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XADREZ EM JOGO: REFLEXÕES SOBRE SEU SENTIDO FORMATIVO NA ESCOLA

Paulo Giovanni de Almeida Nicolini1


Ana Cristina Zimmermann2

Resumo: Nos últimos anos, o jogo de xadrez (JX) ganhou mais notoriedade e popularidade devido
à pandemia de SARS-COVID-19 e à minissérie “O Gambito da Rainha”, distribuída pela
NETFLIX. Além desta expansão em popularidade, há um interesse na utilização do xadrez como
uma ferramenta pedagógica na educação escolar, com argumentos tais como ser um meio para o
desenvolvimento psicológico ou para um melhor desempenho acadêmico geral. Este tipo de
justificativa vem ao encontro de inúmeras pesquisas que foram e estão sendo feitas no Brasil e no
mundo, buscando dados que comprovem estes benefícios. Em que pese este cenário favorável ao
desenvolvimento dos estudos do JX em âmbito acadêmico, esta pesquisa visa ampliar a
compreensão sobre este jogo para além do caráter instrumental. As reflexões aqui apresentadas
compõem o corpo teórico de uma pesquisa de mestrado em andamento cujo objetivo é refletir sobre
a inserção do xadrez no ambiente escolar e compreender sua potencialidade formativa ao entrar em
contato com crianças e jovens. Neste contexto, este texto trabalho tem por objetivo valorizar o JX
como objeto cultural e trazer elementos que mostrem sua relevância histórica e simbólica. Para tal
intento, a metodologia consistiu em uma abordagem teórica, a partir da análise de pesquisa
bibliográfica e da articulação dos referenciais encontrados. Sendo assim, em primeiro lugar foram
buscados elementos para compreender o jogo como fenômeno sociocultural. Em seguida, discorreu-
se sobre as particularidades do JX: um jogo portador de um lastro histórico, metafórico e simbólico,
com séculos de história e de diversos momentos em que se mostrou um elemento redutor de
explicações mais complexas. O JX possui um mundo que o legitima ser transmitido às novas
gerações, para que sua prática, sua história e seus simbolismos sejam trabalhados na escola, uma
das instituições responsáveis por transmitir o legado cultural da humanidade. Ao compreender a
instituição escolar como o local em que os espaços, tempos e matérias são feitos para que alunos e
alunas se constituam como sujeitos, o JX pode ser mais um elemento da cultura para contribuir
nesta formação.

Palavras-Chave: Xadrez, Educação, Escola, Formação.

1. INTRODUÇÃO – O SENTIDO DA EDUCAÇÃO

A essência da educação é a natalidade, o fato de que seres nascem para o mundo


(ARENDT, 2007b, p. 223, grifo da autora)

A pensadora alemã Hannah Arendt (1906-1975), no final do seu texto “A crise na


educação”, escreveu sobre uma dupla responsabilidade que as pessoas que se envolvem com o ato
educativo deveriam ter:
A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a
responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a
renovação e a vinda dos novos e dos jovens. A educação é, também, onde decidimos se
amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a

1
Mestrando. Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo.
2
Doutora. Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo.
seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender
alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência
para a tarefa de renovar um mundo comum. (ARENDT, 2007b, p. 247)

