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8706-Texto Do Artigo-28769-1-10-20160624
8706-Texto Do Artigo-28769-1-10-20160624
Lucas Angioni
Universidade Estadual de Campinas/CNPq
ABSTRACT: I examine step by step Aristotle’s argument in Nicomachean Ethics VI with the
aim of understanding how phronesis and its correct reason determine the intermediacies so
that a virtuous person is able to effectively perform his actions according to his purposes. In
order to determine the intermediacies, phronesis involves a good use of deliberative
reasoning but also a quasi-perceptual evaluation of singular factors on which every action
depends. I claim that this second task attributed to phronesis allows us a better
understanding of its definition as “praktike” as well as of its interdependency with moral virtue.
KEYWORDS: moral virtue, prudence, practical wisdom, reason, intermediacy, prohairesis.
1Versão preliminar destes comentários foi discutida em Agosto de 2011 em seminários realizados na
UFRGS. Agradeço a Raphael Zillig, Inara Zanuzzi e Priscilla Spinelli por terem me dado essa
oportunidade de discussão. Suas inúmeras críticas, sugestões e objeções muito contribuíram para
aprimorar a versão final. Agradeço também aos alunos Fernando Martins Mendonça, Marcos Peraçoli e
Breno Zupollini por diversas observações sobre a tradução e os comentários.
INTRODUÇÃO
O livro VI da Ética a Nicômaco pode ser entendido como um tratado
sobre a phronesis (“prudência”, “sabedoria prática” ou, como preferi
traduzir, “sensatez”). Muito se discute a origem desse livro: pertenceria ele à
Ethica Nicomachea ou à Ethica Eudemia? Essa questão depende de como
avaliamos a discussão sobre a virtude moral nos livros precedentes – quer na
Ethica Nicomachea ou na Ethica Eudemia –, e como compreendemos as
discrepâncias entre essas duas obras. Os comentários que aqui oferecemos
não examinam essas questões, nem pressupõem respostas determinadas para
as mesmas. Estaríamos mais inclinados a tomar o “tratado sobre a phronesis”
como pertencente à Ethica Eudemia, pois algumas similaridades na
formulação das questões e no uso do jargão são bem evidentes. O primeiro
capítulo do “tratado sobre a phronesis”, por exemplo, parece ser anunciado
em EE 1222b7-8: “devemos investigar mais tarde o que é a razão correta, bem
como qual é a delimitação [horos] que se deve observar para estabelecer a
mediedade”. O uso do jargão “horos” (no sentido de “delimitação” ou
“limite” das mediedades) ocorre em diversas outras passagens: 1222a17,
1249a21-23 (cf. EN 1138b22-25), 1149b23. O uso do jargão “skopos” (“alvo”)
em conexão com as mediedades e com a razão correta também aparece várias
vezes (1226b30, 1227b20-24, 1249b24), contra apenas uma ocorrência
relevante na EN (1106b32). A discussão das virtudes naturais é anunciada em
EE 1234a27-30. Além do mais, a similaridade entre EN VI 1 e o trecho EE
1149a21-b6 é tão grande que dá a este último a aparência de pastiche do
primeiro, com a repetição literal, em 1249a6, do mesmo lema “isto é
verdadeiro, mas não é claro”, que ocorre em 1138b25-26.
Não obstante, não faltam argumentos para defender que o tratado da
phronesis pertence à Ethica Nicomachea. Estudo mais meticuloso da razão
correta também é anunciado e prometido em EN 1103b32-34. Além disso, a
definição de virtude do caráter dada em EN 1106b36-1107a2 é muito mais
apropriada às discussões empreendidas no “tratado da phronesis” do que a
definição dada em EE 1227b8-10, pois nesta última não se faz nenhuma
referência à razão correta, nem ao “phronimos”. De modo similar, a
discussão sobre as dificuldades em se estabelecer a “mediedade correta” é
muito mais detalhada em EN II (1106b8-35; 1109a24 ss.; 1109b14-23 = EN
IV, 1126a34 ss.) do que em EE II, de modo que seria mais verossímil julgar
que a primeira, não a segunda, exige e justifica a discussão mais
pormenorizada sobre a razão correta do phronimos.
