Você está na página 1de 6

CASO PRÁTICO COM TODA A MATÉRIA

DIREITO ADMINISTRATIVO II

O Presidente da Câmara Municipal de Sintra (PCMS) decidiu abrir um concurso público


para o fornecimento de serviços de transporte escolar no Município de Sintra.
Segundo o caderno de encargos do concurso, após a adjudicação, seria celebrado um
contrato com o concorrente vencedor.
O concurso foi aberto e, após o final do prazo para apresentação de propostas, tinham
dado entrada três propostas.
Logo após a entrega das propostas, a empresa “FULL SPEED, SA” foi excluída por ter
dívidas por pagar à Segurança Social, uma vez que a lei determina que não podem ser
selecionados candidatos que tenham “dívidas fiscais”.
O júri do concurso classificou a empresa “AUTOCARRO AMARELO, Lda” em primeiro
lugar e a empresa “SEMPRE VELOZ, SA” em segundo. O principal fator foi a
circunstância de a primeira empresa “…já prestar os mesmos serviços em vários outros municípios da
região de Lisboa”.
Tendo recebido a proposta de decisão do júri, o PCMS despachou imediatamente da
seguinte forma “Homologo, sendo ainda de ter em conta que a empresa vencedora tem capital
integralmente nacional”.
Foi então celebrado um contrato entre o Município de Sintra e a “AUTOCARRO
AMARELO, Lda”, para o fornecimento de serviços de transporte escolar no Município de
Sintra.
A empresa “FULL SPEED, SA” pretende reagir por todos os meios disponíveis,
inclusivamente porque a secretária de um dos membros do júri é irmã do sócio maioritário
da empresa vencedora. Esta empresa pretende ainda ser ressarcida das despesas que teve
com a apresentação da proposta.
A empresa “SEMPRE VELOZ, SA” também pretende reagir por todos os meios, mas tem
dúvidas sobre se o pode fazer por a situação estar já “consumada”, uma vez que o contrato
foi celebrado.
RESOLUÇÃO

Importa analisar os seguintes atos/situações neste caso prático:

a) O despacho do PCMS e o procedimento que o originou


b) O contrato celebrado entre o Município de Sintra e a “AUTOCARRO
AMARELO. Lda”
c) A reação da “FULL SPEED, SA”
d) A reação da “SEMPRE VELOZ, SA”

1. O despacho do PCMS e o procedimento que o originou

a. Competência do PCMS.
Segundo a Lei n.º 169/99, de 18/9 a competência para organizar e gerir os transportes
escolares pertence à Câmara Municipal e não ao Presidente da Câmara (artigo 64.º-1-m)).
Igualmente, a alínea q) do mesmo número e artigo determina que é à Câmara que compete
a aprovação dos programas, cadernos de encargos e adjudicação relativos à aquisição de
bens e serviços.
Portanto, parece evidente que deveria ter sido a CMS a praticar este ato e não o seu
Presidente. Regista-se um vício de incompetência relativa, pois tudo se passa dentro do
Município de Sintra. O desvalor é de anulabilidade (artigo 135.º CPA).

b. A exclusão da “FULL SPEED, SA” por ter dívidas à Segurança Social.


A questão é de interpretação da lei.
Se entendermos que as dívidas à Segurança Social se incluem no conceito de “dívidas fiscais”,
então não se verifica nenhum vício. Se, pelo contrário, entendermos que as “dívidas fiscais”
são apenas as dívidas relativas a impostos não pagos e não incluem as dívidas relativas a
outras contribuições obrigatórias, então a exclusão da “FULL SPEED, SA” não poderia ter
ocorrido e ato final do procedimento padece de um vício de violação de lei, sendo anulável
(artigo 135.º CPA).