A partir dele, depreendemos que, por um lado, existe a responsabilidade com a vida das
crianças, protegendo-as do mundo, ao não “abandoná-las a seus próprios recursos”, entendido como
a preservação e continuidade das necessidades biológicas para que este organismo continue
existindo. Porém, também a autora realça que é necessário se responsabilizar pelo mundo,
protegendo-o das crianças e de todo potencial de renovação que vem com elas. Assim, nesta
perspectiva, a educação possui um duplo compromisso de proteção, tanto com a criança quanto com
o mundo comum. Mas o que seria este mundo?
Em consonância com estas ideias, Carvalho (2013, p. 82) afirma que o mundo é “constituído
por um complexo conjunto de tradições históricas e realizações materiais e simbólicas às quais
atribuímos utilidade, valor e significado”. Deste modo, distanciando-se da compreensão que seria
sinônimo de planeta Terra, como organismo geológico, o conceito de “mundo” carrega a dimensão
do fazer humano, daquilo que os seres humanos construíram ao longo do tempo e que se mantém
através transmissão de geração para geração, podendo ser algo como um disco de música ou um
martelo, bem como uma forma de relacionamento amoroso ou a língua que falamos.
Neste sentido, o mundo é este lugar comum, maior, independente e anterior aos indivíduos:
comum, por ser entendido como algo de todos em geral, e de ninguém em particular, pois “tem a ver
com o artefato humano, com o produto de mãos humanas, com os negócios realizados entre os que,
juntos, habitam o mundo feito pelo homem” (ARENDT, 2007a, p. 62); maior e independente, por
existir apesar das vontades e desejos individuais, que está além dos gostos, mas que tem o potencial
de se perdurar, se for transmitido; anterior, porque foi construído por mãos humanas e se manteve
ao longo do tempo, sobrevivendo às várias gerações. Quando alguém nasce, há um mundo comum
preexistente e a pessoa será apresentada a ele através dos mais velhos. Tudo aquilo que as mãos
humanas criaram física e simbolicamente possui uma característica que Arendt chamou de
durabilidade, que empresta “ao artifício humano a estabilidade e a solidez sem as quais não se
poderia esperar que ele servisse de abrigo à criatura mortal e instável que é o homem” (ARENDT,
2007a, p. 149). É este mundo durável, preexistente, que é o pano de fundo cultural e simbólico para
os novos seres humanos.
Isto que é entendido de forma ampla através do processo educativo, tem na escola o seu
lugar institucional de realização. Segundo Masschelein e Simons (2013), partindo da origem do
termo grego, “skholé”, bem como do início histórico desta instituição, na pólis grega, afirmam que
a particularidade da escola é fornecer “tempo livre”. Com isso, os autores não querem restaurar uma
escola ideal que teria existido em alguma época passada, mas sim buscam refletir sobre “sua quinta-
essência: o que, em si, a escola faz e a qual propósito serve? [...] o objetivo não é o de salvaguardar
uma velha instituição, mas de articular um marco para a escola do futuro” (MASSCHELEIN e
SIMONS, 2013, p. 20 e 29). Desta forma, o ponto principal da especificidade da escola é oferecer
este “tempo livre” para os alunos, aqui entendido como tempo não finalizado, sem uma finalidade
determinada. Isto significa trabalhar com as matérias escolares desatreladas de finalidades utilitárias
imediatas, sem que os estudantes tenham uma destinação prévia do que farão com aquilo. É uma
compreensão de ter um destino livre, mas que o estudante só poderá vivê-lo, realmente, se estiver
preparado (formado).
A partir do exposto, se a educação pode ser entendida, por um lado, como o compromisso de
apresentação do mundo às novas gerações, e se a escola é a instituição responsável pelo contato
entre as crianças e jovens com este legado material e simbólico, o que há no jogo de xadrez (JX)
que legitime sua inserção na escola? Através de que conhecimentos ele pode ser entendido como
um dado deste mundo comum, que também merece ser legado às novas gerações? Em suma, o que
é o mundo do xadrez? Assim, as reflexões aqui apresentadas compõem o corpo teórico de uma
pesquisa de mestrado em andamento cujo objetivo é refletir sobre a inserção do xadrez no ambiente
escolar e compreender sua potencialidade formativa ao entrar em contato com crianças e jovens.

2. ADENTRANDO O MUNDO DO XADREZ


Jogo, esporte, arte, ciência, paixão, loucura, recreação, obsessão – xadre não é uma
dessas coisas, mas todas elas juntas: é um mundo.
(HOCKBERG, 1993, p. XI, tradução nossa)3

Nos últimos anos, o jogo de xadrez (JX) ganhou mais notoriedade e popularidade devido à
pandemia de SARS-COVID-19 e à minissérie “O Gambito da Rainha”, distribuída pela NETFLIX.
Além desta expansão em popularidade, há um interesse na utilização do xadrez como uma
ferramenta pedagógica na educação escolar, com argumentos tais como ser um meio para o
desenvolvimento psicológico ou para um melhor desempenho acadêmico geral. Este tipo de
justificativa vem ao encontro de inúmeras pesquisas que foram e estão sendo feitas no Brasil e no
mundo, buscando dados que comprovem estes benefícios. Em que pese este cenário favorável ao
desenvolvimento dos estudos do JX em âmbito acadêmico, esta pesquisa visa ampliar a
compreensão sobre este jogo para além do caráter instrumental. Assim, não se quer compreendê-lo
como meio para aprender matemática (embora seja útil), nem como meio para estimulação cognitiva
(embora certamente o faça), nem como meio para questões terapêuticas (embora tenha este
potencial). O objetivo é valorizá-lo como objeto cultural e entender como ele se inscreve na cultura,
como ele se tornou um artefato humano que afeta tantas pessoas. Precisa-se conhecer o mundo do

