balas, mas não posso negar a consternação
que me toma pensar na absurda exposição de certas vidas à violência de um
Estado que mal as consideram vidas. Se já havia um impulso de pesquisa
antes disso, não posso deixar de notar que estar nesse lugar onde todos os
dias mais uma vida negra é cruelmente assassinada, nesse lugar que é um
laboratório de práticas de violência estatal, não me deixa esquecer e de me
demandar, que cada vez mais é importante pensar a possibilidade da relação
ética e de um modelo de responsabilidade global, mesmo no momento
hiperbólico em que o outro deseja aniquilar justamente minha humanidade.
Dito isso, prossigo para apresentar estas notas, as quais passam pela obra de
Judith Butler e de Jacques Derrida e que não passam de impressões,
questões e formulações abertas.
Em Relatar a si mesmo, Butler expõe a questão sobre as consequências
de pensar um sujeito que não funda a si mesmo, um sujeito que, em seus
níveis mais fundamentais, se confunde na relacionalidade em que ele
aparece. Assim ela diz:
[...] a resposta à exigência de relatar a de si mesmo diz respeito a compreender ao mesmo tempo a formação do sujeito (si-mesmo, Eu, moi,
perspectiva de primeira pessoa) e sua relação com a responsabilidade. O sujeito sempre incapaz de fazer um relato completo de si mesmo pode
bem ser o resultado do fato de estar relacionado aos outros, em níveis não narráveis de existência, em aspectos que têm um significado ético
superveniente. (BUTLER, 2015, p.170)

Para Butler isso implica dizer que suas condições de surgimento jamais
poderão ser completamente acessadas. Ela então questiona: estaria assim
aniquilada a possibilidade de se pensar a responsabilidade ou de dar um
relato de si? Butler alerta que o relato de si tem um preço que vai além de
perceber que sou incapaz de acessar muitas condições da minha própria
formação. É perceber que essas dimensões não narráveis e que os
parâmetros sociais de interpelação, ou seja, as normas pelas quais o “eu”
torna-se inteligível, persistem em mim como condições que possibilitam o
meu desejo, como condições estrangeiras. (BUTLER, 2015, p.170)
Esse sujeito fundado na abertura, numa vulnerabilidade primária, é
então opaco a si mesmo e, portanto, a responsabilidade com outro não
deveria estar ligada com um conceito de si-mesmo que seja transparente por
completo para si mesmo (BUTLER, 2015, p.170). Esse caminho proposto
por Butler para pensar o relato de si é embalada também pelo impulso de
pensar “como a formação do sujeito implica um quadro de referência para
entender a resposta ética e uma teoria da responsabilidade.” (BUTLER,
2015, p.171). Para Butler, a vulnerabilidade implica o sujeito naquilo que
está além dele e ainda assim é parte dele. Dessa forma, essa noção carrega
consigo uma parte de imprevisibilidade do que não pode ser controlado. Há
dessa forma um entrelaçamento entre todas essas vidas e a minha própria –
uma ligação de um ao outro e a processos vivos que estão além da forma
humana – que não se resume, ou não pode pretender se reduzir a um elo de
nacionalidade ou proximidade comunitária.
Pensar a vulnerabilidade como traço estrutural, enquanto uma abertura
à alteridade que nos atravessa nos níveis mais fundamentais, tem
consequências para pensarmos na nossa relação ética e nossa
responsabilidade com tudo aquilo que nos constitui e que ao mesmo tempo
não se encerra em nós. Me aproximo aqui de Derrida, partindo de Lévinas,
quando ele pensa a hospitalidade incondicional – e o acolhimento como seu
quase-sinônimo. Pensar a hospitalidade incondicional significa, de acordo
com Rodrigues (2013), apontar para os limites dos pensamentos que se
restringem à ordem do mesmo. Para Derrida “é necessário habituar-se com
esta aporia na qual, finitos e mortais, somos de antemão jogados e sem a
qual não haveria promessa alguma de caminho. É preciso começar por
responder. (DERRIDA, 2015, p.42)
O acolhimento, como pontua Derrida, é sobretudo um primeiro
movimento, e um movimento aparentemente passivo. O acolhimento diz
sobre a receptividade, do receber como relação ética. Quando Derrida
afirma que a hospitalidade não é uma região da ética – ou um dentre outros
problemas éticos – e sim a eticidade propriamente dita, e que essa
hospitalidade, ela é incondicional ou não é hospitalidade, somos levados a
pensar com ele que a abertura ao outro não carrega intencionalidade
anterior ao acolhimento. A própria ideia de que se poderia ter escolha lhe
arranca imediatamente da incondicionalidade. Ao mesmo passo uma
hospitalidade condicionada é apenas um mero cumprimento das regras da
hospitalidade e, de fato, não é bem isso que significa receber. A necessidade
de operar essas inversões e deslocamentos está em fazer com que surja uma
abertura no sentido ético, na ética da alteridade.
Esse receber, que Derrida propõe como sinônimo de acolher, só se faz
possível na medida desmedida em que se recebe para além da capacidade
do eu. A hipótese de uma hospitalidade incondicional, parece, na verdade,
causadora de um incômodo incontornável, mas, de certo modo,
completamente previsível. Como diz Derrida, “todas essas possibilidades
são sentidas como ameaças que pesam sobre o território próprio do próprio
e sobre o direito de propriedade privada. (DERRIDA, 2003, p. 47).
Assim, quando pensamos a possibilidade de injúria e de uma reação
violenta com essa chegada do outro, tenta-se de alguma forma esboçar
como o estrangeiro vem encarnando a face do medo e da ameaça do
próprio. Derrida opera uma inversão para refletir sobre o que ele chama por
implacável lei da hospitalidade:
O hospedeiro como host é um guest hóspede. O hospedeiro que recebe (host) o hóspede, convidado ou recebido (guest), e que crê ser proprietário
do lugar é na verdade um hóspede recebido em sua própria casa. A hospitalidade que in.cit. “ele oferece na sua própria casa, ele a recebe de sua
própria casa – que no fundo não lhe pertence. A habitação se abre a ela mesma, a sua “essência” sem essência, como “terra de asilo”. O que
acolher é sobretudo acolhido em-si.” (Derrida, 2015, p.57-58)

Derrida aponta um paradoxo sobre a soberania do dono da casa,


soberania esta que depende e deve-se ao outro. Quer dizer, uma casa, um
lar, um espaço habitável se constitui em aberturas, a “mônada do chez-soi
deve ser hospitaleira para ser ipse, si mesmo consigo, chez-soi habitável em
relação à consciência de si” (DERRIDA, 2003, p.55). Essa reflexão sobre a
hospitalidade incondicional faz ainda mais sentido para o que tenho tentado
pensar quando passo pelo que Rodrigues escreve:
A hospitalidade incondicional aparece, assim, como outro nome para o questionamento da referência a um sujeito estável afirmado pela tradição.
Ou, nas palavras de Derrida: “Não há hospitalidade, no sentido clássico, sem soberania de si para consigo.”(RODRIGUES, 2013, p.140)
Ainda me utilizando das palavras de Rodrigues, é importante ressaltar
que
A hospitalidade incondicional seria a desconstrução do chez moi, do “eu mesmo” identificável que Derrida questiona incessantemente e que,
poderíamos dizer, subjaz a tudo o que ele disse, escreveu ou pensou.” (RODRIGUES, 2013, p.141)

Para Butler, a resposta ética depende do abandono desse eu


autossuficiente como um tipo de posse, e nesse sentido diz que
A relação ética significa abrir mão de uma perspectiva egológica em favor de uma perspectiva que se estruture, fundamentalmente, por um modo
de abordagem: você me solicita, eu respondo. Mas se respondo, é apenas porque eu já podia responder. (BUTLER, 2015, p.122)

Ou seja, essa suscetibilidade e essa vulnerabilidade me constituem no


nível mais fundamental e estão presentes, podemos dizer, antes de qualquer
decisão deliberada de responder ao chamado. Nesse sentido, ao falar de
hospitalidade incondicional, Derrida diz que as noções de acolhida e
recepção não se dão “na medida estreita de uma escolha que nasce a partir
de um ego que a tudo determina” (NOGUEIRA, 2018, p. 221).
Em outras palavras, a pessoa não precisa ser capaz de receber um
chamado antes de respondê-lo de fato. A responsabilidade ética pressupõe a
capacidade de uma resposta ética (BUTLER, 2018, p. 122).
Estamos, a despeito da nossa vontade, abertos a essa imposição, que embora se sobreponha à nossa vontade, nos mostra que as reivindicações que
os outros fazem em relação a nós são parte da nossa própria sensibilidade, receptividade e capacidade de resposta. (BUTLER, 2018, p.121)

Há em Butler uma preocupação corporificada no tratamento dessa


vulnerabilidade que é também desde o princípio uma vulnerabilidade do
corpo, inescapável e irretratável para a persistência de uma vida em si.
Somos constituídos em – e por – um mundo social – “o aparecimento
limitado e vivo do corpo é a condição de estar exposto de maneiras que nos
sustentam, mas que também podem nos destruir.” (BUTLER, 2018, p.191-
192).
Partimos, portanto, da compreensão da vulnerabilidade enquanto
abertura e traço estrutural da existência, enquanto a abertura fundante do
“eu”. Talvez, como sugere Butler, a incidência irreparável e nada
voluntariosa da alteridade em um sujeito incapaz de fundar a si mesmo, e
incapaz ainda de dar um pleno relato de si, quando interpelado pelo “quem
és?”, possa servir para demonstrar como nos constituímos na
“relacionalidade: implicados, obrigados, derivados, sustentados por um
mundo social além de nós e anterior a nós.”(BUTLER, 2015, p.87)
Ainda que se argumente, em várias circunstâncias, que a
vulnerabilidade dependa do contexto em que estamos inseridos (quer dizer,
em alguns momentos é possível dizer que estou mais vulnerável ou menos
vulnerável) não se pode afirmar que essa condição seja circunstancial de
fato.
Abrir mão dessa perspectiva egológica em nome de uma abertura,
sendo simultaneamente desfeitos pelo outro, faz parte do movimento de
abandono da ilusão do “eu” autossuficiente, mas significa também passar
por inescapável consternação. É sempre importante ter em perspectiva que
essa resposta ética que passa pela expropriação, pela despossessão pelo
outro, é marcada pela angustia e pelo medo, mas como diz Butler
Sermos desfeitos pelo outro é uma necessidade primária, uma angústia, sem dúvida, mas também uma oportunidade de sermos interpelados,
reivindicados, vinculados ao que não somos, mas também de sermos movidos, impelidos a agir, interpelarmos a nós mesmos em outro lugar e,
assim, abandonamos o “eu” autossuficiente como um tipo de posse. (BUTLER, 2015, p. 171)

Butler busca na afirmação da vulnerabilidade marcar nossa


dependência radical, que nunca deixa de existir. Essa vulnerabilidade talvez
possa implicar em uma resposta ética “que não seja reduzível ao
consentimento, nem ao acordo e que se dê fora dos vínculos comunitários
estabelecidos.”(BUTLER, 2018, p.117)
A resposta ética e a capacidade de responder eticamente pode talvez
partir dessa opacidade, dessa cegueira comum. O que estou pensando aqui
é, como sugere Butler, esse desconhecimento, esse desencontro com aquilo
que me compõe, com isso com que me defronto, essa oportunidade de me
desfazer em relação ao outro, talvez seja a chance que tenho para me tornar
humano. “Se falamos e tentamos fazer um relato de nós mesmos a partir
desse lugar, não seremos irresponsáveis, se o formos, certamente seremos
perdoados” (BUTLER, 2015, p.171).
Referências Bibliográficas
BUTLER, Judith. Corpos em Aliança e A Política das Ruas: notas para uma teoria performativa da assembleia. 1ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.

BUTLER, Judith. Precarious Life: The Powers of Mourning and Violence. London: Verso, 2004.

BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. 1ª ed; Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.

BERNARDO, Fernanda. Para além do Cosmopolitismo kantiano: Hospitalidade e “altermundialização” ou a Promessa da “nova Internacional” democrática de Jacques Derrida,
Revista Portuguesa de Filosofia, Braga, v. 61, fasc. 3-4, p. 951-1005, jul./dez. 2005.

DERRIDA, Jacques. Força de Lei: o fundamento místico da autoridade. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2ª ed., 2010.

DERRIDA, Jacques. Adeus a Emmanuel Lévinas. Tradução Fabio Landa com colaboração de Eva Landa. São Paulo: Perspectiva, 2015.

DUFOURMANTELLE, Anne. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar Da Hospitalidade/Jacques Derrida [Entrevistado]; tradução de Antonio Romane; revisão técnica
de Paulo Ottoni. São Paulo: Escuta, 2003.

NOGUEIRA, Bernardo Gomes Barbosa; Ribeiro, Fernando José Armando (Orientador). Direito e literatura: hospitalidade e invenção. Belo Horizonte, 2018. 290f. Tese (Doutorado) –
Programa de Pós-Graduação em Direito Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

RODRIGUES, Carla; Duas palavras para o feminino: hospitalidade e responsabilidade: [sobre ética e política em Jacques Derrida.] Rio de Janeiro: Nau Editora, 2013.
A temporalidade da vingança e a doação do tempo no direito

110
Marcelo Corrêa Giacomini

Em uma das passagens de Grande Sertão: Veredas, em que Riobaldo


observa a tenacidade, mas também a prudência de Diadorim, a vingança é
definida pelo narrador-personagem em um sentido comumente
aconselhador e propositivo de um cálculo: “Vinha a boa vingança, alegrias
dele, se calando. Vingar, digo ao senhor: é lamber frio, o que outro
cozinhou quente demais” (ROSA, 2006, p. 94).
A vingança, então, no tempo dado do Sertão, demanda um sentido
de amornagem, correndo o risco de que, se assim não for, ela própria se
torne impossível. A reação imediata, como uma contraprestação a um ato
violento deve ser suspensa caso o ato vingativo queira ter sucesso. Contudo,
se pensarmos que a concretização da vingança dependeria desse quase
apagamento da violência reativa imediata, o direito, além de pressupor uma
origem fundadora de sua autoridade, instituiria também a suspensão e o
apagamento da violência imediata. A temporalidade da vingança, que
impede a reação imediata, teria o mesmo efeito que a do direito.
Em Força de Lei ([1994] 2010), Derrida ressalta que o direito é
essencialmente desconstruível e que seria normal que pesquisas de estilo
desconstrutivo “desemboquem” numa problemática do direito, da lei e da
justiça. Pretendemos, então, retomar uma possível leitura dessas
intervenções, nos voltando para um dos momentos em que Derrida discute
um regime de tradução da palavra alemã Gewalt. Derrida ([1994] 2010) põe
em questão a palavra Gewalt, que pode ser considerada simplesmente
violência ou força, mas também força legítima, poder legal ou violência
autorizada. Derrida explora esse termo, de modo mais incisivo, quando
mostra, junto à Heidegger e Heráclito que a Díke, a justiça, o direito, o
julgamento, a pena ou a vingança é originalmente nomeada de Eris, mas
também de adikía, que também é injustiça.
Contudo, no desenvolvimento de seu texto, o sentido de força,
enquanto elemento onde orbita a discussão sobre uma decisão justa, de
certo modo, sombrearia a reflexão sobre a relação não apenas entre justiça e
força, mas também entre vingança e direito (ou da justiça como direito). Se
a oposição geral entre physis e nómos orienta a relação entre força e justiça,
Derrida inseriria a vingança ainda cotejada pela análise do direito, em face
de sua relação com a força.
Nesse sentido, se a justiça e a injustiça, em algum momento, estão
articulados com os pressupostos fundadores do direito enquanto força (a
partir da reflexão da origem de sua autoridade performativa), poderíamos
pensar na possível oposição entre vingança e direito não mais pela
perspectiva da representação da força, mas em suas disputas por um modo
de temporalização. Vingança e direito não podem estar um presente no
outro, embora ambos exerçam uma mesma função, qual seja, evitar a reação
imediata a uma violência. Isto quer dizer que ambos suspenderiam a reação
imediata, sem espera, de uma violência. Contudo, embora tenham essa
função, o direito reivindica para si o tempo do julgamento, e nega, a todo
instante, um sentido originário de vingança, pois, haveria um suplemento o
qual a vingança não poderia suprir, qual seja, uma decisão justa.
Um dos modos com que o direito é afirmado na cena pública,
então, se dá por meio da suspenção da possibilidade de vingança, para que
uma decisão justa tome o lugar da origem vingativa da ação. A partir desse
pressuposto, o próprio do direito poderá se definir ao atrelar a si um
fundamento prescritivo, na medida em que se dá apenas no tempo aberto
pela formação de um juízo, espaço privilegiado de decisão livre de um
sujeito responsável, possibilitando sua autonomia diante das paixões,
inclinações ou parcialidade. Nesse movimento de apropriação do tempo do
julgamento pelo direito, porém, não apenas o significado de vingança deve
ser colocado à margem, mas também a função que a vingança possui de
suspender a violência imediata, e, sobretudo, de impedir a permanência ou
infinitude da violência. O direito, nesse sentido, atuaria como aquilo que
interromperia a possibilidade infinita da vingança, através de um ato de
decisão, mas, em contrapartida, eliminaria o próprio efeito de suspender
uma violência imediata voltado à vingança.
Contudo, para que haja a ausência da vingança no direito não é
possível que se recorra a algo que elimine completamente a lembrança, a
memória ou o cálculo que impulsiona a ação vingativa, ou mesmo o sentido
ou o princípio que impulsionaria a ação vingativa. Haveria constantemente
um resíduo de se estancar a violência imediata, que o direito não
conseguiria discriminar. Um pretenso ideal regulador da ideia de justiça,
que diferenciaria o julgamento da vingança, conforme seus fins, não seria
suficiente para suprimir tal ação, pois a representação que se faz da justiça,
sem o tempo de suspensão promovido pelo direito, pode fazê-la coincidir
com a vingança.
O direito, nesse sentido, instauraria a possibilidade de outra
temporalidade, que suspenderia certo cálculo da vingança, mas, ao mesmo
tempo, abriria a possibilidade para uma violência reativa ou imediata ao
procurar apagar o tempo da vingança?
Para Derrida, ainda em Força de Lei, uma decisão justa “é sempre
requerida imediatamente” ([1994] 2010, p. 51), ou seja, ela não poderia
obedecer a um tempo da espera, por mais inapresentável que permaneça.
Essa justiça não é o direito, já que é a desconstrução agindo nele. Por outro
lado, como também alude Derrida, o momento da deliberação jurídica, dado
pelo tempo aberto pelo direito, deve preceder esta decisão justa imediata.
Derrida, então, ressalta a necessidade da desconstrução ser assegurada pela
estrutura desconstruível da justiça como direito, considerando-se, porém,
que o direito tem sua origem em um momento performativo de fazer lei, e
esse momento não é justo ou injusto. Como aponta Derrida, “a
desconstrução ocorre no intervalo que separa a indesconstrutibilidade da
justiça e a desconstrutibilidade do direito” ([1994] 2010, p. 27).
Do mesmo modo, então, que o “momento” de fazer a lei não é justo ou
injusto, a vingança, sem o tempo do julgamento pelo direito, também não
independeria dessa dicotomia justo-injusto? Derrida ressalta que a decisão
justa, contudo, é heteronômica, quer dizer, ao mesmo tempo “superativa e
sofrida” ([1994] 2010, p. 52). Ela é tomada como se fosse própria, mas,
também e ao mesmo tempo, como se ela viesse do radicalmente outro. Uma
justiça porvir.
Nesse sentido, poderíamos questionar por que a justiça, segundo a
leitura deconstrutiva, é aquilo que não deve esperar, caracterizando o
momento da decisão justa como urgente e de precipitação, mas onde essa se
relaciona a um tempo para formação de um juízo da racionalidade teórica
do julgamento pelo direito. Ou seja, uma justiça sem espera subentenderia a
desconstrução do direito, que desde sua origem violenta e performativa
apagaria a vingança, em sua temporalidade?
O que entraria em tensão, aqui, é o modo com que essa temporalidade
da vingança é responsável em auxiliar o cálculo da ação do sujeito ou de
uma coletividade e isto não teria como efeito a formação de um juízo, tal
como própria ao direito; ou se o cálculo de uma espera é o que determina
somente a “ação” do sujeito ou de uma coletividade. Para que o direito,
então, estabeleça, desde já, o tempo de pretensa suspensão da vingança, a
partir de uma necessidade de instaurar uma temporalidade própria para a
formação de um juízo, através especialmente do tempo presente nos
processos de julgamento, é necessária uma temporalidade que não poderia
mais se confundir com essas duas dimensões, na medida em que a decisão
justa, segundo o regime da temporalidade do direito, já estabeleceria tanto a
suspensão da reação imediata em contraposição a uma violência, quanto a
suspensão de uma representação da espera que seria própria à vingança.
Procuraremos trazer, à possível leitura desconstrutiva, dois textos que
provocariam esta noção de temporalidade entre vingança e direito. Trata-se
da investigação da antropóloga Manuela Carneiro da Cunha (2017) que,
juntamente com Eduardo Viveiros de Castro, escreveu um texto publicado
originalmente em 1985 denominado: “Vingança e temporalidade: os
tupinambá”, e outro texto, digamos, mais retórico, contendo o discurso
proferido por Robespierre, em 3 de dezembro de 1792, sobre o julgamento
de Luís XVI.
* * *
O tema da vingança e de sua relação com a temporalidade, trazido por
Manuela da Cunha, foi motivado pela discussão em torno da tese, defendida
por Florestan Fernandes, de que a vingança, na sociedade tupinambá, é um
sacrifício restaurador. Essa concepção defende que a vingança tem
determinada função social enquanto um instrumento de religião, que faz
com que o principal motivo da ação vingativa seja restaurar uma ferida
provocada pela morte dos antepassados, demandando, com isso, um dever
de cultuá-los. A vingança na sociedade tupinambá, então, para Florestan, se
volta eminentemente para o passado.
Manuela da Cunha, por outro lado, aponta que a vingança é a
instituição fundadora e por excelência dos Tupinambá, relacionada à
memória, mas onde esta não cumpre um papel restaurativo ou de
rememoração que recompõe algo descompassado, fora de lugar ou ferido
em relação ao passado. A vingança se institui na medida em que ela se dá
no tempo e pelo tempo. O importante, portanto, não é predicar a memória
apenas com relação ao passado, mas como nexo daquilo que a liga com o
futuro. A antropóloga ressalta que se trata de uma espécie de “penhor” que
estabelece que o sacrifício de um inimigo instaura um devir, que depende de
um elemento que vem do exterior àquela própria sociedade.
Nesse sentido, poderíamos destacar três elementos dessa tese.
O primeiro elemento procura ressaltar o papel da manutenção do
inimigo em cativeiro, para que haja o tempo da espera que garantiria a
morte do inimigo em um ritual, em um espaço específico e essencial. A
sociedade Tupinambá não considera plenamente vingada a morte imediata,
ocorrida em campo de batalha. Tal manutenção em cativeiro tem como
objetivo maior possibilitar a antropofagia do inimigo, embora uma vez essa
seja constrangida pelo colonizador português, a morte cerimonial no
terreiro cumpriria a função da vingança, já que ela garantiria que o
sacrifício presente implicasse em mortes futuras.
O segundo elemento, poderíamos dizer, recupera então a ideia de
que à vingança tupinambá não interessa propriamente qual foi sua
motivação, origem certa, concreta ou factual de uma primeira agressão. A
vingança é sem começo e ela ganha força não por ser uma violência
originária, mas a partir da “retaliação”. Ela começa com o dever de
retaliação. Nesse sentido, se a vingança é um fator que produz
temporalidade, na medida em que se se dá no e pelo tempo e não tem fim
(ou deve instaurar um estado de permanente tensão), ela também não tem
começo. Tal origem, portanto, não pressupõe um predicado de justiça ou
injustiça. Seu ponto de partida é virtual, nas palavras de Manuela da Cunha,
onde o primeiro canibalismo real é uma retaliação a um canibalismo
imaginário. Não há, então, como se retomar a um presente-passado que
originou a série de atos vingativos ou, no caso dos Tupinambás, o ritual de
canibalismo.
Por último, o terceiro elemento, mais ligado a este segundo, diz
respeito à perpetuação da vingança no tempo. A vingança não é um meio de
restituir a integridade da memória dos antepassados que forma mortos em
conflito. O que se herda não é uma memória que pretende resgatar os feitos
do passado para, assim, garantir a honra heroica de um antepassado, que
permite determinar um sentido conclusivo de cada ato vingativo. A
identidade com um passado se dá, sobretudo, com a relação da vingança
com o futuro, no sentido que, ao abandonar a vingança, os Tupinambá
rompem não apenas com o passado, mas com o próprio devir do tempo.
A vingança não se configura como um ato ou rito que faz com
que a memória dos antepassados ressurja, mas deve ser disposta de modo a
garantir a persistência de uma relação com os inimigos. É o inimigo
externo, nas palavras de Manuela da Cunha, que “ se torna guardião da
memória do grupo”. A sociedade Tupinambá vive no tempo, e uma
vingança como conclusão não é uma vingança, pois deve garantir-se
infinitamente e depende do outro no tempo, na medida em que se vincula a
algo que ainda não aconteceu, mas que deve ser sacrificado ou devorado.
Ao contrário do que é para a sociedade de língua Jê, em que,
como alude Manuela da Cunha, cotejando a obra de Jean-Pierre Vernant, a
vingança “clama por conclusão”. O povo Jê se aproximaria mais de uma
ideia grega de relação entre memória e vingança. A vingança grega articula
a memória enquanto aletheia, onde ela é retorno, retrospecção, reprodução
que depende da própria unidade autônoma da sociedade. Para os
Tupinambá, contudo, a vingança não é uma máquina do tempo, mas uma
“máquina de tempo”, o seja, produtora de tempo, ou um modelo de
fabricação de tempo. Trata-se de um modelo do devir externo, garantido
pela memória do inimigo.
Em uma citação mais sintética que, de certo modo, pontue esses
três elementos outrora discutidos, diz Manuela da Cunha:
A guerra de vingança tupinambá é uma técnica da memória, mas uma técnica singular: processo de circulação perpétua da memória entre os
grupos inimigos, ela se define, em vários sentidos, como memória dos inimigos. E, portanto, não se inscreve entre as figuras da reminiscência e da
aletheia, não é retorno a uma Origem, esforço de restauração de um Ser contra os assaltos corrosivos de um Devir exterior. Não é da ordem de
uma recuperação e de uma “reprodução” social, mas da ordem da criação e da produção: é instituinte, não instituída ou reconstituinte. É abertura
para o alheio, o alhures e o além: para a morte como positividade necessária. É, enfim, um modo de fabricação do futuro. (CARNEIRO DA
CUNHA, 2017, p. 101)

Por outro lado, o tema da vingança é trazido indiretamente e com certo


incômodo no discurso de Robespierre. As discussões sobre o julgamento de
Luís XVI ([1792] 1999) representaram um dos maiores embates entre
jacobinos e girondinos, no momento de consolidação da Convenção, que
tinha por uma das funções promulgar uma Constituição revolucionária. A
disputa maior em relação ao destino do rei destronado era se haveria um
processo político ou um julgamento.
Através do discurso de Robespierre, podemos nos deparar com a
dificuldade de definir um destino a um corpo que não mais faz parte de um
radical acontecimento político e que o torna estrangeiro à própria nova
ordem instituída. A apropriação de tal corpo estranho, que se colocaria
como um corpo de inimigo, não se apresenta apenas segundo um direito de
reapropriação que os revolucionários teriam para retomar os direitos
naturais ilegitimamente exercidos pelo rei. O rei se torna um estranho pois,
dentre outros motivos, não há regra ou norma que prescreve o que se deve
fazer com ele. Nem regras que calculam uma ação vingativa, nem regras
que regulem um julgamento.
Contudo, mais que a preocupação, que em um primeiro momento
justifica o esforço retórico do jacobino, com o risco de se não aplicar a pena
capital para o rei destronado, está a preocupação na instauração de um
julgamento.
Como fator que desencadeia a possibilidade do julgamento, o maior
lamento que Robespierre exclama em seu discurso é o fato de que Luís XVI
tenha sido colocado em detenção ou em cativeiro. Tal manutenção em
cativeiro, ou de um tempo que distende e evita a violência imediata evitaria,
desse modo, que tanto a vingança inconclusa ou infinita se estabeleça, mas
abre a possibilidade de julgamento. Assim, Robespierre coloca em questão
este cativeiro em dois momentos. No primeiro, ele expõe que:
A própria detenção que Luís sofreu até este momento é um vexame injusto; os federados, o povo de Paris, todos os patriotas do império francês
são criminosos; e esse processo, pendente no tribunal da natureza, entre o crime e a virtude, entre liberdade e a tirania foi enfim decidido a favor
do crime e da tirania[...]. ([1792] 1999, p. 56).

Em um segundo momento, de modo análogo, Robespierre lamenta a


não punição imediata do rei pelo povo francês:
Ora, três meses de intervalo mudaram seus crimes ou os direitos do povo? Se naquele momento ele foi arrancado à indignação pública, sem dúvida
foi unicamente para que sua punição, ordenada solenemente pela Convenção Nacional em nome da Nação, se impusesse mais aos inimigos da
humanidade; mas questionar de novo se ele é culpado ou se pode ser punido é trair a fé outorgado ao povo francês. ([1792] 1999, p. 63)

O que também está em jogo aqui, então, é a tentativa de


convencimento da Assembleia para evitar o julgamento, ou seja, aquilo que
proporciona a distensão do tempo, a temporalidade produzida e que
impedira a punição imediata e justa, segundo o direito natural do povo
francês. Evitar o julgamento impediria que Luís XVI fosse inocentado,
segundo as leis que não podem mais coexistir com um novo estado
revolucionário. Dar o tempo para o julgamento seria justo apenas para as
leis que não podem mais vigorar, ou seja, as leis do Antigo Regime. O
propósito, portanto, para Robespierre, é tentar retornar a uma passado-
presente, ou seja, o momento em que, antes de ser detido, era justo que o
povo em revolução executasse o rei. Seria o tempo de uma violência
imediata, que não representaria uma vingança, já que legitimada pelo
direito natural do povo. Nesse sentido, a vingança justa não se confunde
com a pena de morte, da qual Robespierre diz ser contra. Porém, o próprio
Robespierre reconheceria que, uma vez detido o rei, foi dado um tempo que
não permite que se retorne àquele passado-presente. Se assim for, a morte
do rei, sem julgamento, pode ser interpretada como vingança, provocando
um devir vingativo.
* * *
A título, então, mais de encaminhamento para uma futura discussão, a
questão da justiça como aquilo que não espera, que desde seu começo está
na direção de uma precipitação, excede o momento fundador, conservador e
violento do direito, mas pressupondo que tal imediaticidade ou urgência da
justiça depende do tempo do julgamento. Restaria investigar o quanto o
próprio do tempo do julgamento no direito é suprido pela temporalidade da
vingança. Ou mesmo pensar que aquilo que o direito rebaixa é justamente
o que funda o tempo que se dá para a formação de um raciocínio, cálculo ou
deliberação do julgamento.
Poderíamos indicar, como desenvolvimento dessas questões sobre
a temporalidade da vingança, o modo com que Derrida traz, para o gesto
desconstrutivo, o dom, que dá “tempo”, mas, ao mesmo tempo, torna
impossível sua própria realização. Leonard Lawlor (2018), em artigo
denominado “The most difficult task”, argumenta que, em Donner les
temps, é possível identificar no gesto desconstrutivo uma impura-pura não
violência. Tal modo de não violência é um impuro-puro dom, onde há um
modelo da moeda falsa. Dar uma moeda falsa é uma violência contra
violência, um ato surpreendente e interruptor contra a violência do círculo
de contraprestação que impossibilita o próprio dom, mas mantém certo
estado de má consciência ou de inquietude, que, assim pensamos, é onde
está atuando a desconstrução.
O tempo da vingança, nesse sentido e enquanto sua possível
proximidade com a justiça sem espera, poderia corresponder à falsidade da
moeda que ao mesmo tempo é contra a violência da circulação ou da
contra-prestação (o direito enquanto julgamento concluso), mas caso seja
descoberta, não produz seus efeitos. Ou seja, como aquilo que excede ao
direito, mas que pode nunca ser reconhecida como violento ou injusto.
Em Força de Lei, Derrida indica que a desconstrução é a possibilidade
da justiça que excede o direito, de tal modo que tanto se pode exigir o
direito quanto excluí-lo. Apesar dessa necessária aproximação ao direito, o
tema da justiça pertence ao centro da desconstrução, o que se aproxima,
segundo Derrida, à questão do “dom para além da troca”. Assim como
Derrida fala do “dom”, que uma vez reconhecido como tal e, inserido em
um regime econômico de troca, passa a ser impossível, a justiça não pode
ser dita sem que, imediatamente, ela seja traída.
Derrida propõe que a pretensa artificialidade do direito, que é
necessária devido à finitude do homem diante do direito divino (ou natural)
ou da justiça divina, não permite apenas que a consideremos um
instrumento de interesses políticos e econômicos que se impõe como mais
forte. Pois o direito, ao se pensar o momento de sua fundação, mantém com
a força uma relação mais íntima. Fazer a lei consistiria, por si, em um golpe
de força. Resta saber se esse golpe atinge as cabeças, adequando-se a uma
temporalidade infinita e não restaurativa da vingança, como se encontra nos
Tupinambá.

Bibliografia
CUNHA, Manuela Carneiro da. Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: UBU, 2017.

DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Trad. de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: WMF Martins Fontes, [1994] 2010.

LAWLOR, Leonard. The most difficult task: on the idea of an impure/pure non-violence (in Derrida). In: Studia Phaenomenologica. Vol. XIX, 2019.

ROBESPIERRE, Maximilien. Discursos e relatórios na Convenção. Trad. de Maria Helena franco. Rio de Janeiro: Contraponto: EDUERJ, 1999.