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Comentários a EN VI
1138b21: “habilitação” traduz “hexis”. As outras opções disponíveis
seriam “disposição” e “condição”. No uso técnico que Aristóteles faz desse
termo no terreno de sua teoria moral, dois fatores são proeminentes: (I)
“hexis” remete às disposições internas do agente – o modo pelo qual o agente
lida com os desejos, as emoções, os prazeres e as dores, ao efetuar uma ação
ou passar por uma dada situação; (II) “hexis” remete a uma capacidade de
agir sedimentada no agente pela prática habitual das mesmas ações que caem
sob o domínio dessa capacidade. Esses dois fatores se ligam a dois usos do
verbo “echo”: o uso de expressões como “pôs echein” (cf. 1105a31; 1144a18);
o uso do verbo “echo” como auxiliar, complementado por infinitivo, no
sentido de “ter o poder de”, “ser apto/ habilitado a”. “Condição” é um termo
muito fraco para captar qualquer um desses dois fatores e, além do mais,
sugere algo meramente transitório ou momentâneo, ao passo que a hexis é
algo constante. “Disposição” é um termo mais apropriado ao primeiro fator,
ao passo que “habilitação” é mais apropriado ao segundo. Escolhemos
“habilitação” por julgar que, nos contextos mais importantes do livro VI, o
fator (II) é mais importante que o fator (I), mas reconhecemos que
“disposição” seria tradução mais acertada para alguns contextos (p. ex.
1120b9, 1127b2, 15).
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texto nos poderia levar a dizer que essa definição parece ser como “a
conclusão do silogismo do ‘o que é’” (Segundos Analíticos 94a7-9, De Anima
413a13-20), na qual “falta a causa”. No entanto, parece-nos que o adjetivo
“praktike” (juntamente com a expressão “a respeito daquilo que é um bem ou
um mal para o homem”) introduz exatamente o “termo B”, isto é, apresenta
a causa que não apenas faz o definiendum ser o que é, mas também explica
por que o definiendum tem como propriedades básicas as características
captadas pelos demais termos do enunciado definiens. É precisamente por ser
“realizadora de ações boas para o ser humano” que a sensatez é “verdadeira”,
no sentido acima indicado, o qual envolve como elemento constituinte a
verdade teórica na determinação dos modos de realizar ações: a expressão
“pela razão” faz as vezes do “termo A”. Aristóteles, no entanto, é bem vago
ao dizer que a sensatez é realizadora de ações “pela razão”: “razão” sugere
antes a noção de raciocínio deliberativo, e não capta o que há de mais
específico na phronesis, que é a avaliação quase perceptual dos fatores
singulares dos quais depende a ação. Não seria exagero, assim, sugerir que a
definição de sensatez oferecida por Aristóteles consiste em um enunciado no
qual, embora a causa esteja presente, como termo B, falta identificar de modo
apropriado a diferença mais específica do definiendum, o termo A. A razão
pela qual insisito nesse ponto é que os itens (I) e (IV) acima explorados
dependem fortemente da associação entre phronesis e percepção, ou em
outros termos, da associação entre phronesis e avaliação correta dos fatores
singulares últimos, que não estão considerados no resultado da deliberação
(cf. 1141b14-16). O próprio Aristóteles parece dar-se conta dessa dificuldade
em 1140b28, ao admitir que a phronesis não é apenas uma habilitação (para
agir etc.) pela razão. A phronesis deve incluir ainda, como fator relevante, a
correta avaliação dos itens singulares. Um ponto importante é que o termo
“logos” poderia ser entendido ou no sentido de “raciocínio” que efetua a
deliberação, ou no sentido de “cômputo” adequado dos fatores singulares
últimos. Mas nada na presente definição sugere que “logos” deva ser
entendido com ênfase maior neste segundo sentido, o qual, no entanto, seria
o mais relevante para uma definição completa da phronesis. Por isso, é
razoável tratar este enunciado como uma definição não completa.
Finalmente, convém comparar esta definição de “sensatez” com a
definição de “virtude do caráter” dada em 1106b36-1107a2: ambas são
habilitações para agir, mas, na definição da virtude do caráter, a eficácia
prática está já pressuposta na noção de “habilitação” e o acento proeminente
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1142b2-5: “se pode deliberar por muito tempo etc.”: Aristóteles rejeita
a identificação entre boa deliberação e argúcia. No entanto, seu argumento
não afirma que a boa deliberação (euboulia) prescinde da rapidez na
deliberação (de outro modo, isso contradiria o que ele afirma em 1142b27);
ele apenas se fia na premissa de que é possível deliberar durante longo tempo,
bem como na opinião comum de que é preciso deliberar lentamente.