3
“Game, sport, art, science, passion, madness, recreation, obsession – chess is no one thing but all of these things: It is a
world.”
xadrez para compreender o porquê da sua profundidade histórica e de seu alcance global. Se faz
necessário, assim, adentrá-lo, para conhecer os séculos de tradição do jogo, com sua origem e
transformações, seus caminhos por vários locais do planeta, seus jogadores mais renomados e seus
amadores (ou amantes?), suas partidas clássicas com lições que permanecem até hoje e suas
partidas esquecidas pelo tempo, mas que contribuíram para a manutenção de sua prática. Também
faz parte deste universo as várias relações simbólicas e metafóricas em que o jogo esteve presente,
sendo citado por várias personalidades históricos, mas também por pessoas comuns, quando usado
como um modo de facilitar explicações, ajudando a “navegar pela complexidade, reduzindo-a a
conceitos mais simples e manejáveis” (SHENK, 2007, p. 66), como um agente redutor. Enfim,
conhecer o mundo do xadrez exige um aprofundamento nestes âmbitos. Por isso, será utilizada a
palavra “lastro”, já que o sentido figurado dela significa “base (em que se afirma alguma coisa)” 4.
Isto significa que a particularidade do JX é seu lastro histórico, metafórico e simbólico.

a) O jogo de xadrez: portador de um lastro histórico


O jogo chegaria por fim a todas as cidades do mundo, em mais de 1.500 anos de história
contínua. [...] Como pôde um jogo durar tanto, e agradar tão amplamente, ao longo de tão
variadas circunstâncias de tempo, geografia, língua e cultura?
circunstâncias de tempo, geografia, língua e cultura?
(SHENK, 2007, p. 16)

Shenk (2007) pode afirmar “1500 anos” de jogo porque o “ancestral do xadrez” surge no
noroeste da Índia, no século VI: o Chaturanga, nome que vem do sânscrito, formado pelos
vocábulos chatur (quatro) e anga (membros), significando exatamente exército de quatro membros
ou quadripartite. Como afirma Murray, “o jogo de xadrez foi inventado quando algum hindu
inventou um jogo de guerra, e, achando o tabuleiro ashtapada conveniente para seu propósito,
adotou-o como seu campo de batalha” (MURRAY, 2012, p. 55, tradução nossa)5. O ashtapada era
o nome dado ao mesmo tabuleiro que se joga o xadrez até hoje, com a diferença que não havia a
divisão com cores claras e escuras, porém eram as mesmas 8 filas de 8 quadrados cada, totalizando
64. (MURRAY, Ibid., p. 41).
O Chaturanga provavelmente se iniciava como representado a seguir (FIGURA 2):

4
Disponível em https://dicionario.priberam.org/lastro Acesso em 08 de maio de 2023.
5
“the game of chess was invented when some Hindu devised a game of war, and, finding the assapada board
convenient for his purpose, adopted it as his field of battle.”
Figura 2: Chaturanga para quatro pessoas

Fonte: Retirado de SILVA, 2015, p. 28.

Por ser um jogo com dados, a relação entre os números e as peças era da seguinte forma: 1 –
movimento do soldado ou rei; 2 – movimento do barco; 3 – movimento do cavalo; 4 - movimento
do elefante; 5 – movimento do soldado ou rei (igual o 1); 6 – movimento do elefante (igual o 4)
(SÁ, 2021, p. 11). Já o jogo feito com duas pessoas possuía a seguinte distribuição: eram 16 peças,
sendo um rei, um conselheiro, dois elefantes, dois cavalos e duas charretes, como mostrado na
imagem abaixo (FIGURA 3).
Figura 3: Chaturanga para duas pessoas

Fonte: Retirado de SILVA, 2015, p. 27.