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
Habermas nos trópicos: o conceito de esfera pública e o
contratualismo político brasileiro

111
Luciano Severino de Freitas

O presente trabalho discute a possibilidade de aplicação do conceito


habermasiano de esfera pública ao contratualismo civil brasileiro, partindo-
se da noção de que a estrutura político-fundante nacional se baseia em um
pressuposto bastante diverso daquele trazido pelo filósofo alemão em sua
análise sobre o nascimento e desenvolvimento do capitalismo no bojo da
sociedade liberal burguesa. Isso porque o contratualismo nacional surge
fortemente marcado pela noção de patrimonialismo, como tratado por
Raymundo Faoro em sua obra Os Donos do Poder Formação do Patronato
Político Brasileiro (1957).
A escrita de Faoro analisa a formação e estruturação dos setores
dirigentes da contratualidade política tropical, bem assim, como se organiza
o poder político no interior desse acordo social. Nesse quadro é possível
localizar as similaridades ou as distâncias de outros modos de pensamento,
entre esses o proposto por Habermas. Como diz Faoro, nos trópicos há um
curso excêntrico, próprio, uma alternativa rebelde a imagem modernizante
não coadunada com a burguesia liberal habermasiana, seja na sua formação,
origem ou modo de estruturação. Na síntese da obra aponta Faoro:
A realidade histórica brasileira [...] a persistência secular da estrutura patrimonial, resistindo galhardamente, inviolavelmente, à repetição, em fase
progressiva, da experiência capitalista. Adotou do capitalismo a técnica, as máquinas, as empresas, sem aceitar-lhe a alma ansiosa de transmigrar.
Pode conjeturar-se, em alargamento da tese que fora do núcleo anglo-saxão, da França talvez, o mundo do século XX, periférico à constelação
mais ardente, desenvolveu curso excêntrico, que se chamaria, nas suas vertentes opostas, por deficiência de língua e ciência política,
paracapitalista e anticapitalista, alternativas rebeldes à imagem modernizante. [...] Num estágio inicial, o domínio patrimonial, desta forma
constituído pelo estamento, apropria as oportunidades econômicas de desfrute de bens, das concessões, dos cargos, numa confusão entre o setor
público e o privado [...] O patrimonialismo pessoal se converte em patrimonialismo estatal, que adota o mercantilismo como a técnica de operação
da economia. Daí se arma o capitalismo político, ou capitalismo politicamente orientado, não calculável nas suas operações, em terminologia
adotada no curso deste trabalho. (FAORO, 2012. p. 822-823)

A partir do excerto fica claro não haver no contexto brasileiro a


diferenciação essencial entre as esferas pública e privada, tal como
propugnada por Habermas, pois esse Estado patrimonialista resulta de um
feixe de vontades privadas que com ele se alinhavam de modo orgânico,
impossibilitando a diferenciação necessária trazida pelo autor alemão para o
estabelecimento de uma esfera pública ou mesmo para o surgimento de uma
opinião pública e, ainda, para a criação de um espaço no qual seja possível
o desenvolvimento de uma racionalidade comunicativa. Cumpre observar o
anotado por Campante:
Patrimonialismo é a substantivação de um termo de origem adjetiva: patrimonial, que qualifica e define um tipo específico de dominação. Sendo a
dominação um tipo específico de poder, representado por uma vontade do dominador que faz com que os dominados ajam, em grau socialmente
relevante, como se eles próprios fossem portadores de tal vontade, o que importa, para Weber, mais que a obediência real, é o sentido e o grau de
sua aceitação como norma válida - tanto pelos dominadores, que afirmam e acreditam ter autoridade para o mando, quanto pelos dominados, que
creem nessa autoridade e interiorizam seu dever de obediência. (CAMPANTE, 2003. p.155)

Ao não diferenciar as esferas pública e privada o patrimonialismo


produz uma tomada de postos de poder na estrutura política quase sempre
implicada em indivíduos que instrumentalizam o acordo estatal para
atendimento, exclusivo, de suas necessidades pessoais, portanto, privadas.
Com base nessa diferenciação e partindo-se da obra do filósofo
alemão - “Mudança estrutural da Esfera Pública” (1962) – compreende-se
de que modo os atores sociais se situam na formação de uma esfera pública
enquanto agentes capazes de fundar uma racionalidade crítica fundamental
para o fortalecimento da democracia e a defesa dos direitos dos indivíduos
baseados no contexto europeu. Essa perspectiva de todo se difere do
contratualismo brasileiro de tal sorte que a utilização da matriz
argumentativa na chave habermasiana não responde às posições e soluções
integrativas de um universo social próprio, também chamado tropical.
Não se deve deixar de sublinhar o fato de no âmbito da obra
habermasiana o sentido de esfera pública ter sido burilado inclusive para
conter em seu interior a discussão acerca de grupos não representados pela
ideia inicial tratada de uma burguesia liberal leitora, preocupada com sua
liberdade de contratar e de possuir propriedades. Na obra – Mudança
estrutural da Esfera Pública– é a essa categoria típica de uma época para
qual se volta o pensamento do autor para analisar não apenas o
desenvolvimento do Estado Liberal, mas a sua transformação junto ao
capitalismo, como incialmente apontado.
Em uma análise histórica de fases sucessivas da sociedade
compreendida por uma fase pré-capitalista, capitalista liberal, capitalista
burguesa e do capitalismo administrado (BOSCO, 2017), Habermas vai
percebendo o sentido de evolução da esfera pública e suas implicações e
obstáculos para o exercício efetivo da democracia.
Por essa razão, além da obra Mudança estrutural da esfera
pública (1962), outros quatro textos estão colocados de modo privilegiado
com suas vinculações internas alinhadas ao questionamento inicial
(BOSCO, 2017): Problemas de legitimação no capitalismo tardio (1973);
Teoria do agir comunicativo (1981); Facticidade e Validade (1992) e A
inclusão do outro (1996). Nos dois primeiros textos, de 1962 e 1973, as
preocupações giram no entorno do surgimento, queda e justificativa do
Estado Liberal, bem como da evolução do capitalismo em seu bojo. Nos
três últimos textos, a partir de 1981, o autor busca compreender tanto os
obstáculos como a associação entre capitalismo e democracia (BOSCO,
2017).
Desse contexto fica clara a análise do desenvolvimento capitalista
situada no limite de uma geografia, de uma história e de um modo de pensar
europeu, mormente, no olhar sobre o caso alemão, francês e inglês. Desse
modo, a associação capitalismo e democracia, se adjetiva unívoca, em
sentido, como europeia. Essa clara percepção, todavia, nem sempre óbvia
impõe uma (re)visão sobre os limites conceituais referentes às democracias
periféricas, seja na estruturação de possíveis quadros burgueses ou mesmo
no trânsito do capital, de modo diferenciado, impondo, portanto, uma
análise capaz de verdadeiramente (re)pensar as idiossincrasias que as
caracterizam.
Nessas democracias periféricas o capital transita de maneira
distinta, não raro tramado sob os interesses elitistas privados travestidos de
discursividade pública corporificada por uma Estado totalizador. A esse
Estado, no caso brasileiro, cumpre não apenas a manutenção do aspecto
patrimonialista, assim como a homogeneização do corpo contratual seja
pela negação de um verdadeiro e democrático espaço de manifestação de
opiniões e discussões fruto de racionalidades autônomas, seja através do
apagamento de direitos obstativos de seu movimento.
Nesse adágio, percebe-se, por exemplo, desde meados dos anos
70 do século XX, a circulação do capital promovendo demandas de
mercado capazes de pressionar a desconstrução de uma forma de Estado
“inaugurado” em fins da Segunda Grande Guerra, qual seja: o Estado de
Bem Estar Social. Essas pressões vão, paulatinamente, esgarçando os
direitos sociais à medida que o Estado vai assumindo funções interventivas
mínimas e se afastando de um piso vital antes caracterizador do Estado de
Bem Estar Social com seus arranjos de universalização da educação,
garantias de pleno emprego, de mecanismos securitários de saúde,
segurança e alimentação etc.
Esse movimento influencia sobremaneira o exercício político no
interior das democracias ocidentais e tanto mais os países inseridos no
mercado como economias periféricas. Nesses países, incluso o Brasil, o
ensaio de um Estado de Bem Estar Social esbarra na tessitura democrática
frágil e recente, retroalimentada por teorias cujas origens decorrem de
contextos distintos da sociabilidade local. Essas teorias então são manejadas
na chave de um progressismo-emoldurante em que a solução é um
pressuposto e não um processo de oitiva e construção discursiva de solução
a partir do outro. É como se nos trópicos a contratualidade se apresentasse
como uma eterna menoridade ciosa de tutelas e panaceias de mundos
exteriores.
Esse jogo de soluções não adequadas ao contexto social local
corresponde a uma colonização interna do modo de pensar a realidade,
tendo por paradigma de correção a sociabilidade europeia, afastando e
tomando como impensável aquilo que talvez responda melhor às questões
acerca de um modo de existir, de uma brasilidade sócio-política, expressa
em confronto erosivo frente ao pensamento, dito europeu, já estabelecido.
É colocar-se em um contra movimento ao encastelamento e apagamento de
um existir próprio, cujas soluções devem ser buscadas em movimento
centrípeto e para além de realidades externas expostas-impostas.
É estruturar-se,
[...] na contracorrente de uma postura pseudo-elitista, mas na verdade hiper-colonizada, predominantemente em nossa academia, que parece tentar
varrer para debaixo do tapete ou esconder dentro do armário nossas raízes, nossa cultura e a mestiçagem que nos compõem como isto que, de
modo largo e não-identitário, entre muitas aspas, poderíamos ousar chamar de “brasilidade”, eu acredito que uma identificação maior com uma
quase-universalidade, ou seja, com questões fundamentais do pensamento. (LOBO, 2019. p.150)

Por essa razão uma análise cuja posição seja compreender a


realidade local pelas lentes de outros contextos sociais, deve ser tomada
cum grano salis sob pena de resultar não em um processo positivo de
mudança e sim na reprodução de mecanismos de colonização do
pensamento operando de modo verticalizado e eurocentrado na sua origem.
Um saber anunciado e hierarquizado como capital-poder de um topo à
base, retroalimentado pela interdição de diálogo a um dos implicados na
comunicação dos termos. Anote-se: uma distância incongruente ao próprio
filosofar habermasiano. Como diz Boulbina:
Nous ne connaissons pas en effet les processus par lesquels nous pensons, nous créons, nous écrivons. C’est de cette situation particulière que je
réfléchis. Il est également souhaitable de penser le savoir en termes de circulation et d’échanges plus que de capital et de propriété. [...] Du coup,
112
la question: “Qui ‘a’ le savoir? “peut paraître plus pertinente que: “de quel savoir s’agit-il? “ou” qu’est-ce que le savoir?” [...]
(BOULBINA, 2018. p. 17)

A utilização de um conceito de esfera pública nos trópicos,


desconsiderando as realidades dissociadas de surgimento e aplicação
conceitual, impõe questionamentos políticos e epistêmicos acerca da posse
do saber e com quais finalidades ele se estrutura. Por que o “conceito”? De
que modo se “relaciona ou se afasta” da realidade brasileira? E quais
explicações possíveis ele permite? Acaso permita. Trata-se de arrostar a
matriz conceitual não como simples espectador, mas compreendendo as
interdições a uma crítica que, por vezes, mesmo cônscia da inadequação dos
termos, resta silente ou mesmo atemorizada por sua dúvida.
A escrita habermasiana em seu aprofundamento democrático não
se afasta do mencionado trânsito do capital, muito ao revés, ao procurar
compreender a fundação da sociedade liberal burguesa e seu
desenvolvimento, testemunha não apenas o surgimento da figura da massa
burguesa liberal capaz de fundar e fundir-se em uma opinião pública, mas
também os óbices criados pelo próprio sistema capitalista para o exercício
dos direitos nas democracias contemporâneas. Contudo é preciso analisar se
a essa sociedade burguesa referida pelo filósofo alemão corresponde o
modelo próprio ao contratualismo brasileiro que, como parte do universo de
economias periféricas, possui processo de formação diferenciado dos
paradigmas europeus de estudo, ainda quando por eles influenciados.
Nesse sentido, não se trata de descartar de modo peremptório o
arcabouço de pensamento estrangeiro, mas de produzir uma tentativa
dialógica capaz de aparar as arestas por meio da aproximação das
congruências e compreensão das oposições e inaplicabilidades. Portanto, a
compreensão do sentido de desenvolvimento da esfera pública em
Habermas frente ao contratualismo brasileiro é antes a afirmação do próprio
pressuposto democrático e dialógico defendido pelo autor e necessário para
o avanço na análise da realidade referente.
No quadro de desenvolvimento da esfera pública burguesa
habermasiana a distinção entre a sociedade e o Estado surge no
esfacelamento dos poderes feudais (Igreja, Realeza e Nobreza), tornando
possível marcar a polarização resultante na distinção entre elementos
públicos e elementos privados, permitindo desse modo à sociedade
burguesa se contrapor ao Estado como setor da autonomia privada.
No contexto brasileiro esse quadro de separação entre elementos
públicos e privados não se delimita da mesma maneira, isso porque as
polarizações são convergentes para uma espécie própria de aristocracia
histórica escravagista, alicerçada na concentração da riqueza, do poder e,
por isso, também estruturada nas relações de mando e obediência, com seu
binômio senhores e escravizados. Como diz Nabuco, o nosso caráter, o
nosso temperamento, a nossa organização toda, física, intelectual e moral,
acham-se terrivelmente afetados pelas influências com que a escravidão
passou trezentos anos a permear a sociedade brasileira (NABUCO, 2010.
p. 39). Nessa sociedade senhorial e de escravizados, mesmo a formação de
uma burguesia rural no século XIX, não gesta o adequado campo para
atribuição e diferenciação de interesses públicos e privados, tal como
preconizado por Habermas.
No bojo de um modelo de colonização persistente o elemento
privado não se diferencia do Estado, antes se apropria e se torna com ele
uma espécie de fusão orgânica, dispondo-o segundo seus interesses e
113
conveniências . O modelo colonial brasileiro combinava, portanto, e
majoritariamente, mão de obra escrava com grande propriedade
monocultura, o personalismo dos mandos privados e a (quase) ausência de
esfera pública e do Estado (SCHWARCZ, 2019, p. 42)
Esse cenário não cumpre, minimamente, as funções de criação de
uma esfera pública literária ou núcleo de pessoas privadas, ainda enquanto
núcleo minoritário com iguais critérios de acesso intestino como apontado
por Habermas, na base do que o autor intitula como a contraditória
institucionalização da esfera pública no Estado de Direito Burguês. Não há
nessa dimensão tropical uma justiça independente controlada por uma
opinião pública, ou a diferenciação de pessoas privadas ou mesmo um
direito burguês.
Mesmo a Justiça independente necessita do controle da opinião pública; sim, a sua independência em relação ao Executivo bem como em relação
ao lado privado só parece estar garantida no meio do público pronto para criticar. [...] Assim, pois, as “pessoas privadas”, com as quais o Estado de
Direito, tendo-lhes garantido socialmente a autonomia através da propriedade, conta assim com as qualificações da formação educacional e
cultural do público que essas pessoas formam são na verdade uma pequena minoria, mesmo quando se acrescenta a pequena burguesia à grande
burguesia. [...] Esta esfera pública continua literária também quando assume funções políticas; formação cultural é um de seus critérios de
admissão – a propriedade é outro critério. [...] o status do homem privado ao mesmo tempo educado e proprietário. [...] Uma dimensão pública é,
então, assegurada quando as condições econômicas e sociais oferecem as mesmas chances a todos para preencherem os critérios de acesso:
exatamente conquistar as qualificações da autonomia privada que faz o homem culto e proprietário. [...] (HABERMAS, 2003. p. 104-106; 109)

A centralidade nas contradições apontadas por Habermas


convergirá para o Estado de Direito burguês na chave do homem culto e
proprietário, já na formação nacional, como anotado, a chave se faz em um
homem com riqueza concentrada e detentor de poder, nesse caso, inclusive,
descartado o peso sobre a formação educacional e cultural possíveis.
Na evolução do Estado Liberal, Habermas destaca a produção
capitalista substituindo o lugar do velho modo de produzir feudal e a
sociedade burguesa passando a ser construída como modelo definitivo de
organização social. No contexto contratual brasileiro anticapitalista, ou,
como aponta FAORO (2012), uma alternativa rebelde à imagem
modernizante, a organização social apenas se apropria dos instrumentos de
mercantilização do capital mantendo a estrutura ligada aos interesses
privados.
Nem mesmo o surgimento de uma imprensa, como apontado pelo
autor alemão, com a formação de um público leitor intelectualizado capaz
de pensar sobre as ideias e posições escritas através de uma opinião pública,
encontra eco nos trópicos. A imprensa instalada com a vinda da Corte ao
país é oficial; a desenvolvida ao longo do séc. XIX e principalmente a partir
de 1870-1878 restringe-se aos grupos de pressão contra o escravismo ou faz
vezes de índice panfletário de alguns partidos políticos. Por outro lado, a
iniciada nos primeiros 30 anos do séc. XX já demonstra um viés de
empreendimento econômico dirigido ao lucro, portanto, cooptado
(SCHWARCZ; STARLING, 2015).
No caso da educação, mesmo entre os setores mandatários, o
ensino constituiu-se como um campo de privilégio restrito e, por
consequência, incapaz de formar quadros representativos de um público
leitor intelectualizado capaz de influir como categoria de pressão contra o
Estado.
Na história do ensino no Brasil prepondera uma exclusão
estabelecendo escolas de ler e escrever ou ligadas a ofícios específicos,
como a mineração e o comércio, dirigidas aos setores subalternizados
economicamente (RIBEIRO, 1993). Observe-se ainda que, no século XIX,
quando se instituiu um ensino dirigido aos cursos superiores, esse se deveu
ao atendimento das demandas exclusivas de uma minoritária elite rural e
citadina, preocupada em legitimar sua condução política da pátria recém
independente. E no séc. XX, mesmo quando surge uma tentativa de
ampliação (décadas de 40 e 60), as modificações sempre se alinhavam aos
interesses do capital, à formação de quadros para atendimento da indústria
ou da baixa e média burocracia estatal.
No pressuposto de uma opinião pública dependente da formação
cultural, portanto, de autonomia de pensamento e igualdade de condições de
participação, ainda quando represente um grupo minoritário, fica claro que
em um contexto social de desigualdade persistente, como no caso brasileiro,
não há nem a formação dessa opinião pública, nem de sua participação
como elemento de pressão civil. Essa massa ou categoria da sociedade
liberal capaz de influenciar o poder decisório sobre políticas públicas da
época Habermas chamará de esfera pública burguesa, conceito sem
alinhavo no contratualismo patrimonialista nacional (OLIVEIRA, 2010).
Como observa Oliveira,
O autor trata a esfera pública burguesa como a esfera onde pessoas privadas constituem um público que discute como os detentores do poder
público e da autoridade questões como as leis de intercâmbio de mercadorias e o trabalho social. Habermas revela a descoberta de aspectos
subjetivos dentro do ambiente público ao constatar que as experiências privadas originam toda uma subjetividade em relação ao público, uma vez
que o âmbito privado tinha a esfera íntima da pequena família em seu seio. O autor mostra que historicamente esse é o local onde se origina a
privacidade. (OLIVEIRA, 2010. p. 784-788)
No caso brasileiro nem mesmo é possível se falar em um direito
privado, tal como o europeu, facilitador das relações contratuais entre
pessoas privadas em face de leis do mercado livre de trocas, em razão da
polarização apontada entre senhores e escravizados. Nessa estrutura não se
estabelece verdadeiramente um mercado amplo e a constatação decorre da
impossibilidade de se articular um princípio de igualdade entre as partes
garantidor da liberdade de contratar pela autonomia da vontade, de
propriedade privada, do empreendimento em sentido amplo ou ainda pelo
reconhecimento do direito de herança. Se desse arranjo resultou uma
sociedade burguesa como esfera burguesa emancipada do poder político
corporificado pelo Estado de Direito burguês e não presentes os mesmos
elementos no cenário local, entre nós a dita aproximação e corporificação
do Estado nos mesmos termos surge impossibilitada.
No modelo habermasiano a esfera burguesa sobrevive à base do
burguês empreendedor leitor e cioso de condição privada de contratar
ampliando inclusive essa opinião pública com poder de discussão e
reflexão, todavia, ao lado desse desenvolvimento o sistema capitalista vai
engendrando seus próprios enredos capazes de derrocar o Estado liberal
burguês. Já entre nós, como visto, é o mando e a concentração de riqueza-
poder enraizados na moldura do Estado patrimonial a viga de sustentação
do contratualismo excêntrico aqui instalado.
Em Habermas a própria evolução capitalista com a inserção de
demandas de camadas não burguesas na política, por exemplo, resulta em
uma esfera pública revolucionada em que, paulatinamente, os poderes do
Estado vão tornando o espaço privado mais politizado e diferenciando o
espaço do mercado. Segundo BOSCO (2017) a esfera pública assume então
a figura de institucionalização e promessa de acesso de classes excluídas,
fazendo com que o Estado no exercício de atividades administrativas
substitua a iniciativa privada, surgindo disso as três instâncias do direito: o
direito privado, o público e o direito social.
Nesse contexto também cumpre observar que no caso brasileiro o
direito privado, desde as Ordenações do Reino, portou um claro caráter
patrimonialista, temperado apenas pela constitucionalização imposta a
partir de 1988, no reconhecimento efetivo da função social da propriedade.
E no caso de um direito público e social, a primeira tentativa de
discussão do tema se dá sob o tacão de uma autocracia civil com a
Constituição de 1934, deixando claro não se tratar sequer de substituição
dessa iniciativa privada como apontado na desnaturação do Estado Liberal
habermasiano e sim de uma construção paternalista verticalizada cumprindo
no patrimonialismo, outra vez mais, a função de tudo se alterar para nada
mudar, tanto assim o resultado foi a suplantação do próprio texto por outro,
assumidamente autoritário em 1937.
O resultado do inconciliável foi como apontado,
Em poucas palavras, e retornando às reflexões de Celso Ribeiro Bastos, pode-se dizer que o traço dominante da Constituição de 1934 foi o seu
caráter democrático, com certo colorido social, traduzido no esforço, que acabou se mostrando infrutífero, de conciliar a democracia liberal com o
socialismo, no domínio econômico-social; o federalismo com o unitarismo, no âmbito político; e o presidencialismo com o parlamentarismo, na
esfera governamental. (MENDES; COELHO; BRANCO, p. 168)

Em que pese a percepção da decadência do Estado liberal burguês


levando Habermas, nos seus estudos posteriores, a uma certa percepção
acerca da insuficiência da esfera pública liberal burguesa em termos de
abertura e afirmação de instituições democráticas, é no interior dessas
sociabilidades que se processa o fluxo comunicativo capaz de criar uma
esfera pública desconfiada, móvel, desperta e informada, como uma
combinação convergente à gênese de um direito democrático.
E, para impedir, em última instância, que um poder legítimo se torne independente e coloque em risco a liberdade, não temos outra coisa a não ser
uma esfera pública desconfiada, móvel, desperta e informada, que exerce influência no complexo parlamentar e insiste nas condições da gênese do
direito legítimo. Com isso, atingimos o núcleo do paradigma procedimentalista do direito, pois a “combinação universal e a mediação recíproca
entre a soberania do povo institucionalizada juridicamente e a não-institucionalizada” são a chave para se entender a gênese democrática do
direito. O substrato social, necessário para a realização do sistema dos direitos, não é formado pelas forças de uma sociedade de mercado operante
espontaneamente, nem pelas medidas de um estado do bem-estar que age intencionalmente, mas pelos fluxos comunicacionais e pelas influências
públicas que procedem da sociedade civil e da esfera pública política, os quais são transformados em poder comunicativo pelos processos
democráticos. Neste contexto, é fundamental o cultivo de esferas públicas autônomas, a participação maior das pessoas, a domesticação do poder
da mídia e a função mediadora dos partidos políticos não-estatizados. [...] (HABERMAS, 1997. p. 185-186)

Habermas pensa um modelo de democracia em que a ideia de


bem comum, como uma concepção de vida, desenvolve-se de modo
reflexivo, logo a noção dos próprios interesses também é atributiva a
outrem, surgindo intermediada por uma realidade dialógica produtora do
consenso caracterizador da ação comunicativa. Nesse sentido a linguagem
funciona como uma possibilidade de verdade, portanto, em ação política
que ao reconhecer as normas e a intermediação produzida entre o Estado e a
sociedade Civil, participa também de um discurso ético comum. E esse
esforço decorre da percepção de o discurso liberal burguês do direito não
aplainar as disparidades internas gestadas pelo mesmo. Como diz
Habermas:
Embora o direito moderno fundamente relações de reconhecimento intersubjetivo sancionadas por via estatal, os direitos que daí decorrem
asseguram a integridade dos respectivos sujeitos em particular, potencialmente violável. Em última instância, trata-se da defesa dessas pessoas
individuais do direito, mesmo quando a integridade do indivíduo – seja no direito, seja na moral – dependa da estrutura intacta das relações de
reconhecimento mútuo. Será que uma teoria dos direitos de orientação tão individualista pode dar conta de lutas por reconhecimento nas quais
parece tratar-se sobretudo da articulação e afirmação de identidades coletivas? (HABERMAS, 2004, p. 237).

As rachaduras internas do modo de estruturação do direito no


Estado Liberal Burguês impõem discutir novas possibilidades de
aprofundamento democrático, como dito, pensadas pelo autor a partir do
diálogo e do consenso. As condições para que esse consenso se estabeleça
dependem de um certo tipo de sujeito-participante não só capaz de fala
autônoma em uma matriz discursiva, mas em igualdade de condições de
expressividade de posições e intervenções dialógicas. Essa perspectiva
considerará os sujeitos em posições simétricas, garantindo-se uma
perspectiva tolerante de outros modos de vida pela prática comunicativa e
mesmo uma nova possibilidade para a substituição da natureza pela
conjunção de uma verdade e uma política possíveis, construídas
dialogicamente.
Nesse sentido o espaço democrático deve considerar uma
sociedade plural, baseada em fundamentos racionais legitimadores das
normas postas pelo consenso produzido pela comunicação. Analisando a
Teoria da Justiça de Rawls diz Habermas: [...] uma teoria da justiça
tralhada conforme as condições da vida moderna, precisa contar com uma
variedade e formas de planos de vida coexistentes e que encontram a
mesma justificativa; na perspectiva de diferentes tradições e histórias de
vida [...].(HABERMAS, 1997, p. 87)
A vista do brevemente exposto fica claro perceber a diferenciação
entre o espaço público e o espaço privado, seja na formação do Estado
liberal burguês, seja na constituição de uma esfera pública como base
essencial na teorização de Habermas. No inicialmente apontado, o modelo
patrimonialista do Estado brasileiro impede a diferenciação entre uma
esfera pública e uma esfera privada. Assim, no contratualismo brasileiro, a
hipercentralização do poder governamental não é enfrentada por grupos da
sociedade civil resistentes em impor uma pressão interna frente ao Estado;
muito pelo contrário, o contratualismo apenas parece ocultar o real sentido
do poder lastreado no binômio mando e submissão.
Outro aspecto importante decorre da assunção de direitos sociais
no Brasil, efetivados a partir do constitucionalismo de 34 e seguidos nos
anos 40 do séc. XX, constituindo-se em um contexto ortodoxo de controle
do Estado e não como produto amplo de uma luta das classes não
burguesas. Logo no Brasil, além de não haver a separação entre o espaço
privado e o público, essa precedência de uma imposta socialização do
Estado nos direitos sociais estiola a formação de qualquer ensaio de uma
autonomia própria dos sujeitos não burgueses. Se por um lado os
mandatários estão com seus interesses organicamente fundidos ao Estado,
os excluídos já estão, antes mesmo de pensar em outras possibilidades de
ruptura, estatizadados pelo Estado.
Esse quadro dificulta sobremaneira a possibilidade de
estabelecimento de uma comunicação dialógica no contexto social
brasileiro à medida que o espaço da sociedade civil não se estabelece como
um locus comunitário integrado por cidadãos livres no processo de
compartilhamento de experiências, valorização e afirmação do indivíduo
em sua condição humanística e zona construtiva de mecanismos de
integração real de proteção da pessoa.
Isso produz, internamente, no contratualismo nacional uma
desigualdade de acesso e uma assimetria afastando a maior parte dos
sujeitos do processo decisório e da Justiça, portanto, do exercício dos seus
direitos. Essa ausência de uma racionalidade comunicativa converge para o
dissenso, impedindo também a aplicação de uma Teoria Democrática na
chave conceitual habermasiana ao contratualismo civil brasileiro.
No universo brasileiro a questão não é sobre o modo pelo qual as
democracias liberais equacionam o risco de cooptação por um discurso
político autoritário gerado na própria sobreposição de tensões de vontades,
modos de vida dos sujeitos e divergências de projetos políticos. A questão
do contratualismo brasileiro sempre esteve fundada não apenas na tensão
das vontades do que compõe o espaço privado frente ao Estado, mas na
perene assimetria construída na base de uma negação do outro como sujeito
humano digno e detentor de direitos.
Não se trata apenas de uma lógica de mercado, todavia de uma
opção promotora da desumanização daqueles considerados a serviço de
uma classe que se assenhora desses objetos à sua disposição, negando-lhes
uma alteridade possível. O patrimonialismo responde pela moldura social,
política e econômica, mas a sua manutenção e fomento depende da vontade
dos indivíduos beneficiados pelo arranjo mantido as custas da total negação
dos outros, com os quais não se alinham nem mesmo no reconhecimento da
humanidade que lhes é própria, produzindo uma exclusão secular e cíclica
no interior da sociabilidade brasileira.
O aspecto sutil das vontades criadoras e mantenedoras da
exclusão no interior do patrimonialismo normalmente é lido nas
consequências e resultados desse sistema e talvez por isso a estrutura
interna se mantenha intacta. Talvez fosse necessário voltar à biopolítica
foucaultiana para discutir a perenidade do patrimonialismo não pela
estrutura, mas a partir de seus aspectos internos, enevoados pelo discurso
ocultado, na compreensão da negação do outro e de seus interesses, como o
verdadeiro leitmotiv que (con)funde a vontade do dominado com a do
próprio dominador, legitimando esse último.
No contratualismo brasileiro a colonização do mundo da vida da
sociedade civil está para além da lógica do capital, ela se estriba em uma
ampla gama de sujeitos imiscuídos na tensão de pertencer e ao mesmo
tempo se encontrarem excluídos de toda sociabilidade porque a eles não se
reconhece a condição de uma racionalidade humanizante. Por conseqüência
nega-se a intervenção e a simetria discursiva permissiva do consenso
habermasiano ou qualquer outro. E se nessa estrutura patrimonialista, como
diz Faoro, há um paracapitalismo, um capitalismo rebelde à excentricidade
por ele produzida não parece ser a do objeto de mercado típico, descartável,
todavia também necessário no trânsito do capital. No arranjo
patrimonialista o mando talvez esteja mais próximo de uma pulsão de
crueldade e poder como aponta Derrida. De acordo com Amitrano:
É juntamente neste rastrear que Derrida encontra as semelhanças entre as pulsões de crueldade e as pulsões de poder e soberania. Na verdade, o
filósofo magrebino assinala um problema tácito ao definir o que seja crueldade; afinal, o termo já traz consigo uma duplicidade e um
obscurantismo. A dupla dimensão da palavra crueldade é designada na sua origem, em sua etimologia. No latim — cruor, crudus, crudelitas —, o
termo carrega uma relação com história de derramamento de sangue, designa a carne crua e ensanguentada (crudus quer dizer cru, não digerido,
indigesto), bem como diz respeito ao sangue derramado, coagulado. [...] Em outras palavras, crueldade é, por um lado, o derramamento de sangue
e, por outro, o prazer psíquico no mal e pelo mal, certo gozo com o mal radical‘ que, segundo Derrida, se dão no desejo de fazer ou de se fazer
sofrer por sofrer” (DERRIDA, 2001, p.6). Donde se concluir que a crueldade é parte do homem e, por conseguinte, acaba sempre atrelada ao
prazer do poder e/ou da soberania, uma posse sobre o Outro. Uma relação sempre política entre os que julgamos mais ou menos homens, e para os
quais atribuímos um caráter animalizante/bestializante ou não. (AMITRANO, 2013. p. 412)

O problema do contratualismo tropical perpassa em saber quem


são os “homens”, cuja linhagem autoriza o mando e a afirmação das
normas, e quem “não são os homens”, cuja existência se define pela
obediência e pela negação da racionalidade humanizadora. Em Habermas,
os homens, mesmo em suas manifestações minoritárias, na formação inicial
de uma opinião pública, são kantianamente pensados como capazes de
autonomia racional, desnaturada em práticas comerciais, propriedades,
imprensa, sistema de leis, práticas de comunicação e consenso, delimitando
um flanco com a realidade tropical.
Nos trópicos e seus arranjos a utilização dos argumentos
habermasianos, de certa maneira, oculta algo mais sub-reptício na
perspectiva de um campo (agambeniano) circundante da maioria
representativa dos “não homens”, qualquer que seja a nomeação dada. Isso
porque a esses “não homens” a posição interna no discurso do
contratualismo civil é de negação, possibilitada pela pulsão de crueldade
obstando-lhes uma condição de racionalidade e verdadeira participação
discursiva, caso possível.
Nos trópicos a questão sobre a esfera pública não se resume ao
idealismo filosófico, porque fundada em violência e crueldade próprias,
além de restar inacabada quanto à própria diferença interna entre “homens e
não homens”, relação posta na base de toda a estrutura excludente do
patrimonialismo nacional. Assim, para além da consideração das estruturas
explícitas desse patrimonialismo, é preciso perscrutar quem o produz e em
qual direção se dirige como projeto.
Nesse sentido, o mando traduz não apenas uma organização e
hierarquia interna do Estado patrimonialista, ele resvala em uma alteridade
negada, todavia lida apenas na chave do político como estrutura e não
biopoder. Por isso antes de se saber sobre uma esfera pública, deve-se
perguntar quem são “os homens” capazes de mando nesse contexto e quem
são os “não homens” submetidos a essa violência. Nesse antecedente
também elucida Agamben, sobre a pergunta fundamental quanto aos
sujeitos no contratualismo tropical:
O que significa “continuar sendo homem”? Que a resposta não é fácil, e que até a própria pergunta necessita ser meditada, é algo implícito na
admoestação do sobrevivente: “pensem bem se isto é um homem”. Nem se trata propriamente de uma pergunta, e sim de uma imposição (“eu lhes
mando estas palavras”), que põe em questão a própria forma de pergunta. Como se a última coisa que aqui se pudesse esperar fosse uma afirmação
ou uma negação. (AGAMBEN, 2008 p. 65)

Afirmação ou negação?

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Capítulo IV -Outros ramos e
pensamentos outros
Observações sobre a poética política de Augusto Boal e a
insurgência de uma filosofia popular brasileira
114
Samon Noyama

Augusto Boal é responsável por um dos trabalhos mais importantes e


transformadores do teatro brasileiro, cuja contribuição para o
desenvolvimento de técnicas teatrais alcançou todos os continentes de nosso
planeta. Por esse trabalho e todo o impacto por ele produzido no teatro do
século XX, Boal é reconhecido como um dos mais importantes teóricos
teatrais da história mundial, e o fato de ter esse reconhecimento antes e com
mais força fora do nosso país diz mais sobre os traços característicos da
nossa cultura e mentalidade colonizadas do que sobre seu trabalho. A
pretensão deste ensaio é tão somente refletir sobre a leitura crítica que Boal
faz sobre um dos textos mais importantes da literatura ocidental, a Poética
de Aristóteles, e os possíveis arranjos dessa leitura com a insurgência de
uma filosofia popular brasileira.
A relação entre arte e filosofia, ou mais especificamente entre a
literatura, o teatro, a poesia e a filosofia, é objeto de investigação e matéria
de análise desde que alguns pensadores gregos antigos reivindicaram a
insurgência de uma forma de pensar genuína, potencialmente especial, com
data e local devidamente identificados, a saber, na Atenas do século V a.C..
Trata-se, portanto, de um assunto visto e revisto exaustivamente, sobre o
qual pouca coisa ou quase nada pode ser dito que inaugure uma nova
interpretação ou que traga um “fato novo” para as narrativas consagradas.
Uma das teses – talvez a mais importante – que não é alvo de
contestação, de forma quase geral, é a de que as observações feitas por
Aristóteles na sua Poética refletem as orientações definitivas acerca da
construção poética. Afinal, a tragédia grega, consagrada como símbolo
maior da produção poética dos gregos antigos, é descrita na sua forma mais
exuberante e na sua execução mais bem-acabada nas páginas dedicadas por
Aristóteles à arte trágica. É nesse texto, tão célebre e relevante para a
cultura ocidental e sua jornada histórica, que o filósofo indica Sófocles
como o maior poeta grego e sua obra Édipo rei como a tragédia grega por
excelência.
Evidente que, passados tantos séculos, muito se escreveu sobre a
115
Poética . E ainda que tenha levado mais de milênio para que suas primeiras
traduções para o latim aparecessem, pois antes só havia as traduções para o
árabe, seu estatuto fundador e sua potência canônica não foram contestados
com veemência, ou tal contestação, se houve, não foi reconhecida ou
considerada. E se for esse o caso não é motivo de espanto, pois não seria a
primeira vez que uma crítica a um texto que se configurou como relevante
para as estruturas de poder na história do ocidente foi deliberadamente
ignorado.
Por um lado, precisamos reconhecer que Gotthold E. Lessing, nas
análises que constituem a Dramaturgia de Hamburgo, fez forte oposição à
maneira como os principais teóricos do teatro na França interpretaram e
colocaram em práticas as regras aristotélicas. Corneille e Racine,
especialmente o último, foram alvo de crítica sistemática do filósofo
alemão. Mas, por outro lado, não vimos Lessing discutir o elemento que
consideramos imprescindível para a estrutura das narrativas dramáticas
ocidentais e, consequentemente, para sua contribuição na condução da
história, da cultura e da moral ocidentais, qual seja, o caráter coercitivo do
sistema poético aristotélico, que passou incólume pelos críticos europeus.
Pretendemos abordar esta recusa de Lessing em outro momento,
especialmente preocupado em pensar as implicações dessa concepção no
desenvolvimento das concepções de educação e sistemas de ensino de
116
origem europeia.
É sobre este assunto que trata o texto “O sistema trágico coercitivo de
Aristóteles”, escrito por Augusto Boal em 1973. Depois de apontar a
separação que o filósofo grego faz entre a poesia e a política, reservando
independência entre elas e garantindo suas leis próprias, Boal anuncia a
direção em que lê o texto aristotélico: “o que me proponho a fazer neste
trabalho é mostrar que, não obstante suas afirmações, Aristóteles constrói o
primeiro sistema poderosíssimo poético-político de intimidação do
espectador, de eliminação de “más” tendências ou tendências “ilegais” do
público espectador”. (2013, 31)
Talvez seja desnecessário dizer, mas a separação entre poesia (teatro) e
política é uma proposta absurda aos olhos do dramaturgo brasileiro.
Absurda porque tal separação só faz sentido na medida em que ela é
propriamente uma atitude política, que defende interesses políticos, na
medida em que pensa e usufrui do teatro como uma forma de intervir nos
sentimentos suscitados nos espectadores e, com isso, contribuir da sua
maneira para um exercício do poder por uma classe privilegiada e detentora
dele, seja ela qual for, assumindo o lugar de opressora. Nesse sentido, é
natural reconhecer a influência que Marx exerce sobre o pensamento e a
prática de Boal, como bem observou Richard Schechner em entrevista a
Zeca Ligiéro em 2011:
O Teatro do Oprimido do Boal, em qualquer e em todas as duas formas, é uma forma de ação reparadora. Boal insiste em trazer para o debate as
crises da sociedade. Ele quer ajudar as pessoas a encontrar formas de reparar, modificar, trabalhar através dessas crises. Então, nesse sentido, Boal
está fazendo um tipo de teatro socioterapêutico, terapia social em vez de terapia individual. A perspectiva de Boa era marxista: cure a sociedade e
você irá curar os indivíduos. (2013, 12-13)

Temos aqui, então, uma questão central que perpassa toda nossa
reflexão: se para Aristóteles era possível distinguir a poesia, e com ela o
teatro, da política; para Boal todo teatro é necessariamente político.
Retomando a ideia de que filosofia e arte, no ocidente, mantiveram ao
longo dos séculos uma relação dialética de aproximação e distanciamento,
pensar a poética política de Boal nos põe em diálogo com parte dessa
história.
Fundamentalmente, o que torna sua compreensão ímpar no que diz
respeito ao papel e funcionamento do teatro é o protagonismo do
espectador. A mobilização do espectador, na medida em que ele se torna o
centro da experiência teatral, distingue completamente Boal da tradição
teatral no ocidente, até mesmo das ideias precursoras de Brecht, que
exerceram muita influência em seu pensamento. Mais uma vez Schechner
nos ajuda a entender este processo: “ele expandiu radicalmente a noção do
coro grego de forma que a plateia ativa – o espect-ator – era o participante
mais importante do evento teatrão” (2013, 12).
Retornemos, pois, à leitura que Boal faz da Poética. É interessante
notar que o cuidado com o qual ele perpassa os elementos principais da
obra aristotélica, recorrendo inclusive ao repertório do filósofo em outras
obras, como a Ética a Nicomaco e a Metafísica, revela uma dupla
preocupação: por um lado, em caracterizar com honestidade intelectual a
estrutura lógica e os princípios que constituem a compreensão por parte de
Aristóteles do fenômeno teatral, bem como de destacar as teses ali
implicadas e as conclusões dali extraídas e consagradas. Por outro lado, em
usar sua própria filosofia para contestá-lo naquilo que ele entende, a meu
ver, como o grande problema da Poética, qual seja, o de construir um
programa sistemático aparentemente imparcial e separado da política
quando, na verdade, isso se mostra impossível.
Já dissemos que Boal discorda em absoluto da possibilidade de se
separar o teatro da política e que tal separação, pelo menos do ponto de
vista da articulação do sistema filosófico aristotélico, é sustentada pelo
filósofo. O interesse de Boal é tão grande no assunto que ele empreende em
“O sistema trágico coercitivo de Aristóteles” uma análise detalhada dos
principais elementos da Poética e, cotejando com a obra do filósofo,
procura explicar porque entende que o legado aristotélico se consolidou, no
fim das contas, como um mecanismo de controle e exercício de poder por
parte do Estado.
Na Grécia antiga, enquanto o teatro ainda se aproximava mais de uma
manifestação coletiva, popular e de ordem religiosa, ele pouco poderia
contribuir para o poder estatal visto que sua ordem interna, se é que isso
existia, não poderia ainda servir como um amálgama da polis. Contudo, o
aprimoramento das práticas dramáticas e algumas transformações
substanciais em sua execução, criaram a possibilidade de uma emulação
entre o Estado e o teatro. Foi o surgimento do protagonista, criado por
Thepsis, que proporcionou esta profunda modificação estrutural.
Inicialmente uma expressão transgressora, o protagonista foi neutralizado
pelos tragediógrafos, e suas falas cada vez mais representativas do
pensamento estatal. O diálogo entre o rei Édipo e o coro expressava a
conversa entre a aristocracia e o povo; as festas populares deram lugar,
pouco a pouco, à expressão de um protagonista-aristocrata.
Gostaria de fazer aqui duas digressões, ambas inspiradas na
interpretação que Nietzsche fez, no século XIX, da tragédia grega.
Anunciadas em seu primeiro livro, O nascimento da tragédia, elas apontam
para (1) as transformações estruturais da tragédia e sua relação com o
desenvolvimento da polis grega e (2) a compreensão última da tragédia
como a manifestação de uma reconciliação interminável entre duas forças
da natureza que, como já é de amplo conhecimento, Nietzsche chamou de
apolínio e dionisíaco. Com relação à última, marcada pelo sedutor elemento
iconoclasta das duas divindades em questão, ficamos com a vontade
irresistível de pensar sobre os desdobramentos metafóricos de Apolo e
Dioniso, especialmente em como tais figuras nos permitem potencializar as
reflexões que Boal oferece ao testemunhar os limites da compreensão de
teatro e de arte derivadas da visão de mundo construída no ocidente a partir
de Aristóteles.
“O herói trágico surge quando o Estado começa a utilizar o teatro para
fins políticos de coerção do povo” (2013,56), diz Boal. Seria leviano acusar
Aristóteles de pretender com a Poética delimitar as formas possíveis de
fazer poesia e enquadrar a expressão artística àquele conjunto de hierarquia,
estrutura e regras de seu texto, afinal, sabemos que o filósofo demonstrou
mais afeição a uma descrição detalhada do exercício da atividade poética
visando sua perfeição. Mas a tragédia grega que Aristóteles descreve a
reconhece como execução perfeita é justamente o Édipo rei, de Sófocles. E
talvez fosse ainda mais leviano extirpar seu conteúdo e caráter
eminentemente político, porque a reivindicação da relação entre arte e
política feita por Boal faz aqui todo o sentido. A utilização do herói trágico
e sua desdita para fins políticos pelo Estado suscita, no mínimo, o interesse
em saber, afinal: o que a tragédia grega poderia oferecer de tão atraente?
Em que medida ela poderia, de fato, funcionar como uma estratégia de
coerção e, consequentemente, dominação?
Boal dedica então parte considerável deste ensaio para definir,
primeiro, uma compreensão não-dogmática do caráter imitativo da arte para
depois, gradativamente, elencar as definições de felicidade, virtude e
justiça. Contudo, não resta dúvidas de que a parte mais relevante de seu
ensaio pode ser observada quando ele começa a responder, efetivamente, de
que forma é possível enxergar no teatro um elemento purificador e
intimidatório, e a debater a finalidade última da tragédia enquanto ação
humana – definida por Aristóteles no parágrafo sexto da Poética – que é,
pois, produzir a catarse. Antes disso, porém, Boal ainda faz duas breves
observações.
A primeira é a de que há um conjunto de recursos (renováveis, diga-se
de passagem) disponíveis para tornar certa população satisfeita ou contente
com as desigualdades que marcam a sociedade a que pertencem, ou, pelo
menos, uniformemente passivos diante delas, ainda que não exatamente
contentes. Nesse sentido, para Boal, não há uma distinção significativa
entre burocracia, aparato policial e a tragédia grega. A segunda observação
nos lembra que o sistema apresentado na poética aristotélica não é somente
um sistema repressivo, pois se detém também em questões estéticas e
estruturais da poesia. Finalmente ele sugere que, de acordo com a sua
leitura, o principal argumento que justifica investigar a função repressora da
tragédia está diretamente ligado com a sua finalidade última.
Boal recorre a Butcher, Racine, Bernays e Milton. Ao primeiro deles
ele atribui sua compreensão do conceito de catarse e os apontamentos
necessários para formular seus argumentos, que parecem suficientemente
anunciados na seguinte passagem:
A natureza tem certos fins em vista; quando fracassa e não consegue atingir seus objetivos intervêm a arte e a ciência. O homem, como parte da
natureza, tem certos fins em vista: a saúde, a vida gregária no Estado; a felicidade, a virtude e a justiça etc. Quando falha na consecução desses
objetivos, intervém a arte da tragédia. Essa correção das ações do homem, do cidadão, chama-se catarse. (2013, p. 50)