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bem; não obstante, ele delibera corretamente em vista daquilo que estipulou
como fim. A correção moral que Aristóteles exige da boa deliberação descarta
ambos esses casos. Ver comentário seguinte.
Na linha 1142b19, há uma corrupção no texto, mas julgo que o
trecho “ho protithetai idein ek tou logismou teuxetai” faz pleno sentido no
contexto, pois basta tomar “ek tou logismou” com “ho protithetai idein”
(“aquilo que se propõe a saber pelo raciocínio”), ou então, no caso de se
optar pela excisão de “idein”, basta compreender que “protithetai” inclui
implicitamente o infinitivo do verbo da oração principal (“ho protithetai ek
tou logismou [tunchanein] teuxetai”).
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Por um lado, “aquilo que se deve fazer” poderia ser entendido como se
remetesse à ação a ser implementada, descrita como bem a ser realizado, ao
passo que “aquilo através de que [diÊ hou] se deve fazer” remeteria aos meios
ou métodos “através dos quais” a ação poderia ser implementada. Nesta
opção, Aristóteles teria em vista o caso em que a deliberação envolve o
propósito de fazer um bem, mas por meios moralmente reprováveis (por
exemplo, no caso em que se formula o propósito de dar suporte financeiro a
um amigo falido, mas por meio de dinheiro roubado). Por outro lado,
“aquilo que se deve fazer” poderia ser entendido como se remetesse à ação a
ser implementada, descrita na suposta conclusão do raciocínio deliberativo,
ao passo que “aquilo por que [diÊ hou] se deve fazer” remeteria ao fim que
justificaria a realização dessa ação, descrito como termo mediador do
“silogismo deliberativo”. Assim, Aristóteles teria em vista o caso em que a
deliberação chega, na conclusão, a determinar a ação correta a ser feita, mas
falha na justificação da ação, por não ter partido do fim moralmente correto
que inspira tal ação, (em favor dessa interpretação, ver EE 1226b22-30).
A linguagem da silogística não ajuda muito neste caso. Não há em
Aristóteles uma noção consistente e consolidada de “silogismo prático”, ao
contrário do que muitos supõem. Aristóteles emprega o termo “silogismo”,
de fato, bem como, em poucos casos, expressão equivalente a “prático” (cf.
1144a31-32). No entanto, Aristóteles está longe de ter esclarecido as regras
para a formulação correta desses silogismos – está longe de ter formulado
regras para a “exposição dos termos” (no sentido em que essa expressão é
entendida em Primeiros Analíticos I 34-40) ou para a quantificação das
proposições. Aristóteles concebeu o silogismo como um tipo de argumento
válido, isto é, um tipo de argumento no qual, em virtude de sua mera forma
lógica, a conclusão não pode ser falsa se as premissas são conjuntamente
verdadeiras. Se Aristóteles não puder mostrar como a forma lógica de um
silogismo prático garante sua validade (todos os silogismos apresentados em
Motu Animalium 7, por exemplo, são argumentos inválidos), a noção de
“silogismo prático” torna-se mera metáfora. É bem provável que Aristóteles
tivesse em vista, tão somente, uma vaga analogia com a noção de silogismo.
No livro II dos Segundos Analíticos, o vocabulário silogístico aparece para
introduzir a estrutura triádica da causalidade. Aristóteles poderia ter em vista,
no caso da teoria moral, tão somente essa estrutura triádica: como análogo
do termo menor, teríamos uma ação qualquer; como análogo do termo
maior, teríamos um predicado moral, ou um adjetivo verbal que atribuísse à
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ação um valor moral (por exemplo, prakteon = deve ser feita); como análogo
do termo mediador, teríamos o fim (a “causa final”) que justificaria o valor
moral de uma ação. Ou, alternativamente, o análogo do termo menor seria o
agente, o análogo do termo maior seria uma ação particular capaz de realizar
certo fim, e o análogo do termo mediador seria o fim que o agente deseja e
que requer meios apropriados para sua realização. Outra opção, ainda, seria
aquela que representasse a causa eficiente da ação: o termo maior
representaria a ação a ser feita, e o termo mediador introduziria uma causa
eficiente (um “meio”) capaz de realizar tal ação. Aristóteles, no entanto, é
bem vago a esse respeito.