E é este jogo entre duas pessoas que será incorporado pelos persas, a oeste da Índia,
provavelmente através de trocas comerciais e culturais entre as duas regiões.6 Sua nomenclatura

6
Murray dedica três capítulos (V, VII e IX) da Parte I – Xadrez na Ásia - de sua monumental obra para as prováveis
variações do Chaturanga para além da Índia. Há jogos semelhantes nos antigos Japão, Coreia, China e Malásia, bem
muda e é no romance Chatrang-namak (“O livro do chatrang”, também sendo traduzido como “O
livro do xadrez”) que aparece como o jogo foi introduzido na Pérsia.
A partir da conquista da Pérsia pelos árabes, em 651, o jogo será incorporado ao mundo
islâmico de uma forma nunca vista até então. Sua nomenclatura se altera para shatranj e são os
árabes que criam os primeiros livros de problemas de xadrez, chamados Mansubas, além de outras
obras como “Elegância no xadrez”, do jogador Ar Razi (847) e o “Livro do xadrez”, de Al Suli
(946).
Toda esta tradição do jogo será recebida pela Europa quando os muçulmanos, através da
expansão iniciada a partir do século VII, chegam às portas da cristandade medieval na primeira
metade do século VIII, depois de conquistar a Península arábica e o norte da África. A partir de
então, lentamente, o xadrez tomará o caminho rumo ao jogo que conhecemos hoje. Acredita-se que
o shatranj foi introduzido na Europa medieval lentamente a partir do século VIII, quando se inicia o
avanço islâmico a partir da Península Ibérica, em 711. Por volta do século XI já estava disseminado
por toda a Europa, da península itálica ao sul até Inglaterra e Islândia ao norte, de Portugal a oeste
até a Rússia ao leste. (LASKER, 1999, pp. 57-8).
O xadrez medieval já havia alterado o shatranj islâmico nos seguintes elementos:
No lugar do elefante, animal quase desconhecido na Europa, foi colocado o bispo – exceto
na França, onde a peça se tornou le fou (o bufão, ou o louco); o ministro do rei foi
substituído pela dama. O tabuleiro, antes dividido em 64 quadrados monocromáticos, agora
apresentava como novidade casas brancas e pretas – não por alguma necessidade vital, mas
simplesmente para tornar os movimentos das peças mais fáceis de serem acompanhados
pelos olhos. Uma vez que o cristianismo não impunha nenhuma proibição de imagens
representacionais, o formato das peças foi também retornando lentamente a uma
reprodução mais literal. (SHENK, op. cit., p. 60-61)

As grandes mudanças internas do jogo se devem a uma busca de maior aceleração. Ainda no
século XIII, cada peão poderá, na primeira jogada, ter a opção de saltar não apenas uma casa como
sempre foi, mas também duas casas. Porém, é em finais do século XV, que uma variante nova,
chamada de “xadrez da rainha enlouquecida”, se tornou cada vez mais popular (SÁ, op. cit., p. 15;
DEXTREIT e ENGEL, 1984, p. 50). Este nome deriva da alteração que coloca o antigo alferza
(ministro) se movimentando para todas as direções (vertical, horizontal e diagonal) quantas casas
fossem permitidas, não podendo saltar sobre nenhuma peça. Além disso, os Bispos deixam de andar
apenas duas casas para também poderem andar quantas forem permitidas. Estas alterações já
aparecem consolidadas na obra de 1497, Repetición de Amores e Arte de Axedrez com LC Juegos de
Partidos, de Luis Ramirez de Lucena. Editado em Salamanca, na Espanha, será considerada a
“certidão de nascimento” do xadrez moderno. Embora ainda houvesse modificações em algumas