O funcionamento da catarse é associado por Boal a uma espécie de


morbidez. Num primeiro momento, o expediente das tragédias é enaltecer a
ação virtuosa de seu herói e, portanto, estimulá-la para o espectador.
Contudo, é essa mesma ação a causa principal da queda e da desdita do
herói e que, ao fim e ao cabo, encerrada a tragédia, é o comportamento
pouco virtuoso que deve ser extirpado ou corrigido. Ora, trata-se de um
jogo perverso de estímulo e reprovação contundente e inexorável, e por isso
mesmo, uma forma de exercício de controle e dominação.
Portanto, é especialmente essa marca coercitiva que Boal enxerga no
sistema aristotélico, sem a necessidade de suspender o julgamento sobre os
méritos e a importância da Poética, mas ao mesmo tempo, sem abrir mão de
apontar os elementos que, aos olhos do dramaturgo brasileiro, configuram a
verve política e seus indesejáveis efeitos ético-políticos que expressam, em
última instância, uma concepção de arte e de teatro com a qual Boal jamais
poderia concordar. Passamos, agora, ao final desta reflexão e do
encaminhamento que pretendemos dar não somente para o desfecho deste
texto, e sim, para as reflexões que faremos ainda em outras oportunidades
mais adiante.
Queremos saber se é possível associar o trabalho crítico de Boal com
a elaboração de um pensamento filosófico característico brasileiro e, depois,
em que medida podemos destacar alguns registros próprios desse
pensamento. Vamos lembrar uma passagem curiosa da história da filosofia
europeia que se mostrou suficiente para explicar as transformações que
ocorreram a partir da segunda metade do século XVIII e que marcaram
definitivamente as relações entre as artes, em especial o teatro a literatura, e
a filosofia. Mas em que medida um expediente desse, que efetivamente só
diz respeito à história europeia e aos fenômenos de parte de seu povo e
cultura, pode ter alguma serventia para nossas expectativas? Se ele não diz
nada sobre a nossa cultura e história, não estaríamos, ao fazê-lo, escrevendo
mais algumas páginas de nosso pensamento colonizado e dependente?
Bem, o que me parece escapar a este veredicto legítimo e necessário
em tempos de insurgência de uma filosofia popular brasileira é justamente o
elemento que carrega a hipótese que mais nos satisfaz quando pensamos
sobre as características dessa nossa filosofia: a indissociabilidade entre
literatura, poesia, cultura popular e filosofia. Assim como nos tempos de
Sófocles, o final do século XVIII registrou entre os germânicos a
restauração dos vínculos entre as artes e a filosofia e, a partir desse
movimento, o florescimento de uma filosofia potente e transformadora. E
esse é o ponto que nos interessa.
Em 1813, no ensaio intitulado De l’Allemagne, Madame de Staël faz
uma afirmação que se consagrou como porta de entrada para a compreensão
do fenômeno cultural, político e filosófico que foi o Helenismo na
Alemanha e, com ele, o surgimento da literatura e do teatro propriamente
germânicos. Disse ela que, diferentemente da França, por exemplo, entre os
povos germânicos a crítica de arte e a arte surgiram concomitantemente. O
principal efeito disso foi a interferência que a crítica exerceu sobre a criação
literária, que surgiu precisando dar respostas às teorias e especulações sobre
as regas e os efeitos da arte e, ao mesmo tempo, alimentando-se das suas
contribuições. O trabalho de Lessing no teatro de Hamburgo, produzindo
resenhas e críticas das montagens teatrais encenadas ali e que mais tarde
constituíram o livro Dramaturgia de Hamburgo, é um dos maiores
exemplos dessa dupla implicação.
Se na Alemanha a literatura e a dramaturgia só floresceram em virtude
da intimidade com a igualmente recente crítica da arte, nossa hipótese é que
no Brasil foi a filosofia que se beneficiou da emancipação e da postura
critica dos artistas insurgentes. Apesar da resistência acadêmica em
reconhecer o trabalho filosófico de Mário e Oswald de Andrade, e também
de Boal e Zé Celso, a abertura e o crescente interesse por reconhecer um
pensamento não subordinado ao estatuto europeu nos permitem enveredar
por esses caminhos. Afinal, é no e a partir dos trabalhos de nossos
compositores, poetas, escritores e dramaturgos do século XX que a filosofia
brasileira encontra seus primeiros apontamentos.
No caso específico de Boal, é na prática teatral que a defesa de um
pensamento de uma expressão reflexiva daquilo que constitui o Brasil,
nossas histórias e culturas que essa filosofia necessariamente popular pode
insurgir. Não parece absurdo dizer que uma filosofia brasileira tenha que ser
popular, porque para ser insubordinada e liberta das premissas
colonizadoras me parece que esse é um caminho necessário. Não o único,
mas necessário. Como nos diz Roberto Freire, em entrevista a Izaías
Almada sobre o teatro de Arena e o convívio com Boal na década de 60:
Toda atividade política, em particular aquela que se alimenta de utopias par a construção de uma nova sociedade e de um novo ser humano,
alicerçada teoricamente em sentimentos de igualdade, costuma extrair do momento da sua própria ação a seiva com que se nutre. Isso é bom e é
mau, como nos ensina a dialética. A arte com propósitos políticos não foge à regra. (2004, p. 94.)

Ele ainda complementa: “Eu acreditava sinceramente na


possibilidade de fazer uma revolução no Brasil, uma revolução popular e de
caráter socialista”. (2004,98). Pois é a partir dessas questões que desejamos
nos mover: a filosofia à brasileira não consegue afastar-se de um demanda
revolucionária, dos seus vínculos umbilicais e ancestrais com os oprimidos,
e com a pluralidade de manifestações culturais de seu povo.

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A humanidade fabricada: identidade, violência e exclusão na
construção do imaginário moderno/colonial
117
Diego dos Santos Reis

“O processo colonial é sempre construído em torno de um instinto


genocida”
Achille Mbembe, Políticas da Inimizade
“O racismo e o colonialismo deveriam ser entendidos como modos
socialmente gerados de ver o mundo e viver nele”
Frantz Fanon, Pele negra, máscaras brancas
Este ensaio inscreve-se na tentativa de pensar como o paradigma
eurocêntrico da modernidade é devedor de uma lógica colonial que cria,
reproduz e mantém hierarquias epistêmicas, ontológicas, raciais, sexuais e
estéticas. O tensionamento dessa lógica está na raiz das disputas político-
epistêmicas travadas, hoje, por diversos movimentos de descolonização
contra as estruturas de poder do sistema-mundo moderno/colonial/patriarcal
(BERNARDINO-COSTA; GROSFOGEL, 2016). Trata-se, então, de situar
o projeto decolonial e sua agenda, com vistas a contestar o modelo
epistemológico hegemônico e suas categorias, que legitimam a dominação
epistêmica ao reproduzir um conhecimento supostamente universal, sem
determinações geopolíticas, culturais ou corporais.
A colonialidade, enquanto matriz de poder que funda a modernidade,
baseia-se na centralidade da ideia da raça como dimensão estruturante da
lógica moderno/colonial (QUIJANO, 2005), que se converte em princípio
organizador das relações intersubjetivas, da sexualidade, dos regimes de
trabalho e de produção do conhecimento. Ela apoia-se no racismo como
sistema de poder, que garante não só a supremacia dos corpos brancos em
relação a outros sujeitos racialmente marcados, mas define também os
regimes de produção e difusão de conhecimentos legítimos, válidos e
socialmente valorizados.
Se, de um lado, a raça é o eixo determinante das hierarquias e das
relações sociais, o racismo é, de outro, o mecanismo social primordial na
manutenção da diferença subontológica e geopolítica do conhecimento
(MIGNOLO, 2003). É à luz dessas ideias que me interessa pensar, aqui,
tanto o impacto do capitalismo e do colonialismo na construção das
hierarquias de humanidades quanto na desigualdade entre saberes e
interpretações de mundo, que consolida o monopólio universal de
perspectivas do Norte global em detrimento da subalternização das
experiências de conhecimento do Sul.
Não é novidade que esses processos de racialização objetivaram, por
meio de um movimento de “substancialização” das diferenças entre o
“colonizado” e o “colonizador”, instaurar um sistema de privilégios e
prejuízos baseado na distinção “natural” entre “raças”, inscrita na própria
“natureza humana” e materializada nas expressões fenotípicas e mentais
características de cada uma delas. A diferença colonial forjou
subjetividades moduladas segundo as posições que ocupavam em um
sistema binário, referenciado pelo paradigma eurocentrado de humanidade,
marcado como superior, em oposição aos corpos não-brancos, sujeitos à
tutela de seus “soberanos”. Por isso, como destaca Aníbal Quijano:
O fato de que os europeus ocidentais imaginaram ser a culminação de uma trajetória civilizatória desde um estado de natureza, levou-os também a
pensar-se como os modernos da humanidade e de sua história, isto é, como o novo e ao mesmo tempo o mais avançado da espécie. Mas já que ao
mesmo tempo atribuíam ao restante da espécie o pertencimento a uma categoria, por natureza, inferior e por isso anterior, isto é, o passado no
processo da espécie, os europeus imaginaram também serem não apenas os portadores exclusivos de tal modernidade, mas igualmente seus
exclusivos criadores e protagonistas. O notável disso não é que os europeus se imaginaram e pensaram a si mesmos e ao restante da espécie desse
modo – isso não é um privilégio dos europeus – mas o fato de que foram capazes de difundir e de estabelecer essa perspectiva histórica como
hegemônica dentro do novo universo intersubjetivo do padrão mundial do poder (QUIJANO, 2005, p. 122).

Regulado pela assimetria das relações raciais, o discurso monológico-


universal do ocidente se reafirma pela destituição de outras formas de vida,
de pensamento, de saberes e experiências, pela via de um “processo
persistente de produção da indigência cultural” (FANON, 2008, p. 97). Daí
a instauração de um padrão hegemônico mundial de autoridade, alicerçado
no discurso da ciência moderna e baseado na hierarquização racial, que está
na base da colonialidade do poder e do saber. Afinal, o modo de
conhecimento legitimado e culturalmente valorizado não se desatrela do
poder expansivo da ordem colonial dominante, e “fora das suas fronteiras
está o não-ser, o nada, o bárbaro, o sem-sentido”. (DUSSEL, 1986, p. 11).
É para isso, igualmente, que aponta Jacques Derrida (1991), em
Margens da Filosofia, ao ressaltar que a “mitologia branca” impõe a figura
do homem branco, europeu, heteropatriarcal e cristão como representação
universal dos padrões de humanidade. O solipsismo branco (OYÈWÚMI,
2000) culmina por apagar, inclusive, a branquitude como racialidade,
conferindo a ela o lugar de paradigma, isto é, de marcador não determinado
por qualquer marcação, e, por isso, parâmetro referencial a partir do qual a
hierarquização das humanidades se organiza, bem como a díade civilização-
barbárie.
Essa razão colonial-imperial (teo-ego-politicamente), revestida pela
linguagem da ciência moderna e pautada por seus ideais de neutralidade e
de objetividade, irá conferir primazia a:
uma filosofia na qual o sujeito epistêmico não tem sexualidade, gênero, etnia, raça, classe, espiritualidade, língua, nem localização epistêmica em
nenhuma relação de poder, e produz a verdade desde um monólogo interior consigo mesmo, sem relação com ninguém fora de si. Isto é, trata-se de
uma filosofia surda, sem rosto e sem força de gravidade. O sujeito sem rosto flutua pelos céus sem ser determinado por nada nem por ninguém
[...]. Será assumida pelas ciências humanas a partir do século XIX como a epistemologia da neutralidade axiológica e da objetividade empírica do
sujeito que produz conhecimento científico (GROSFOGUEL, 2007, p. 64-65).

Daí a importância de historicizar o processo de construção do


conhecimento que engendrou as estruturas naturalizadas – racializadas e
generificadas – de certos paradigmas epistemológicos, assimilados como
padrões universais. Ao operar um deslocamento dos centros de privilégio, é
preciso rediscutir os processos contra-hegemônicos de afirmação de saberes
e práticas inferiorizados e as ressignificações propostas por eles, bem como
realizar um exercício crítico “sobre os sistemas de posições e lugares
geopolíticos da produção filosófica, isto é, a problematização da
invisibilidade do lugar histórico e político na construção de conhecimento e
da pressuposição da neutralidade de um ‘sujeito universal’.” (NOGUEIRA,
2014, p. 22).
Implicados nos paradigmas de dominação colonial na forma do
epistemicídio (SANTOS & MENESES, 2010), o racismo e o sexismo
epistêmicos operam pela via da lógica segundo a qual o único regime de
verdade seria fornecido pela tradição de pensamento ocidental, branca e
masculina, cuja cosmovisão deveria se disseminar como forma superior de
conhecimento em detrimento de outras cosmologias e saberes. O resultado,
como se sabe, é uma série de justificativas naturais, ancoradas em
estereótipos essencialistas, para a inferiorização racial, sexual, ontológica e
epistemológica de povos submetidos à violência arbitrária das ocupações e
do impulso dominador “civilizatório” dos movimentos coloniais, insuflados
pelas “hierarquias raciais, binárias e essencialistas do fundamentalismo
eurocêntrico hegemônico” (GROSFOGEL, 2011, p. 346).
No questionamento da colonialidade do saber e do paradigma
monoepistêmico, as lentes decoloniais ajustam o foco para a diversidade de
matrizes epistêmicas, para além dos marcos dicotomizantes do pensamento
hegemônico. Estas lentes não reforçam a ruptura ontológica que despreza o
corpo, território no qual se inscrevem e se produzem as narrativas múltiplas
de resistência e de reexistência forjadas na luta antirracista e anti-colonial.
Muito pelo contrário. Elas ajudam a interrogar o dualismo e a lógica binária
que organizam a produção discursiva eurocêntrica – com a dissociação
entre corpo e razão, sujeito e objeto, natureza e sociedade – e que
consolidaram o eurocentrismo como perspectiva hegemônica de
conhecimento.
Nesse contexto, cabe destacar como as instituições formais de ensino –
e a universidade, em particular –, enquanto lugares de produção,
sistematização e socialização do conhecimento, historicamente, alijaram de
seus espaços e de suas práticas, os saberes produzidos por sujeitos
racializados como não-brancos, sistematicamente inferiorizados pela razão
ocidental-cêntrica. Problematizar a instituição uni-versal de uma
perspectiva e o modo como o discurso da ciência moderna legitimou, a
partir de seus critérios e valores, a matriz epistêmica eurocentrada, significa
colocar em questão o seu reverso: que epistemologias, saberes, vivências e
práticas foram deslegitimados para que se afirmasse esse modelo como o
único epistemologicamente válido? Que humanidades foram
ontologicamente desconsideradas para que o cânone moderno/ocidental se
impusesse em sua suposta auto-evidência? Qual a função do racismo e do
sexismo epistêmicos na consolidação dessa geopolítica do conhecimento,
que instituiu centros e periferias, hierarquias epistêmicas, ontológicas,
sexuais e raciais?
Trata-se de problematizar o caráter excludente e hierárquico das
matrizes de conhecimento eurocentradas, que invisibilizam e negam a
capacidade de produzir conhecimento dos povos extra-europeus. A
perspectiva decolonial propõe, assim, uma crítica contundente ao
eurocentrismo, apontando na uni-versalidade o seu caráter etnocêntrico e
geopoliticamente situado, cujo pacto narcísico, firmado desde a Europa,
reconhece apenas este modelo civilizatório e epistêmico como
racionalidade verdadeira e legitimada a ser difundida.
Contestar a universalidade instituída em moldes eurocêntricos,
heteropatriarcais e coloniais, erigida a partir dos padrões de humanidade
que conferem o privilégio à supremacia branca e masculina requer, de um
lado, considerar os espaços de produção e reprodução do conhecimento
como marcados por suas localizações epistêmicas, isto é, espaços não
neutros, imparciais e objetivos, como buscaram historicamente se afirmar;
de outro lado, questionar a economia de privilégios que institui a
valorização simbólica e material da cultura ocidental impõe repensar as
consequências das desigualdades resultantes do silenciamento de
experiências de conhecimento não-ocidentais e da racialização dos corpos
não-brancos, lançados na indigência epistêmico-ontológica. Ou, ainda,
como propõe Fanon (2008), na zona do não ser.
Como sabemos, isso não se dissocia do fato de que a colonialidade
atua sobre os corpos marcados pela geopolítica racializante concebendo-os
como territórios de extração, que, esvaziados de humanidade, convertem-se
em objetos de violações sistemáticas, discriminações negativas,
encarceramento em massa ou extermínio sumário. A hierarquização racial e
sexual tem a função de operar gradações nas escalas de humanidade, de
modo que as mulheres não-brancas figuram na base da pirâmide de
opressões e experimentam a violência de modo mais intenso e extenso.
Conceber a violência da imposição universal de uma única
racionalidade legitimada é fundamental para equacionar de que modo
violência, racismo, sexismo e universalidade passaram a corresponder
um(a) a(o) outro(a) nos processos de extermínio ocidentais. Pois, “assim
hipostasiadas e colocadas num pedestal, a cultura e a civilização ocidental
tornam-se o ponto zero de orientação de todas as humanidades”
(MBEMBE, 2017, p. 160).
O epistemicídio, ao negar a capacidade de produção de conhecimento
válido de povos extra-ocidentais, historicamente, teve a função de destruir
as formas de saber locais em detrimento da imposição de uma única
racionalidade, vinculada ao processo de eurocentrização da
modernidade/colonialidade. A desumanização dos povos, a aniquilação
ontológico-epistêmica e o saque dos territórios, inextrincáveis à lógica
colonial, viabilizaram a instituição do padrão epistêmico ocidental como
modelo referencial do conhecimento e da tutela, fundada na negação da
agência como dispositivo de controle e de sujeição voltado para
manutenção das relações coloniais. Segundo Sueli Carneiro, o epistemicídio
se configura:
pela negação aos negros da condição de sujeitos de conhecimento, por meio da desvalorização, negação ou ocultamento das contribuições do
Continente Africano e da diáspora africana ao patrimônio cultural da humanidade; pela imposição do embranquecimento cultural e pela produção
do fracasso e evasão escolar. A esses processos denominamos epistemicídio (CARNEIRO, 2011, p. 92-93).

Contra a hierarquia racial que fixa, no interior de um quadro de


diferenciação colonial, as assimetrias culturalmente instituídas como
distinção originária, o feminismo negro reivindicará, por seu turno, nos
estudos de Davis (2016), de Carneiro (2011), de Gonzalez (1982) ou de Bell
Hooks (2019), a construção da transversalidade epistêmica entre raça,
classe, gênero e sexualidades, para equacionar as desigualdades geradas
pelo padrão colonial/patriarcal/racial hegemônicos e seus mecanismos de
reprodução. Trata-se de contestar o modo de classificação epistêmica que
privilegia os regimes de produção do conhecimento das elites brancas e
masculinas – de matriz eurocentrada – e que se reflete na transformação de
privilégios sociais, econômicos, sexuais e raciais no discurso do mérito e
dos dons.
Ora, em que medida o ensino e a pesquisa, entendidos como
experimentação de práticas, relações e saberes descolonizados,
antissexistas, anticlassistas e antirracistas, têm o papel de questionar o
cânone e os silêncios que constituem o paradigma hegemônico das
configurações epistemológicas e das práticas educativas ocidentais? Qual a
importância da mudança das representações ligadas à cultura negra, latina,
LGBTTQI+ e da inclusão de saberes africanos, afro-brasileiros e
ameríndios nos currículos? Em que sentido essa mudança interroga os
lugares, os espaços de poder e “a relação entre direitos e privilégios
arraigada em nossa cultura política e educacional, em nossas escolas e na
própria universidade”, nas trilhas do que destaca Nilma Lino Gomes
(2012)?
Descolonizar os currículos, as práticas, a linguagem e o pensamento
não é tarefa simples. E se as lutas da atualidade têm apontado para a
necessidade permanente – e incondicional – desse exercício, nos cabe
propor ações concretas que desloquem e contestem a produção de
subjetividades e as práticas que reforçam os padrões
coloniais/racistas/patriarcais. Essa postura político-epistemológica é
imprescindível para que se reordenem os enunciados e as agendas políticas,
e se repense a estrutura racializada de poder, de modo a reposicionar o
contrato racial forjado pelos códigos da branquitude e os efeitos de
violência gerados por ele.
É importante ressaltar, além disso, que, no decurso desses processos
complexos de dominação, aculturação e conflito, produzem-se resistências
que interrogam os pactos civilizatórios ocidentais, as concepções
hegemônicas e as estruturas de poder da colonialidade. A atitude
decolonial, nesse sentido, redimensiona narrativas e práticas dos
saberes/poderes instituídos, e funciona como modo de resistência aos
processos de subalternização, ao afirmar outras geopolíticas do
conhecimento, fruto das lutas históricas contra o
racismo/sexismo/universalismo abstrato. Atentar a isso significa afirmar
que “existem vários universos culturais, não existe um sistema único
organizado em centro e periferias, mas um conjunto de sistemas
policêntricos em que centro e periferias são contextuais, relativos e
politicamente construídos” (NOGUEIRA, 2014, p. 34).
O desafio que se nos apresenta é: como reposicionar esta discussão em
perspectiva decolonial, com objetivo de disputar as categorias político-
epistêmicas do debate, colocar em xeque a universalidade abstrata e as
relações hierárquicas entre humanidades, estabelecidas pelo sistema-mundo
moderno/colonial? Sem dúvida, o questionamento da colonialidade do
poder, do ser e do saber (QUIJANO, 2005) e a percepção dos impactos do
racismo como elemento estruturante da violência colonial são alguns dos
pontos centrais dessa luta. No enfrentamento permanente dos legados da
colonialidade, a atitude decolonial torna-se:
uma maneira de pensar e de estar no mundo, e não um método para estudar. Pensar decolonialmente significa desatrelar-se dos pressupostos da
epistemologia moderna baseados na diferença entre sujeito cognoscente e objeto a conhecer. [...] A decolonialidade são os processos de busca de
se estar no mundo e fazer nesse estar, desobedecendo àquilo que a retórica da modernidade e do desenvolvimento quer que sejamos e façamos.
(MIGNOLO, 2014, s.p.)

Uma das pistas a serem seguidas, portanto, nesse giro decolonial


(Maldonado-Torres, 2007) do conhecimento consiste, justamente, na prática
da educação intercultural, na promoção da diversidade epistêmica como
modo de “transformação radical das estruturas, instituições e relações
existentes” (WALSH, 2009, p. 22). Na América Latina, a interculturalidade
assume um significado ainda mais específico: “ela está ligada às
geopolíticas do espaço e do lugar, às lutas históricas e atuais dos povos
indígenas e negros e à construção de projetos sociais, culturais, políticos,
éticos e epistêmicos, orientados para a transformação social e para a
descolonização” (WALSH, 2006, p. 21). Contra a “ordem do discurso”
monocultural, que nega outros paradigmas epistemológicos e modos de
existência pela via do racismo/colonialismo epistêmico, destacar a
perspectiva geopolítica de todo conhecimento tem a função de desfazer a
crença segundo a qual “todas as populações que vivam fora do pequeno
espaço que é conhecido como ‘Europa ocidental’, sejam portadoras de um
tipo de saber inferior, de uma interpretação inferior do mundo, de uma
espiritualidade inferior, notadamente marcada pelo folclore e pela
superstição, e não pela ‘verdade’.” (FLOR DO NASCIMENTO, 2013, p. 4).
Não à toa, nesse contexto, a linha que divide a humanidade fabricada –
o sujeito de direito ocidental – e os indivíduos desumanizados “fez da
afirmação do não-ser a condição de possibilidade que sustenta a
humanidade como atributo exclusivo da zona do ser” (Pires, 2018, p. 66).
Assim, a violência se justifica, historicamente, não apenas como regra para
aqueles que são posicionados na zona do não-ser, mas como elemento
imprescindível para legitimar, nos termos da “normalidade”, os padrões
mórbidos de relações raciais. Tratam-se, enfim, das representações sobre o
(in)humano e de como a violência, no imaginário moderno/colonial,
naturalizou-se como dispositivo estruturante no processo de recusa do
reconhecimento da humanidade plena de povos extra-ocidentais. Por isso, a
revisão crítica de conceitos forjados pela tradição
moderna/colonial/patriarcal implica na redefinição dos paradigmas
epistemológicos, com consequências evidentes na história, na historiografia
e no cânone ocidentais.
No olho do furacão, na travessia deste grande sertão dos nossos
tempos, lutar contra os efeitos persistentes dos pactos coloniais e do
contrato racial sobre os quais se assentam as hierarquias de humanidades
herdadas do projeto moderno/colonial, demanda trilhar outros caminhos,
outras encruzilhadas: a de uma pluri-versalidade, radicalmente
democrática, implicada na luta antirracista, anticlassista e antissexista, e que
ajude a construir um mundo onde outros mundos sejam possíveis. Narra a
mitologia iorubana que o sopro de Iansã, de tão forte, cruza os ares e arrasta
consigo pó, folhas e tudo o mais que houver pelo caminho. Quanto mais
terrível for a guerra, na urgência de fabricar armas para as lutas, mais forte é
o seu sopro, alimentando o fogo da forja e a intensidade das flamas. Eis,
portanto, mais uma convocação – a mais urgente: em pleno fogo, nas ruínas
de um ocidente cuja luz se converte em chamas, apontar nas tramas da
violência colonial não apenas a ferida não suturada do passado, mas sua
continuidade no presente e em nossas heranças.
“O que os livros escondem,
as palavras ditas libertam.
E não há quem ponha
118
um ponto final na história”

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Comportamento impróprio ao local de cultura

119
Pedro Menezes

Eu aprendi muitas coisas com meu orientador, o Prof. Dr. Rafael


Haddock Lobo, muitas mais do que ele deve pensar/imaginar. Algumas
dessas coisas foram sobre Derrida. Entre estas, uma delas foi certa atenção
especial ao modo, ao estilo como Derrida escreve. Uma importância ao
tratamento que se dá à escritura. Aos rastros da escritura. Por vezes coisas
simples, pensar <<à sombra>> ou <<enegrecer>> um pensamento no lugar
de esclarecê-lo; por outras, coisas seríssimas, como o sotaque do dialeto,
um sempre local: o espaço rastreado na escritura. Rastreado: tanto <<cheio
de rastros>>, milhões de indicações que apontam ou nos conduzem para
locais, até mesmo contraditórios. Rastros deixados por aquilo que já foi e
não está mais lá. E, dessa maneira, apontou-me Haddock Lobo a escrita em
primeira pessoa. Eu. Eu, vocês. Eu estou rastreado nesse texto.
Rafael Haddock Lobo atentou-me, então, para o modo como muitas
vezes Derrida escreve. Por exemplo, geralmente como convidado, seja de
uma conferência, seja uma apresentação, um curso, ele responde a um
chamado e endereça sua escrita ao outro — começa e termina no
<<outro>>. Igualmente, o franco-magrebino com frequência escreve em
forma de diálogo — um outro por vezes até mesmo imaginado, como em O
Monolinguismo do Outro. Por fim, como último exemplo, Derrida com
frequência começa pedindo desculpas — pisando devagarinho.
Eu. Eu gostaria, enfim, de começar — esse que já não é mais o começo
deste texto, se não um começo inventado, prostético; afinal, muito já foi
escrito — começar, então, pedindo desculpas. Tal qual Derrida. Tanto as
<<desculpas programadas>> de um projeto falido (incompleto, nunca
plenamente presente, totalizado, acabado), quanto desculpa pelo tema
<<impróprio>> que aqui será tratado: O cu de Paul Preciado.
Na última edição do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, de
2009, o verbete “impróprio” recebe a seguinte definição:
1.Que não serve para determinado uso; Inadequado (utensílio i., calçado i.) 2.Que não exprime exatamente a ideia, o pensamento; Indevido,
Incorreto; (o uso i. de uma palavra, uma expressão) 3.Não recomendável (um filme i. para menores) 4.Que sobrevém em má ocasião;
Inconveniente, Inoportuno (ele sempre chega em horas i.) 5.Contrário dos costumes (seria bastante i. a uma moça sair desacompanhada a altas
horas da noite) 6.Agressivo à moral; Indecente, Indecoroso (é um dos filmes mais i. que já vi)
Inadequado, indevido, incorreto, não recomendável, inconveniente,
inoportuno, agressivo à moral, indecente e indecoroso, esses são os próprios
ao impróprio. Uma mancha na pureza, o comportamento impróprio é,
atualmente, até mesmo a maior causa de demissões, como nos professam os
manuais de gerência. O impróprio ocupa uma instância outra que a do
injusto, ele é anterior à Lei e ao Direito – a justiça já é, pois, o bom senso, o
adequado e não contempla o descabido ou o desmedido. Porque esse termo
tornou-se tão mal-dito, porque ele ameaça tanto a metrópole-capital-centro,
e porque fugir do próprio é tão grave?
Em Terror anal: Notas sobre os primeiros dias da revolução sexual
(2019) P/B Preciado discute o contraste entre André Baudry, fundador do
movimento Arcadie e da revista homônima, com os integrantes da Frente
120
Homossexual de Ação Revolucionária (o FHAR) , dentre os quais
Preciado dá mais atenção a Guy Hocquenghem.
A Arcadie ocupava-se em escrever que homofilia (termo utilizado na
revista) não tinha um comportamento indecoroso ou obsceno, mas, antes,
natural e que não rompia com os bons costumes. A homossexualidade era
uma tendência decente, secreta ou discreta, de foro íntimo, privada e que
não afrontava o espaço público – uma condição natural que não atrapalharia
sua inserção na sociedade, nem afrontava as dinâmicas de trabalho, da
moral, de segurança pública e etc. A homofilia da Arcadie não consistia em
uma crítica, mas estava em continuidade com a matriz formação sexual
hegemônica e, julgando-se pela ótica da linguagem dominante, a
homossexualidade era uma tendência vergonhosa – era inconcebível um
homossexual desavergonhado, sem vergonha. O movimento espelhava a
lógica hegemônica e, invés de afirmar o mundo sem erro, sem formas
previamente determinadas na natureza, ele só acrescenta o homossexual à
lista dos normais – seu prazer não existe fora da norma, mas é, antes,
normal, natural e justificado. Não era um abalo estrutural ou crítica aos
fundamentos da sociedade.
Reforçando a arquitetura que divide o normal do anormal o autor
buscava fazer um corte entre o homófílo e o devasso – lutando,
principalmente, pelo direito ao casamento homoafetivo, provando que o
homófilo pertence e concorda com a organização da rede de relações
hegemônicas e que não é apenas um depravado.
Baudry vê a necessidade de discriminar flagelos sociais como
“prostitutos, os proxenetas e os corruptores de rapazes” dos “homossexuais
honestos e dignos que, de nenhuma forma, podem ser considerados como
um flagelo social. [...] Dentre estes, há colegas seus da Assembleia,
senadores, médicos, engenheiros, camponeses, operários, industriais,
comerciantes.” (BAUDRY apud. DE LA MARE, 2012, p. 59). Correndo
em defesa dos últimos, mas ressaltando a necessidade de lutar contra os
primeiros com o pesado braço da lei. Em outro momento, o ensaísta escreve
que “homoafetivos não são prostituídos, viciados, sujeitos amaneirados e
excêntricos... são em todos os meios espirituais, profissionais, políticos e
culturas...” (BAUDRY apud. BORRILO, 2018, p. 4).
O projeto de Baudry, acaso levado a cabo, solucionaria o <<problema
homossexual>> porque este já não se constituiria como uma ameaça ao
sistema dominante. O perturbador lugar da diferença é apagado a medida
em que esta vem a se justificar dentro do discurso dominante, a alteridade
toma, portanto, os efeitos tranquilizantes da igualdade, revivendo a fórmula
de hospitalidade com os iguais e hostilidade com a diferença.
Conduz-se adiante a discriminação dos “‘perversos’ dos ‘bons
homossexuais’, os ‘drogadictos’ dos ‘sóbrios’, as caminhoneiras das
lésbicas discretas e cultivadas, os transexuais dispostos a encontrar seu
verdadeiro sexo dos disfóricos sem remédio.” (PRECIADO, 2019, p.
37),Também a homossexualidade deve ser purificada do que é seria
impróprio, marginalizando os elementos que poluem sua representação –
culminando no homossexual conservador que luta para que (n)o público
não confunda o sentido original da palavra com os hábitos de doentes,
ludibriadores e pessoas que não lutam numa causa nobre. A luta
homossexual não era bagunça. O movimento ocupava-se em produzir, nas
palavras de Preciado, o <<bom homossexual>> ou <<homossexual
121
manso>>.
Uma causa nobre é diferente da empreitada maliciosa, ela é capaz de
intervir socialmente graças a popularidade ou êxito sendo, enfim, uma
causa reconhecida e sancionada – não afetando a inteligibilidade que a
sociedade tem de si mesma e da realidade. Mas qual o destino daqueles
cujas vitórias são publicamente vistas como os marcadores da derrota, do
vício e da degeneração – um caminho infame que, no lugar de ascender aos
patamares e as expectativas mais elevadas da cultura, conduz ao lamentável
<<fundo do poço>> e a desgraça? Qual o destino dos vadios, vagabundos,
proscritos?
A FHAR surge, em 1971, tendo como um dos objetivos contrapor-se
ao projeto político da Arcadie e à imagem do homossexual que ela
vinculava. Diferentemente da Arcadie os membros da FHAR não buscavam
justificar-se. Se a atuação social de Baudry dava-se no amparo da
racionalidade interna as demandas do FHAR inauguravam um modelo de
atuação democrático de respeito à diferença incondicional. Invés do
conforto do previsível, da mesmice e do compreensível introduz-se a
perturbação radical da outridade nunca presente ao entendimento. Os
escritos de Guy Hocquenghem no FHAR são realizados “por um bicha que
não oculta sua condição de ‘escória social’ e ‘anormal’ para começar a
falar” (PRECIADO, 2019, p. 10). As bases das mudanças contidas na
defesa da escória não podem ser legitimadas por nenhuma razão histórica,
elas confundem nossas noções de progresso ou derrota, evolução ou
degeneração, tradição ou modernidade, continuidade ou ruptura.
Preciado recorre ao conceito de “terrorismo textual” de Barthes para
pensar esse tipo de atuação impopular. A intervenção cultural se dá graças à
“violência que permite que o texto exceda as leis que usa sociedade, que
uma ideologia, se dão para constituir sua própria inteligibilidade histórica”
(BARTHES apud. PRECIADO, 2019, p. 10). Já não são mais os amigos da
ordem e da paz que encenam a luta no palco público, esses atores sociais
lutam pelo dissenso, lutam justamente contra o apaziguamento e
assentamento histórico, ontológico, cultural, etc. e etc.
As modificações sociais mobilizadas pelo terrorismo cultural não
ganham força através do consenso ou por ganhar o coração do público, mas,
antes, por expor o dissenso radical. Não apagar um problema apaziguando-
o, mas problematizar, tornar perturbador o que está estabelecido abala sua
inteligibilidade. A escória abjeta de Preciado não é simplesmente o povaréu
ou a ralé que podem, de alguma forma, serem vistas como manifestações
populares da cultura frente à aristocracia erudita dividindo a cultura em
níveis. A escória é o lixo, é o anormal, o impróprio, a imundice e a
impureza. A FHAR buscava abalar a linguagem dominante, como livro O
desejo homossexual (1972) de Hocquenghem que “é o primeiro texto
terrorista que confronta a linguagem heterossexual hegemônica”
(PRECIADO, 2019, p. 10).
Parênteses: não que a ralé também não seja uma forma marginalizada
da cultura que o centro tenta esconder e erradicar. Afinal, aqui nesse texto,
o termo preferido para designar o entre-lugar perturbador da diferença é
periferia. Mas o <<caridoso olhar dos antropólogos>> normalmente tenta
legitimá-la integrando-a em uma estrutura maior da cultura. As periferias
não são as proprietárias da cidade, seu lugar é o da despossessão.
Voltemos. <<Cu>> (ou <<Ânus>>) é o nome que Preciado dá a esse
buraco no discurso dominante. A arquitetura anatômica do corpo da
sociedade é anal castrada, ela recorta determinadas partes, fazendo coincidir
certas regiões com certos afetos, marcando-as como abjetas. Fundando uma
identidade pura, limpa, sadia e envergonha de sua parte imprópria O
Terrorismo textual torna-se o terrorismo anal: o medo e terror que o ânus
anuncia como perda dos referenciais, degeneração e perda do autêntico,
deslocamento dos significados e contestação do fundamento natural do
poder, da identidade e da cultura.
Diferentemente da discrição da Arcadie, que queria entrar sem abrir e
deixar aberto o ânus, a FHAR busca retirar o lacre sobre o ânus político,
deixar o buraco aberto à diferença radical. A castração do ânus é como
nasce o corpo privado, do próprio e do que lhe é propriedade. A partir dela
poderá definir-se <<sua>> linhagem e o que lhes pertence, “Feche o cu e
será proprietário, terá mulher, filhos, objetos, terá pátria. A partir de agora
será o senhor da sua identidade” (PRECIADO, 2019, p. 8). O corpo
fechado, seja da cultura ou pessoal, é o início da identidade, da homogenia
social. Desfazendo o interdito ao cu a cultura pode gozar novamente ao ser
transpassada pela diferença.
Fechar o ânus da cidade, entender a cultura como preservação do seu
ser próprio, só é possível através de uma imposição unilateral de um centro.
A estagnação do “ser” só pode se impor e impor um modelo único
empregando uma estratégia de epistemicídios internos e externos à cultura,
eliminando a diferença. Se, conforme nos diz Dussel, “o espaço do mundo
dentro de um horizonte ontológico é o espaço do centro, do estado orgânico
e autoconsciente sem contradições porque é o estado imperial.” (DUSSEL,
1997) e conclui, acerca das formas marginais, que “O pensamento crítico
que surge na periferia (...) termina sempre por dirigir-se ao centro. É sua
morte” (DUSSEL, 1977, p.xx). Preciado demonstra como as A bicha, o
travesti, a drag queen, a lésbica, a sapa, a caminhoneira, a butch, a
machona, a bofinho, as transgêneras, as F2M e os M2F6 são ‘brincadeiras
ontológicas’, imposturas orgânicas, mutações prostéticas, recitações
subversivas de um código sexual transcendental falso” (PRECIADO, 2014,
p. 30-31).
Este é o <<terror anal>> que dá nome ao ensaio de Preciado, o medo
de ser transpassado, marcado, deslocado: o fantasma da diferença. Não a
diferença tolerada que soma e contribui, mas a radical, o imoral, o
repugnante, o intolerável. A ameaça terrorista que vem da parte excretada
da cultura. “Se tem que abrir o ânus político, terá que ser feito pela via
cultural” (PRECIADO, 2019, p.17). Terrorismo anal é, portanto, Terrorismo
Kultural (Idem, 2019), ele desloca a hierarquia e inteligibilidade que a
sociedade faz de si mesma atuando (incidindo, furando, atravessando) nas
áreas de difusão, construção e normatização da identidade cultural.
Não uma crítica macia, que não perturba nem retira a sociedade de
seus eixos (dos eixos que a articulam), mas uma que desestabiliza sua
narrativa tranquila e desloque a cultura de seu “pas”: de seu “passo” (ritmo,
modo de ser) e de seu “não” (seu limite, sua identidade), para aproveitar o
trocadilho de Derrida em Aporias (1993). Uma forma marginalizada que
deturpa a identidade de seu sentido original. O terrorismo kultural é uma
tecnologia para agir na arquitetura da cultura, solo, no que está
fundamentada; para sacudir e marcar as estruturas mesmas da cultura –
marcas de fissuras e ajustamentos, reencenando e divergindo – ao contrário
de confirmá-las como tentava a Arcadie. Ela confronta o paradigma
arquitetônico orientado pelo familiar e pelo conforto.
Nos encontros da FHAR são comuns enunciados como “maricas e
instituições”, “fazer amor com os árabes”, “o sexo entre os adolescentes”,
“prazer clitoridiano”, “proletariado e sodomia”, “viva o colégio erótico”,
“nosso corpo é político”, “família = contaminação” e “proletários de todos
os países sodomizai-vos uns aos outros”, em rebeldia explícita a arquitetura
do discurso dominante, deslocando os significados excretados pela
sociedade (PRECIADO, 2019, p.18-19). Em 1971, ela organiza uma
manifestação pública nas ruas de Paris com alguns dos dizeres acima, “A
linguagem hegemônica e sua transcrição física, o espaço público, foram
atravessados” (PRECIADO, 2019, p.19). Também a arquitetura do espaço
público deve ser pensada pela abertura do cu.
A FHAR afronta a cultura e a sociedade anal-castrada. Não há
necessidade de desculpas, não se deve nada (uma postura indevida), já não
se espera clemência ou migalhas da hetero-segurança. Demandas
desnecessárias que não se justificam como necessidade expurgo dos desvios
da sociedade quanto a vida autêntica e natural (necessidade de purificação).
São caprichos infundamentados, órfãos que afirmam a ausência de origem
natural fundadora. Pelo tipo de intervenção social do terrorismo kultural –
pelo tipo de deslocamento que eles operam nos significados da sociedade –
a cultura acolhe um dissenso radical e, não mais castrada, pode gozar de seu
ânus transbordando o fundamento transcendental da identidade.
Demandas infundadas que, muito diferente de não habitarem os
mesmos fundamentos (o mesmo solo), os compreendem deslocados de seu
significado autêntico e seguem numa direção considerada desarrazoada pelo
senso-comum. O público entende uma luta para que o indigno se torne
digno, mas uma defesa assumida do indigno, ou do fim desse recorte, é
inaceitável. Se a causa nobre é aquela que busca corrigir uma injustiça,
como se chama a defesa daqueles que não querem justificar suas ações mas,
que no limite do acolhimento, não podem ser chamadas nem de justas nem
de injustas, não podem ser compreendidas, não estão presentes ao
entendimento nem como o mesmo nem como o outro?
Para terminar podemos escrever que o comportamento impróprio ao
local de cultura é uma crítica arquitetônica. Não somente a superfície nem
apenas as bases do pensamento, mas ao próprio eixo profundo/superficial;
não somente do exemplar particular que passa pela expressão autêntica da
cultura, mas da autenticidade e da cidadania como eixo que orienta o
sentido. Não é a substituição do próprio pelo impróprio, tornando este uma
expressão mais autêntica da cultura, esse comportamento é, antes, o anúncio
da impropriedade do próprio: das regras do jogo que configuram aquilo que
chamamos de natural, de genuíno, autêntico, etc. Nascida do
atravessamento pela abertura do ânus nenhuma outra identidade pode se
dizer pura, na inocência virginal ou imaculada.
Disto, do cu, Preciado retira consequências decoloniais energizantes. O
cu é uma impostura ontológica, não está presente nem ausente apenas, ele
explode a inteligibilidade da linguagem dominante. A lógica colonialista de
domínio baseava-se na distância entre a centralidade da metrópole (a cidade
da língua materna, da pronúncia correta, da representação sancionada) sobre
as periferias (PRECIADO, 2010, p.60). Ela baseava-se no intervalo de
diferença que separava o próprio e o genuíno da identidade da metrópole de
seu esmaecimento periférico/marginal e, através desse gesto, podia dar-se
centralidade, fazer o mundo girar ao redor desta. Esse intervalo ergue os
limites que separam o interno do externo, o próprio do impróprio, o
<<mesmo>> e o diferente – preservando das ameaças do dissenso, assim, a
identidade.
A questão é que tal distância hoje vê-se mitigada, borrada. As
metrópoles são vistas, hoje, não como os lares de populações autóctones e
puras, mas como zonas híbridas de contato, contaminação, sobreposição,
migração etc. O pensamento periférico é uma ameaça à metrópole, à
capital, ele destrói a boa consciência da auto-representação que a capital
tem de si. Esta nunca foi conforme imaginou, sempre esteve invadida pelo
outro.
O pensamento que nasce na periferia - marginal - é uma vergonha ao
centro, a metrópole tenta esconder a periferia como quem arruma uma casa
para esconder a bagunça que ocorre por debaixo dos tapetes e que revelaria
um quotidiano completamente diferente, fazendo cair por terra a dinâmica
de representação da “normalidade” (o padrão) que a metrópole aparenta ser,
revelando todo um comportamento impróprio e abalando a inteligibilidade
que o discurso dominante tem de si mesmo assim como de suas verdades
relacionadas.
Doravante, se isso acontece é porque a periferia é um queixume, uma
denúncia. É um ruído ou incômodo indecoroso que nos lembra que a forma
e o status do “próprio”, do autêntico, do genuíno nunca é perfeitamente e
retilineamente performado ou habitável, nunca é do jeito que espera. Seria
mais fácil se a periferia fosse simplesmente outro-ele-próprio, outro centro,
outra cultura, invés de carregar uma crítica que torna incerta a identidade e
unidade das culturas como um todo. Esse pensamento fronteiriço é uma
acusação, uma crítica. Ser impróprio dentro do local de cultura é
testemunhar a precariedade das representações do próprio.