Quanto ao passo em questão, é difícil decidir se Aristóteles tem em
vista casos em que o agente se propõe a fazer a ação correta, mas falha na
justificação das razões que levaram à sua decisão, ou casos em que o agente se
propõe a fazer um bem, mas por meios moralmente reprováveis.
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fatores singulares cuja avaliação não estava prevista na lei universal (cf.
1137a33 ss.).
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1144a7-9: “a virtude faz o alvo ser correto, ao passo que a sensatez faz
ser correto aquilo que leva ao alvo”: o alvo em questão é precisamente o
mesmo que foi mencionado em 1138b22, no início do livro VI: trata-se de
um propósito (cf. 1144a20) ainda geral, que precisa ser mais especificado pela
avaliação correta dos fatores singulares em cada circunstância. O propósito
em si mesmo, conforme Aristóteles diz em 1139a23 e 1139b 4-5, envolve uma
composição entre o desejo por um dado fim e a delimitação racional de
modos (ou meios) para a consecução desse fim. Dado que o agente só pode
ser virtuoso se efetivamente realizar ações conforme seu propósito, fica claro
que a virtude do caráter depende da sensatez, porque é a sensatez que se
responsabiliza por delimitar os modos eficazes e apropriados para a
realização de ações conforme ao propósito. O trabalho da sensatez é duplo:
em um primeiro plano, a sensatez conduz o raciocínio deliberativo e
especifica o desejo em um propósito factível; em um segundo plano, a
sensatez avalia os fatores singulares envolvidos nas circunstâncias de cada
ação. Por outro lado, a sensatez também depende da virtude do caráter: sem a
correção do fim, garantida pela virtude do caráter, a mera habilidade em
especificar modos apropriados de realizar fins seria apenas destreza (cf.
1144a23-29).
1144a13-20: “alguns que praticam as coisas justas ainda não são justos
etc.”: esta passagem deve ser comparada com EN II, 1105a28-33ss. Neste
último trecho, Aristóteles estabelece uma série de requisitos para discernir se
uma dada ação realmente é uma ação virtuosa: não basta que a ação apresente
as características (por assim dizer) externas pelas quais ela poderia ser descrita
pela lei ou por um código moral, pois lhe é preciso satisfazer uma série de
exigências igualmente importantes: (I) ser executada de modo consciente (não
involuntário), com conhecimento do que se faz, (II) ter sido escolhida pelo
seu valor moral intrínseco, (III) ser executada de modo firme e sem conflito
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1144a20-22: “é a virtude que faz o propósito ser bom, mas tudo aquilo
que compete fazer em vista dele não compete à virtude, mas a outra
capacidade”: “virtude”, neste contexto, se refere à virtude do caráter (cf.
1144a7-8, 1106b36-1107a2): de fato, é a virtude do caráter que, sendo uma
habilitação relativa ao propósito, faz o propósito ser moralmente bom (cf.
EE 1227b12-15, 1228a1-2). Alguém poderia objetar que esse ponto parece
contradizer o que Aristóteles afirma em 1145a4-5, a saber, que a correção do
propósito depende da sensatez. Esta última afirmação, além do mais, parece
coadunar-se com a análise das noções de propósito e deliberação feita em EN
III: se o propósito é o ponto de chegada de um processo de deliberação, e se a
deliberação é de competência da sensatez, seria de se esperar que Aristóteles
dissesse que a sensatez é que é responsável pela correção do propósito. No
entanto, não há nenhuma inconsistência entre essas afirmações. Por um lado,
é claro que a sensatez é responsável pela parte noética envolvida no
propósito: a sensatez deve delimitar, pelo raciocínio correto, os meios
apropriados para a execução do fim envolvido no propósito (cf. EE 1227b39-
1228a1). Por outro lado, é a virtude do caráter que garante a correção do
desejo envolvido no propósito: a virtude do caráter faz o desejo acolher como
fim aquilo que é moralmente correto (cf. EE 1228a1-2).