c. A escolha da “AUTOCARRO AMARELO, Lda” por “…já prestar os mesmos


serviços em vários outros municípios da região de Lisboa”.
A escolha por estas razões pode levar à existência de um vício, ou não.
Se entendermos que o júri e o PCMS estavam apenas a referir a experiência superior desta
empresa face às outras, não existirá qualquer vício, desde que a experiência na matéria seja
um dos critérios de escolha dos concorrentes.
Pelo contrário, se o PCMS e o júri estão apenas a valorizar uma proposta por lhes dar
“confiança” o fato de esta empresa já prestar um serviço a um Município relevante do país,
então encontramos um vício, resultante de uma violação do Princípio da Imparcialidade
(artigo 266.º-2 CRP), por ter sido ponderado um aspeto não relevante de entre os vários
critérios de ponderação possível. Pode igualmente sustentar-se que exista uma violação do
Princípio da Proteção da Concorrência (artigo 81.º-f) CRP). Nesse caso verifica-se um vício
de violação de lei, com o desvalor de anulabilidade.

d. A escolha da “AUTOCARRO AMARELO, Lda” por ter ”…capital


integralmente nacional”.
Outro dos critérios relevantes para adjudicar a prestação deste serviço à “AUTOCARRO
AMARELO, Lda” foi a circunstância de ser uma empresa nacional.
Tal pode originar uma violação do Princípio da Igualdade (artigo 12.º CRP), também
aplicável a estrangeiros (artigo 15.º CRP).
Eventualmente existirá ainda violação de disposições do Direito da União Europeia que
proíbam a discriminação entre pessoas singulares e coletivas dos vários Estados-Membros,
caso os capitais das outras empresas sejam de nacionais de outros Estados-Membros da
UE.
O vício é a violação de lei e o desvalor a anulabilidade (artigo 135.º CPA).

e. A circunstância de a secretária de um dos membros do júri ser irmã do


sócio maioritário da “AUTOCARRO AMARELO, Lda”.
O artigo 44.º-1-b) do CPA determina que nenhum titular de órgão ou agente da
Administração pode intervir em procedimento se nele tiver interesse um parente até ao 2.º
grau da linha colateral.
É certo que a secretária do membro do júri teve intervenção no procedimento. Também é
certo que uma irmã está incluída no conceito de “parente até ao 2.º grau da linha colateral”.
Porém, já não é assim tão certo que a mesma seja qualificável como “órgão ou agente” para
efeitos deste artigo, uma vez que a mesma não tem competência decisória. Além disso, é
discutível se a secretária do membro do júri, que não tem competência para decidir “tem
interesse no procedimento”, como exige o artigo 44.º-1-b) CPA.
Portanto, das duas uma: ou entendemos que a secretária “tem interesse no procedimento”
e, nesse caso, há um vício de violação de lei, ou não e, nesse caso, não há qualquer vício. O
ato seria anulável, nos termos do artigo 51.º-1 CPA.

2. O contrato celebrado entre o Município de Sintra e a “AUTOCARRO


AMARELO, Lda”

a. As invalidades detetadas no procedimento de adjudicação afetam o


contrato?
Houve um procedimento administrativo de concurso público para escolher o co-
contratante. No final desse procedimento há um ato administrativo de adjudicação, através
do qual se escolheu a empresa “AUTOCARRO AMARELO, Lda”. Depois, o Município
de Sintra celebrou o contrato com essa empresa, na sequência da sua escolha.
Como vimos, há vários vícios no procedimento, os quais afetam o ato de adjudicação.
Esses vícios também se transmitem ao contrato, uma vez que ele vem na sequência do
procedimento e do ato de adjudicação?
O artigo 283.º do Código dos Contratos Públicos (CCP) responde a esta questão.
Determina o artigo 283.º-2 CCP que as anulabilidades que ocorram no procedimento se
transmitem ao contrato. Tal só poderá ser evitado por decisão do tribunal, nos casos do
artigo 283.º-4 CCP.

b. A circunstância de o contrato já ter sido celebrado impede que se invoquem


vícios ocorrido no procedimento de adjudicação, como teme a “SEMPRE
VALOZ, SA”?
Não. Como se viu na resposta à questão anterior. Os vícios e desvalores do procedimento
afetam o contrato podendo, em certas situações, ser salvaguardados efeitos produzidos
pelo contrato (artigo 283.º e 283.º-A CCP).

3. A reação da “FULL SPEED, SA”

a. Quais os meios de reação à disposição da “FULL SPEED, SA”?