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PRECIADO, Poul\Beatriz. Entrevista com Beatriz Preciado, por Jesús Carrillo -Revista Poiésis, n 15, p. 47-71, Jul. de 2010
O real-segredo de Slavoj Žižek
122
Gabriel Ponciano

Slavoj Žižek, no início dos anos 90, organiza Um mapa da ideologia,


uma coletânea com textos de vários autores sobre a temática da ideologia. O
texto que abre o livro e serve como uma espécie de introdução à coletânea é
do próprio Žižek, e tem como título “O espectro da ideologia”. Nele o autor
busca pensar as condições de possibilidade da crítica da ideologia nesse
novo mundo, marcado pelo fim da União Soviética, pela celebração do
capitalismo liberal e pelo vigor das novas formas de filosofia tratadas pelo
filósofo esloveno como “pós-modernas”.
O ensaio que aqui apresento se desenvolverá a partir de um diálogo
123
com O espectro da ideologia. Mesmo que o autor tenha escrito um livro
dedicado ao tema da ideologia alguns anos antes da publicação do trabalho
com o qual dialogaremos, é em O espectro da ideologia que as questões da
pertinência do uso da noção de ideologia e da própria definição de tal noção
são apresentadas de forma mais clara e sistemática, sendo, portanto, mais
valioso para abordarmos a questão dos limites da fórmula propostas pelo
autor esloveno quando se almeja permanecer no âmbito de um pensamento
estritamente materialista.
Em O espectro da ideologia, antes de entrar na definição
propriamente dita do conceito ou da noção de ideologia, Žižek se preocupa
em mostrar a pertinência de tal tema para tratarmos de questões
contemporâneas à época (início dos anos 90) em que o texto foi escrito
como, por exemplo:
a ideia de que somos mais capazes de imaginar o fim das condições de
vida no planeta Terra, pela saturação da natureza, do que cogitarmos
alguma mudança, mesmo que mínima, no modo de produção vigente,
“como se o capitalismo liberal fosse o ‘real’ que de algum modo
sobreviverá, mesmo na eventualidade de uma catástrofe ecológica global”;
as críticas daqueles que dizem que o modo de produção que vigora
atualmente é distinto daquele descrito por Marx;
a dinâmica de desintegração do bloco soviético e o surgimento de
“Estados” que, por não superarem o vínculo entre Estado e comunidade
étnica, não podem ser compreendidos como tal, no sentido europeu e
moderno do termo “Estado”;
O antagonismo político entre liberal-democracia “cosmopolita”
universalista e o novo populismo-comunitarismo “orgânico” – duas faces da
mesma moeda. (ŽIŽEK, 1996, p.7-8)
Žižek também faz questão de apresentar a encruzilhada na qual se
encontra a noção de ideologia e, por consequência, de crítica da ideologia
no ambiente epistemológico hegemônico no início dos anos 90. Nesse
cenário, o melhor exemplo do que pode ser considerado ideológico é a ideia
de que seja possível acender a uma posição na qual os efeitos da vida social
não se manifestam, e a partir da qual seria possível enxergar objetivamente
o todo social e traçar os limites do que é visível e do que não o é, isto é, de
operar o que se compreende por crítica da ideologia. Se a própria
possibilidade de uma análise objetiva da realidade está obliterada, aquilo
que parece ser o objetivo central da crítica da ideologia - fazer coincidir a
representação da realidade do mundo com essa realidade mesma - parece
não só ser impossível, mas também algo que está construído sobre
premissas insustentáveis. (ŽIŽEK, 1996, p.9)
Dando continuidade às críticas que surgem no quadro
epistemológico de seu tempo, Žižek traz os exemplos daquilo que é tido
como tipicamente ideológico e, em cada caso, qual seria a função da crítica
da ideologia: buscar encontrar numa contingência uma necessidade superior
ou, ao contrário, tratar como contingente algo que é fruto de uma
necessidade interna de um sistema – a tarefa da crítica da ideologia seria, no
primeiro caso, mostrar a contingência de tal eventualidade tida como
necessária e, no segundo, a necessidade oculta do que se mostra como
contingente. Žižek ainda apresenta os casos de “mistificação ideológica”,
onde “a evocação da ‘complexidade da situação’ serve para nos livrar de
agir” (ŽIŽEK, 1996, p.10-11) – como ele diz ter ocorrido, por exemplo, nas
narrativas jornalísticas e governamentais sobre a guerra da Bósnia – e o de
simplificação/personificação, também ideológica, de uma situação
complexa – esse tipo de procedimento ocorreu, por exemplo, na forma pela
124
qual Saddam Hussein foi retratado (como um vilão cruel e sanguinário,
pessoalmente responsável por todos os problemas do Iraque) pela mídia e
pelos governos europeus e norte-americanos à época da Guerra do Golfo.
Com esses exemplos, Žižek busca mostrar mais um problema
envolvido na noção de ideologia: no caso, por exemplo, da evocação da
complexidade de uma situação de modo que fiquemos incapacitados de
agir. Tanto a evocação da complexidade quanto seu contrário, isto é, uma
simplificação da situação até o ponto em que a ação se torna um imperativo,
são igualmente ideológicos. A “saída, diz Žižek, da(quilo que vivenciamos
como) ideologia é a própria forma de nossa escravização a ela” (ŽIŽEK,
1996, p.12).
Há ainda situações em que se parece estar frente a uma situação
ideológica, mas não se está. Žižek traz como exemplo desse tipo de situação
a posição assumida pelo Neues Forum à época do processo de reunificação
da Alemanha. É um tanto desconcertante que, nessa análise, o autor
esloveno dê tanto destaque a aspectos psicológicos como, por exemplo, a
descrição do Neues Forum como um movimento composto por “intelectuais
apaixonados, que ‘levavam o socialismo a sério’” ou a afirmação de que a
“convicção e insistência” deles era sincera – são coisas que não só são
impossíveis de saber, como não deveriam ter relevância alguma para uma
discussão sobre ideologia. Entretanto, é nessas coisas que Žižek apoia seu
argumento. É preciso que o autor sustente que esses intelectuais estavam
sendo honestos em sua busca por uma terceira via, para além do modelo
político-econômico da Alemanha Oriental e aquele da Alemanha Ocidental,
para que possa apresentar a conclusão que, justamente porque o Neues
Forum se apegou a uma ilusão sem substância, a de que uma terceira via era
possível, sua posição foi não-ideológica stricto sensu, isto é, não refletiu de
forma invertida alguma relação de poder. Enquanto a posição daqueles que
defendiam uma rápida integração ao sistema ocidental foi não-ilusória,
porém totalmente ideológica. (ŽIŽEK, 1996, p.12-13)
A explicação para justificar o caráter ideológico da defesa da
integração também passa por um elemento de caráter psicológico: Žižek
sustenta que os que a defendiam o faziam movidos pela crença [ideológica]
do funcionamento não problemático e não antagônico do Estado Social.
(ŽIŽEK, 1996, p.13) Novamente estamos frente a algo impossível de ser
comprovado. Não há impedimento algum em supor que os que defendiam a
integração soubessem muito bem do funcionamento problemático e
antagônico do Estado Social e, ainda assim, o preferissem frente ao modelo
Oriental.
Seja como for, já temos aqui o conceito de ideologia que será mais
bem desenvolvido por Žižek ao fim do texto. O espectro da ideologia
continua, tal como a própria coletânea na qual ele se insere, em busca de
uma reconstrução lógico-narrativa do conceito de ideologia – e o faz de
forma patentemente hegeliana, sob o horizonte daquilo que Hegel descreve
como os três momentos da religião (doutrina, crença e ritual) ou, ainda, sob
a fórmula Em-si/Para-si/Em-si-e-Para-si, cujos ecos com o procedimento da
Fenomenologia do Espírito são tão vigorosos que exigiram que o autor
dispusesse até de uma nota explicativa onde busca esclarecer que não há
hierarquia entre os momentos dessa reconstrução, tampouco há superação
125
de cada momento no “posterior”.
Apesar disso, e logo depois de descartar o que ele chama de “solução
‘pós-moderna’” (a de renúncia de uma posição extra-ideológica, e a
aceitação de que nunca lidamos com a “realidade”, mas com “uma
pluralidade de universos discursivos”) (ŽIŽEK, 1996, p.22) como
ideológica por excelência, é numa espécie de conciliação, ou, arrisco dizer,
de suprassunção de um dos grandes cismas da teoria marxista no século XX
que ele encaminhará sua própria solução para a questão. O cisma a que me
refiro é aquele entre o pensamento de Althusser e de Lukács, cuja
atualidade é patente, ainda hoje, na obra dos autores por eles influenciados.
Ao enfoque do primeiro nos Aparelhos de Estado, que dão materialidade à
ideologia, se opõe o enfoque do segundo no fetichismo da mercadoria. Nas
palavras de Žižek, frente a tal divergência, estamos frente “em última
instância, a oposição entre o Estado e o Mercado, entre o agente superior
externo que organiza a sociedade ‘de cima’ e a auto-organização
‘espontânea’ da sociedade” (ŽIŽEK, 1996, p.23).
Apesar de fazer uma referência a Marx, é por meio de Schelling
que Žižek busca conciliar, ou suprassumir, essa diferença. Fazendo
referência ao diálogo Clara, do referido autor alemão, o filósofo esloveno
sugere que a lógica da relação entre o fetichismo da mercadoria e os
Aparelhos Ideológicos de Estado pode ser traduzida pelos remanescentes
que aparecem da separação entre o Espírito e o Corpo, a saber, o
componente espiritual da corporeidade e o componente corporal da
espiritualidade. Tais remanescentes, é importante frisar, só aparecem
quando tratamos da separação do conjunto que, quando unido, forma a
“totalidade viva do Organismo”. E é dessa posição, a do todo, que
suprassume as separações, que questão da ideologia será posta por Žižek.
(ŽIŽEK, 1996, p.26)
Esse lugar, alcançado pela suprassunção de Lukács e Althusser,
vai ser ocupado por uma conjunção entre Derrida e Lacan. E é nessa
conjunção que Žižek busca uma nova forma de pôr a questão da ideologia.
A distinção entre real e realidade é essencial aqui: o real, aquilo que resiste
ou sobra do processo de simbolização que constitui o que se compreende
como realidade, é o que “retorna sob a forma de aparições espectrais”.
(ŽIŽEK, 1996, p.26) Quando tratamos da realidade social, esse real, que
garante a unidade da mesma e ao mesmo tempo impede seu encerramento
em um todo harmônico, tem, nos diz Žižek, a forma de um antagonismo –
antagonismo esse que o autor, rejeitando a questão sobre a adequabilidade
de tal termo por ser algo que “concerne à análise social concreta” (ŽIŽEK,
1996, p.30), chama de “luta de classes”.
A referência a um real pré-ideológico, que não possuiria conteúdo
positivo algum (já que, se possuísse, estaria no campo do simbólico, da
realidade) desloca a questão da ideologia da distinção entre “ideologia” e
“realidade”, e tem como objetivo superar seus impasses epistemológicos (a
implicação de que é possível acessar “a realidade objetiva tal como
‘realmente é’”) (ŽIŽEK, 1996, p.30). O que sustentaria a crítica da
ideologia, portanto, não seria um acesso à objetividade para além da ilusão,
mas a referência ao antagonismo que precisa ser excluído para que a
realidade social se constitua como tal.
Dessa forma, sustenta Žižek, seria possível, em vez de “tapar o
buraco do materialismo histórico” (ŽIŽEK, 1996, p.33), mostrar que a
lacuna é insuperável e também constitutiva da realidade social. Mas será
que, com isso, estamos realmente frente a uma solução para a questão ou de
um agravamento de seus pontos mais críticos?
Nessas últimas linhas desse ensaio me esforçarei para mostrar que a
proposta de Žižek traz alguns problemas. O primeiro deles é que ao nomear
isso que ele mesmo indica que deve permanecer como uma lacuna, ainda
mais quando o nome escolhido é um nome com tanta história, com tanto
significado, como “luta de classes”, esse “nome” apaga a própria
característica “lacunar” da lacuna e faz com que ela passe a expressar certo
conteúdo. O problema continua mesmo que ele sustente que
Embora a “luta de classes” não esteja diretamente dada em parte alguma como uma entidade positiva, mesmo assim ela funciona, em sua própria
ausência, como um ponto de referência que nos permite situar qualquer fenômeno social – não ao relacioná-lo com a luta de classes como seu
sentido último (o significado “transcendental”), mas ao concebê-lo como (mais) outra tentativa de ocultar e “remendar” a brecha do antagonismo
entre as classes, de apagar seus vestígios. (...) A luta de classes não é nada mais do que o nome do limite imperscrutável que é impossível de
objetivar, situado dentro da totalidade social, já que ela mesma é o limite que nos impede de conceber a sociedade como uma totalidade fechada.
(...) Na medida em que toda posição dentro do todo social é sobredeterminada, em última instância, pela luta de classes, não está excluído da
dinâmica desta última nenhum lugar neutro de onde seja possível localizá-la dentro da totalidade social. (ŽIŽEK, 1996, p. 27)

A luta de classes, nos diz Žižek, não é o Sentido último para interpretar
qualquer fenômeno social, mas, antes, o que cada fenômeno social busca
obliterar, ocultar. A luta de classes, sob essa perspectiva, se assemelha
muito a um segredo. Um segredo que regula todos os fenômenos sociais de
forma a permanecer como tal. Um segredo que, portanto, dá um sentido,
oferece uma causa aos fenômenos sociais. Não estaríamos, pois, frente a
uma ideia, ou, melhor, frente à Ideia cuja realidade social é mero efeito
dissimulador?
Žižek indica que sua solução contornaria “a desgastada linha de
argumentação” que aponta que a distinção entre “ideologia” e “realidade”
implicaria numa “visão divina” epistemologicamente insustentável (ŽIŽEK,
1996, p. 30), mas essa solução não recai em uma “visão divina” ainda mais
epistemologicamente insustentável, se quisermos, por óbvio,
permanecermos materialistas? Como poderíamos vislumbrar o segredo do
real, nomeá-lo e, ainda mais, ditar as regras de seu funcionamento quando,
por definição, o real seria justamente aquilo que escapa a qualquer tipo de
simbolização? Se formos fiéis à noção de real trazida pelo próprio Žižek
quando, tratando de Derrida, o apresentou como “o X irrepresentável em
cujo “recalcamento” fundamenta-se a própria realidade” (ŽIŽEK, 1996,
p.26), talvez devêssemos deixar de lado, ao tratarmos dele, não apenas os
nomes, mas também os números, principalmente o número 1 – em vez de
falarmos em “um núcleo traumático”, como faz Žižek quando da análise da
Antropologia Estrutural, deveríamos falar em “núcleos traumáticos”, de
lacunas, em vez de “lacuna”. Lacunas na constituição da ficção que
chamamos de “realidade”. Eis que dessa forma manteríamos a tensão, o
caráter inominável, imensurável, irrepresentável do real em todo seu vigor,
e não haveria espaço para que nos refugiássemos na segurança do
idealismo.
BIBLIOGRAFIA
ŽIŽEK, S. O espectro da ideologia In: Um mapa da ideologia. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, p.7-38.
Capítulo V - Raízes e Filosofias
Populares Brasileiras
Tentáculos Digressões sobre uma filosofia sem idade ou de todas as
idades

126
Dirce Eleonora Nigro Solis

Introdução
Escolhi falar sobre os Tentáculos que nos assombram, sem, no entanto,
aterrorizar, na filosofia. São digressões sobre uma filosofia sem idade e por
que não dizer de todas as idades da filosofia, inspiradas no pensador
Jacques Derrida. Inicio com a imagem do polvo que poderíamos ler po(l)vo,
colocando o L entre parênteses. O polvo é então aqui uma metáfora. Ao
nos depararmos com a imagem de um polvo, percebemos que esse molusco
marinho possui oito braços revestidos de duas fileiras de ventosas cada. Só
Lula tem oito braços e mais dois tentáculos, propriamente falando. No
entanto, usaremos tentáculos para falar do po(l)vo e nomeando agora, eles
são apêndices delgados flexíveis, portanto, não sedimentados, usados como
127
órgão tátil ou de preensão nesses invertebrados aquáticos.
O movimento dos tentáculos é movimento de fluidez, e utilizo a
imagem aqui para falar de desconstrução, do deslocamento da
desconstrução e de uma descolagem “talvez”. O tentáculo se desdobra, faz
dobra , redobra, estende-se como se fosse ao infinito, mas se recolhe, vai e
vem, estende, distende, recupera e volta; é fluxo e refluxo; desloca, desvia,
mas também descola. E quando descola, se refaz.
Os polvos são os argonautas dos mares, são os exploradores.
Argonauta, cientificamente falando, é um tipo de polvo (família dos
argonautídeos), cujas fêmeas, com a finalidade de deposição dos ovos ou
para abrigo, são capazes de secretar uma espécie de concha calcária.
Como meios de defesa, o polvo possui a capacidade de expelir tinta,
uma camuflagem, mudando de cor em virtude dos cromatóforos e além
disso, quando ameaçado, possui autotomia dos braços, tal como a lagartixa
que libera sua cauda. Seus olhos, com estrutura semelhante àquela do órgão
de visão humano, percebem cor (o que é discutível entre alguns
pesquisadores) e sua visão é binocular. Tais características auxiliam esse
animal na caça. Os braços liberados servem como distrativos para os
predadores que o perseguem.
Simbolicamente eis a descontrução, o rastro, a différance com a.
Tomo o polvo aqui como o movimento da desconstrução, mas também
como os olhos da desconstrução – que são os seus tentáculos.
A capacidade de descolagem faz dos polvos e aqui não importa se com
tentáculos ou braços, animais autótomes, o descolamento permite que seus
braços, agora tentáculos, se regenerem de novo, mas quando se regeneram,
não são os mesmos de anteriormente, instala-se ali a différance, com a.
Polvos também possuem um apurado sentido de toque físico e
suas ventosas por serem equipadas com quimioreceptores possibilitam-lhes
que possam sentir o gosto do objeto que tocam, conseguem perceber
inclusive as texturas, mas não a forma dos objetos tocados. Embora com
diminuta percepção de posicionamento espacial, seus braços contém
sensores de tensão que lhes permitem sentir o comprimento das distensões.
Por ser um invertebrado, não se sabe ao certo qual a capacidade cerebral
necessária para permitir uma correta percepção do posicionamento de seus
braços, mas a flexibilidade deles é muito maior que
a língua dos vertebrados.
E muitas vezes, simbolicamente, povo se parece ao polvo.
Os oito braços como tentáculos de uma filosofia sem idade
A filosofia de Derrida, e este mês são 15 anos de sua morte ( 9 de
outubro), pode ser pensada em termos de tentáculos. E os tentáculos em
termos de filosofia, de uma filosofia sem idade, gestada em todos os
momentos da história do homem sem que isso represente uma cronologia,
um desenrolar logocêntrico, mas antes um movimento no desvio. O polvo
possui oito braços, ou metaforicamente para os efeitos da desconstrução,
tentáculos. E a desconstrução pode desdobrar-se em tentáculos que vão ao
infinito. Tentáculos tais como: a síncope da escritura desde a
Gramatologia; a alteridade tal como em O Monolinguismo do Outro; os
espectros a partir de Espectros de Marx, mas não só, pois a espectralidade
acompanha a obra de Derrida em inesgotáveis momentos; o por vir da
linguagem; o por vir da democracia; o por vir da justiça; a incompletude do
perdão e do dom; a différance e o rastro e poderíamos ficar aqui
enumerando athèses, próteses (de origem), exergos, inúmeros tentáculos
partidos que se desfazem, mas se refazem de novo, que podem ser
capturados nos desvios, deslocamentos e descolamentos da desconstrução .
Tentáculos que se movem em fluxos livres e intermitentes. Nada mais atual
no mundo de hoje, nesse Brasil que tem que continuar grafado com S e não
com z.
Então, o outro nome que utilizarei para a desconstrução: tentáculos.
Tentáculos e seus movimentos.
Mas de muitos, escolho para falar, hoje, apenas três.
Primeiro tentáculo
“Falamos somente uma língua, mas ela não é nossa”, diríamos a partir
do Monolinguismo (1996); apesar de “ser nossa” em seus desdobramentos
tentaculares.
Herdamos uma certa língua dominante no Brasil, a língua do
colonizador de outrora, o português, mas junto com ele, dependendo da
região, a estrangeirice do italiano, espanhol, francês, alemão, japonês,
coreano, a línguas africanas, as línguas dos povos originários. Com elas
herdamos múltiplas linguagens.

Primeiro desdobramento da desconstrução


Linguagens
Uma que nos é bastante próxima é a linguagem musical do samba,
embora “samba” não seja uma expressão musical dominante em todo o
Brasil com S, mas que de certo modo o qualifica culturalmente e
artísticamente no mundo.
A expressão musical do samba é língua cantada principalmente no Rio
e na Bahia e que todos os especialistas em samba dizem, Sim o samba é
criação brasileira.
A palavra samba encontramos em vários pontos das Américas, quase
sempre em ligação com o universo dos pretos. A etimologia do verbete
samba remete ao universo afro-americano na gravura cubana do século
XIX- um casal de pretos dançando , onde se diz : “Samba la culebra , si
sinõ”- Samba a cobra (sepenteia), sim senhor, ou na região do Rio da Prata
a cantilena “ Samba, mulenga, samba” ouvida dos africanos (samba do
criador ).
Sua etimologia remete mais uma vez ao universo afro-americano: vem
do kimbundo cemba ou semba que significa “ umbigada” ( coreografia que
consiste em choque dos ventres ou umbigos (Sandroni, 2012:86-87). Semba
em suma quer dizer: cabriolar, brincar, divertir-se como um cabrito. A
umbigada lembra o enfrentamento com os chifres do bode ou dos Gnus e
imprime nos salões de dança um comportamento de restrições, sambar
pode, mas sem os excessos . Lembremos e Estatuto da Gafieira de Billy
Blanco: “o distinto que fizer o seguinte...abusar da umbigada de maneira
folgazã/prejudicando hoje o bom crioulo de amanhã”.
Alfredo de Sarmento, cronista de Sertões d’África (1981), descreve em
seus apontamentos de viagem de 1880, a dança no Congo e Angola:
...os cantares que acompanham estas danças lascivas, são sempre imorais e até mesmo obscenos, história de amores descritas com a mais repelente
e impudica nudez. Em Loanda e em vários presídios e distritos, o batuque difere deste que acabamos de descrever, que é peculiar do Congo e dos
sertões situados ao norte do Ambriz. Nesses distritos e presídios, o batuque consiste também num círculo formado pelos dançadores, indo para o
meio um preto ou preta que depois de executar vários passos, vai dar uma embigada, a que chamam semba, na pessoa que escolhe, a qual vai para
o meio do círculo, substituí-lo.” (Os Sertões d’África, 1981: 127)

A palavra samba no Brasil, quando aparece, identifica com as


umbigadas todas as danças de matriz afro-brasileira, dentre elas, o lundu, o
jongo, caxambu, os diversos tipos de coco (de parelha, de cordão, virado ,
bambelô) e também os diversos estilos ( samba de roda, rural, maculelê,
partido alto, tambor de criola etc).
Como ritmo, o samba será caracterizado pelo emprego da síncope:
em música, síncope ou síncopa é uma figura rítmica onde se presentifica a
execução de som em um tempo fraco, ou parte fraca de tempo que se
prolonga até o tempo forte, ou parte forte seguinte de tempo, o que faz criar
um deslocamento da acentuação rítmica.
Ora, a síncope, é também característica encontrada na música
africana e no candomblé, é o efeito rítmico produzido pelo prolongamento
ou deslocamento do acento do tempo fraco ao tempo forte, mas com
resultados distintos do samba. Embora os comentadores especialistas em
samba digam que samba é de origem baiano- carioca, a síncope na música
africana possibilita aos indivíduos a reversibilidade do tempo e espaço e
assim , pela crença, se unirem às energias dos orixás.
E então na terra dos orixás, com o nome de semba, foi testemunhado
um ritmo, uma dança: em Angola e no Congo do século XIX por viajantes
portugueses e até hoje um bairro de Luanda se chama Semba e os gestos
do semba são praticados por lá. Há diferença entre samba e semba? Claro
que sim.
Para os brasileiros há toda uma diferença entre samba e semba: no
ritmo, nos compassos, na síncope.
Podemos ouvir os dois ritmos em:
https://www.youtube.com/watch?v=1ycTbtD2mCY
Primeiro, o ritmo de Semba dedilhado ao violão. (Guitar tutorial from
Angola)
E logo a seguir , o samba em:
https://www.youtube.com/watch?v=_WjpYxwz2fI
128
Onde se pode ouvir o ritmo com pandeiro, o surdo e o tamborim.
São nítidas as diferenças , mas no entanto, para os da África, samba
vem do semba angolano, mesmo que semba tenha aparecido anteriormente
em outras regiões da África.
As duas linguagens, samba e semba, são diferentes , na dança e no
ritmo. Nas batidas dos tambores. Não são portanto a mesma coisa, mas ...
São monolinguismo?
Não.
Eu diria que samba é uma prótese de origem, isto é, se não houvesse o
ritmo, a dança dos pretos, não teria existido o samba, embora eles sejam
diferentes em estrutura , batida etc. Há uma artificialidade no samba que
não existe no semba, este muito mais ligado à terra. O samba se
constituindo em ritmo e dança com artefatos protéticos que o
complexificam com relação à batida simples do semba.
Donde a conclusão:
Não existe nunca uma só língua. E se existisse, ela não seria a minha.

Deste modo, podemos usufruir da licença poética do João Nogueira e


Geraldo Vespar em Lá de Angola:
Para ouvir:
https://www.youtube.com/watch?v=gqCpw8Nfgd4
Sambachaça em Lá de Angola ( com Mariana Solis)

É preciso navegar/Pra poder se esclarecer/Do lado de lá do mar/É preciso ver pra crer/Gente que lutou pra se libertar/Ver no amanhã/ Novo sol
chegar/Ter que trabalhar/Reconstruir/Bom futuro há de vir/Eu vi Luanda, Benguela ,Lobito e outras mais/Na Catumbela o samba jorrou, me deu
sinai/s Que naquela terra cantaram, sambaram meus avós/Ilha de Mussolo teve gente que chorou/ Iá, iá, iá, iá/iá iá iá/ Iá, iá, iá, iá/iá iá iá

E o refrão:
Samba vem lá de Angola/Não vem da Bahia não/Samba vem lá de Angola/Não vem lá do Rio não.

O ritmo da música começa com semba e aos poucos vai misturando


semba e samba. Fala da libertação de Angola das mãos da colonização
portuguesa, fala de um ad-vir, mas de uma possível influência do semba no
samba brasileiro. Atentem ao refrão.
Então se não houvessem os pretos escravos vindos de Angola, no
Brasil haveria samba? Samba é um artefato da descolonização- do povo
escravo para o povo escravizador. O tentáculo redobrado e às avessas.
Guardando todas as diferenças...
A desconstrução leva a uma necessária descolonização do pensamento
contra a tentação do logocentrismo e do etnocentrismo. Khatibi se refere a
isso no artigo escrito em 1981 “Descolonização da sociologia” publicado
também em Maghreb pluriel (1983).
Neste artigo Kathibi refere-se a Derrida para falar da descolonização
do pensamento que para a desconstução se desloca do logocentrismo e do
etnocentrismo. E nesse movimento de descolonização poderíamos dizer
com Derrida que há uma “interdição originária” que busca se referir à
originalidade, o samba é negro, mas é brasileiro, mas é como se tivéssemos
“o interdito fundamental, a interdição absoluta. A interdição da dicção e do
129
dizer”: “Interdit” d’acèss ( Derrida, 1996:57) . São duas linguagens, mas
essa que é a minha, a nossa, é uma linguagem artificilamente construída- o
ritmo , utilização do surdo, tímpano, tamborim, pandeiro etc; a dança que
se distancia do semba muito mais ligado ao ritmo aberto dos tambores, das
palmas, e a dança semba muito mais ligada ao elemento terra, à imitação do
balir dos bodes, a briga dos gnus ( galhadas e umbigadas).
E qualquer cultura pode ser dita colonial originariamente
(Derrida,1996 (a): 55), não existe mais cultura pura, toda cultura se institui
pela imposição unilateral de alguma “política” da língua (Derrida,
1996(a):55)). Mas nesse caso, o tentáculo que se expande , se retrai, e em
sua volta, traz a linguagem do povo escravizado.
Como no samba enredo da escola de samba Vila Isabel em 2012: Você
semba de lá...que eu sambo de cá. O canto livre de Angola:
Vibra, oh minha Vila/ A sua alma tem negra vocação/ Somos a pura raiz do samba /Bate meu peito a sua pulsação/ Incorpora outra vez Kizomba e
segue na missão Tambor africano ecoando, solo feiticeiro/ Na cor da pele, o negro Fogo aos olhos que invadem, Pra quem é de lá/ Forja o orgulho,
chama pra lutar/ Somos cultura que embarca Navio negreiro, correntes da escravidão /Temos o sangue de Angola /Correndo na veia, luta e
libertação/ A saga de ancestrais /Que por aqui perpetuou/ A fé, os rituais, um elo de amor/ Pelos terreiros (dança, jongo, capoeira) / Nasce o samba
(ao sabor de um chorinho).