como nas antigas Grécia e Turquia. Não sendo nosso objetivo esta parte da história, assinalaremos o que foi resumido
por Sá (2021, p. 12), quando se refere à expansão do jogo: “Para o Leste, onde transforma-se no ‘jogo do elefante’
(Siang K’i, na China) e no ‘jogo do general’ (Tiyang Keui, na Coreia, Sho-gi, no Japão)”.
regras, como os movimentos extraordinários do en passant e do Roque, nesta obra teremos as
movimentações que são encontradas até hoje. Não por acaso, em 1997 foi comemorado
oficialmente os 500 anos de nascimento do xadrez moderno, tendo como referência a obra de
Lucena (BLANCO, 2007).
O que se vê então, a partir do século XVII, com as regras do jogo já estabelecidas, são
avanços na sua compreensão estratégica, com livros de conselhos de como jogar, bem como
reprodução de partidas. Aqui começa a aparecer os grandes tratados sobre o jogo, com seus grandes
jogadores e partidas: Já no século XIX, há a predominância do “xadrez romântico”, estilo de jogo
em que os participantes privilegiam o ataque direto ao rei adversário e a beleza de uma partida está
acima do seu caráter competitivo.
Ao final deste período, o grande enxadrista do século XIX, que revoluciona a forma de
jogar, também considerado oficialmente o primeiro campeão mundial, é o austro-americano
Wilhelm Steinitz. Sintetizadas em seu livro Modern Chess Instructor (Moderno Instrutor de
Xadrez), suas ideias mudarão radicalmente a forma “romântica”, pois aplicará o raciocínio
indutivo7, amplamente utilizado no método científico que começava a se sistematizar no século
XIX, para analisar as partidas e criar suas próprias ideias do jogo. Esta relação do jogo com o
pensamento científico pode ser elucidada da seguinte maneira: como no início do jogo há um
equilíbrio das forças, nenhum dos lados deve empreender um ataque, pois não há condições para tal.
E caso os dois lados joguem conforme os princípios estratégicos até o fim, a partida ficará
empatada. Entretanto, quando um dos lados romper com estes princípios, o outro lado deverá
analisar a posição e jogar no sentido de “explorar as fraquezas do campo adversário para obter
ganhos de espaço, tempo, material e, no final, um ataque de xeque-mate8.” (DEXTREIT e ENGEL,
op. cit., p. 168-169, tradução nossa). Desta forma, fica claro que as decisões em uma partida não
mais terão o único objetivo de chegar ao rei oposto, de forma direta. Antes, deve-se estar atento às
falhas do adversário, ir somando pequenos ganhos, dominar o centro do tabuleiro com peões, não
permitir que o próprio rei se desproteja, para só aí poder ter chance de avançar. Com Steinitz, a
defesa vem primeiro que o ataque; a vitória, antes da beleza. Embora os sacrifícios que marcaram o
período “romântico” possam e devam existir, eles devem aparecer somente como consequência
(raciocínio indutivo) de um jogo estratégico bem encaminhado. Assim, inaugura-se o chamado
“xadrez científico” e surge uma “escola clássica” de como se deve jogar xadrez.