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nem má, do ponto de vista moral – a destreza em si mesma não envolve uma
proharesis boa ou uma má (cf. 1152a11-14). Os fins que a destreza se propõe
a realizar podem ser ruins – a destreza torna-se, assim, esperteza ou velhacaria
– ou podem ser bons, de modo que a destreza se torna, nesse caso, sensatez.
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prometer uma discussão posterior, apenas sugere que tais virtudes são
propícias para o engendramento da virtude propriamente dita.
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1144b27, 29, 30: é difícil – e talvez não seja desejável – traduzir todas
as ocorrências de “logos” neste contexto por uma mesma expressão, pois,
como dissemos, a mudança que Aristóteles propõe na definição de virtude do
caráter envolve também uma alteração no sentido de “logos”. O sentido
básico subjacente é o de conhecimento racional: Sócrates (1144b29) dizia que
as virtudes são logoi no sentido de conhecimentos racionais, mas Aristóteles
afirma que elas são acompanhadas por conhecimentos racionais, a saber, pelo
uso correto da razão no raciocínio deliberativo e no cômputo dos fatores
singulares relevantes.
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1145a1-2: “todas ocorrem junto com a sensatez, que é uma só”: o ponto
mais difícil nesta sentença, em vista do debate mencionado no comentário
anterior, consiste no quantificador “pasai” (“todas”) em 1145a2. Outros
problemas filológicos podem ser discutidos (por exemplo, se o dativo
“phronesei” é regido por “hama” ou por “hyparxousin”, se se deve ler
“hyparchousei” ou “ousei”), mas eles não interferem tanto na compreensão do
argumento. O quantificador “pasai”, no entanto, pode ser tomado ou no sentido
distributivo (“cada virtude, respectivamente”) ou no sentido conjuntivo (“todas as
virtudes juntas”). A interpretação distributiva basta para eliminar qualquer
dificuldade contra a segunda opção mencionada no comentário anterior. O que
Aristóteles quer dizer é que cada virtude moral, respectivamente, depende da
sensatez e não se pode dar sem ela, ao passo que a sensatez depende apenas da
virtude do caráter genericamente, sem depender especificamente desta ou daquela
virtude, sem depender do conjunto de todas elas. O seguinte exemplo pode
elucidar o ponto: suponha uma casa com uma única linha telefônica e quatro
aparelhos conectados por extensão à mesma linha; ora, todos os aparelhos (isto é,
cada um, respectivamente) dependem da linha para funcionar, ao passo que a
linha depende de algum dos aparelhos para funcionar, sem depender
determinadamente deste ou daquele e, mais importante, sem depender dos quatro
aparelhos em bloco. A observação contida na frase “que é uma só” apenas
demarca essa assimetria numérica nas relações de dependência mútua (por isso,
inclusive, preferimos a lição ousei em 1145a2).
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1145a4-5: “o propósito correto não se pode dar sem sensatez nem sem
virtude”: mais uma vez, Aristóteles assinala a interdependência entre sensatez e
virtude do caráter (cf. 1144b30-32, 1144a26-b1, 1144b16-17). A correção moral do
propósito é, pelo lado da habituação do desejo, garantida pela virtude moral (cf.
1144a20), mas não se perfaz sem a colaboração da sensatez, que determina por
deliberação os termos específicos em que o propósito propõe a realização do fim
moralmente correto. Além do mais, a sensatez é requisitada para aplicar o
propósito do modo adequado, pela avaliação dos fatores singulares.
1145a5-6: “uma [nos faz fazer] o fim, a outra leva a fazer as coisas que
conduzem ao fim”: essa divisão do trabalho entre virtude do caráter e
sensatez concorda plenamente com o que foi dito em 1144a6-9 e 1144a20-22.
Do ponto de vista filológico, esta sentença é difícil pela ausência de verbo em
sua primeira metade. Julgamos que “poiei prattein” está já suposto na
primeira metade da sentença, de modo que Aristóteles está a dizer que a
virtude nos faz fazer, isto é, nos motiva a fazer, o fim. Outra opção seria
assumir em 1145a5 expressão similar às que encontramos em 1144a6 e
1144a20: “uma [sc. a virtude] faz o fim [ser correto]”.
Email: angioni.lucas@gmail.com
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