Para ouvir:
https://www.youtube.com/watch?v=cNeHY5z_XN8
A política da língua samba faz sucumbir o semba. Prótese ou enxerto,
o samba desloca e descola de semba, como o tentáculo do polvo para tentar
se proteger nesse caso e não para atacar, mas se movimenta no
deslocamento e se faz singular. Porém, não pode e não poderia nunca
abdicar dos pretos.
Falei do ritmo dos pretos , mas ligeiramente também convém lembrar
a dança.
A dança surgiu em tempos remotos onde provavelmente os humanos
batiam os pés no chão. A dança é uma escritura, ou melhor, uma
arquiescritura (o que significa num contexto onde o que vale não é a
origem primeira, mas o jogo das diferenças) e ao combinar passos com o pé
e palmas com as mãos vai descobrindo e intensificando novos sons. De
gestos individualizados foi aos poucos se transformando em ritual
religioso como garantia da sobrevivência humana: evocação do sol ou da
chuva, dos deuses da abundância contra a escassez, dos elementos
protetores da natureza e dos homens. Os primeiros registros de dança de
que se tem notícia remontam ao antigo Egito, dois mil anos antes de Cristo,
mas certamente ela é bem mais antiga que essa referência. Com ela os
homens evocam espíritos, evocam deuses, elas são rituais, espectrais,
portanto. Aparecem no culto aos deuses, mas também nas comemorações e
festas, na homenagem à terra e aos orixás.
Semba , com o tempo, tornou-se uma dança de salão urbana em
Angola, a dança de passadas. Não se caracteriza como dança ritual, mas
como divertimento. Com passos largos, as passadas são distintas para
cavalheiros e damas que os seguem. Um grande enfoque na improvisação
dos cavalheiros é esperado.
Já o samba é uma forma de dança que tem origem no Brasil a partir
de danças rituais africanas. É ligada ao ritmo musical de mesmo nome
praticado mais tarde por passistas de escolas de samba e em pagodes. A
dança oriunda do Rio de Janeiro deriva do samba de roda, folguedo que tem
destaque na Bahia no século XIX e com influência africana. Tem
semelhanças com o coco , dança de roda mais antiga ainda originária da
Capitania de Pernambuco, onde se observa o batuque africano misturado às
130
danças indígenas. Mesmo sendo perseguido no Rio de Janeiro , o samba de
roda aí se desenvolveu e criou raízes.
Os movimentos corporais podem ser mais bem explorados em suas
possibilidades, sem estarem enquadrados na rigidez das séries
milimetricamente articuladas e dos compassos ritmados. Adiantam-se os
estudos das múltiplas possibilidades de movimento do corpo humano. Há
um deslocamento com relação à padronização das séries. É possível o
improviso. Solos do imprevisível acontecem. Desconstrução é isso:
movimentos em direção ao im-possível e que tomam o indecidível como
ponto de partida e não de chegada, movimentos como aqueles dos
tentáculos do polvo.
Como movimentos e criações que explodem e se colocam numa
espécie de limitrofia a desconstrução acontece na dança no momento em
que podem ser escritas no tempo e no espaço ideias e emoções à medida
dos movimentos. A dança traz ideias onde se conjuga temporização e
131
espaçamento .

Segundo Tentáculo: O por vir da espectralidade


Além dos pretos, temos os povos originários, os indígenas. Em Ilha
Grande , Estado do Rio de Janeiro temos uma pesquisa ( Filosofia,
Arqueologia e História da UERJ) que trata dos espectros. Uma parte dela
versa sobre os possíveis habitantes mais antigos do lugar, os índios.
Contextualizando historicamente, a Ilha Grande é área de Mata
Atlântica e em 1986 passa a integrar a Área de Proteção Ambiental de
Tamoios, sendo tombada pela Secretaria de Estado de Cultura (Resolução
29, de 14/10/87) e em 1988 passa a ser considerada patrimônio nacional
pela Constituição Federal. Em 1989 é declarada como Área de Relevante
Interesse Ecológico pela Constituição Estadual e em 1991 é reconhecida
pela UNESCO como Reserva da Biosfera da Mata Atlântica.
No litoral sul fluminense, onde a ilha está localizada, as interpretações
arqueológicas e antropológicas já indicavam a presença de povos do tronco
linguístico macro-jê , através de cerâmica associada aos Guaianá
(Mendonça de Souza,1977) e um número muito reduzido de sítios com
cerâmica Tupiguarani, embora os relatos de cronistas quinhentistas
descrevam populações indígenas de língua Tupi nesta região. Há descrições
históricas que relatam também que no século XVI o litoral sul fluminense
estava envolvido em conflitos entre portugueses e franceses e que os
indígenas que ocupavam a região eram, em sua maioria, aliados destes
últimos. Neste período, existe indicação de doação de sesmarias nesta
região, mas como Hans Staden ([1557]1974) não menciona habitações de
portugueses, isto significa que os sesmeiros não tomaram posse de
imediato de suas terras. Somente com a intervenção dos jesuítas, no ano
anterior à conquista do Rio de Janeiro, haverá paz entre as aldeias do sul
fluminense e os habitantes de São Vicente, iniciando-se , assim, a ocupação
portuguesa. Inicialmente de forma ainda tímida, Knivet ([1591]1875)
menciona dois ou três portugueses habitando a Ilha da Gipóia e alguns
poucos na Ilha Grande.
A Baía de Ilha Grande possuía um evidente valor estratégico, tanto em
relação ao mar, como em relação à comunicação com o interior. Por ali
passavam os metais das Minas e, depois, o café que descia do vale do
Paraíba do Sul e, consequentemente o contrabando e ações de piratas. A
presença de navios franceses no litoral sul fluminense era responsável não
somente pela entrada de escravos africanos e desvio do ouro, mas pelos
constantes ataques às vilas de Angra dos Reis e Parati.
Até 1725 a Ilha Grande era uma área proibida, entretanto, a constante
presença de piratas levou o governo colonial ao longo do século XVIII a
distribuir sesmarias de forma a impedir a permanência de franceses e outros
corsários. O tema “piratas” tornou-se recorrente no sul fluminense e, no
caso da Ilha Grande, há referências a uma construção na praia do Morcego
como tendo sido propriedade de um pirata espanhol.
No século XIX os portos de Angra do Reis tornam-se importantes para
escoamento de café e entrada de escravos africanos, devido ao
desenvolvimento da cafeicultura no vale do Paraíba (Mendes, 1970:358).
Cabe ressaltar que a Ilha Grande parece ter sido o local privilegiado para o
desembarque ilegal de escravos africanos, principalmente nas fazendas de
Dois Rios e do Abraão (Lima, 1974 [1889]:178).
A trajetória da filosofia nesta discussão, principalmente
epistemológica, é também ético- política. Questões como territorialização,
desterritorialização podem contribuir para a compreensão, por exemplo,
dos povos sambaquieiros e indígenas, para a compreensão das relações
sociais estabelecidas na Ilha ao longo da história.
Possível ainda trabalhar com a frequentação dos espectros, a
demarcação filosófica da espectralidade em relação à espacialidade de Ilha
Grande e seus habitantes mais antigos indígenas. As condições de
espectralidade que evidenciam o aparecimento e desaparecimento de
comunidades originárias na Ilha, assim como dos presídios, notadamente o
de Dois Rios (séculos XIX e XX), esta última abordagem fruto de um outro
trabalho já publicado como Espacialidades e Espectralidades Abissais
(Solis, 2016: 19-53).
Embora a grande parte dos pesquisadores identifique os habitantes
primeiros da Ilha como Tupiguarani (Tamoios) em virtude das cerâmicas
encontradas, pelos sambaquis (montes de conchas e outros resíduos
acumulados por ação humana), importantes vestígios arqueológicos
responsáveis por suscitar considerável debate científico, aventamos uma
outra hipótese: os habitantes mais antigos do lugar não são Tamoios, mas
são Guaianás, grupo indígena coletor que até o século XVI habitava a
região da Serra do Mar, as áreas da Capitania de São Vicente e ocupava um
território que ia desde a serra de Paranapiacaba até a foz do rio Paraíba do
Sul no atual estado do Rio de Janeiro. Guainá, que em tupi-guarani
significa literalmente “gente aparentada” (guai+anã), era formado por
diversos grupos menores. Os Guaianás que habitavam a região da cidade de
São Paulo sabiam falar também a língua tupi antiga, porém, a maioria deles
132
pertencia a outro tronco linguístico: o macro-jê.
No processo de colonização, a língua tupinambá, por ser a mais falada
ao longo da costa atlântica, foi incorporada por grande parte dos colonos e
missionários, sendo ensinada aos índios nas missões e reconhecida como
língua geral ou Nheengatu. Até hoje, muitas palavras de origem Tupi fazem
parte do vocabulário dos brasileiros. Por exemplo, nomes de animais, dentre
eles, capivara, tamanduá, jacaré, do tupi-guarani: jaeça-caré, o que olha
de banda; maracanã, do tupi-guarani: paracau-aná, pagagaios juntos;
tamanduá, do tupi-guarani: ta-monduá, o caçador de formiga;
tucano, do tupi-guarani: tu-can, que bate forte. Nomes de plantas: acajá ou
cajá; babaçu; buriti; caatinga; cacau ; capim; catuaba. Nome de peixes:
baiacu. Temos ainda carioca , do tupi-guarani: kari`( branco) e oka (casa),
daí, casa do branco. Ou Copacabana , de origem quechua que significa
“olhando o lago”. A palavra original é kupa kawana Ou Igarapé , do tupi-
guarani: ir-r´apé , caminho d’água. Ou Iguatemi, palavra de origem tupi que
significa rio ondulante. Ou Jericoacoara, do tupi-guarani: îurukûá tartaruga-
marinha / kûara – toca, daí, toca das tartarugas. Poderíamos ir ainda muito
longe, mas a língua que é nossa vai muito além do português falado
originalmente pelos portugueses no Brasil. Não, a lingua falada no Brasil
não é a língua do colonizador apenas. Está mesclada com as línguas
indígenas e também com a dos pretos da África a partir de um certo
momento na história. Da mesma forma que o tupi influenciou o português
falado no Brasil, o contato entre povos faz com que suas línguas estejam em
constante modificação. Além de influências mútuas, as línguas guardam
entre si origens comuns, integrando famílias linguísticas, que, por sua vez,
podem fazer parte de divisões mais englobantes , os troncos linguísticos. Se
as línguas não são isoladas, seus falantes tampouco. Há muitos povos e
indivíduos indígenas que falam e/ou entendem mais de uma língua; e, não
raro, dentro de uma mesma aldeia fala-se várias línguas. Línguas macro-jê e
indígenas falantes dessas línguas são considerdaos sob um prisma espectral.
Distam em muito das inseminações mais comuns no português e no
vocabulário brasileiro, os termos das líguas macro-jê. Mas, esquecidos, no
entanto, retornam. São espectros, portanto. E de forma muito superficial,
apenas para demarcar a existência, pois esse tronco linguístico macro-jê
envolve muitas línguas indígenas, por exemplo, Seridó é uma palavra do
tronco macro-jê que significa literalmente sem folhagem (pouca sombra).
Erechim , cidade do Rio Grande do Sul, do Kaingáng (Jê) erê-xim , campo
pequeno. Nanuque, palavra macro jê ,significa morador da serra. Pogubo é
macro jê e significa um peixe, o cascudo. O Xavante é da família jê e água
para ele é â; â’rehâ é água funda; madeira se diz wede , como ávore; filho ,
filha ou criança é da’ra, estrela é wasi, mãe é dana . Por esses exemplos a
língua macro -jê não é reconhecida tão facilmente no vocabulário usual
do brasileiro de língua portuguesa. Mas os nomes de lugares, de animais, de
peixes estão presentes , mesmo que não tão comuns.
Já o tupi foi incorporado ao português de forma mais intensa devido a
maior proximidade dos povos tupi-guarani com os colonizadores. São
familiares, como já vimos nos exemplos, onde inúmeras palavras e
expressões do vocabulário indígena foram assimiladas na língua portuguesa
do Brasil.
Em Derrida, a noção de espectro pode ser evidenciada desde o começo
de sua trajetória Para ele o tema dos espectros, fantasmas, espírito, sempre
percorreu, embora não fosse problematizado na maioria das vezes, todo o
campo da filosofia. A espectralidade será compreendida como estratégia da
desconstrução, ou seja, espectro para Derrida é um indecidível ( nem isto
nem aquilo, nem vivo nem morto, nem corpo nem alma, nem dentro nem
fora, nem passado nem presente, sempre milieu/meio). O espectro como
uma aparição recorrente , segundo Derrida, retorna e retorna sempre mais
uma vez para nos visitar, e nem sempre de forma amigável, e neste sentido
ele obsidia, assombra e aterroriza.
Ao invés de simplesmente aparecerem , espectros e fantasmas são os
retornantes (les revenants). Assim sendo, fantasmas desafiam memórias
que são de um passado que não gira em torno de uma presença, espectros
desafiam a morte. É preciso interiorizar o morto, mas enquanto isso não se
dá, há um trabalho de luto que é o acolhimento do morto para que depois
ele possa partir sozinho. Eis a realidade fantasmal. E além disso são
aparições.
Não importa muito se o aparecer da aparição diz respeito a algo
verdadeiro, dominante, ou falso, subordinado. Como Derrida é o pensador
da desconstrução, a distinção hierárquica entre essência e aparência, tal
como preconizada pela metafísica tradicional, não cabe. O que interessa é o
que aparece e as condições em que essa aparição se dá.
O espectro seria então um devir-corpo do espírito, uma incorporação.
Ao mesmo tempo, não palpável, um objeto não identificado que aparece, ou
melhor, um não-objeto, já que não se pode tocá-lo ou senti-lo. Porém, é
possível sentir a sua presença. Ele está lá. Sabemos, por um efeito de viseira
( o espectro nos vê, sem ser visto) que ele está lá.
Pode- se pensar no fantasma, então, como uma das manifestações
do espírito. O fantasma seria um conjunto de traços (traits) , mas que para
os propósitos da desconstrução podem ser ditos como rastros (traces) ,
arqui - vestígios , que não devemos confundir com origem e que se
manifestam no devir-corpo.
Espectro , reforçamos, é aquilo que se coloca entre o material e o
imaterial, forma sem corpo ou corpo sem forma, fantasma que assombra o
presente, o contemporâneo, a partir de um out of joint, de um tempo
disjunto, fora dos eixos, tal como Derrida nos lembra em Espectros de
Marx, a partir do Hamlet de Shakespeare.
Ilha Grande já era assim chamada pelos índios Tamoios, que na língua
tupi era Ipaum Guaçu. Ipaum significa Ilha e Guaçu, Grande. Esse registro
deve-se ao aventureiro alemão Hans Staden, que assim anotou nos mapas
publicados em sua obra em 1557. Padre Anchieta, o conhecido catequista
dos índios brasileiros, também registrou a presença dos Tamoios na Ilha.
Segundo Anchieta, eles viviam em aldeias com cerca de seis ocas,
totalizando aproximadamente 150 habitantes. Eram valentes guerreiros,
ótimos flecheiros, caçadores, pescadores de linha e mergulho e viviam de
modo distinto dos outros indígenas do continente, além de terem a sua
linguagem também diferente. Mas não foram os primeiros habitantes ao que
tudo indica.
É nesse sentido que interessa a investigação sobre os Guainás na Ilha.
Seguir a trilha, perseguir traços, desvendar a possibilidade de se pensar
rastros, não dos Tamoios, os registros são sólidos e documentados
fartamente desde Anchieta, mas daqueles que por motivo não sabido se
retiraram da Ilha. Segundo levantamentos arqueológicos, a região foi
habitada há três mil anos por uma comunidade de pescadores, coletores e
caçadores que antecederam os índios tupinambás. E isso extrapola em
muito a habitabilidade pelos indios Tamoios.
Como eles desapareceram ninguém sabe ainda. Apesar de terem vivido
por toda a Ilha é possível que tenham sido expulsos por tribos tupis, pois foi
achada uma peça de cerâmica tupi nas proximidades do Ilhote, embora isso
não esteja comprovado, já que não existem outros vestígios desse povo na
região.
O que isso denota? Uma espectralidade, vestígios que não são traços,
mas rastros. A Praia dos Meros, por exemplo, é isolada, pequena e de
águas agitadas, é comum a formação de dunas de areia. Nela, é possível ver
vestígios de antigas civilizações que habitaram a Ilha há cerca de três mil
anos atrás. Vestígios geológicos, conhecidos como amolares podem ser
vistos em muitas partes da Ilha Grande e são cavidades em rochas,
provocadas pelo repetido atrito de outra rocha. Era o resultado do processo
de preparação e afiação das rudimentares ferramentas usadas por nossos
ancestrais, na idade da pedra.
Já em outra praia em Ilha Grande, a do Caxadaço denota-se que foi
bastante povoada em épocas passadas. Ao bom observador será fácil
distinguir nas pedras junto à praia, as marcas de afiamento lítico deixadas
pelos índios ao amolarem suas flechas, machadinhas entre outros utensílios.
Tais evidências, não deixam dúvida de que ali já existiu uma aldeia
Tupinambá. A espectralidade ali ronda também. Além de ser um ótimo
lugar para se viver, o capricho da natureza criou um local abrigado, cercado
de mata e água em abundância. Do alto de suas pedras eles podiam ver
quem chegava ou passava ao largo sem desconfiar que ali, num penhasco
com ondas aterradoras, estava abrigada uma tribo. Como também para
escapar de alguma perseguição, desaparecendo nas rochas sem deixar
vestígios. Dessa estratégia se aproveitaram também os contrabandistas de
escravos, que para driblarem a marinha britânica que combatia esse tipo de
comércio, usavam esse esconderijo para sumirem, como num passe de
mágica, das vistas dos ingleses. Abrigados e em segurança, eles
133
desembarcavam os cabiúnas (jacarandá preto) negros que eram
conduzidos às fazendas negreiras e depois vendidos aos fazendeiros do
continente. Felizmente essa mazela durou pouco e o Caxadaço voltou a ser
um lugar de sagrada comunhão com a natureza. Esse trecho da costa foi
bastante povoado em épocas passadas.
Ao caminharmos pela trilha ainda é possível vermos ruínas de antigas
construções e árvores frutíferas espalhadas pela mata. Num determinado
trecho, a trilha é toda calçada de pedras, é o Caminho das Pedras, que foi
construído pelos escravos e que servia para dar escoamento à produção das
lavouras que existiam ali.
Após o descobrimento, em 1502, várias expedições exploradoras e
aventureiras foram realizadas no litoral brasileiro. Com isso, significantes
registros históricos foram manuscritos e falando especificamente da Ilha
Grande, isso foi iniciado por volta de 1552.
São tentáculos como espectros e espectralidade que nos obsidiam.
Terceiro tentáculo: O por vir da Política
A mortevida a vidamorte
Em 19 de janeiro de 1919, a filósofa e militante polonesa Rosa
Luxemburgo foi assassinada em Berlim, aos 47 anos. Cem anos depois,
Rosa se mantém atual. Em uma era de fortalecimento do populismo e de
crises na representação partidária, é necessária sua crítica sobre a concepção
dos partidos políticos como uma vanguarda centralizada e distante da base
que tem como objetivo dirigir as massas. No início de 1919, Luxemburgo
estava sendo conduzida pelo grupo paramilitar Freikorps para um
interrogatório quando o jipe militar que a levava desviou-se para uma ruela.
Lá, ela foi baleada e deixada para morrer nas águas de um rio de Berlim.
Para Rosa Luxemburgo, democracia e revolução, ou democracia e
socialismo, eram inseparáveis e em várias de suas obras podemos encontrar
a sua preocupação com a liberdade. Num ensaio escrito na prisão, intitulado
A Revolução Russa e publicado após sua morte por seu último
companheiro, Paul Levi, lemos:
Liberdade somente para os partidários do governo, somente para os membros de um partido — por mais numerosos que sejam —, não é liberdade.
Liberdade é sempre a liberdade de quem pensa diferente. Não por fanatismo pela ‘justiça’, mas porque tudo quanto há de vivificante, salutar,
purificador na liberdade política depende desse caráter essencial e deixa de ser eficaz quando a ‘liberdade’ se torna privilégio. (Luxemburgo,
2011:205,vol 2)

Em nome da Rosa, gostaria de dizer que através de Rosa Luxemburgo,


rosa vermelha de sangue, lembrando os 100 anos de seu assassinato,
indicamos que homenageamos a luta não só de todas as mulheres que são
rosas, mas de todas as mulheres e homens que são rosa, tal como Khôra,
triton genos, com funções ora femininas, ora masculinas ou mesmo viris.
Khôra é um indeterminado, um devir, um por vir que traz a marca da
indecidibilidade, da imprevisibilidade, uma potência im-potente, mas
sempre real. Khôra é um deslocamento, um desvio, um descolamento
também, tal como os tentáculos do polvo, do po(l)vo, Khôra-rosa se faz
povo, se faz humana/humano, humanidade, é o si mesmo como outro,
Khôra o grande tentáculo da alteridade.
E, como rosa, gostaria de homenagear as nossas Rosas de sangue:
Marielle valente e guerreira, e as crianças assassinadas no Brasil e no Rio
de Janeiro pela truculência da violência policial na figura de Ágatha, 8
anos, numa Kombi escolar. E lembrar também as nossas rosas batalhadoras
pela vida, pela resistência e sobrevida e reigualdade e justiça na figura de
Elza Soares , cantora, magnífica em sua luta política por um Brasil que não
nos envergonhe: “Mulheres, gemer só de prazer. A realidade agora é outra.
Chega de sofrer calada. Ligue 180”, disse a cantora durante um show
recente agora em 2019 ( Rock in Rio). Uma rosa que sempre é um show! E
ela prossegue entoando: Libertação; Menino/Brasis; Comportamento Geral
de Gonzaguinha; o hino feminista Maria da Vila Matilde. A parte final de
sua apresentação trouxe uma carga política bem mais intensa, pois
seguiram-se A mulher do fim do mundo, Pequena memória de um país sem
memória, País dos sonhos e Blá-blá-blá, com participação do rapper Edgar.
Finalizou com Volta por cima, de Paulo Vanzolini tornado famoso por Beth
Carvalho, cantado por Elza e todos os convidados.
De maneira geral, o show de Elza manteve o seu tom, uma mistura de
estilos musicais a serviço de mensagens acerca de temas como feminismo,
violência contra a mulher e da consciência negra.
E como rosa, gostaria de homenagear ainda uma rosa de cabelo
avermelhado que nos deixou há pouco, uma rosa mulher da filosofia, uma
rosa devir-esteta, com alma de bailarina , sensível rosa, que adorava , além
da filosofia, futebol e o encarava no movimento dos jogadores como arte,
conhecia como poucas os times e jogadores de futebol do mundo inteiro,
nossa filósofa e querida amiga de muitos de nós, Noeli Rame, batalhadora
pela vida. A vida lhe pregou uma peça, mas ela nos deixa a lição de
Derrida, a crença na possibilidade im-possível da vidamorte e mortevida.
Salve Rosa. Salve todas as rosas. Salve Noeli.

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Rosas negras para uma filosofia desde o Brasil: Lélia Gonzales,
134
Beatriz Nascimento e Helena Theodoro

135
Marcelo José Derzi Moraes

Em um caminho proposto por Exu Sete Encruzilhadas, aberto por


Ogum, é com gratidão e reconhecimento desta herança, que oferecemos ao
leitor, mas, principalmente, para a filosofia: três rosas negras. São elas: três
filósofas; três mulheres; três mulheres negras; três pensadoras: Lélia
Gonzales, Beatriz Nascimento e Helena Theodoro.
Ao som do aguerê de Oxóssi, adentramos a mata filosófica, mata
fechada e escura na qual a filosofia não abre mão e se perde em seu próprio
dogmatismo. Cortando e esquivando tal como Oxóssi em busca de sua caça,
esse texto pretende ser certeiro tal como a flecha lançada por Oxóssi, que
no seu agenciamento com o arco, na sua mobilidade e equilíbrio com o
vento de Iansã, se orienta pelo que a filosofia escamoteia, a saber, o
labirinto de inscrições. Nessa lógica de escamoteações, somos conduzidos,
não com a intenção de desvelar ou de desescamotear, mas de deslocar, um
certo ocultamento, uma violência escamoteadora acerca de algumas
questões em filosofia, a saber, o racismo epistemológico. Diante disso,
perguntamos, por que a filosofia é tão branca? Por que a filosofia é tão
sexista? Essas respostas já foram muito exploradas e resolvidas por dezenas
de filósofos e filósofas negras e negros, mas, também, brancos, não-negros,
europeus, africanos, latinos, asiáticos, indígenas, orientais, entre outros.
Sendo assim, vamos nos concentrar no deslocamento e trazer as rosas
negras brasileiras para fazer da filosofia o que ela sempre deveria ter sido:
antidogmática e antirracista.
Existe uma linha comum de pensamento e de ação dessas três filósofas
negras, que é a crítica radical ao racismo e ao sexismo na sociedade
brasileira. No entanto, o que iremos tentar tratar, não sabemos se vamos
conseguir, devido à complexidade do pensamento dessas autoras, é a
atmosfera espectral da potência filosófica em que essas autoras pensam o
racismo e o sexismo. Dito de outra forma, vamos falar da sustentação
filosófica dessas autoras que marca a crítica ao racismo e ao sexismo. De
início, é preciso considerar que são mulheres negras que interpretaram o
Brasil, principalmente a formação do Estado brasileiro. A apreensão da
realidade por essas autoras não pode deixar de reconhecer e constatar que o
Brasil é marcado pelo racismo e o sexismo, que é impossível falar dos
problemas de desigualdade sem considerar o racismo antinegro e o sexismo.
Entendendo que a formação do Estado brasileiro reproduz um
simulacro do modelo europeu, o Estado-colonial brasileiro é um espectro da
colônia, que jamais seria a Europa, que jamais reproduziria o seu espírito.
Portanto, o Estado brasileiro é a deformação do modelo do Estado europeu.
Essa deformação se dá em reproduzir os valores de desumanização do
negro e do indígena. Nesse sentido, o Império português colonial, ao se
lançar para o futuro, no que hoje conhecemos por Brasil, carrega o espectro
do racismo em seu corpo. Desta maneira, essas autoras deixam claro que a
formação do Estado Brasileiro é na verdade uma deformação do Estado
democrático de direito devido ao racismo e ao sexismo. A interpretação
dessas autoras vai além da constatação de um realidade racista e sexista,
elas compreendem que tanto o racismo quanto o sexismo são condições de
manutenção das desigualdades e das injustiças no Brasil. Diante disso,
reforçamos, o Brasil é um país racista, sexista e classista, essa é a sua
condição, essa é a realidade da democracia brasileira.
Promovendo uma desconstrução da colonialidade e do
deslocamento das hierarquias, essas autoras apontam para um devir de uma
realidade brasileira que fora e ainda se mantem obliterada, negada,
neutralizada em relação à história do Brasil. A violência da colonialidade
expressa por essas autoras apresenta uma extensão ainda mais larga do
racismo, que é negação dos elementos negros e indígenas da formação do
Brasil. Em outras palavras, a história da formação do Brasil é a história
contínua de um embranquecimento da cultura brasileira, por mais que se
fale de carnaval em fevereiro e se comemore o dia do índio. Nesse sentido,
as autoras denunciam o escamoteamento da cultura africana e indígena, que
além de serem empurradas paras as margens das cidades, são invisibilizadas
desde o campo social até a produção de conhecimento. Dito de outra
maneira, o genocídio negro e indígena, cometido a esses povos, não foi o
bastante, é preciso um epistemicídio, ou seja, o assassinato, a destruição de
todos os saberes produzidos por povos não-brancos, não-europeus, não-
ocidentais. A força dessas autoras não está apenas na interpretação do
Estado brasileiro, mas, também, nas suas capacidades inventivas, de
pensarem forças criadoras, de pensarem outras possibilidades, de fazer
insurgir escrituras, corpos, vozes para combater o racismo e para pensar
sociedades mais justas e plurais. Lélia, Beatriz e Helena são filósofas
pensadoras, pois interpretam a realidade, desvelam o ocultado, pensam o
futuro e nos tiram da zona de conforto, colocando problemas que negamos
constantemente em filosofia. Estudar essas três filósofas na filosofia, e em
outras áreas de saber, além de promover uma justiça, uma luta contra o
racismo e o sexismo, é pensar um jardim do pensamento mais florido, mais
forte, mais brasileiro, mais preto, mais feminino, uma vez que, podemos
encontrar, nas três autoras, a valorização da mulher como aquela que
possibilita a existência e a manutenção da vida em sociedade.
Agora lanço três rosas negras para a filosofia, para uma primavera das
rosas negras. Rosas que resistem ao inverno do sexismo e do racismo, pois
as rosas também têm espinho. A primeira rosa é Lélia Gonzales, que irá
criar uma sustentação territorial de pensamento para que possamos com as
outras duas rosas negras, Beatriz Nascimento e Helena Theodoro, fazer
surgir outros campos de atuação para o pensamento filosófico, partindo,
então, dessa atmosfera primaveril descolonial engendrada por Lélia
Gonzales.
A primeira rosa negra, Lélia Gonzales, conduzia ao Orum em 1994, é
sem discutir uma intérprete do Brasil. A apreensão do real promovida por
essa filósofa aponta muitos espectros, brechas, vazios, apagamentos em
diversas instâncias do que chamamos de Brasil. A partir de Lélia, passamos
a pensar o que é o Brasil, o que é o povo brasileiro, como se deu sua
formação, o que foi excluído, como se dá e como funciona o sistema
político, econômico, social e filosófico da sociedade brasileira. Essa
filósofa desmonta mitos, conjura espectros e cria possibilidades outrem de
pensar o Brasil e o povo brasileiro. Promovendo uma desconstrução da
colonialidade, pensando maneiras de se fazer justiça aos excluídos nessa
terra Brasil, Lélia parte da violência fundacional do Brasil, compreendendo
que a tentativa de embranquecimento do Brasil se dá pela violência da
negação, pela violência da exclusão, do genocídio e da afirmação da
colonialidade. Entendendo que a distribuição da sociedade possui uma
marca racial, classista e sexista, Lélia promove uma geografia do
pensamento filosófico ao interpretar que o real é espectral, e o que se
mostra enquanto real não corresponde à realidade, uma vez que um espectro
é assombrado e conjurado a todo momento, que é a negação do racismo, a
naturalização do sexismo e a condição da desigualdade social como algo
inevitável.
Lélia conjura esses espectros e promove uma ameaça ao discurso
dominante, desconstruindo a formação do Brasil como algo desligado da
violência. Dito de outra maneira, o Brasil é racista, sexista e classista, isso
porque adotamos valores e ideais que foram forjados na Europa e que as
classes dominantes gostariam que se revelassem e se estabelecessem aqui.
No entanto, Lélia desmonta essas teses, revela histórias não contadas,
compreendendo que o racismo é uma patologia. Lélia amplia o conceito de
classe e diz que é impossível, pelo menos na América Latina, limitarmos a
questão de classe sem considerar o racismo e o sexismo. Nesse sentido,
Lélia amplia ainda mais nossa capacidade de interpretação da realidade,
muitas vezes, quase sempre, limitada, embranquecida e eurocentrada. Essa
filósofa desmonta e desloca questões, que muitas vezes são avançadas, mas
que se engessam, pois existe sempre uma tentativa de apreensão da
diferença por parte do grupo dominante que quer colocar o diferente como
igual ou negar a diferença na tentativa de reforçar uma diferença.
Lélia defende a ideia de que o Brasil é negro, uma vez que mais de
50% da população é preta e parda. Lélia diz que o que falamos nessas terras
é um pretuguês, que é a língua portuguesa africanizada, que se coloca como
uma forma de transgressão, de desobediência à língua do colonizador. Além
disso, o pretuguês será a língua na qual as mães pretas educar os filhos das
famílias brancas. O pretuguês, então, é a forma que noix vai criar uma
forma de linguagem, seja para uma batucada epistemológica numa roda de
samba, seja pra torcer pro framengo, fazendo valer o valor de uma
comunidade. O pretuguês é a invenção de uma escritura-outrem, em que sua
multiplicidade cria códigos e desvios na língua que ampliam a capacidade
de encontros e resistências.
Para Lélia, a democracia racial nunca aconteceu no Brasil; e, se em
algum momento essas terras conheceram a democracia racial, foi na
República de Palmares, pois lá viviam negros, brancos, mestiços e
indígenas de forma livre e democrática. Lélia explica que o Quilombo dos
Palmares foi o primeiro Estado fundando nessa terra, anterior ao Brasil
enquanto república. Nesse sentido, Lélia conjura os espectros dos
quilombos e quilombolas como possibilidades de pensar outros modos de
ser. Lélia, portanto, invoca os elementos da cultura negra que são
rebaixados e excluídos em nossa sociedade. A partir disso, Lélia conjura
que é preciso interpretar o Brasil a partir de nossa matriz africana; que, indo
para além do carnaval, devemos entender que ser negro no Brasil se
expande a compreender e conhecer suas origens e as condições que
constituem o brasileiro e o Brasil. Assim, entender que o carnaval vai para
além da exploração sexual da mulher negra ou da cultura negra, mas
entender, que o carnaval representa uma ancestralidade que invoca questões
éticas, epistemológicas e estéticas da cultura negra. Nesse sentido, retirando
o papel do negro e da negra submissa, erotizado e serviçal, Lélia traz
elementos de negros e negras que construíram a história do Brasil em
termos de resistência e de influência na cultura e no ser do brasileiro. Lélia
lembra que a produção da imagem submissa do escravizado sempre negou
que o negro e a negra interferiram na formação da criança branca, que
interferiram no idioma português, que criaram modelos de negociações e
que sempre lutaram contra a escravidão e o racismo; que, pela arte e pela
religião, constituem a verdadeira atmosfera desse país.
A cultura brasileira é uma cultura negra por excelência, até o português que falamos aqui é diferente do português de Portugal. Nosso português
não é português é “pretuguês”. (...) a chamada “mãe preta” (...) vai passar pro brasileiro, de um modo geral, esse tipo de pronúncia, um modo de
ser, de sentir e de pensar. (...) se percebe que a sociedade brasileira como um todo é uma sociedade culturalmente alienada, culturalmente
colonizada na medida em que todos os valores de um pensamento, de uma arte, enfim, de tudo vem da Europa, do mundo ocidental, é o grande
barato. (...) o nosso objetivo, o que é uma dureza – é exatamente tentar subverter a ordem desse discurso no sentido do povo mesmo (GONZALES,
2018, p. 86-88).

A segunda rosa negra, vítima de feminicídio, assassinada, em 1995, é


Beatriz Nascimento, uma historiadora que pensa filosoficamente. Em
Beatriz Nascimento, encontramos a possibilidade de pensarmos a política e
o Estado brasileiro, cuja marca é o colonialismo. A partir de Beatriz,
portanto, seguimos a força que ela aponta dos quilombos para pensarmos
uma outra história do Brasil, uma outra história do negro do Brasil, uma
outra história da formação do Brasil que fora negada. Beatriz Nascimento
nos traz uma questão de extrema importância ao conjurar o quilombo como
um caminho para pensarmos o Brasil. Beatriz Nascimento, ao investigar as
histórias dos quilombos, visitando muitos dos quilombos que são uma
realidade do presente, levanta duas questões das quais as respostas podem
ser encontradas em terrenos metafísicos da filosofia: como é possível que,
mesmo diante da violência do rapto de africanos e sua disseminação e
mistura de povos e etnias por todo o território da colônia, se refundasse aqui
nessas terras quilombos de origens africanas; a segunda questão é: como
mantemos até os dias de hoje essa herança que vem da África, se
territorializando em quilombos e que herdamos nas favelas? A resposta está
na ancestralidade, na força da ancestralidade. E é essa força, que se repete e
se territorializa nessas terras, que irá se lançar em um por vir. No entanto,
não é só disso que Beatriz está falando; ela quer pensar as estruturas desses
quilombos, como funcionam, como se projetam, qual a atmosfera presente
nesses quilombos. Pontuando as heranças e as semelhanças vindas da
África nos quilombos, Beatriz Nascimento percebe que quilombos
diferentes sempre trazem marcas que se repetem e aspectos singulares,
como, por exemplo, a representação de períodos marcados pelo patriarcado
e pelo matriarcado africano. Nossa historiadora filósofa encontra em
Angola elementos que reforçam a ideia de que nossos quilombos são de
origem angolana, que buscam sempre os mesmos espaços e atmosferas para
se fundar, a saber, em planaltos, colinas, próximos da natureza, onde há
rios, matas e espaços abertos. Esses elementos que constituem a formação
do quilombo influenciam o modo de viver e de ser do quilombola, a relação
que esse possui com o cosmos, com a espiritualidade, com os espaços, com
a economia e com a cultura. Uma das características que perdura nos
quilombos é o cuidado com os mais velhos, esse cuidado se reflete na
longevidade dos quilombolas, isso se dá também pelo modo de vida, pelo
modo de vida saudável que eles possuem. Diante disso, o quilombola, o
negro resistente, que lutava contra o racismo e a escravidão, encontra a
possibilidade de se afirmar enquanto ser, enquanto humano, produzindo a
manutenção e o reforço de sua identidade. É o caso do Quilombo de
Palmares ou a República de Palmares, que constituída por negros, brancos,
indígenas e mestiços, a maioria dos seus cidadãos eram de origem bantu.
No quilombo dos Palmares, sendo o primeiro estado democrático de
direito nessa terra que hoje se chama Brasil, as pessoas viviam em
liberdade, onde negros, indígenas, mestiços e brancos viviam em harmonia,
resistindo à escravidão imposta pela Colônia portuguesa. Diante disso,
Beatriz Nascimento nos mostra que esse modelo de existência dos
quilombolas, que é um modo ético de ser, na força da sua ancestralidade, se
reproduz até a nossa atualidade, podendo ser encontrado nos quilombos
modernos ou nas favelas, e até mesmo na luta dos movimentos negros.
Assim, esta filósofa desmonta a compreensão do quilombo como lugar de
negro fugido. A partir dessa interpretação, ao abordarmos o quilombo como
lugar de luta e resistência, Beatriz contribui para uma outra formação da
história do Brasil e para a formação dos negros e negras, uma vez que ela
retira o caráter ontologizado do escravo, apresentando que este fora
escravizado, além, é claro, de criar uma imagem do negro resistente,
lutador, ativo, não mais, a imagem do fujão. Entretanto, a mesma herança
que se repete como modelo ético dos quilombolas, se repete no modo de
repressão do estado ainda hoje, na tentativa de destruição dos quilombos, no
ataque constante às favelas e no genocídio negro. Desta maneira, Beatriz
vai perceber o quilombo enquanto instrumento contra o racismo, reforçando
a identidade do ser negro e a esperança de uma sociedade antirracista. Além
disso, esta filósofa irá cunhar o conceito de “paz quilombola”, que surge no
momento em que a autora problematiza o espaço e o tempo antes e depois
dos momentos de conflito e guerra. Beatriz está preocupada em entender os
momentos de paz nos quilombos, desde o momento de sua reprodução e
manutenção, até a sua relação com pequenos proprietários de terras
vizinhas. Assim, a força dessa filósofa, na qual queremos legar, está na sua
capacidade de interpretar a história e desconstruir o presente, criando a
possibilidade de pensarmos um estado a partir de uma descolonialidade,
cuja marca é sua colonialidade. Nesse sentido, pensar o quilombo é pensar
outro modo de ser e de existir com o outro, é pensar um verdadeiro estado
democrático de direito.
Mas se nós tomarmos a história da repressão ao negro após a abolição, talvez possamos identificar essa nova repressão com o que aconteceu
historicamente com o quilombo. Queremos dizer que oficialmente o quilombo termina com a Abolição. Mas que permanece enquanto recurso de
resistência e enfrentamento da sociedade oficial que se instaura, embora não mais com aquele nome nem sofrendo o mesmo tipo de repressão. Se
sabemos que o negro e outros oprimidos permanecem, por exemplo, nas favelas e áreas periféricas da cidade, obrigados por fatores não só
decorrentes da marginalização racial, podemos dizer que o quilombo, embora transformado, perdura (NASCIMENTO, 2018, p. 78).