Como vimos, a exclusão da “FULL SPEED, SA” pode ter sido inválida.
Para reagir contra esta decisão, esta empresa deveria ter lançado uma ação urgente, em
matéria de contencioso pré-contratual, na qual pediria a impugnação do ato de exclusão
(artigo 100.º-1 CPTA), uma vez que se trata de um procedimento para celebração de um
contrato de prestação de serviços. Esta ação deveria ser lançada no prazo de um mês
(artigo 101.º CPTA).
Esta empresa também poderia lançar uma ação pedindo a condenação do Município ao
pagamento de uma indemnização. A ação a utilizar será uma ação administrativa comum,
nos termos do artigo 37.º-2-f) CPTA. Esta ação segue os termos do processo civil (artigo
35.º CPTA).
Em princípio, embora seja discutível face à natureza urgente da primeira ação, será possível
cumular, na mesma ação, os dois pedidos: o de impugnação do ato e o de condenação do
Município ao pagamento de uma indemnização (artigos 4.º CPTA). Nesse caso, a ação
segue a forma de ação administrativa especial e não a de ação administrativa comum (artigo
5.º CPTA).

b. A “FULL SPEED, SA” poderá ser ressarcida das despesas que teve com a
apresentação da proposta?
Que esta empresa pode lançar uma ação pedindo a condenação da Administração ao
pagamento de uma indemnização, não há dúvidas. Mas já é uma questão diferente saber se
terá êxito nessa ação. Ou seja, se, nos termos da lei, lhe é devida uma indemnização pela
exclusão.
Estará em causa uma indemnização a título de responsabilidade civil extracontratual do
Estado por ato ilícito, uma vez que a razão de ser dos eventuais danos se funda na prática
de um ato em desconformidade com a lei (ato ilícito).
São requisitos para que possa haver uma indemnização a título de responsabilidade civil
extracontratual do Estado por ato ilícito: i) a existência de ilicitude, ii) culpa, iii) um dano e
iv) nexo de causalidade entre o facto gerador do dano e o dano (artigo 7.º e segs da Lei n.º
67/2007, de 31/12).
Em primeiro lugar, como vimos, é possível sustentar que o ato de exclusão foi
invalido/ilícito. Em segundo lugar, face a um ato ilícito, presume-se a existência de culpa
leve (artigo 10.º-2 da Lei n.º 67/2007, de 31/12), cabendo à Administração provar que ela
não se verifica. Em terceiro lugar, parece que existem danos correspondentes ao custo
suportado pela empresa com a apresentação da proposta. Finalmente, em quarto lugar,
pergunta-se se existirá uma relação de causa-efeito entre a exclusão e o dano. Em princípio,
sim. Mas há um aspeto que pode gerar discussão, uma vez que, mesmo que a empresa não
tivesse sido excluída, não seria garantido que ganhasse o concurso. E, nesse caso, também
deveria ser ela (e não a Administração Pública) a suportar os custos (e o risco) inerente à
sua candidatura.
Enfim, existem razões para sustentar que os pressupostos da responsabilidade civil
extracontratual do Estado por ato ilícito estão preenchidos, mas não se trata de uma
questão absolutamente cristalina.
De qualquer forma, é preciso ter em conta que a obrigação de indemnizar nunca poderia
levar o Município de Sintra a pagar à empresa o montante previsto no contrato que veio a
celebrar com outra empresa. No máximo (e, mesmo assim, é discutível) estará em causa
“…reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.”
(artigo 3.º-1 da Lei n.º 67/2007, de 31/12). Ou seja, no limite estará em causa o pagamento
de despesas com a apresentação da proposta.

4. A reação da “SEMPRE VELOZ, SA”

A única questão que se coloca, neste ponto, é a de saber quais os meios de reação que a
“SEMPRE VELOZ, SA” tem à sua disposição.
Para reagir contra a adjudicação, esta empresa pode lançar uma ação urgente, em matéria de
contencioso pré-contratual, na qual pediria a impugnação do ato de adjudicação (artigo
100.º-1 CPTA), uma vez que se trata de um procedimento para celebração de um contrato
de prestação de serviços. Esta ação deveria ser lançada no prazo de um mês (artigo 101.º
CPTA).

Você também pode gostar