A terceira rosa negra é Helena Theodoro, esse ano completou 76


primaveras, é uma filósofa que atua ainda hoje dentro e fora da
universidade. A partir de Helena, queremos trazer o espectro da cultura
nagô africana, enquanto sistema para pensarmos outras possibilidades de
ser e de existir, de criar outras formas de sobreviver e pensar um futuro que
se repete resistindo às forças da colonização, do Estado, do
embranquecimento, do racismo e do genocídio. Helena Theodoro faz
filosofia a partir da cultura Yoruba, problematizando a dicotomia corpo e
mente, razão e desejo. Ao pensar modelos éticos que resistam ao modelo
neoliberal de ser, Helena invoca o espírito ubuntu do povo africano, que,
pela força da ancestralidade, acompanhou a violência da diáspora africana,
que se territorializou nos quilombos, e que é uma possibilidade de
pensarmos outros modos de ser. Além disso, Helena apresenta a potência do
samba, das mulheres do samba, das yalorixas e dos terreiros de candomblé,
apresentando-os como espaços de convivência solidário, de manutenção da
ancestralidade e espaços de criação de conhecimento. Compreendendo a
realidade formada a partir de uma temporalidade na qual o passado se
direciona ao futuro, na qual o presente é marcado pelo passado e que
caminha sempre acompanhado do passado e do futuro, Helena nos traz as
tradições africanas nas quais a temporalidade é fundamental para pensar o
que é o humano, como e com o que ele se relaciona. Ao deslocar a
hierarquia entre razão e desejo, mente e corpo, espírito e corpo, Helena nos
lembra que fazer filosofia é dançar, é respeitar os ancestrais e os que ainda
estão por vir; é entender que, se o ânus se fecha, os outros órgãos, entre eles
a razão, começam a falhar.
Helena traz uma filosofia da qual o racismo e o sexismo não fazem
parte, e que é a solidariedade, o encontro com o outro é o que constitui a
vida. Invocado a força da mulher brasileira, Helena passa do candomblé ao
samba nos presenteando com mulheres negras que fizeram história; nós
diríamos, fizeram filosofia. Diante disso, Helena desconstrói o lugar da
universidade como lugar privilegiado do saber e apresenta o terreiro e a
roda de samba como espaços de produção de conhecimento. Nesse sentido,
o grande movimento promovido por essa filósofa, o de deslocar as
hierarquias, é o que a constitui enquanto grande pensadora; uma vez que, ao
interpretar a realidade em que vivemos, que se limita à exclusão e à
subalternização do outro, seja a mulher ou o negro, e os elementos
escolhidos pela tradição filosófica como secundários, essa filósofa promove
uma verdadeira revolução filosófica, nos abrindo a possibilidade de
pensarmos, a partir do Brasil, uma filosofia preta, uma filosofia que samba,
uma filosofia que deseja, mas que, ao mesmo tempo, pensa.
Funcionando como verdadeiras escolas, as comunidades-terreiros educam as novas gerações na cultura dos antepassados, na preservação da
memória do grupo, na prática da solidariedade, da ajuda mútua, do respeito aos mais velhos, da tolerância religiosa e racial, da cura dos males do
corpo e do espírito. (...) A cultura negra apresenta uma estreita relação entre Arte e Vida, fazendo com que exista uma profunda ligação entre as
diversas formas de manifestação artística com os fatores sociais, históricos culturais específicos das comunidades em que surgiram e onde se
desenvolveram (THEODORO, 1996, 70-118).

Sem a pretensão de encerrar, mas direcionar esse texto para outros


espaços, reconhecendo que a filosofia é marcadamente conservadora,
sexista, machista, branca e colonial, acreditamos que as escrituras
produzidas por essas rosas negras são de extrema importância para
pensarmos a filosofia no Brasil ou desde o Brasil. Ao acreditar que
forjavam fantasmas que vagariam pelo mundo colonial, os portugueses não
esperavam que, da violência da escravidão, os negros e negras sequestrados
da África invocariam suas ancestralidades e fariam valer o espírito africano
que fora negado por Hegel e conjurado pelos portugueses. Assim, a força
do espectro da ancestralidade africana é tão forte, tão potente, que a
resistência e a capacidade de criação dos negros e negras palmarinos
serviram como inspiração para as lutas antirracistas promovidas por negros
e negras nos movimentos sociais e nas universidades, fazendo valer seus
direitos e reconhecimentos das suas histórias e da sua importância na
formação do Brasil, a partir da luta de negros e negras importantes na
história do combate à escravidão e ao racismo no Brasil-Colonial-Policial-
Racista. Desta maneira, invocamos os espectros dos ancestrais indígenas e
africanos, de Gangazumba, de Zumbi, de Dandara, de Luiza Mahin, de
Lélia Gonzales, de Beatriz Nascimento, de Marielle Franco e de tantos
outros vítimas do Estado-Colonial-Racista. Então, que eles retornem e
assombrem aqueles que reforçam o espectro do racismo, principalmente, o
espectro do mito da democracia racial, que escamoteia o racismo que é
produzido em nossa sociedade.

Bibliografia
GONZALES, Lélia. Primavera para as rosas negras. Diáspora africana: Editora filhos da África, 2018.

NASCIMENTO, Beatriz. Beatriz Nascimento, Quilombola e Intelectual: possibilidade nos dias da destruição. Diáspora africana: Editora filhos da África, 2018.

RATTS, Alex. Eu sou atlântica. Sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.

THEODORO, Helena. O mito e espiritualidade. Mulheres negras. Rio de Janeiro: Pallas, 1996.
Resistência, ódio e amor!

136
Marcelo de Mello Rangel

Para
Thamara Rodrigues
Rafael Haddock-Lobo
Marcelo Moraes

1.
Venho trabalhando há algum tempo com o problema da violência
especialmente a partir da compreensão de que todos os nossos
comportamentos teóricos e práticos são violentos, o que significa dizer mais
precisamente que todos nós somos determinados por um conjunto de
sentidos, significados e afetos que são mais transcendentais ou gerais, os
quais nos mobilizam sem que possamos visualizar. Nesse sentido, sempre
que pensamos e fazemos algo junto a alguém ou a alguma coisa que
desponta diante de nós tendemos a posicioná-los, sintetizá-los, delimitá-los,
a conferir e a restringir espaços e possibilidades, e isto de acordo com tais
orientações.
O que está em questão aqui é que todo horizonte, realidade
(Wirklichkeit) ou mundo se constitui a partir de um momento mais
dramático no qual temos uma disputa, um conflito (sempre assimétrico)
entre determinadas perspectivas, grupos, visões de mundo, modos de
comportamento... de modo que a partir dos vencedores o que temos é uma
hierarquização e, por conseguinte, a constituição de um aspecto, de uma
forma, de uma sociedade.
A origem ou emergência (Entstehung) de determinado horizonte ou
realidade é, assim, violenta, com base na qual temos um conflito entre
perspectivas e, em seguida, a instauração de um aspecto que se dá
justamente a partir do obscurecimento ou periferização significativa de
determinados grupos. Esta seria o que podemos chamar de uma primeira
137
violência, a que está na origem de todos os mundos possíveis . Temos,
então, uma movimentação que vai da objetividade (Gegenständlichkeit)
para a transcendentalidade, ou seja, aquela perspectiva que era, no momento
anterior à delimitação de uma realidade específica, mais visível, assume o
protagonismo numa dada relação e vai se tornando a própria fonte (o
horizonte) – disponibilizando compreensões, valores e afetos - dos
comportamentos teóricos e práticos que se tornam possíveis. E isto de
maneira cada vez mais geral e imediata (imperceptível), constituindo um
mundo sedimentado e que tende à duração (a certa repetição).
E os homens em geral, por sua vez, participam desse processo como
espaços ou atividade que tenderia a se conformar rapidamente a este
conjunto de sentidos, significados e afetos que se generaliza. Havendo,
desse modo, uma tendência perturbadora a certa conformidade entre nós e o
espaço no qual nos mobilizamos. Assim, temos a emergência de horizontes
históricos, realidades, mundos, e, a um só tempo, a sua sedimentação e a
própria tendência à duração.

2.
Portanto, somos todos violentos, posicionamos (violentamos) o que
vem ao nosso encontro, e, assim, tendemos a nos mobilizar de modo a
continuar o horizonte ou realidade na qual nos encontramos e, por
conseguinte, a atuar em nome da duração dessa relação, de determinada
hierarquia. E o que é mais perturbador é esta tendência a certa identificação
ou conformidade à realidade na qual nos mobilizamos, e isso, ao menos
mais em geral, a despeito da própria posição ocupada. E claro que neste
sentido temos, além de uma espécie de tendência à identificação e
conformidade à realidade na qual nos encontramos, a própria constituição
de instituições, mecanismos, substâncias que também atuam neste sentido
que é o da (intensificação da) conformidade (ou conformação).
O que temos, assim, é que realidades, mundos, tendem a durar!

3.
No entanto, essa é apenas parte da descrição da lógica própria à
história, à realidade, e isto porque se, por um lado, elas tendem a durar, a
compreensão da sua emergência nos ajuda no sentido de acompanhar de
uma maneira mais precisa o que seria a mobilidade da história ou da
realidade, e, claro, dos homens em geral.
Descrevemos, mais acima, o momento de instauração ou de
emergência de um horizonte, realidade ou mundo, e, retomando, temos o
que chamamos de um embate, de uma disputa dramática e assimétrica entre
perspectivas, grupos, visões de mundo, modos de comportamento
específicos. Acompanhamos, também, que quando uma delas ocupa certa
posição de protagonismo, as outras vão sendo remetidas a posições
periferizadas. No entanto é necessário sublinhar que apesar de certo
obscurecimento, tais perspectivas permanecem resistindo, produzindo
enfrentamentos, deslizamentos, incomodando, obsediando, constituindo
alianças, supervivendo.
De modo que todo aspecto ou realidade tende a durar, mas também
possui uma espécie de mobilidade e instabilidade interna, sendo exatamente
essa a condição para que a história ou a realidade em algum momento volte
a se diferenciar e a assumir outros aspectos e hierarquias possíveis. Assim,
já podemos tematizar isto que seria a mobilidade da história ou da realidade
de uma maneira mais complexa, ela se mobiliza a partir de momentos de
maior sedimentação e estabilidade, passando por momentos de maior
instabilidade com base nos quais se torna possível (ou não) a sua
diferenciação e, então, a constituição de outros momentos de maior
138
estabilidade .
Desse modo, a partir dessa descrição, o que temos é que a história ou a
realidade tende a se diferenciar. Ou melhor, ela tende a durar, como
explicitamos mais acima, e também (ou mais propriamente) a se diferenciar.
E tende a se diferenciar (especialmente) porque temos a mobilização
constante, a resistência e a supervivência dos homens e mulheres que, em
determinada relação ou conjuntura, ocupam posições mais periferizadas.

4.
Nesse sentido, o que aparece, ao menos num primeiro momento, é que
a história ou a realidade se constitui e também se diferencia ou se mobiliza
justamente a partir da atividade posicionadora, sintetizante, e da
possibilidade de uma resistência também fundada nessa atividade que é a de
(re)posicionar, de maneira que deveríamos insistir e assumir essa tendência
ao posicionamento, o que estou chamando aqui de violência (logo essa
tendência à violência), como a própria possibilidade de resistência e de
provocação (ou não) da rearticulação ou diferenciação do horizonte
histórico, da realidade.
A ideia aqui, ao menos de forma mais sucinta, seria a de que se sempre
posicionamos e nos (re)posicionamos (de forma assimétrica, claro), se
sempre somos violentos, seria fundamental então, no que diz respeito às
resistências, algo como a assunção da violência (como necessária,
ontológica), ou seja, a assunção do embate entre perspectivas a partir da
necessidade que é a do posicionamento, do (re)posicionamento
(assimétrico) recíproco. Em outras palavras, se sempre posicionamos e
somos posicionados o que nos restaria seria participar cuidadosa e
estrategicamente desse jogo de (re)posicionamentos mais circunstanciais até
que a história ou a realidade pudesse (ou não) se diferenciar, se reorganizar
com base em outros protagonismos possíveis.

5.
Teríamos um afeto ou comportamento de base fundamental aqui,
aquele que tornaria possível a própria insistência nesse jogo de
(re)posicionamentos, o “ódio”, compreendido aqui a partir do que Paulo
Freire chama de “inconformismo”, de modo que, como lembra Benjamin:
nos esquecemos e precisamos de certa forma “reaprender a odiar”, a
questionar, interpelar, objetar, contestar, argumentar e contradizer para
139
resistir e superviver . O que também está de alguma forma na base dos
140
argumentos mais recentes de Ailton Krenak, Mbembe e Bell Hooks . É
preciso reaprender a “odiar”!
É preciso reaprender (recorrentemente) a “odiar” porque e como já
vimos a realidade (re)emerge a partir de um ato de violência, e porque
desde então temos o esquecimento dessa origem e, por sua vez, a
generalização ou transcendentalização de determinada perspectiva, visão de
mundo, modo de comportamento o qual aparece como o único possível e
mesmo ideal.
“É preciso reaprender a odiar” (o que também se refere à “justa ira”
141
reivindicada por Paulo Freire ) diz respeito à necessidade de certo
“inconformismo” fundamental à resistência, ao questionamento, à objeção...
a uma resistência compreendida com base (a partir da) na assunção da
violência, ou ainda, na participação cuidadosa e estratégica nesse jogo
assimétrico que seria o de (re)posicionamentos.

6.
No entanto, tenho pensado nesse “ódio” e nessa mobilização violenta
especialmente a partir de Nietzsche, Benjamin, Paulo Freire, Krenak, Bell
Hooks e Mbembe, mas também junto a Maria Firmina dos Reis, Castro
Alves, Dona Ivone Lara e Chico César. E a primeira questão que proponho
é sobre a auto-suficiência deste “ódio”, ou ainda, será mesmo que ele é tão
imediato e disponível ou acabado assim? Periferizados em geral “odeiam”
(se rebelam, “inconformados”) tão imediatamente aqueles que ocupam
posições mais protagonistas e insistem em posicioná-los, em violentá-los, e,
então, resistem a partir (da assunção) dessa lógica que é a da violência
(resistência (re)posicionadora)?
Gostaria de trabalhar com a compreensão (mesmo que provisória) de
que, ao contrário dessa lógica mais imediata, o “ódio” (entendido aqui
como “inconformismo”) aparece muito mais como um afeto ou
comportamento que precisa ser provocado e cultivado, e, ainda, num
segundo momento, trabalho com a hipótese de que ele é fundamental, no
entanto não de maneira isolada. A ideia é a de que o “ódio”, isoladamente, é
insuficiente no que diz respeito à (insistência na) resistência
((re)posicionadora, violenta).
A primeira questão aqui é a de que o “ódio”, fundamental à resistência
não é, ao menos não em geral, um afeto ou comportamento que já esteja
disponível e mesmo organizado no sentido de tornar possível
questionamentos recorrentes. Quando Benjamin, Paulo Freire ou Mbembe
sublinham, de alguma forma, que é preciso “reaprender a odiar”, o que
parece estar em questão é muito mais que é preciso se esforçar no sentido
de estar sempre retomando um movimento que é (ontologicamente)
antinatural, o de lembrar justamente que nos mobilizamos dentro de uma
realidade – específica - constituída a partir da violência e do protagonismo
de determinadas perspectivas que acabam sendo decisivas na orientação dos
comportamentos em geral. Ou ainda, eles parecem lembrar que o mais
comum ou recorrente, mesmo no que diz respeito a grupos mais
periferizados, não é exatamente o “ódio” e a resistência, mas sim o que
Benjamin chamou de uma espécie de tendência à “empatia”, à identificação
imediata com a realidade ou o status quo no interior do qual nos
142
mobilizamos .
Nesse sentido, reaprender a “odiar” parece passar inicialmente por um
exercício de lembrança recorrente do caráter de violência, de
posicionamento que constitui a realidade, especialmente o horizonte
143
histórico que é o nosso (o da técnica ). E provocar, assim, certa fissura no
que diz respeito à “empatia” mais imediata que tendemos a ter em relação
ao nosso mundo e seus valores.
Desse modo, o que é mais propriamente natural ou comum é
justamente a participação e continuação mais imediata do horizonte ou
realidade na qual nos encontramos mesmo que ocupemos posições mais
periferizadas. O que implica, portanto, na tendência de que o “ódio” como
base afetiva para uma resistência mais direcionada e insistente precisa ser
cuidadosa e pacientemente cultivado. Mas então como “odiar” e, portanto,
como construir e insistir nessa resistência?
Para “odiar” e se dedicar à resistência de forma mais consistente e
recorrente é preciso “amar”! É isso que parece estar em questão, por
exemplo, na música “Sorriso Negro”, que compõe o terceiro álbum da
carreira de Dona Ivone Lara (“Sorriso Negro”, 1981), e no “Negão”, quinta
faixa do oitavo álbum de Chico César, “Estado de Poesia” (2015). Para
“odiar” (se “inconformar”), visualizar e questionar determinada realidade
no interior da qual também nos encontramos, e ainda mais do que isso, para
insistir nessa mobilização crítica (re)posicionadora (e não sucumbir) é
preciso “amar”! Mas o que significa “amar” aqui?
“Amar”, ao menos aqui, significa se colocar junto aos ancestrais, fazer
justiça aos mortos. Ou ainda melhor, é necessário se colocar junto a eles,
entre eles, ouvi-los cuidadosamente e, então, tomar parte, levar adiante
alguns de seus sonhos, modos de ser e ritmos. A compreensão aqui é a de
que é apenas quando ouvimos e nos juntamos aos mortos que reunimos a
confiança, a alegria, os afetos, a orientação e sabedoria necessárias para
visualizar, mesmo que parcial e provisoriamente, o caráter violento e
determinante ou quase-transcendental da realidade (específica) na qual nos
mobilizamos; assim, se torna possível, a partir desse “amor”, “odiar”,
criticar, questionar e resistir também (re)posicionando(se). Nesse caso,
quando Benjamin, Paulo Freire, Ailton Krenak, Bell Hooks e Mbembe
(Fanon) lembram, de algum modo, que é preciso “reaprender a odiar”, o
que parece estar em questão é tornar possível determinada percepção quase-
impossível e, por conseguinte, uma fissura no que diz respeito àquela
“empatia” imediata à qual tendemos, o que só seria provável, também
segundo Maria Firmana dos Reis, Dona Ivone e Chico César, a partir de um
outro reaprendizado, o do “amor”!
Esse reaprendizado que é o do “ódio”, o qual tornaria possível, por
exemplo, a supressão, mesmo que provisória, dessa “empatia” mais
imediata com o “vencedor” (cf. Benjamin, 2005), precisaria de um outro
reaprendizado que é o do “amor”! Que é justamente esta reaproximação em
relação aos ancestrais, aos mortos, ouvindo-os, acolhendo-os e, em seguida,
fazendo justiça a eles, ou melhor, participando e levando adiante parte de
seus sonhos, modos de ser e ritmos.
Quando este movimento de “amor” e justificação se torna possível,
temos a liberação da alegria, confiança, amizade etc., as quais – também -
tornam possível “odiar”, ou ainda, a própria supressão de determinada
“empatia” e o questionamento insistente do mundo no qual nos
encontramos, (re)posicionando aqueles contra os quais determinada
atividade se mostra necessária. De modo que o que parece que temos é a
constituição de uma atmosfera afetiva complexa determinada pelo “amor” e
pelo “ódio”, a qual tornaria possível, como temos sublinhado, a participação
insistente naquele jogo violento e assimétrico que é o de
(re)posicionamentos, mas, também, o que podemos chamar de um segundo
modo de resistência, o de (“simplesmente”) fazer justiça aos ancestrais (cf.
Benjamin, 2005).
O que me parece é que na medida em que também “amamos” os
mortos tornamos possível a reconstituição de nós mesmos e de parte do
mundo ao nosso redor, vamos tornando a atmosfera afetiva na qual nos
mobilizamos mais complexa, vamos nos alegrando, construindo confiança,
alegria, humor, certa paciência e astúcia, certo ritmo... criando e recriando
determinados espaços comuns, ou como diz Done Ivone Lara: “negro é uma
cor de respeito, negro é inspiração... negro é a voz da verdade, negro é
destino é amor, negro também é saudade. Um sorriso negro, um abraço
negro, traz felicidade...”.
O que podemos chamar de certa sabedoria afetiva própria ao “sorriso
144
negro” o qual traz “felicidade” e que é a “raiz da liberdade” . Claro, sem
esquecer do que caracteriza mais propriamente a realidade na qual nos
mobilizamos, a periferização: “negro sem emprego, fica sem sossego”, ou
como diz Chico César, “negam que aqui tem preto negão, negam que aqui
tem preconceito de cor... essa negação nega a atitude de um negro amor...
ainda não sabem, mas sabemos que a opressão é a falta de pressa do
opressor pedir perdão a quem não perdeu tempo e a muito tempo perdoou,
mas nunca esqueceu não”.
A ideia aqui, pensando especialmente no nosso próximo encontro da
Anpof em 2020, é a de continuar junto a Dona Ivone, a Chico César, aos
mortos, e trabalhar com a compreensão de que a partir desse “amor” junto e
entre os mortos também temos, além da sentimentalidade própria à
resistência mais (re)posicionadora, a possibilidade de uma resistência que é
a de (“simplesmente”) fazer justiça aos ancestrais, e assim ainda tornar
possível a constituição, o aparecimento, a emergência de algum espaço
afetivo e ético-político mais complexo, comum, o qual ao aparecer já tornou
possível o que chamo, junto a Chico César, de certo “perdão”, ou ainda, a
própria possibilidade de determinada disponibilidade e entrega (paralelas à
resistência (re)posicionadora) a uma existência “amorosa” complexa e
alegre junto e com base nos ancestrais, entre os mortos que também estão
aqui entre nós.

Bibliografia
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(Sobre)vida retirante: por onde nos conduz o sertanejo Severino?

145
William Costa
Para Castor Ruiz, Severino espanhol de pés e coração brasileiros, por ter aberto o caminho que propomos em nosso texto e por, na constância de
seu trabalho, difundir formas-de-vida repletas de esperança.

Na(s) margem(ns), para uma introdução árida da exceção brasileira


A condição histórica do Brasil, ao menos aquela que recorta e
trespassa sua colonização e sua exploração acentuada durante os séculos
XVIII e XIX e que, por ventura, se estende até nosso tempo presente,
gravou marcas das quais nem o passado nem o presente aprenderam a
refletir como pontos de críticas dentro de sua camada mais espessa: a vida
em sua dimensão primeira de ser forma-vivente. A história do Brasil,
factualmente narrada no fio sucessivo dos acontecimentos, é, na verdade, a
difusão da barbárie no espectro mais agudo do Estado de exceção e o
desenvolvimento astuto de uma governamentalização via extrações,
146
disciplina e controle massivo das populações locais . A exceção que se faz
presente em toda essa historicidade está impregnada do aporte legítimo dos
territórios europeus e, para além disso, ou melhor, no epicentro desse
mapeamento, suscita o debate profuso que separa e verticaliza civilização e
barbárie como dispositivos argumentativos para tornar profusa a exceção.
Toda a civilização europeia utilizou-se de suas impressões civilizatórias
147
para ex-cedere a dimensão bárbara, de modo a intercalar uma biopolítica
exploradora com uma tanatopolítica colonizadora sobre todos aqueles que
se encontravam fora dos limites territoriais, corporais e costumeiros.
Não há dúvidas, por isso, de que a exceção acompanha a história
brasileira, faz dela seu palco, apaga o passado, oculta o presente e ensina
que toda sua ação é civilizatória para um plano de normalidade. Essa
mesma regra responsável por alimentar o passado e o presente brasileiros
está contextualizada em troncos, os quais, sob seus plurais significados, ora
vertam nas linhas de exploração das correntes e das chibatas, ora nos
troncos da tortura de nossa escravidão, que nunca cessaram de aumentar e
de constituir sobre eles capas de esquecimento e ocultamento. Nunca
estivemos distantes do passado e do domínio dos açoites; na verdade, essa é
nossa realidade, nossa crueza, nosso assombro. Mas nos lapsos da memória
ou em nosso próprio ocultamento, aprendemos e somos levados a acreditar
no progresso científico, histórico e moral da colônia bárbara. Se deixamos
de ser colônia, por um lado, não perdemos o vício de sermos colonizados,
por outro, tampouco a virulência devota da exceção como regra e a regra
como exceção.
Sobre e contra essa capa de invisibilidade e de ocultamento que
perpassa por nossa história e que reforça o domínio da exceção, há uma
tarefa crítica e arrebatadora: desfiá-la, descosturá-la, rasgar seu cetim, puir
sua barra e deixar o tronco em total exposição. Para fazer ver os cupins, as
traças, as farpas, os desgastes externo e interno e o apodrecimento de suas
partes e de sua totalidade é preciso confrontar sua figura a partir de uma
disposição contínua. Em certo sentido, é por meio de um fôlego enérgico
partido dessa disposição que o ensaio ao qual propomos aqui encontra um
filão para reunir literatura e filosofia, fogo e relato, mistério e crítica numa
diacronia reflexiva sobre a vida brasileira na figura da vida nordestina. Com
esse intento, nosso trajeto é seguido pelas e nas margens do Rio Capibaribe.
É nos contornos dele e do encontro do sertão com a caatinga que sobre os
fósseis e as recentes ossadas escovaremos com pincéis arqueológicos a vida
nordestina e suas amostras severinas. Na dimensão de Morte e vida
severina, de João Cabral de Melo Neto, conduzimos nosso olhar para a
trágica estória da vida de milhares de homens brasileiros tomando como
recurso o pêndulo filosófico da teoria prática, sobretudo, de Giorgio
Agamben e do cruzamento de suas teses com Michel Foucault e Walter
Benjamin.

No leito do rio: da foz à nascente, da morte à vida, da morte pela vida e da


vida que se faz morrendo
Uma das pedras de toque mais críticas do sertão, pedra essa que
gostaria de pensa-la em sua miudeza, como uma pedrinha miudinha de uma
aruanda sertaneja, encontra entre a mata, a caatinga e o agreste um fio
oculto e expiador sobre a vida dos retirantes nordestinos. A vida trágica do
sertanejo, retratada na poética de João Cabral de Melo Neto em uma peça
teatral natalina, ao ser cotejada pela filosofia crítica abre uma dimensão
convergente entre a atmosfera trágica da literatura e o exame conceitual das
questões que a rodeiam no campo da filosofia prática e no arco dessa
contesta, sob os giros ético-políticos, a condição humana de tantas vidas
que habitam o sertão ou, em uma linha mais sutil, que faz desse o próprio
vivente que habita a vida. Pensar o viver sertanejo, a pedrinha miudinha da
caatinga, faz-nos caminhar em retirada junto da vida severina que, na
história de uma vida humana codinome Severino, atravessa por toda seca
para se traduzir em uma jornada espiritual, de onde pode-se dizer:
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas
e iguais também porque o sangue,
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte Severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
(...) Mas, para que me conheçam
Melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino,
que em vossa presença emigra.
(MELO NETO, 2007, p. 92-93)

A trajetória de Severino de Maria de Zacarias da Serra da Costela,


rapaz pobre, indistinto entre as varas e as carcaças dos animais mortos, é
mais uma entre tantas estórias normalizadas na historicidade do
esquecimento e no ocultamento do viver sertanejo. A vida severina é a vida
desgarrada do substantivo próprio da linguagem e objetivada criticamente
na condição adjetiva e adverbial do abandono e da opressão históricos.
Perene de si e, por isso, impassível de se referir a uma única subjetividade,
a vida severina produz a diluição da singularidade de cada sertanejo em um
estado universal. O modo de viver severino e de suas condições
qualificadoras designam uma comunidade de vidas anônimas, que, na
forma-de-vida esquecida, existe enquanto sobrevida. A vida sertaneja é a
sobrevida mantida entre o espaço indiscernível da política (bíos) e da
natureza (zoé), onde o ocultamento e o esquecimento permitem o manejo da
vida a partir de sua manutenção mínima e a partir de um ponto tão ingrato
que Josué de Castro em sua Geografia da fome (1946) chegou a referi-lo
como o limiar de uma “estranha geografia, onde não é a terra que dá de
comer para o homem, (...) [mas] o homem que nasce apenas para dar de
comer à terra. Para alimentar essa terra cemitério, que engorda com sua
matéria orgânica” (CASTRO, 1967, p. 41).
É exatamente nessa depressão cinzenta que a vida severina se projeta.
Nem bicho nem homem, mas quase bicho ou quase homem, ou ainda, além
da animalidade, mas aquém da humanidade (AGAMBEN, 2002, p. 19), o
sertanejo severino sobrevive na indistinta condição da natureza política ou
da política natural. No entremeio dessas, na capa oculta que une e separa
habita a vida nua de uma vida severina. Despida do cuidado da política, a
vida severina está destinada ao abandono e, estando nessa condição, assume
em si a figura jurídica do bando. Cada bando severino revela a condição
bandida dos homens Severinos abandonados pelas garantias práticas dos
direitos e politizadas na circunstância da sobrevida e da morte. Severina é a
vida abandonada na pobreza e na miséria extremas e exposta à violência
que expia o ser vivente como vida bandida. Culpabilizada na figura jurídica
do bando pela condição inerente a ela, a vida severina, nascida e morta
indistintamente, é vida nua naturalizada entre as paisagens secas e
normalizada na exceção.
Na exceção, cada vida nua severina faz vibrar a sacralidade dos
homens Severinos (RUIZ, 2013, p. 58). Sacros, isto é, intocáveis aos olhos
da proteção política, a vida sertaneja em sua condição bandida está
dispensada do ofício comunal (AGAMBEN, 1995, p. 122). Perigosa por sua
própria condição inerente, a vida sacra severina é, ao mesmo tempo,
insacrificável aos deuses e excluída dos cuidados materiais dos governos.
Quando isso ocorre, o poder político abre o pressuposto da desproteção,
possibilitando ele a instrumentalização da violência anônima sobre a vida.
Quando Pórcio Festo, procurador romano do século I, interpretou a lei
romana antiga, levantou ele uma problemática peculiar dentro dessa
narrativa, a saber: a condição sacra de um homem é um paradoxo
irremediável. Não sendo possível consagrá-lo aos deuses, deve-se
abandoná-lo ao acaso natural. Nesse acaso, onde nem mesmo a política
exibe sua capa formal de proteção, apenas a força e a violência preexistem.
Na ingerência da natureza e da política, isto é, no limiar da proteção divina
e humana, a vida se mantém no encargo potente de sua erradicação. A
implicação direta disso está anunciada na lei romana, cuja fórmula indica:
“homem sacro é, portanto, aquele que o povo julgou por um delito; e não é
lítico sacrificá-lo, mas quem o mata não será condenado por crime de
homicídio” (FESTO, III, p. 145). No curso de sua retirada, ao encontrar os
“irmãos das almas”, o emigrante Severino transparece essa relação:
A quem estais carregando,
irmãos das almas,
embrulhado nessa rede?
dizei que eu saiba.
A um defunto de nada,
irmão das almas,
que há muitas horas viaja
à sua morada.
E sabeis quem era ele,
irmãos das almas,
sabeis como ele se chama
ou se chamava?
Severino Lavrador,
irmão das almas,
Severino Lavrador,
mas já não lavra.
— E de onde que o estais trazendo,
irmãos das almas,
onde foi que começou
vossa jornada?
— Onde a Caatinga é mais seca,
irmão das almas,
onde uma terra que
não dá nem planta brava.
— E foi morrida essa morte,
irmãos das almas,
essa foi morte morrida
ou foi matada?
— Até que não foi morrida,
irmão das almas,
esta foi morte matada,
numa emboscada.
— E o que guardava a emboscada,
irmão das almas
e com que foi que o mataram,
com faca ou bala?
— Este foi morto de bala,
irmão das almas,
mas garantido é de bala,
mais longe vara.
— E quem foi que o emboscou,
irmãos das almas,
quem contra ele soltou
essa ave-bala?
— Ali é difícil dizer,
irmão das almas,
sempre há uma bala voando
desocupada.
— E o que havia ele feito
irmãos das almas,
e o que havia ele feito
contra a tal pássara?
— Ter um hectare de terra,
irmão das almas,
de pedra e areia lavada
que cultivava.
— Mas que roças que ele tinha,
irmãos das almas
que podia ele plantar
na pedra avara?
— Nos magros lábios de areia,
irmão das almas,
os intervalos das pedras,
plantava palha.
— E era grande sua lavoura,
irmãos das almas,
lavoura de muitas covas,
tão cobiçada?
— Tinha somente dez quadras,
irmão das almas,
todas nos ombros da serra,
nenhuma várzea.
— Mas então por que o mataram,
irmãos das almas,
mas então por que o mataram
com espingarda?
— Queria mais espalhar-se,
irmão das almas,
queria voar mais livre
essa ave-bala.
— E agora o que passará,
irmãos das almas,
o que é que acontecerá
contra a espingarda?
— Mais campo tem para soltar,
irmão das almas,
tem mais onde fazer voar
as filhas-bala (...)
(MELO NETO, 2007, p. 93-96).

Retirando-se com e pela morte para seguir o desague do Rio


Capibaribe até a grande Recife, o trágico encontro de Severino com os
“irmãos das almas” o faz colocar em questão o contraste de uma morte viva
e de uma vida morta. No sertão, a morte e a vida se confundem entre os
emigrantes: nunca se sabe se no horizonte está uma miragem de um defunto
vivo ou de um sobrevivente morto. Em todo caso, entre as duas esferas está
um único pano de fundo, a saber, a banalização da exceção a partir da
violência naturalizada e instrumentalizada pelas diversas formas da
matabilidade. Sobre o corpo sertanejo, cada ave-bala é solta para dilacerar a
vida e para normalizar a morte em um cenário cuja norma é a exceção.
Ocorre que morrer no sertão, seja pela fome ou pela doença ou pelas vias
das ave-balas, é condição inimputável e indistinta da geografia árida. Mata-
se e morre sertanejo como se mata e morre novilhas secas, descarnadas,
ossudas. No parâmetro da normalidade, é tudo questão de estatística
demográfica e, no parâmetro da exceção, é condição banal do anonimato de
quantas, de onde e de como morrem as vidas severinas. Não há desvios em
nada disso! Exclamam dezenas de pessoas; morrer é parte do processo vital,
seja ele sertanejo ou bovino.
Se essa exceção é própria da natureza política, de maneira a ensinar
que a tradição dos oprimidos sertanejos é a regra (BENJAMIN, 1974, p.
697), não há como escapar do vácuo paradoxal que conduz a vida para a
morte e a morte para a vida. Ora, mas se essa exceção é banal, de modo a
revelar que cada severino tem na vida a marca ordinária do viver e, na
morte, a corrente retiragem pelo Capibaribe afora, seu ponto oculto está na
anomia encortinada nas vias das práticas gerenciais sobre a vida humana.
Formalmente protegida por garantias mínimas de direito, a vida severina é
esquecida no plano do ocultamento e ocultada no plano do esquecimento
como aquela vida que, em função do acaso de suas condições, está
condenada a sobreviver como símbolo da aridez do sertão (RUIZ, 2017). A
lei que protege a vida severina aplica-se desaplicando-se de sua operação.
Isso porque a norma jurídica dos homens Severinos tem como pressuposto
formal a exceção. Onde há apenas o escopo formal para os direitos, mas não
existe a garantia plena deles e de suas reinvindicações, todo poder, força e
violência efetivam-se nos poros da anomia. No limiar anômico do direito,
onde nada pode constituir-se efetivamente enquanto garantia de proteção da
vida humana, encontra-se o invólucro agudo do poder e da violência
dispostos a capturar a vida e a instrumentalizá-la sob diversos modos.
Pode-se afirmar, então, que a vida severina vive formalmente no
direito, mas sobrevive fora dele. Esse mesmo princípio enuncia a
ambivalência de um povo formal afigurado populacionalmente na
informalidade. Protocolados no corpo jurídico como sujeitos soberanos de
direito, são, no contrapasso disso, objetos populacionais olvidados nas
práticas da governamentalização (FOUCAULT, 2004, p. 111), na qual para
seu efetivo funcionamento fomenta uma espécie de poder que não faz nem
viver nem morrer, mas faz sobreviver. A vida severina é levada a sobreviver
e, implicitamente, conduzida ao morrer. Ela é paradoxalmente indigna da
própria vida, e de tão indigna está na tensão do poder e da violência como
um insumo fabricável, moldável, comensurável de recursos poucos e de
proteções mínimas. A governamentalização da vida sertaneja é tomada de
modo agudo quando essa sobrevida pode ser capturada na anomia
(AGAMBEN, 2003, p. 71). Onde há apenas o vulto das leis, há, por
consequência, a decisão e a administração do patamar do sobrevivente.
Decidem nessas zonas anômicas os velhos senhores escravocratas, os
coronéis, caudilhos e caciques políticos da República Velha (1889-1930) e
os latifundiários empreendedores da indústria do sertão. Quando não eles, é
a própria natureza, do acaso ao acidente, da fome a sede, da dor ao temor,
da solidão à escuridão, que promove sua força sobre a vida do sertanejo.
Essa governamentalização da sobrevida percorre todo o sopro vital e,
mesmo quando chega na morte, insiste por sua extensão. Isso porque não se
pode entregar a si, pois até mesmo o caminho da morte pode ser tão fajuto
quanto aquele que se vivia na aparência da sobrevida. Ao acompanhar a
lamúria de despedida de um defunto, o retirante Severino observa atento a
paródia dos cantadores:
- Finado Severino,
Quando passares em Jordão
e os demônios te atalharem
perguntando o que levas...
- Dize que levas cera,
Capuz e cordão,
Mais a Virgem da Conceição.
- Finado Severino,
etc...
- Dize que levas somente
coisas de não:
Fome, sede, privação (...)
(MELO NETO, 2007, p. 99).

Mesmo na morte, para não ser arrebatado pelas posses, o emigrante


cadáver precisa dizer que leva consigo coisas do não. Fome, sede e privação
acompanham a memória trágica daquele que partiu e daquilo que, na vida,
está naturalizado na condição acidental. A acidental condição da privação é
a marca da natural forma precária da existência severina, que, mesmo após
cumprida, carrega impresso em si a banalidade da precariedade enquanto
pré-requisito para habitar o mundo dos mortos. É sobremodo por isso que
exclama o retirante Severino:
- Desde que estou retirando
Só a morte vejo ativa,
Só a morte deparei
E às vezes até festiva;
Só morte tem encontrado
quem pensava encontrar vida,
E o pouco que não foi morte
Foi de vida severina
Vivida que defendida,
E é ainda mais severina
Para o homem que retira).
(MELO NETO, 2007, p. 100).

Ora, a intersecção da morte com a vida severina não deixa de


grifar o preâmbulo dos caminhos sertanejos. Entre esses, é sempre a morte a
condutora da extensão da vida e sempre ela a responsável por mostrar o
parâmetro do viver. Como diz a senhora escorada na janela para Severino,
Como aqui a morte é tanto,
só é possível trabalhar
nessas profissões
que fazem da morte
ofício ou bazar.
-Só os roçados da morte
Compensam aqui cultivar,
E cultivá-lo é fácil:
Simples questão de plantar;
Não se precisa de limpa,
De adubar nem de regar;
As estiagens e as pragas
Fazem-nos mais prosperar;
E dão lucro imediato;
Nem é preciso esperar
Pela colheita: recebe-se.
(MELO NETO, 2007, p. 106)

No sertão, a colheita da morte é imediata. Retirar-se pelos campos


secos é sempre uma tentativa de contrapor-se ao domínio dela. Sem poder
ficar, mas nunca podendo ir, as vidas severinas são sempre retirantes.
Retiram-se da natureza, mas também são retiradas da política; vagam,
campeiam para todos os lados em busca de manter sua sobrevida. Quando
cansam, na matéria, insistem em resistir. Mesmo sendo elas mortas
viventes, ou melhor, vidas que se plenificam pela expiação constante da
morte, debatem-se contra sua entrega. Preferem elas ser latifundiárias
viventes de poucas colheitas do que lavrar nos jazigos secos de terras
rachadas. Viver a sobrevida severina é resistir ao campo da impossibilidade,
valendo-se de que, um dia, o sertão pode virar mar.
Enquanto o mar não adoça a esperança sertaneja ou quiçá salga de
possibilidades a vida, a retiragem é uma das poucas condições do
sobreviver severino. O simplório homem Severino, aquele da Serra da
Costela, bem compreendeu isso ao retirar pelos limbos secos do Rio
Capibaribe. Encontrando só a morte ou, quando pouco, apenas vida
severina, a jornada que nunca se finda vai revelando as capas invisíveis que
encobrem a realidade nordestina. Cada segredo árido e cada dimensão
pobre da vida humana vai sendo revelada na normalidade trágica da poesia.
Seu ponto crítico, porém, é tocado, pouco a pouco, quando o enredo
literário faz da narrativa o anúncio e a denúncia da exposição da vida nua
severina como vida normalizada no abandono. Quando isso amplia o
debate, os passos do sertanejo vão constituindo jornadas intermináveis,
cansativas, mortíferas. A vida abandonada mantém seu tráfego retirante, ao
ponto de fazer-nos uma meditação: será que Severino não se cansou disso
tudo? Será que não se deu ele por perceber que o defunto é ele próprio? As
respostas a essas questões, colocamos nossa hipótese, talvez venham junto
das intenções de seu poeta. É certo que Severino sempre esteve cansado.
Mas é exatamente a dúvida sobre aquilo que sente que não pode ser notada
por aquele que, na verdade, já está morto. Mesmo tendo carregado seu
próprio corpo, velado e conduzido ele até a sua cova seca, o ocultamento de
si mesmo lhe causa indiferença. São tantos Severinos, “iguais em tudo na
sina”, que não se sabe quem é quem, ao nascer e ao morrer. Severino,
aquele que narra sua própria estória, reflete a diluição de si na totalidade da
comunidade das vidas severinas. Se é indiferente o defunto é porque se trata
de vida severina, aquela vida habitada por cada homem Severino. Mas
como poderia esquecer de si mesmo? Ou melhor, não reconhecer seu
cadáver? Na geografia do sertão, cada dispositivo de poder atua sutilmente:
primeiro, agridem a forma-de-vida e a tornam forma de sobrevida. A vida
que se constitui vivendo passa a ser constituída por um modelo apriorístico,
árido, seco; segundo, investem sobre a planificação da paisagem e da vida.
O simbolismo assume as encruzilhadas de uma cultura que, ao mesmo
tempo, aprecia a seca e nela não distingue vida humana e formação
territorial; terceiro, constituem uma identidade trágica e heroica, banalizada
e ordinária. O dueto da vida nordestina é marcado pela condição concebida
como “normal” do trágico (seca, fome, miséria) e pela força heroica da
sobrevida que luta e resiste; quarto, normalizam a exceção e a vinculam a
um a priori histórico, assinado e secularizado nos costumes; quinto,
produzem o esquecimento, o ocultamento, o não reconhecimento e,
verdadeiramente, a dessubjetivação. A referência à vida nordestina como
vida severina impinge a solvência da subjetividade da vida que se constitui
vivendo numa totalidade dessubjetivada codinome severina.
A morte aproxima-se da vida dos Severinos na condição severina de
ser vida nua. A inversão morte/vida, meticulosamente trabalhada nas
sutilezas dos detalhes por João Cabral, faz o retrato da finitude da vida
defronte ao emprego da morte. O destino inverte-se para mostrar que o
influxo sertanejo trilha pela morte os fios do viver. A primeira, mas também
a última, de todas as jornadas é a batalha sobre as próprias pernas contra a
morte. Morre-se muito a cada dia para se viver pouco a cada momento. Se
essa batalha vale a pena, é o próprio Severino que indaga ao mestre carpina
defronte ao cais do Rio em Recife:
- Seu José, mestre carpina,
que habita este lamaçal,
sabe me dizer se o rio
a esta altura dá vau?
Sabe me dizer se é funda
esta água grossa e carnal?
- Severino, retirante,
jamais o cruzei a nado;
quando a maré está cheia
vejo passar muitos barcos,
barcaças, alvarengas,
muitas de grande calado.
- Seu José, mestre carpina
para cobrir corpo de homem
não é preciso muita água;
basta que chegue ao abdome,
basta que tenha fundura,
igual à de sua fome.
- Severino, retirante,
pois não sei o que lhe conte;
sempre que cruzo este rio
costumo tomar a ponte;
quanto ao vazio do estômago,
se cruza quando se come.
- Seu José, mestre carpina,
e quando ponte não há?
quando os vazios da fome
não se tem como cruzar?
quando esses rios sem água
são grandes braços de mar?
- Severino, retirante,
o meu amigo é bem moço;
sei que a miséria é mar largo,
não é como qualquer poço;
mas sei que para cruzá-la
vale bem qualquer esforço.
- Seu José, mestre carpina,
E quando é fundo o perau?
quando a força que morreu
nem tem onde se enterrar,
por que ao puxão das águas
não é melhor se entregar?
- Severino, retirante,
o mar de nossa conversa
precisa ser combatido,
sempre, de qualquer maneira,
porque senão ele alaga
e devasta a terra inteira.
- Seu José, mestre carpina,
e em que nos faz diferença
que como frieira se alastre,
ou como rio na cheia,
se acabamos naufragados
num braço do mar miséria?
- Severino, retirante,
Muita diferença faz
Entre lutar com as mãos
e abandoná-las para trás,
porque ao menos esse mar
não pode adiantar-se mais.
- Seu José, mestre carpina,
e que diferença faz
que esse oceano vazio
cresça ou não seus cabedais,
se nenhuma ponte mesmo
é de vencê-lo capaz?
(...)
- Seu José, mestre carpina,
que diferença faria
se em vez de continuar
tomasse a melhor saída:
a de saltar, numa noite,
fora da ponte e da vida?
(...)
— Compadre José, compadre,
que na relva estais deitado:
conversais e não sabeis
que vosso filho é chegado?
Estais aí conversando
em vossa prosa entretida:
não sabeis que vosso filho
saltou para dentro da vida?
Saltou para dento da vida
ao dar o primeiro grito;
e estais aí conversando;
pois sabeis que ele é nascido
(...)
- Severino, retirante,
Deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta,
se quer mesmo que lhe diga;
é difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é
esta que vê, severina;
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva.
E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina.
(MELO NETO, 2007, p. 120-133)

A morte que conduz Severino pelos municípios banhados pelo rio


Capibaribe narra em potência o auto novelístico do acontecimento e da
mudança. Parece ser esse o sentido condicionado pela poesia cabralina ao
ensejar, como parte do título, “Auto de natal pernambucano”. Para quem
acompanha a trágica estória, pode perceber que não há referências ao natal,
ao evento natalino. Mas por que, então, encenar um título de algo que
sequer é referido no corpo do trabalho? O fio do texto de Cabral é tão sutil
que, muitas vezes, não se percebe a diagramação de seu messianismo
presente. Narrando a partir de cruzamentos teóricos que poderiam ser
facilmente escritos por um Walter Benjamin sertanejo de posse de um anjo
da história cangaceiro e sanfoneiro, os eventos que conduzem a morte
infiltram, na história, um conjunto de catástrofes que somente podem ser
neutralizadas com a destituição total da violência contra vida e o
reconhecimento desta enquanto potência ética. Aniquilar a violência, depor
o poderio sobre a nudez da vida humana, implica a imersão do porvir de
algo efetivamente colocado em trânsito. A analogia messiânica, significa,
assim, a interrupção da morte banal para inaugurar a esperança da vida. A
vida que interrompe a morte no momento natalino reformula o fluxo das
águas do rio Capibaribe como uma ponte de renovação, de redenção. Essa
ponte permite, de certo modo, enveredar-se pelos opostos, numa dimensão
transeunte que parte da violência de lacerar a vida para aquela outra que a
coloca em gozo.

O deságue do rio (da vida)


Por meio da diáspora trágica, a estética do poema cabralino nos
direciona à dimensão crítica da vida (nordestina) e de sua condição árida. A
vida severina é uma experiência local alastrada como um paradigma
(bio)político moderno. Nesse contexto, ela representa a força da vida nua na
vulgaridade de uma geografia antropológico-natural colonizada e
preservada enquanto simbolismo burlesco. Vivemos essa prerrogativa na
condição biopolítica em tempos de exceção, donde o direito sempre está na
penumbra paradoxal de capturar o vivente na função de protegê-lo ou de
ocultá-lo. A peça-teatro de João Cabral põe em marcha um olhar indagador
sobre essa posição e sobre a opressão histórica na vida de cada sertanejo.
Revelando um avesso estético narrado pelas trilhas dos homens esquecidos,
a história de Morte e vida severina denuncia a catástrofe a partir de gritos
proféticos. São esses gritos que perseveram na busca da redenção que se faz
presente no messianismo da poesia. A vida que atravessa pela morte os
domínios do poder e da violência clama pelo domínio da subjetividade
humana uma condição ética redentora do passado e avassaladora do
presente. Para não esquecer dos mortos severinos, é preciso da memória em
sua plena condição de testemunho; para não esquecer das sobrevidas, é
preciso da resistência revolucionária em sua condição crítica de denunciar e
de destruir todo e qualquer sistema injusto de poder numa conversão
vivente de uma ética severina.
Mesmo tendo a história brasileira seu enraizamento por e na exceção, a
potência da vida (severina) põe em marcha a luta redentora da ética sobre o
destino trágico da humanidade. Onde operam os dispositivos biopolíticos de
captura de toda e qualquer forma vital é válida a aposta das linhas de fuga,
linhas essas responsáveis por creditar a esperança do viver para além da
atmosfera cinzenta do poder governamental e soberano. É com esse marco
que João Cabral faz do Rio Capibaribe um conduíte similar a vida: mesmo
com o leito seco e as margens assoreadas, o Rio persiste em seu fluxo até o
desague de onde pode ele misturar-se com outra vastidão. Da morte a vida
ou da morte pela vida, toda esperança se renova onde há a potência da vida
em sua dimensão ética de ser forma-de-vida.

Referências
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: il potere sovrano e la nuda vita. Torino: Piccola Biblioteca Einaudi, 1995.

AGAMBEN, Giorgio. Stato di eccezione. Torino: Bollati Boringhieri, 2003.

AGAMBEN, Giorgio. L’aperto: l’uomo e l’animale. Torino: Bollati Boringhieri, 2002.

BENJAMIN, Walter. Zur Kritik der Gewalt. In: Gesammelte Schriften. Vol. II-1. Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1974.

CASTRO, Josué de. Geografia da fome (o dilema brasileiro: pão ou aço).10 ed. São Paulo: Brasiliense, 1967.

FESTO. Sacer mons. In: Saggi di dissertazioni accademiche pubblicamente lette nella nobile Accademia Etrusca dell› antichissima città di Cortona. Volume 1. Cover.

FOUCAULT, Michel. Sécurité, territoire, population. Paris: Gallimard, 2004.

MELO NETO, João Cabral. Morte e vida severina: auto de natal pernambucano. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2007.
RUIZ, Castor Mari Martín Bartolomé. Os paradoxos da sacralidade da vida humana: questões ético-políticas do pensamento de W. Benjamin e G. Agamben. In: Revista Filosofia
Aurora, Curitiba, v. 25, n. 37, p. 57-77, jul./dez. 2013.

SIMPÓSIO FILOSOFIA E LITERATURA, 2017, São Leopoldo. Imaginando a vida examinada. Conferência de Castor Mari Martín Bartolomé Ruiz, 2017.
A gira macumbística da filosofia brasileira

148
Rafael Haddock-Lobo

Eram duas ventarolas, duas ventarolas que ventavam sobre o mar


Uma era Iansã, Oh Eparrei!, a outra era Iemanjá, Odô Yá!

Oferendas
O ponto cruzado de umbanda que trago para abrir os trabalhos me
obriga a ofertar duas rosas, uma para cada Iabá, Iansã e Iemanjá. Mas
queria que essas duas rosas que oferto também ecoassem o vermelho e
preto das rosas antes lançadas às ruas: a rosa vermelha trazida por Socorro,
ofertada aos que apenas possuem suas proles e cuja mãe polaca tão bem os
149
defendeu ; e as rosas negras, trazidas pela mão do Axogun de Odé, que
150
persevera na tentativa de fazer justiça às mães pretas . Essas rosas, a
vermelha e as negras, precisam sempre reverberar em nossas falas, pois,
marcadas pelas ruas, elas nos lembram da violência na diferença das raças e
das classes, que as pombas e as giras, com as asas e as saias rodadas, tanto
ecoam.
Minhas duas rosas, contudo, são uma para a promessa e outra
para o perjúrio: a rosa branca que trago, ofereço à Dirce, mãe-d’água que
conhece tão bem os seres marinhos, os de escamas, os de pele, os de
151
carapaça e os de tentáculos , lula e po(l)vo sempre juntos, unidos nas águas
do saber e do político, e a quem devo, e ainda ofertarei, um texto sobre o
povo das águas. Mas trago também uma outra rosa, cor-de-rosa esta, que
152
ofereço à Georgia , em nome das tempestades, dos raios e das ventanias
que provocam as mudanças, os movimentos e as reviravoltas nos
pensamentos.
Meu pai veio de Aruanda e a nossa mãe é Iansã
Ô gira, deixa a gira girar / Ô gira, deixa a gira girar

E, ofertando essa rosa rosa, que também deve ecoar os Guimarães, os


153
Noéis e as Noelis , as Egipcíacas, as caveiras e aquelas, de Cartola, que
não falam, mas que sempre me assombram no exalar de seus perfumes,
começo meu texto-oferenda, que pretende apenas entrar na gira que já corre
por tantos terreiros, dentro e fora da academia.
Filosofia Popular Brasileira e a Gira Macumbística
Se uma filosofia brasileira digna desse nome, à altura do que seria,
entre muitas aspas, tal brasilidade, precisa ser substantiva, e não meramente
154
adjetiva, como nos atentou Gerd Bornheim , se tal filosofia brasileira tem
ganhado a alcunha, nos meus termos, de uma filosofia popular brasileira, é
porque, para ser de fato brasileira, precisa se debruçar sobre nossa cultura
popular. No entanto, tal debruçar sobre a cultura popular brasileira só pode
acontecer se o filósofo, abandonando seus escritórios, suas bibliotecas, e
mesmo suas salas de aula, pegue seu caderninho de anotações, como
fizeram tão bem Walter Benjamin e Guimarães Rosa, e saia dos muros das
universidades e se dirija às ruas, aberto aos encontros que as encruzilhadas
propiciam.
Tal gesto de saída e escuta às ruas, que meu amigo Marcelo
Rangel tão bem localiza e chama de giro ético-político da filosofia
contemporânea, mais precisamente da filosofia ocidental contemporânea,
quando ocorre em nossas terras ao Sul do mundo, produtos de colonização,
estupros, sequestros, assassinatos e escravidão, certamente tal giro não pode
manter esse mesmo nome. Como aqui o buraco é mais embaixo, é preciso
promover o giro a partir daquilo que é, ao mesmo tempo, mais próprio,
mais comum, mais banal, mas também mais escondido, mais temido, mas
causador de vergonha, que, aqui, na esteira dos trabalhos de Luiz Rufino e
Luiz Antonio Simas, chamo de macumba.
Macumba como o nome na esfera da cultura que se dá às práticas
religiosas afro-ameríndias, como os candomblés, as umbandas, os batuques,
os catimbós, as juremas, os tambores de minas, mas também às capoeiras,
aos sambas de roda, aos fundos de quintal, aos jongos e a todas as rodas que
promovem outras epistemologias, populares e que são, por isso mesmo,
revolucionárias. Cito Simas e Rufino:
A poética, aqui lançada, é cuspida feito marafo na encruza, a proposição de um giro epistemológico, a partir da ciência encantada das macumbas, é
também nossa resposta responsável no combate a todas as formas de injustiça cometidas ao longo da história contra negros e indígenas. A
amarração dessa obra como um verso que alinhava a macumba como complexo de saberes cosmopolita e descolonial é primeiramente uma ação
155
afirmativa antirracista.

Entretanto, um giro macumbístico como esse que ocorreria ao Sul, que


é certamente tão ético e político como o ocidental ou mais, porque é
também poético e gnosiológico, não pode tão-somente tomar a forma de um
giro, no sentido de reviravolta, virada ou tantos outros nomes que se dá a
um novo rumo de certo pensamento. Como me lembrou Rodrigo do Amaral
Ferreira, que com seu pano branco nos faz ver tudo de outro modo, na
cegueira tateante, se falo de um giro macumbístico, o que preciso marcar é
que tal giro se transforma numa gira macumbística.
A gira, o feminino do giro, sua feição mulher que, não apenas gira
como o giro no sentido de mudar, desviar, promover deslocamentos, mas
que também gira como a festa, a roda, o encontro que abre os caminhos e
que é marcado pelo termo quimbundo njira. Falo, portanto, de uma gira
macumbística da filosofia brasileira, gira esta através da qual a filosofia
brasileira, antes apenas adjetivada como uma produção do território
nacional, pode vir a encarnar a brasilidade das ruas, tornar-se substantivo
produzido por corpos, músicas, sonoridades, cores, espíritos, cheiros e
tantas outras coisas que jamais compreenderá nossa vã filosofia (ocidental).
E este “jamais compreender” é, aqui, imperativo, pois a ideia de
compreensão, justamente, atividade unicamente mental, é o que impede a
própria relação com o conhecimento macumbeiro, que precisa ser sentido
pelo corpo como um todo, experimentado por sentidos e razões múltiplas
para que, ao invés de ser compreendido, prendido, apreendido, aprendido na
forma de sujeito e objeto, ele seja incorporado, tateado, degustado,
cheirado, ouvido, cantado. Só assim ele poderá baixar, ainda que sempre
provisória e precariamente, nos assombrando e sendo, ele, tal
conhecimento, muito mais o “sujeito” desta relação.
Ao contrário de Hegel, que afirma que o Espírito se fenomenaliza
através de diversas e subsequentes etapas, arquitetadas pela Razão, afirmo
que os espíritos baixam, através de diferentes giras, sem ordem nem razão
prévias, guiadas apenas pelo imperativo do “deixa vir quem têm de vir”,
como dizia Mãe Concheta, minha falecida mãe de santo, ou, em termos
filosóficos, segundo à lógica do acontecimento. É por essa razão que uma
156
gira macumbística só se dá através de um “empirismo radical” , no qual é
tamanha a hipérbole da noção de experiência, que os próprios lugares de
sujeito e objeto, de consciência e mundo, ou qualquer outro dualismo
epistemológico se encruzam de tal maneira que não podemos mais definir
precisamente os limites entre o dentro e o fora, apenas marcar o encontro no
coração da encruzilhada.
Nesse sentido, tomando aqui as mandingas de Simas e Rufino como
guias, não no sentido apenas de guiar, mas de abrir caminho, abrir a njira,
resumo alguns traços ou pontos riscados dos principais procedimentos
macumbológicos para a gira girar.
Epistemologia e metodologia macumbeiras
Fogo no mato – a ciência encantada das macumbas, de Simas e
Rufino, lançado em 2018, marca a tentativa de propor novos conceitos e
novas epistemes a partir dos saberes populares que podem ser agrupados em
torno do nome “macumba”. Este livro talvez seja a primeira obra cujo
esforço é empreender uma Filosofia Popular Brasileira, um saber
conceitualmente rigoroso vindo das ruas, nascido nas ruas e que se dirige às
ruas. Este saber macumbeiro, nos termos dos autores, tem em seu “caráter
brincante e político” uma atitude que “subverte sentidos preconceituosos
(...) e admite as impurezas, contradições e rasuras como fundantes de uma
maneira encantada de se encarar e ler o mundo no alargamento das
157
gramáticas” . E define:
Macumba seria, então, a terra dos poetas do feitiço; os encantadores de corpos e palavras que podem fustigar e atazanar a razão intransigente e
158
propor maneiras plurais de reexistência pela radicalidade do encanto.

Diante do desencantamento do mundo, denunciado por Max


Weber, me parece que as tarefas dos dois hemisférios são um tanto distintas.
Se no hemisfério norte a racionalidade moderna passou como rolo
compressor por sobre os saberes populares, atingindo seu ápice no
hegelianismo, como tão bem denunciaram Nietzsche e Heidegger, o rolo
compressor colonial, apesar de todo epistemicídio e de todos os assassinatos
de pessoas e saberes, não conseguiu desencantar nosso território como um
todo. Por aqui, muitas ruínas, cacos, restos e rastros encantados
permaneceram nos saberes dos habitantes originários e nos daqueles
sequestrados e trazidos nos navios negreiros. Se para Derrida, não lhe
restou nada além da cultura e da língua francesa – e daí sua tarefa de olhar
para a Europa de modo a desconstruir esta herança –, para nós há mais
elementos à nossa disposição para empreender, num mesmo gesto, a
desconstrução do europeísmo e a descolonização dos saberes massacrados
pelo racismo epistêmico.
Se o projeto colonial construiu uma igreja para cada população dizimada, nós encantamos o chão dando de comer a ele, louvamos as matas, rios e
159
mares, invocamos nossos antepassados para a lida cotidiana e nos encantamos para dobrar a morte.

Afirmado que macumba é a “ciência encantada” que promove a


160
“amarração dos múltiplos saberes” , Simas e Rufino apresentam a
perspectiva do encantamento como “elemento e prática indispensável nas
produções de conhecimento”, que, por sua epistemologia pluriversal,
desvia-se e põe em xeque as estruturas coloniais do saber desencantado.
Manifestando os saberes subalternizados pelo projeto colonial, encruzando
e amarrando outros saberes, a macumba surge como uma “potência híbrida
que escorre para um não lugar, transita como um ‘corpo estranho’ no
processo civilizatório, não se ajustando à política colonial e ao mesmo
161
tempo o reinventando” .
A perspectiva do cruzo, então, passa a ser fundamental para uma
filosofia das macumbas brasileiras, tornando-a, ao mesmo tempo, uma
162
produção conceitual de alta potência e também uma prática do encanto .
Cruzar ou encruzar, então, significa assumir uma perspectividade afro-
ameríndio-brasileira que produz conceitos a partir destes saberes
macumbeiros ao mesmo tempo em que, nessa perspectiva, o filósofo se
torna, ele também, um Kumba, que não apenas é o feiticeiro, mas também o
163
poeta e o “encantador de palavras” . Se no dialeto quicongo, dos bantos, o
prefixo ma forma o plural, nesse sentido, um encontro de filósofos
populares brasileiros, como este, é, necessariamente, uma macumba, uma
reunião de encantadores, como nos ensinam Rufino e Simas.
Contudo, ressalto, me juntando aos dois amigos kumbas, que não
se trata aqui de um virar as costas aos saberes ocidentais, já que eles
também nos constituem, mas sim de promover o cruzamento e o encanto
também desses saberes que necessitam de cores. Se as macumbas
brasileiras são grandes complexos de epistemologias múltiplas, “a relação
164
com diferentes saberes potencializaria a prática do cruzo” , e, nesse
sentido, sob a lente do amiudamento, filósofos ocidentais encontram-se com
filósofos macumbeiros, encantando-se e promovendo amarrações e
encantamentos.

“Encruza, encruza, encruza terreiro, encruza”


Em seu livro de 2013, Pedrinhas miudinhas, Luiz Simas já anunciava
essa necessidade do amiudamento:
Como diz um velho ponto de encantaria, para chamar os boiadeiros que moram nos ventos, ‘uma é maior, outra é menor, a miudinha é que nos
alumeia / pedrinha de Aruanda ê’. Eu sou maravilhado pelas pedrinhas miudinhas, nelas me vejo e delas faço meu pertencimento. (...) O resto são
165
as coisas e pessoas poderosas – inimigas dos rios e das ruas – e suas irrelevâncias.

O amiudamento do pensamento ocidental pode promover vários


encantos, como o encontro do Caboclo Pedra Preta com Walter Benjamin,
como cruzou Simas, ou o encontro de Heidegger com Oxóssi e todo o povo
166
das matas, como cruzei recentemente , ou tantos outros cruzos ainda por
fazer, como Derrida com Baba Egun, Bachofen com Exú caveira, o flanêur
com Zé Pilintra, numa gira sem fim. “É a miudeza que vela e desvela a
aldeia, as suas ruas e as nossas gentes”, escreve Simas em seu mais recente
167
livro, O corpo encantado das ruas , mostrando que se os segredos dos
grandes lajedos está justamente nesse olhar para o pequenino e que as
grandes filosofias soçobram diante desse olhar, em sua grandeza
desencantadora, e podem abrir espaço para experiências miúdas de
pensamento, reveladoras portanto e absolutamente ameaçadoras ao projeto
colonial. “Apequenar-se na gramática macumbeira tem efeito de
mandinga”, dizem Simas e Rufino no recente Flecha no tempo, “saber que
ficou gravado nos elos da pertença entre o velho e o novo e podem nos
168
ensinar a despachar o carrego e fechar o corpo para nossas batalhas” .
Luiz Rufino, por sua vez, em Pedagogia das encruzilhadas, livro
lançado este ano, nos apresenta aquilo que podemos pensar como o gesto
fundamental para abrir a gira e firmar o ponto nesse território que precisa
ser terreirizado: o ebó epistemológico que precisamos fazer para despachar
169
o carrego colonial , atacando o cerne da mitologia branca, através de seu
cruzo com os saberes macumbeiros. A noção de “carrego colonial” é
cuidadosamente apresentada no recente livro de Simas e Rufino, no qual às
barbáries produzidas pelo colonialismo nos corpos de certas pessoas são
somadas as inúmeras injustiças epistêmicas, as hierarquizações dos saberes,
o racismo gnosiológico, as catequeses e as conversões que operam no
170
sentido de produzir esquecimento e apagamento das ancestralidades . “O
carrego colonial”, dizem Rufino e Simas, “pode ser lido na interlocução
com o que Frantz Fanon chamou de colonialismo epistemológico ou
complexo do colonizado, a noção em que a vítima interioriza em si a
171
violência e os pressupostos ideológicos do colonizador” , e é nesse sentido
que a filosofia precisar entrar na gira macumbística, pois “a macumba
como complexo de saber e política ancestral se ergue, confrontando o
172
caráter indefensável de um projeto civilizatório decadente e imoral .
Para despachar esse carrego colonial, Rufino propõe a prática de
ebós epistemológicos, procedimento para encantar a razão moderna, para
que os conhecimentos se cruzem, sejam engolidos e depois regurgitados,
cuspidos como a baforada de cachaça na encruza. “Os efeitos dos ebós
epistemológicos”, diz Rufino, “tendem a favorecer as condições de
ampliação das possibilidades em relação aos conhecimentos que são
173
cruzados”, por abrirem caminhos, firmarem giras e riscarem pontos .
A prática do ebó epistemológico resulta no alargamento da estrita
noção ocidental de conhecimento, levando-o às encruzilhadas e obrigando-
o a se cruzar com tudo aquilo de que ele sempre quis se afastar, as periferias
dos saberes, os saberes impuros, contaminados, produzindo, nesse cruzo,
uma tensão que abre um novo campo epistemológico, muito mais acolhedor
e hospitaleiro a tudo aquilo que nunca foi considerado saber. Tal prática,
comum no campo dos saberes ditos populares, marcam-se, por exemplo, na
festa junina, quando os santos do catolicismo popular português Antônio,
João e Pedro, são festejados com comidas afro-ameríndias, como milho e
canjica, sob a luz da fogueira de Xangô e de Airá. Podemos dizer o mesmo
do congá de Umbanda, onde os santos católicos são obrigados a cruzarem-
se com pretos, índios, ciganos e boiadeiros e a conviverem em um mesmo
altar. Tudo isso é fruto de operações prática que, como ebós, as ruas
realizam e com os quais, nós, da filosofia, temos de aprender.
Cada livro de filosofia, nessa gira macumbística, cada texto, cada fala
pública, se torna um ebó, um feitiço lançado contra a colonialidade
soberana da razão e em nome das múltiplas diferenças por ela
subalternizadas. “Se a política colonial produziu uma tragédia construindo
ao longo de séculos desvios ontológicos, subalternizações, epistemicídios,
hierarquização de saberes, invisibilidade / descredibilidade,
monoculturalização e monorracionalismo”, diz Rufino, “sugiro, a partir da
emergência de um projeto transgressivo e resiliente, praticar ebós nas raízes
174
do edifício colonial” .
Mas a questão que precisamos colocar agora diz respeito à
metodologia da qual se necessita a fim de se empreender o cruzo e praticar
o ebó. A questão, então, que agora coloco é a seguinte: como estar aberto a
esses outros saberes, se somos forjados pelo elitismo acadêmico e cunhados
pelo carrego colonial? Creio ter encontrado a resposta no capítulo intitulado
“O pesquisador cambono”, de Fogo no mato: “É nesse sentido”, respondem
os dois, “que a partir dos saberes assentados em uma epistemologia das
macumbas destacamos o ato de se fazer pesquisa como a prática de quem
175
cambona” . Resgatando a máxima dos terreiros de umbanda de que quem
mais aprende é o cambono, Simas e Rufino mostram que, ao contrário da
atitude filosófica tradicional, de quem já pressupõe seu saber e que parte
para o campo do conhecimento já assegurado de suas certezas, o
pesquisador deve sempre assumir que nada sabe, não por sintagma de
ironia, mas porque cada conhecimento que pode adquirir daquele que
observa supõe um recomeço, pois sempre se começa a pensar de modo
macumbístico pela primeira vez.
Como um “fazer aberto” e “inacabado”, a prática da cambonagem
consistiria em uma espécie de suporte, seja ao pai de santo ou às entidades,
sendo o cambono uma espécie de “faz tudo” ou “pau para toda obra” do
terreiro: “Sem delongas, o cambono firma ponto e segura a pemba em um
176
terreiro” , e seu caráter experimental de ser sempre um iniciante, marca o
cambono como aquele que sempre se encontra à disposição de um outro,
aberto ao outro e, com isso, ao novo, ao saber que, portanto, só ele
conhecerá na medida em que ele, cambonando, participa praticamente da
produção destes novos e potentes saberes. Diante da imprevisibilidade,
destituindo-se de tudo que pretenderia saber, o “só sei que nada sei” do
cambono é necessário para que um novo saber se produza, na repetição da
diferença: “Seja qual for a pergunta e seja qual for a sua experiência acerca
do que é questionado é prudente que se negue o que se sabe. Ao negar,
mesmo que provisoriamente, o que se sabe, mantém-se em vigor a condição
177
do cruzo” . Bebendo um gole da cuia de um preto-velho aqui, anotando
uma receita de banho passada por uma cabocla ali, auxiliando a consulta de
um exu acolá ou acendendo os cigarros de um malandro, o cambono
transita entre saberes e práticas, com isso, e só assim, ele aprende a praticar
o cruzo.
O pesquisador cambono, sem nunca afirmar saber, mas versado por
isso nas práticas do cruzo, que são os fundamentos da ciência encantada
das macumbas, apenas ele, é quem realiza o ebó epistemológico para
despachar o carrego colonial, amiudando os grandes pensamentos através
do brilho minúsculo das pedrinhas que marotamente vai juntando em seu
cambonar. Podemos dizer, então, que o cambono, por seu empirismo
macumbeiro, é a própria condição de possibilidade de a gira girar.
Simas e Rufino, portanto, juntos e separados, com suas recentes obras,
178
nos apresentam uma série de “balaios de conceitos” com os quais
precisamos, como cambonos, aprender. Firmando ponto e riscando novos
campos de batalha e de mandinga, a ciência encantada das macumbas
ultrapassa e encruza a epistemologia, mostrando que, no batuque de uma
gira macumbística, a filosofia popular brasileira também é necessariamente
179
ética, política e poética ; que, para além de ritos religiosos, “nossas
macumbas (sambadas, gingadas, funkeadas, carnavalizadas, dribladas na
180
linha de fundo) traçam as tramas do diálogo com os ancestrais” ; e que,
encarnadas e incorporadas nas ruas, estão à disposição do pesquisador
cambono em qualquer terreiro, nos botequins, nas arquibancadas, nos
pagodes, nas festinhas de subúrbio, nos trens, enfim, em qualquer “corpo
encantado” que se encontre nas ruas.
Cantando pra subir
Como antecipei, esse texto nada mais é que um relatório de pesquisa
que eu, cambono, rascunho em meu trabalho de campo, ouvindo e anotando
as vozes de kumbas, tentando aqui, nesse meu não saber, tentar dar a
roupagem político-poética de meu feitiço, já que, como lembra Marcelo
Moraes, Ogum é também um feiticeiro. Quando invoco o termo “gira
macumbística da filosofia brasileira” como parte de meu projeto de firmar
um campo de mandinga e de batalha chamado Filosofia Popular
Brasileira, não quero, de modo algum, me pensar como inaugurador deste
projeto. Ele, aliás, sempre esteve aqui: desde que os habitantes originais
dessa terra encantavam pedras e soltavam suas baforadas de fumaça; desde
que, sequestrados de suas terras, os negros, aqui, quinavam suas ervas;
desde que, fugidas da fome, portuguesas botavam, nessas terras, Santo
Antônio de cabeça pra baixo dentro do copo d’água para arrumar um bom
casamento; desde que ciganas de fé vagueiam por nossas estradas, lendo as
mãos e dizendo toda a verdade para quem vinha caminhando a pé.
Não há originalidade alguma nessas páginas que risquei, apenas
uma tentativa de dar um nome para isso que está há séculos acontecendo e
que o saber filosófico insiste em negar como conhecimento. Simas e
Rufino, nesse meu intuito, me forneceram os elementos de que precisava
para montar esse meu balaio, totalmente arrumado com os conceitos dos
outros, e que ecoam tantos outros balaios já presenteados nas encruzilhadas
de nossas filosofias. Fogo no mato se tornou para mim, junto aos outros
ebós de Simas e Rufino, como a possibilidade de entrar na gira, na gira já
começada e que ecoa lindas oferendas, como as de Mãe Beata de Iemanjá,
Giselle Cossard Omindarewa, Professor Agenor e Mãe Stella de Oxóssi, os
primeiros filósofos macumbeiros.
Mas, nas encruzilhadas destes saberes macumbeiros, vejo-me
também diante de tantos encontros que já tinham sido a mim ofertados e
que, agora, preciso também invocar. Não poderia, de modo algum, deixar
de pensar, como corredores dessa gira Renato Noguera que, sambando, nos
oferece a tentativa de pensar através de personagens melanodérmicos; Uã
Flor do Nascimento, que nos lembra sempre da ancestralidade bantu;
Marcelo Moraes, que encruza Madame Satã com Jean Genet e que busca
sempre apontar aos mestres das periferias; Fábio Borges, que enxerga
Derrida na encruzilhada e que, em sua cruz, abriga Lutero e Exú; e Seu Sete
Encruzilhadas, que, também ele, tem duas cabeças.
Encerrar essa gira com essas invocações é fundamental para sublinhar
que uma njira nunca se corre sozinho e que é necessária uma reunião de
poetas feiticeiros, uma ma kumba pra que a gira gire, pra que o carrego seja
despachado e pra que possamos vir a cruzar outros muitos saberes, ainda à
nossa frente.
Já cantando pra subir, faço não apenas minhas, mas de todos esses
amigos, as palavras de Luiz Rufino que, arriadas, dizem o seguinte:
Assim, o ebó cívico que oferto na esquina da modernidade é feito com os cacos despedaçados ao longo de mais de cinco séculos, com as sobras, os
181
pedaços de corpo e de experiência ancestral que inventaram a vida nas frestas.

Portanto: Terreirizemos os territórios das universidades; saiamos às


ruas com nossos caderninhos, cambonando artistas de ruas, catadoras de
lixo, passistas de escola de samba, mendigos, bêbados, putas, travestis e
malandros, vivos e mortos; arriemos nossos ebós nos departamentos de
filosofia, antros maiores do carrego colonial; risquemos ponto e batalhemos
nos humaitás dos colóquios e congressos acadêmicos; montemos nossos
balaios com panos e conceitos coloridos, com rosas de todas as cores; e, por
fim, cuspamos nosso marafo, por toda encruzilhada de saberes populares
pela qual passarmos, pois, aí sim, mora nossa filosofia.
Encerro com a lembrança de um mestre da gira, Ismael Rangel, que,
saudando Seu Sete Encruzilhadas, diz que, “a sua gira é forte, não tem
caçoada / depois da hora grande vai girar na encruzilhada”, pois eu não
poderia terminar senão saudando o grande filósofo das encruzilhadas, seu
Sete, pois, como diz o ponto:
Sete encruzilhadas tem magia
Sete encruzilhadas tem mironga
ele é o rei da encruzilhada, que ronda
é seu Sete encruzilhadas que gira.
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O MEDO DE AMAR É O MEDO DE SER LIVRE. GUEDES, Beto (compositor). O medo de amar é o medo de ser livre. In: O sal da terra (Best of). EMI Music, 2010. CD. 14
músicas. 47min54s. Disponível em Spotify.

É
O MEDO DE AMAR É O MEDO DE SER LIVRE. REGINA, Elis (intérprete). In: Elis. 2002, CD. 12 músicas. 43min18s. Disponível em Spotify.
AUTORAS E AUTORES
ANA LUIZA GUSSEN
Mestranda no Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFRJ.
CARINA DUARTE BLACUTT
Mestre em Filosofia pela UFRJ.
DIEGO DOS SANTOS REIS
Pós-doutorando na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.
Doutor e Mestre em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em
Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Licenciado em
Filosofia pela mesma instituição. Email: diegoreis.br@gmail.com
DIRCE ELEONORA NIGRO SOLIS
Professora Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
ELISA DE MAGALHÃES
Professora da EBA e do PPGAV da UFRJ
FRANSUELEN GEREMIAS SILVA
Mestranda em Filosofia, na linha filosofia moderna e contemporânea, pela
Universidade Federal de Minas Gerais e mestranda em Direito, na linha
Teoria do Direito e da Justiça, pela Faculdade Mineira de Direito. Bolsista
do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq).
GABRIEL PONCIANO
Doutor em Filosofia pela UFRJ.
GEORGIA AMITRANO
Professora Associada do Instituto de Filosofia da Universidade Federal de
Uberlândia.
GIOVANNI FRES
Professor do Instituto de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em
Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia.
GUILHERME CADAVAL
Doutor em Filosofia pela UFRJ.
LUCIANA PIMENTA
Doutora em Direito, pela PUC Minas; Mestre em Filosofia Social e Política,
pela UFMG; Professora de Filosofia do Direito e Hermenêutica e
Argumentação Jurídica, no curso de Direito da PUC Minas; Coordenadora
do Projeto Direito e Literatura, na PUC Minas e Líder do Grupo de
Pesquisa Direito e Literatura: um olhar para as questões humanas e sociais a
partir da Literatura (dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/6833527945435589).
LUCIANO SEVERINO DE FREITAS
Bacharel em Direito pela Faculdade Jacy de Assis da Universidade Federal
de Uberlândia/Minas Gerais. Doutorando em Filosofia pela Universidade
Federal de Uberlândia/Minas Gerais. Mestre em Filosofia Moderna e
Contemporânea, com ênfase em Filosofia Social e Política pela
Universidade Federal de Uberlândia/Minas Gerais. Docente do Curso de
Direito da Universidade Presidente Antônio Carlos – FUPAC/UNIPAC-
Uberlândia/Minas Gerais. Advogado. E-mail:
luciano_severino@hotmail.com
MARCELO CORRÊA GIACOMINI
Professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Juiz de
Fora, campus Governador Valadares (UFJF-GV).
MARCELO DE MELLO RANGEL
Professor do Departamento de História, do Programa de Pós-graduação em
História e do Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFOP.
MARCELO JOSÉ DERZI MORAES
Doutor em Filosofia. Professor do Departamento de Educação da
FFP/UERJ.
MARIA SOCORRO RAMOS MILITÃO
Professora Associada do Instituto de Filosofia e Programa de Pós-
Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia; Profa. do
Programa de Pós-Graduação (Profi) da Universidade Federal do Tocantins;
membro fundadora da International Gramsci Society e do Grupo de Estudos
Marxistas: Marx e Gramsci, do IFILO-UFU.
PEDRO MENEZES
Mestre em Filosofia pela UFRJ.
RAFAEL HADDOCK-LOBO
Professor do Departamento de Filosofia e do PPGBIOS da UFRJ e do
PPGFIL-UERJ. Coordenador do Laboratório X de Encruzilhadas
Filosóficas. Contato: laboratoriox.ifcs@gmail.com
RENATA TAVARES NOYAMA
Professora do Departamento de Filosofia e do PROF-FILO da UNESPAR
SAMON NOYAMA
Professor do Departamento de Filosofia e do PROFILO da UNESPAR
SUELEN CARVALHO
Mestranda no Programa de Pós Graduação em Filosofia da UFRJ, em 2019.
WILLIAM COSTA
Doutorando em Filosofia na Unisinos e bolsista Capes.
Copyright
desta edição ©2020 by Ape’Ku Editora e Produtora Ltda
Foi feito o depósito legal conforme Lei 10.994 de 14/12/2004
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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

A517r Amitrano, Georgia


Rosas e pensamentos outros / Georgia Amitrano, Marcelo de Mello
Rangel e Rafael Haddock-Lobo. Coleção X (Organização Rafael Haddock-
Lobo) – Rio de Janeiro: Ape’Ku, 2020.
332 p. ; 23 cm.
ISBN 978-65-80154-22-7 versão impressa
Inclui bibliografia.
1. Filosofia. 2. Filosofia Moral. 3. Ética. 4. Alteridade. I. Título. II.
Autor.
CDD 170
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Conselho editorial

Ana Luisa Rocha Mallet - Universidade Estácio de Sá


Carolina Magalhães de Pinho Ferreira - Universidade Federal do Rio de
Janeiro
Carlos Dimas Martins Ribeiro - Universidade Federal Fluminense
Cinara Maria Leite Nahra - Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Cristiane Maria Amorim Costa - Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Daniel Abreu de Azevedo - Universidade de Brasília
Diana I. Pérez - Universidad de Buenos Aires
Diogo Gonçalves V. Mochcovitch - Universidade Federal do Rio de
Janeiro
Fabio Alves Gomes de Oliveira - Universidade Federal Fluminense
Guilherme Dias da Fonseca – Université Clermont Auvergne | França
Jefferson Lopes Ferreira Junior - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Maria Clara Marques Dias - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Martina Davidson - Universidade Federal Fluminense
Manuel Villoria Mendieta - Universidad Rey Luan Carlos | Espanha
Maria Andréa Loyola - Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Michelle Cecille Bandeira Teixeira - Universidade Federal Fluminense
Murilo Mariano Vilaça - Fundação Oswaldo Cruz
Paula Gaudenzi – Fundação Oswaldo Cruz
Rafael Ioris – University of Denver | EUA
Rafael Haddock-Lobo - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Renata Ramalho Oliveira Ferreira - Instituto Nacional de Câncer
Rita Leal Paixão - Universidade Federal Fluminense
Suane Felippe Soares - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Wallace dos Santos de Moraes - Universidade Federal do Rio de Janeiro

Notas

[←1]
Professora Associada do Instituto de Filosofia e Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia; Profa. do Programa de Pós-
Graduação (Profi) da Universidade Federal do Tocantins; membro fundadora da International Gramsci Society e do Grupo de Estudos Marxistas: Marx e Gramsci, do
IFILO-UFU.
[←2]
No Brasil, seus maiores interpretes são Mario Pedrosa e Paul Singer, Michael Löwy, Paulo Arantes e Isabel Loureiro.
[←3]
Filha de uma abastada família judia polonesa anticzarista, militante desde os 16 anos tornou-se dirigente do movimento comunista internacional. Na Universidade de
Zurique - única a aceitar mulher à época - estudou ciências naturais, direito e economia política, e seria a única mulher de sua turma a doutorar-se em economia, com a
tese “O desenvolvimento industrial da Alemanha”.
[←4]
A atuação política de Rosa Luxemburgo se desenvolve em duas fases: 1891-1914, da Segunda Internacional; 1914-1919, da Primeira Guerra Mundial e das
revoluções russa e alemã.
[←5]
Político e dirigente socialista alemão assassinado junto com Rosa a mando do governo socialdemocrata.
[←6]
O revisionismo buscou rever as ideias de Karl Marx sobre a transição do capitalismo ao socialismo, defendendo que para chegar à sociedade socialista bastava
reformar o capitalismo e não promover uma revolução armada.
[←7]
O político alemão foi o primeiro grande revisionista do marxismo e, como membro do SPD, foi um dos principais defensores da socialdemocracia além de fundador
do revisionismo e do socialismo evolutivo.
[←8]
Georgi Valentinovitch Plekhanov (1856-1918) foi um revolucionário e teórico marxista russo. Karl Johann Kautsky (1854-1938) foi um filósofo tcheco-austríaco,
jornalista e teórico marxista e da história do marxismo, um dos fundadores da socialdemocrata e editor do quarto volume d’O capital, de Karl Marx, as Teorias de Mais-
Valia, que continha a crítica de Marx às teorias econômicas de seus predecessores.
[←9]
O revolucionário marxista fundou, junto com Rosa, o partido da Social Democracia da Polônia, o Partido Comunista da Polônia e a Liga Spartacus alemã; e teve com
ela uma longa relação amorosa e grande parceira política. Foi assassinado por paramilitares de direita em Berlim, em março de 1919, ao investigar a morte de Rosa.
[←10]
Filho da amiga Clara, 13 anos mais jovem, com quem Rosa teve uma relação amorosa, após separar-se de Leo.
[←11]
Com quem Rosa teve uma relação amorosa, descoberta apenas em 1983.
[←12]
Revolucionário marxista e, junto com Rosa, fundou o Partido Comunista da Polônia e a Liga Spartacus na Alemanha, (que virou Partido Comunista alemão), foi
assassinado por paramilitares quando investigava a morte de Rosa, poucos dias após perder sua companheira.
[←13]
Rosa escreveu esta carta na prisão em Breslau, enviada a sua amiga Sonia, na véspera de 24 de dezembro de 1917.
[←14]
A Segunda Internacional (1889-1916), organizou os partidos socialistas e operários. Criada por Engels no Congresso Internacional de Paris de 1889, deu continuou o
trabalho da extinta I Internacional, extinta nos anos 1870.
[←15]
A Internacional Comunista, Comintern ou Terceira Internacional (1919-1943), a organização internacional criada por Lenin e PCUS (bolchevique), em 1919, reuniu
partidos comunistas contra os apoiadores da I Guerra Mundial.
[←16]
Professor do Instituto de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia.
[←17]
G. Fresu, Lenin leitor de Marx. Dialética e determinismo na história do movimento operário, Anita Garibaldi Editora, São Paulo, 2016.
[←18]
R. Luxemburgo, Testos escolhidos, I. Loureiro (Org), Volume II (1914-1919), Unesp Editora, São Paulo, 2011, pag. 1.
[←19]
Rosa Luxemburgo, La ricostruzione dell’Internazionale (A reconstrução da Internacional), cit., p. 420.
[←20]
“A guerra é um assassínio metódico, organizado e gigantesco. Mas para induzir o ser humano normal ao assassínio sistemático deve-se alcançar o adequado estado de
embriaguez. E é este, sempre, o método estabelecido por aqueles que conduzem a guerra. À bestialidade da ação deve corresponder a bestialidade do pensamento e do
sentimento, e esta deve preceder e acompanhar aquela”, Rosa Luxemburgo, La crisi della socialdemocrazia (A crise da socialdemocracia), Scritti politici, Editori Riuniti,
Roma, 1967, p. 449.
[←21]
R. Luxemburgo, Testos escolhidos, I. Loureiro (Org), Volume II (1914-1919), Unesp Editora, São Paulo, 2011, pag. 44.
[←22]
As informações históricas gerais, colocadas neste trabalho com finalidade didática, pensada para um curso de estudos universitários e acompanhar os
aprofundamentos conceptuais, são o resultado de diferentes leituras de livros históricos sobre a Idade Contemporânea: AA.VV., Storia contemporanea, Roma, Donzelli,
1997; G. Sabatucci, V. Vidotto, Storia contemporanea. L’Ottocento, Laterza, Bari, 2009; G. Sabatucci, V. Vidotto, Storia contemporanea. ll Novecento, Laterza, Bari,
2009; M. Salvati, Il Novecento. Interpretazioni e bilanci, Laterza, Bari 2001; G. De Luna, La passione e la ragione. Fonti e metodi dello storico contemporaneo, La Nuova
Italia, Firenze, 2001; E. J. Hobsbawm, Intervista sul nuovo secolo, Laterza, Bari 1999; E. J. Hobsbawm, Il secolo breve, Rizzoli, Milano, 1994; E. Santarelli, Il mondo
contemporaneo, Editori Riuniti, Roma, 1974;
[←23]
AA.VV., Storia contemporanea, Roma, Donzelli, 1997.
[←24]
R. Luxemburgo, Testos escolhidos, I. Loureiro (Org), Volume II (1914-1919), Unesp Editora, São Paulo, 2011, pag. 47.
[←25]
Ivi, p. 468.
[←26]
Ivi, p. 470.
[←27]
D. Losurdo, Controstoria del liberalismo, Edizioni Laterza, Roma-Bari, 2005.
[←28]
J. Locke, Il secondo trattato sul governo, Rizzoli, Milano, 1998, pag. 67.
[←29]
Karl Marx, Il Manifesto del partito comunista, Editori Laterza Bari, 1999 p. 11.
[←30]
Karl Marx, Il Capitale, Editori Riuniti Roma, 1994, III volume, p. 259- 292.
[←31]
J. A. Hobson, L’imperialismo, (a cura di) L. Meldolesi, Istituto Editoriale Internazionale, Milano, 1974.
[←32]
R. Hilferding, Il capitale finanziario, Feltrinelli, Milano, 1976.
[←33]
R. Luxemburgo, Testos escolhidos, I. Loureiro (Org), Volume II (1914-1919), Unesp Editora, São Paulo, 2011, pag. 6.
[←34]
R. Luxemburgo, Testos escolhidos, I. Loureiro (Org), Volume II (1914-1919), Unesp Editora, São Paulo, 2011, pag. 21.
[←35]
Professora Associada do Instituto de Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia.
[←36]
SHAKESPEARE, William. Romeu e Julieta. Tradução de Beatriz Viégas-Faria. Porto Alegre: L&PM, 1998.
[←37]
Em 1919, Bertolt Brecht escreveu um epitáfio poético em homenagem a ela, que recebeu música de Kurt Weill em 1928, sendo renomeado O Réquiem de Berlim.
[←38]
SOUZA, Paulo César (Org.).Bertolt Brecht Poemas:1913-1956. São Paulo: Ed.32, 2000.
[←39]
Diz-se que Rosa Luxemburgo não se achava bela, tanto pelos seus traços de faciais quanto por um defeito na perna. O que também é dito dela por muitos homens que
nunca viram muitas fotos suas nem leram seus escritos.
[←40]
Palavras de Kant.
[←41]
Cf. KANT, Immanuel Observações sobre o sentimento do belo e do sublime. Campinas, São Paulo: Papirus editora, 1993. KANT, Immanuel. Metafísica dos
Costumes. São Paulo: editora Edipro, 2003.
[←42]
Karl Liebknecht ficou conhecido por ter, junto com Rosa Luxemburgo, fundado a Liga Spartacus, em 1916. Foi um advogado antimilitarista.
[←43]
Uma alusão à Jezabel bíblica.
[←44]
Observação na margem esquerda, sem indicar o lugar de inserção. In LUXEMBURGO, Rosa. A Revolução Russa Petrópolis, 1991, p.91.
[←45]
Derrida, Jacques . Adeus a Emmanuel Levinas. São Paulo: Perspectiva, 2004, p.60.
[←46]
Professora da EBA e do PPGAV da UFRJ
[←47]
Mestranda no Programa de Pós Graduação em Filosofia da UFRJ, em 2019.
[←48]
DERRIDA, Essa estranha instituição chamada literatura, p. 86.
[←49]
Ibid., p.70.
[←50]
Ibid., p. 80.
[←51]
Ibid., p. 73.
[←52]
Ibid., p. 49.
[←53]
Ibid., p. 48.
[←54]
Ibid., p. 48
[←55]
Ibid., p. 47.
[←56]
Ibid., p. 49.
[←57]
Ibid., p. 49.
[←58]
Ibid., p. 55.
[←59]
Ibid., p. 56.
[←60]
Mestranda em Filosofia, na linha filosofia moderna e contemporânea, pela Universidade Federal de Minas Gerais e mestranda em Direito, na linha Teoria do Direito e
da Justiça, pela Faculdade Mineira de Direito. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
[←61]
A palavra différance é produzida a partir da introdução fonética da letra [a] na escrita da palavra différence. O efeito dessa substituição na palavra francesa só pode ser
percebido na escrita, pois o som da palavra não é modificado. O [a] aparece em uma invisibilidade sonora, escapando à ordem do sensível, e também escapa à
inteligibilidade, pois não se oferece como presença, relacionando-se mais com a noção de rastro e menos com aquilo a que se chama de si mesmo.
[←62]
Como lembra Derrida (2012b, p. 77) a autoridade do logos na cultura grega caminha junto com a autoridade da phonê, a pensar na forma que específica que isso
respiga na cultura Ocidental, já que no início havia o Logos, traduzida em geral por verbo: “no início era verbo, e o verbo estava com Deus, e o Deus era verbo”
(Evangelho de João). Tal estrutura de privilegio ao logos, teria ligado a cultura grega a uma escrita alfabética, isto é, uma escrita fonética associada a palavra falada. Cabe
pensar também na teoria dos dois mundos, de Platão, que colocou, de um lado, as ideias –perfeitas, imutáveis, que guardam a verdade, e, de outro lado, as coisas, cópias
imperfeitas e corruptíveis. De forma que, o mundo das ideias é colocado num lugar hierarquicamente superior e antecedente ao das coisas, só podendo ser acessado pela
razão e traduzida pela fala.
[←63]
Para Derrida (2017, p. 83) o feito do espaçamento designa o espaço constituído entre termos, como um intervalo em geral, entretanto, cabe ressaltar, que tal lacuna
perpassa pela “articulação do espaço e do tempo, o vir-a-ser-espaço do tempo e o vir-a-ser-tempo do espaço, é sempre o não-percebido, o não-presente e o não-consciente.
” Dessa forma, a obra não pode ser analisada como uma presença completa, já que o espaçamento implica a separação entre o representado e o representante e a
experiência da différance.
[←64]
É preciso entender que o acontecimento não é algo que vê, pois ele acontece, logo, não falo somente do que se ver na tela. O acontecimento que se vê, que pré-vemos,
não é um acontecimento, pois sua acontecimentalizada é neutralizada pela antecipação. Se existe algo no horizonte que avança em nossa direção e que podemos ver, isso
não é acontecimento, pelo menos no sentindo puro (se houver) da palavra acontecimento, a qual não é possível prever. (DERRIDA, 2012b, p.70)
[←65]
Cabe observar a diferença entre visível e visibilidade. Enquanto a primeira está relacionada ao sentido sensível, a segunda não se refere à visibilidade sensível, mas a
uma visibilidade inteligível, como o eidos [ideia] de Platão. “O eidos, enquanto ontos on, é uma visibilidade não visível – no sentindo sensível -, mas uma visibilidade que
precisa de uma luz. Essa luz lhe vem do que Platão chama de bem, agathon, que ele compara ao Sol. O Sol torna visível o ser, mas também faz crescer, faz ser. Essa luz
que torna possível o ser, isto é, o eidos, enquanto ente verdadeiro, esse Sol não é ele próprio visível.” (DERRIDA, 2012b. p.82)
[←66]
Como menciona Derrida, os olhos também foram feitos para chorar (2012b, p.66).
[←67]
“A par de desenvolver tais análises no campo de sua fenomenologia do inconsciente, permanece, contudo, na filosofia de Husserl, a análise do signo (como escrita,
traço de lembrança e imagem exterior) inserida nos modelos de verdade como adequação e revelação: Por um lado, os signos linguísticos manifestam sentidos ideais já
constituídos e não alteráveis pela materialidade do signo; por outro lado, a imagem, tanto a figurativo-perceptiva como a (re)presentativa (imaginação e lembrança), é vista
como correspondência ou segundo graus de adequação a significados ideais que ela figura por analogia ou similitude.” (SERRA, 2011, p.125)
[←68]
A escolha do [da] e não do [na] é crucial para a nossa abordagem. Ao optar pelo [da], queremos lembrar da autonomia da pintura de testemunhar enquanto obra e,
portanto, de se emancipar tanto do artista quanto do sujeito contemplador. Entretanto, tal movimento, paradoxalmente, não se separa do [dentro] da imagem, do
testemunhar [na] pintura. Tal separação é escorregadia, de forma que, o “fora” e o “dentro” oscilam no processo interpretativo.
[←69]
Doutor em Filosofia pela UFRJ.
[←70]
BLANCHOT, M. O espaço literário. Tradução: Álvaro Cabral, Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p. 15-6.
[←71]
BLANCHOT, M. A literatura e o direito à morte. In: “A parte do fogo”. Tradução: Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 2011a, p. 322.
[←72]
Ibid., p. 320.
[←73]
DERRIDA, J. Essa estranha instituição chamada literatura. Tradução: Marileide Dias Esqueda. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014, p. 86.
[←74]
BLANCHOT, 2011a, p. 325.
[←75]
Idem.
[←76]
Idem.
[←77]
Idem.
[←78]
DERRIDA, 2014, p. 60.
[←79]
BATAILLE, G. A literatura e o mal. Tradução: Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015, p. 22.
[←80]
Idem.
[←81]
BLANCHOT, 2011a, p. 320.
[←82]
Ibid., p. 324.
[←83]
Cf. DERRIDA, 2014, p. 83-4.
[←84]
BLANCHOT, 2011a, p. 320.
[←85]
Ibid., p. 327-8.
[←86]
Idem.
[←87]
Ibid., p. 329.
[←88]
BATAILLE, 2015, p. 14.
[←89]
BLANCHOT, 2011a, p. 332.
[←90]
Idem.
[←91]
Ibid., p. 330.
[←92]
Ibid., p. 333.
[←93]
Idem.
[←94]
Idem.
[←95]
Idem.
[←96]
Ibid., p. 334.
[←97]
Ibid., p. 335.
[←98]
Ibid., p. 336.
[←99]
Idem.
[←100]
Mestre em Filosofia pela UFRJ.
[←101]
Comentário sobre os personagens de Jorge Amado, mas que perfeitamente se enquadra em Macabéa. José Castelo relembra a frase de Alberto Camus: “Não se trata de
ideologia, mas da própria vida”. Macabéa é a representação da vida das nordestinas retirantes que sofrem com a profunda desigualdade social do país.
[←102]
Tal perspectiva podemos encontrar em José Castello (2012). Também há uma perspectiva de competição entre Rodrigo S.M. e Clarice Lispector, quanto a construção
de identidade, em Evando Nascimento (2012).
[←103]
Na versão cinematográfica, a cena do espelho se dá com Macabéa apenas tateando seu rosto e o túrbito do reflexo se dá pela precariedade do espelho e da iluminação.
Um viés interpretativo dessa alteração do filme para o romance é a intenção da diretora de relacionar a precariedade da condição social de Macabéa como interferência
direta na percepção de si. A questão do reflexo de sua imagem é apontada em diversas cenas do filme, como quando se penteia olhando o reflexo no vidro da janela de seu
apartamento, ou quando falta o trabalho para dança em frente ao espelho da colega de quarto.
[←104]
Antíoco IV Epifânio foi um rei da dinastia Selêucida que governou a Síria entre 175 a.C. e 164 a.C. Nos romances de Clarice Lispector o conceito de epifania é
constantemente abordado. É curiosa a coincidência entre o nome do rei helenista, combatido por Macabeu, e o conceito presente nas obras claricianas.
[←105]
Professora do Departamento de Filosofia e do PROF-FILO da UNESPAR
[←106]
Dizer sem palavras não significa, necessariamente, ausência de textos, nas peças de Pina Bausch ou qualquer outra tendência de teatro pós-dramático. Significa,
contudo, que o texto não é o guia do espetáculo, que o texto tem o mesmo espaço que o não-texto, ou mais que isso, significa que a peça não pode ser vista a partir nem
através do texto, o que supõe a desconstrução da forma de viver as experiências em nossa cultura euro-falo-logocêntrica.
[←107]
Doutora em Direito, pela PUC Minas; Mestre em Filosofia Social e Política, pela UFMG; Professora de Filosofia do Direito e Hermenêutica e Argumentação Jurídica,
no curso de Direito da PUC Minas; Coordenadora do Projeto Direito e Literatura, na PUC Minas e Líder do Grupo de Pesquisa Direito e Literatura: um olhar para as
questões humanas e sociais a partir da Literatura (dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/6833527945435589).
[←108]
O medo de mar é o medo de ser livre, composição de Beto Guedes.
[←109]
Mestranda no Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFRJ.
[←110]
Professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora, campus Governador Valadares (UFJF-GV).
[←111]
Bacharel em Direito pela Faculdade Jacy de Assis da Universidade Federal de Uberlândia/Minas Gerais. Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de
Uberlândia/Minas Gerais. Mestre em Filosofia Moderna e Contemporânea, com ênfase em Filosofia Social e Política pela Universidade Federal de Uberlândia/Minas
Gerais. Docente do Curso de Direito da Universidade Presidente Antônio Carlos – FUPAC/UNIPAC- Uberlândia/Minas Gerais. Advogado. E-mail:
luciano_severino@hotmail.com
[←112]
Não conhecemos os processos pelos quais pensamos, criamos, escrevemos. É dessa situação em particular que eu reflito. Também é desejável pensar no conhecimento
em termos de circulação e comércio, em vez de capital e propriedade. [...] Então, a pergunta: «Quem ‹tem› o saber? «Pode parecer mais relevante do que: «de qual saber
se trata? «Ou» o que é o saber?»[...] (tradução livre)
[←113]
A colonização persistente entendida não como uma datação temporal, mas como um processo contínuo de afirmação e reafirmação de estruturas sociais, econômicas,
jurídicas, modos de pensamento, vida e outros, arcaicos, forjados na base do patrimonialismo político.
[←114]
Professor do Departamento de Filosofia e do PROFILO da UNESPAR
[←115]
Ver: “Três momentos da retórica antiga”, introdução de Roberto de Oliveira Brandão para A poética clássica, 2005.
[←116]
Estas reflexões nos inclinam a escrever um texto sobre a influência implacável de uma concepção de formação universal da humanidade que não recusa a coerção
como elemento pedagógico, com bem expresso nas concepções de educação e de ensino de Rousseau, Kant e Hegel. Lessing, apesar de crítico de seu tempo, não se opõe a
tal concepção, ainda que, como os demais filósofos, tenha apreço considerável pela liberdade humana como valor.
[←117]
Pós-doutorando na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Doutor e Mestre em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Licenciado em Filosofia pela mesma instituição. Email: diegoreis.br@gmail.com
[←118]
EVARISTO, Conceição. “Do velho ao jovem”. Poemas da recordação e outros movimentos. Belo Horizonte: Nandyala, 2008. p. 51.
[←119]
Mestre em Filosofia pela UFRJ.
[←120]
Front homosexuel d’action révolutionnaire (FHAR), 1971.
[←121]
Com muita semelhança, Marcelo Moraes e Adriano Negris escrevem, em um artigo intitulado Escrituras da cidade: Ordem e desordem a partir de Derrida (2016). Lá
eles escrevem como as políticas racistas, preconceituosas, conservadoras e higienistas que operam sobre a o bairro boêmio da Lapa no Rio de Janeiro e sobre a figura do
vadio ou malandro. Sejam essas políticas movimentadas pela maquina do turismo ou da repressão policial, visam produzir um <<Bon Vadio>>, um vadio que ande dentro
da lei ou que leve o choque de ordem, que não atrapalhe, invés disso, que seja útil para o turismo exótico. O vadio é impossivel de ser acolhido incondicionalmente por
essas políticas.
[←122]
Doutor em Filosofia pela UFRJ.
[←123]
Cf. The Sublime Object of Ideology
[←124]
Podemos pensar em casos mais recentes desse tipo de procedimento, ainda largamente utilizado em coberturas jornalísticas, na forma pela qual Nicolás Maduro, por
exemplo, é retratado ou como Kim Jong-un o fora antes de seu encontro com Donald Trump.
[←125]
Ver O espectro da ideologia in Um Mapa da ideologia, nota 9, p. 35.
[←126]
Professora Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
[←127]
Apêndices delgados não sedimentados e flexíveis encontrados em invertebrados aquáticos (cnidários e cefalópodes) na parte anterior ou na cabeça e utilizados em
geral na obtenção de alimentos
[←128]
No samba, música brasileira por excelência, a harmonia é produzida pelos instrumentos de corda, como o cavaquinho e o violão. Já o ritmo é dado, por exemplo, pelo
surdo ou pelo pandeiro. Com o passar do tempo, instrumentos como flauta, piano e saxofone, também foram incorporados, dando origem a novos estilos de samba. Este
foi evoluindo com distintos modos de ser tocado, com e cantado, o que faz dele um ritmo musical dos mais ricos.
[←129]
Vejamos a situação nesse momento proposta: Khatibi respondendo ao Monolinguismo do outro de Derrida em sua expressiva “ Lettre ouverte à Jacques Derrida”
publicada na revista Europe em 2004. Trata-se da situação linguística dos judeus e muçulmanos no Magreb. Para Derrida o judeu argelino sofre o interdito de acesso às
línguas não francesas- o árabe, o berbere, o hebreu- como, simbolicamente , à língua francesa, ele está submetido a este ‘interdito fundamental, a interdição absoluta, a
interdição da dicção e do dizer’”: “ On interdit l’accès au dire, voilà tout, à un certain dire » (Derrida, 1996 : 58). Par-là, il est voué à vivre dans la traduction, « il est jeté
dans la traduction absolue » puisqu’ « il n’y a pour lui que des langues d’arrivée (Derrida,1996:117).
[←130]
Quem fosse pego dançando samba poderia ser preso, uma vez que ele era associado à expressão da cultura negra. Somente no início dos anos 40, governo Vargas, o
samba passa a ser compreendido como fazendo parte da cultura nacional.
[←131]
Temporização (temporisation) é um desvio econômico para a noção de diferir em Derrida. Envolve a ideia de tempo, uma mediação temporal. Na ideia de
temporização temos a ideia de momento presente com elementos que avançam ou recuam para remeter a um outro elemento futuro ou passado. Num segundo sentido,
diferir é espaçamento (espacement), que significa distinção e intervalo. Espaçamento sugere que o presente não basta para que a significação seja dada; diferir em outros
para que surja a significação.
Espaçamento (espacement) é um termo que aparece no Prefácio de Un coup de dés de Mallarmé para marcar o intervalo que permite os diferentes ( com t , différent
(indica o outro, o desigual) e com d différend ( indica a divergência, o discordar): “um regard aux premiers mots du poème pour que des suivants, disposés comme ils sont,
l’amènent aux derniers, le tout sans nouveauté qu’un espacement de la lecture” ( Préface à un coup de dês- Mallarmé)).[grifos nossos].
[←132]
O tronco macro-jê é um tronco linguístico cuja constituição ainda hipotética, abarca povos que estão situados em regiões não litorâneas e mais centrais do Brasil, sem
adentrar, no entanto, pelo Amazonas, Amapá, Roraima e Acre no Norte com 150 tipos de linguas dentre elas o tupi guarani. Também pode-se atestar sua ocorrência em
pequenos grupos em parte do Paraguai e da Bolívia. Com o descobrimento do Brasil , os invasores europeus passaram a ter contato com as tribos tupi-guaranis que
habitavam a costa brasileira. Os índios de fala diversa àquela dos tupis- guaranis eram chamados por eles de tapuia , ou seja “inimigo”. Para os europeus era como se só
existissem duas nações, então: tupi-guarni e tapuia. Foram os antropólogos do início do século XX que adotaram para os tapuia, o nome gês. Em 1953, a Associação
Brasileira de Antropologia adotou a forma «jê» em substituição a «gê».
[←133]
Árvore alta ( Machaerium incorruptibile ) da fam. das leguminosas, subfam. papilionoídea, nativa do Brasil (MT, RJ, PR, SC), de madeira nobre, dura, lisa, de
colorido variável entre o bege acastanhado e o vermelho ou marrom-escuro, us. em móveis, objetos de adorno, marchetaria etc., com folíolos lanceolados, flores escassas,
em racemos, e vagens retilíneas, arredondadas no ápice; jacarandá-cabiúna, jacarandá-preto.Os cabiúnas, assim eram chamados os pretos.
[←134]
Dedico esse texto à memória da minha mãe Maria Cristina Derzi. Mulher negra de Iansã, mãe de sete filhos: uma guerreira.
[←135]
Doutor em Filosofia. Professor do Departamento de Educação da FFP/UERJ.
[←136]
Professor do Departamento de História, do Programa de Pós-graduação em História e do Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFOP.
[←137]
Ver Foucault, 2000, Nietzsche, 2007, capítulo 5, e Rangel, 2019a, capítulo 1.
[←138]
Ver Benjamin, 2005, Derrida, 1994, Heidegger, 2008 (nesse caso especialmente os parágrafos sobre temporalidade e historicidade, quinto capítulo, parte II), e Rangel,
2019a, capítulo 2.
[←139]
Freire, 2000, Benjamin, 2005, especialmente a tese XII, e Rangel, 2019b.
[←140]
Krenak, 2019, Mbembe, 2017, e Hooks, 2001 e 2017.
[←141]
Freire, 2000.
[←142]
Benjamin, 2005, tese VII. Ver, também, Rangel, 2019b.
[←143]
Ver Heidegger, 2006.
[←144]
Ver Rangel, 2015.
[←145]
Doutorando em Filosofia na Unisinos e bolsista Capes.
[←146]
Embora esses termos trafeguem pelos campos de Michel Foucault e de seu orbe governamental, não poderíamos deixar de notar que o conceito de população, ainda
que apareça apenas tardiamente na concepção francesa, parece, no sentido prático, ser o vórtice que alimenta toda a exploração europeia sobre os territórios colonizados.
Se tomarmos a cabo o projeto de Foucault, perceberemos que sua análise coteja o governo pastoral, as razões de Estado, a sociedade disciplinar e a sociedade de controle
como um filão intercambiado. Todavia, nos moldes das colônias, parece-nos que a abordagem se concentra já de início nas formas disciplinares e, depois, no controle
exaustivo.
[←147]
A expressão ex-cedere é a tradução latina de exceção. Seu significado pode ser concedido pela expressão: “ir além da conta”.
[←148]
Professor do Departamento de Filosofia e do PPGBIOS da UFRJ e do PPGFIL-UERJ. Coordenador do Laboratório X de Encruzilhadas Filosóficas. Contato:
laboratoriox.ifcs@gmail.com
[←149]
Referência ao texto de Maria Socorro Militão, apresentado anteriormente no encontro.
[←150]
Referência ao texto de Marcelo José Derzi Moraes, apresentado anteriormente no encontro.
[←151]
Referência ao texto de Dirce Eleonora Nigro Solis, apresentado anteriormente no encontro
[←152]
Referência à Georgia Amitrano, anfitriã do Encontro e que encerraria o evento.
[←153]
Homenagem a Noeli Ramme, falecida em 23 de setembro de 2019.
[←154]
Gerd Bornheim. “Filosofia e realidade nacional”, in: O idiota e o espírito objetivo. Rio de Janeiro: UAPÊ, 1998, pp. 163-164.
[←155]
Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino. Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2018, pág.109.
[←156]
Referência ao Manifesto contrassexual, de Paul B. Preciado, para quem a contrassexualidade é um empirismo radical queer.
[←157]
Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino. Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas, pág. 5.
[←158]
Ibidem.
[←159]
Ibidem, pág. 12.
[←160]
Ibidem, pág. 14: “O conceito de amarração proveniente das sabedorias dos velhos cumbas (...) é o efeito de, através das mais diferentes formas de textualidade,
enunciar múltiplos entenderes em um único dizer”.
[←161]
Ibidem, pág. 15.
[←162]
Ibidem, págs. 25-26.
[←163]
Ibidem, pág. 5.
[←164]
Ibidems, pág. 27.
[←165]
Luiz Antonio Simas. Pedrinhas miudinhas. Ensaios sobre ruas, aldeias e terreiros. Rio de Janeiro: Mórula editorial, 2013, pág. 13.
[←166]
Referência ao meu texto “Por uma filosofia das matas”, disponível em minha coluna “Filosofia Popular Brasileira” na Revista HH Magazine:
https://hhmagazine.com.br/809-2/
[←167]
Luiz Antonio Simas. O corpo encantado das ruas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019, pág. 10.
[←168]
Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino. Flecha no tempo. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, pág. 24.
[←169]
Luiz Rufino. Pedagogia das encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2019, pág. 13.
[←170]
Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino. Flecha no tempo, págs. 19-20.
[←171]
Ibidem, pág. 21.
[←172]
Ibidem, pág. 22.
[←173]
Luiz Rufino. Pedagogia das encruzilhadas, pág. 88.
[←174]
Ibidem, pág. 89.
[←175]
Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino. Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas, pág. 36.
[←176]
Ibidem, pág. 37.
[←177]
Ibidem, pág. 38.
[←178]
Luiz Rufino. Pedagogia das encruzilhadas, pág. 21.
[←179]
Ibidem, pág. 20.
[←180]
Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino. Flecha no tempo, pág. 75.
[←181]
Luiz Rufino. Pedagogia das encruzilhadas, pág. 21.
Table of Contents
Apresentação
Capítulo I - Uma Rosa Vermelha
A outra Rosa Luxemburgo: a Rosa Mulher
Civilização ocidental e guerra Rosa Luxemburg no centenário do seu
assassinato
Tantas Rosas, um mesmo perfume Pensamentos não morrem
Capítulo II - Pétalas e poéticas
Dois naufrágios de Ulisses a ninguém
Atravessamentos entre filosofia e literatura no pensamento da
desconstrução
O testemunho do desenho: uma cortesia dos cegos
Saudades da literatura
Deslocamento e Nadificação: A Filosofia Trágica de Macabéa
O encontro entre dança e pensamento no processo criativo de Pina Bausch
Capítulo III - Flores do político
Pensamentos outros do Direito: desconstrução, justiça, hospitalidade,
desobediência civil e revolução
Hospitalidade e vulnerabilidade: notas sobre ética em Judith Butler e
Jacques Derrida
A temporalidade da vingança e a doação do tempo no direito
Habermas nos trópicos: o conceito de esfera pública e o contratualismo
político brasileiro
Capítulo IV -Outros ramos e pensamentos outros
Observações sobre a poética política de Augusto Boal e a insurgência de
uma filosofia popular brasileira
Referências
A humanidade fabricada: identidade, violência e exclusão na construção do
imaginário moderno/colonial
Comportamento impróprio ao local de cultura
O real-segredo de Slavoj Žižek
Capítulo V - Raízes e Filosofias Populares Brasileiras
Tentáculos Digressões sobre uma filosofia sem idade ou de todas as idades
Rosas negras para uma filosofia desde o Brasil: Lélia Gonzales, Beatriz
Nascimento e Helena Theodoro
Resistência, ódio e amor!
(Sobre)vida retirante: por onde nos conduz o sertanejo Severino?
A gira macumbística da filosofia brasileira
Referências
AUTORAS E AUTORES
Copyright
Conselho editorial
Table of Contents
Apresentação
Capítulo I - Uma Rosa Vermelha
A outra Rosa Luxemburgo: a Rosa Mulher
Civilização ocidental e guerra Rosa Luxemburg no centenário do seu
assassinato
Tantas Rosas, um mesmo perfume Pensamentos não morrem
Capítulo II - Pétalas e poéticas
Dois naufrágios de Ulisses a ninguém
Atravessamentos entre filosofia e literatura no pensamento da
desconstrução
O testemunho do desenho: uma cortesia dos cegos
Saudades da literatura
Deslocamento e Nadificação: A Filosofia Trágica de Macabéa
O encontro entre dança e pensamento no processo criativo de Pina Bausch
Capítulo III - Flores do político
Pensamentos outros do Direito: desconstrução, justiça, hospitalidade,
desobediência civil e revolução
Hospitalidade e vulnerabilidade: notas sobre ética em Judith Butler e
Jacques Derrida
A temporalidade da vingança e a doação do tempo no direito
Habermas nos trópicos: o conceito de esfera pública e o contratualismo
político brasileiro
Capítulo IV -Outros ramos e pensamentos outros
Observações sobre a poética política de Augusto Boal e a insurgência de
uma filosofia popular brasileira
Referências
A humanidade fabricada: identidade, violência e exclusão na construção do
imaginário moderno/colonial
Comportamento impróprio ao local de cultura
O real-segredo de Slavoj Žižek
Capítulo V - Raízes e Filosofias Populares Brasileiras
Tentáculos Digressões sobre uma filosofia sem idade ou de todas as idades
Rosas negras para uma filosofia desde o Brasil: Lélia Gonzales, Beatriz
Nascimento e Helena Theodoro
Resistência, ódio e amor!
(Sobre)vida retirante: por onde nos conduz o sertanejo Severino?
A gira macumbística da filosofia brasileira
Referências
AUTORAS E AUTORES
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Conselho editorial

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