7
“Em linhas gerais, costuma-se dizer que esta forma de raciocínio vai do particular para o geral. Assim, a partir de
casos particulares se observa certa regularidade e essa lógica permite extrair uma conclusão geral. Em outras palavras,
observam-se fatos concretos de maneira detalhada e, posteriormente, propõe-se uma lei que explica a regularidade
desses acontecimentos”. Disponível em https://conceitos.com/raciocinio-indutivo/ Acesso em 03 maio 2023.
8
“exploiter les faiblesses du camp adverse pour aboutir à des gains d’espace, de temps, de matériel et, tout à fait à la
fin, à une attaque de mat.”
Percebe-se, deste modo, que a análise mesma do jogo vai se tornando cada vez mais
complexa. Inclusive, as ideias da perspectiva “científica” também serão atacadas a partir da década
de 1920 e 1930, quando surge um grupo de grandes jogadores que questionam os princípios
vigentes como “dogmas” para se jogar bem. Assim, enxadristas como o tcheco Richard Réti e o
letão-dinamarquês Aaron Nimzovitch estarão à frente da chamada “escola hipermoderna” de
xadrez. Como explica Sá (2020, p. 18),
a essência do hipermodernismo, que foi comparado na pintura tanto ao Impressionismo
quanto ao Cubismo, baseia-se em sua descrença dos dogmas clássicos. Ele ampliou os
horizontes da conduta da partida, com a contribuição de novas teorias que não negavam a
importância do centro, mas propunham um método inovador para controlá-lo a distância,
sem ocupá-lo: os bispos em fianchetto (nas maiores diagonais do tabuleiro). Assim, o
centro de peões do inimigo poderia ser atacado com o auxílio dos cavalos e dos peões
laterais.
A partir da segunda metade do século XX, o xadrez foi ganhando cada vez mais
popularidade, que inclusive extrapolou os tabuleiros. Um dos eventos envolvendo o jogo que
repercutiu para além dele mesmo foi a disputa pelo título mundial de 1972, entre o soviético Boris
Spassky e o norte-americano Robert James (Bobby) Fischer. Simbolizado em 64 casas a mesma
disputa da Guerra Fria entre EUA e URSS, o chamado “match do século” mobilizou não só a
comunidade enxadrística como também parte da população da época: “a transmissão pela PBS da
disputa entre Fischer e Spassky [...] foi o programa de maior audiência da PBS até hoje” (SHENK,
op. cit., p. 176). Outro evento que é lembrado por muitas pessoas é a disputa entre o campeão Garry
Kasparov e a máquina da empresa IBM, Deep Blue, realizado em 1997. Após 6 partidas, o
computador venceu por 3,5 a 2,59.
Atualmente, o jogo está difundido em todo o planeta, com a FIDE (Federação Internacional
de Xadrez) sendo responsável não só pela regulamentação do seu aspecto esportivo, mas também
como incentivadora da disseminação do jogo através de 15 comissões internas. A última Olimpíada
de Xadrez10, ocorrida em Chennai, na Índia, em 2022, contou com o recorde de 185 nações
participantes, dos cinco continentes.
Por fim, este amplo panorama não pretende esgotar todos os períodos e detalhes. Espera-se,
contudo, que se perceba a profundidade histórica e o alcance global deste jogo. Sua história é
elaborada por milhões de pessoas ao longo dos séculos, não só em relação às regras, como também
a toda uma tradição de como jogá-lo, com debates teóricos, estudos e milhões de partidas. Portanto,
conclui-se que “é quase certo ter sido (assim como a Bíblia e a internet) o resultado de anos de

9
No xadrez cada partida vale 1 ponto e em caso de empate, 0,5 ponto para cada jogador. Assim, foram três empates,
duas vitórias para Deep Blue e uma para Kasparov.
10
Embora o Xadrez não seja uma modalidade olímpica, a Olimpíada de Xadrez acontece desde 1927 e ocorre a cada
dois anos, com jogadores defendendo sua nacionalidade em equipe, com quatro jogadores de um país enfrentando
quatro adversários de outro. Cf. https://chessolympiad.fide.com/world-record-in-number-of-countries-participating-for-
the-world-chess-olympiad/ Acesso: 02 ago. 2022.
ajustes, por um grupo amplo e descentralizado; um trabalho lento realizado por uma inteligência
coletiva” (SHENK, op. cit., p. 29).

b) O jogo de xadrez: portador de um lastro metafórico e simbólico.


[O xadrez] tornou-se uma metáfora popular e flexível das idéias abstratas e dos sistemas complexos, e um
instrumento eficaz pelo qual os cientistas podiam melhor compreender a mente humana.
(SHENK, 2007, p. 16-17)

O mundo do xadrez não é composto apenas pela sua história. David Shenk, no seu livro “O
jogo imortal”, colocou como subtítulo uma frase muito interessante: “o que o xadrez nos revela
sobre a guerra, a arte, a ciência e o cérebro humano”. Assim, é como se o jogo, com peças de
madeira sobre um tabuleiro de 64 casas, tivesse o poder de comunicar algo sobre nós, humanos.
“Revelar” algo que ficasse mais fácil de compreender através dele, como se possuísse
potencialidade de reduzir aos elementos simples do jogo uma complexidade existente em outras
áreas. É o que está na epígrafe mencionada: para além do ato de jogá-lo, o xadrez foi integrado à
vida de pessoas de segmentos diferentes da sociedade, exatamente por ser uma “metáfora popular e
flexível das ideias abstratas e dos sistemas complexos”. Por metáfora entende-se uma comparação
de elementos que não é explícita em um primeiro momento, o que leva a um ocultamento inicial do
significado (FIGUEIREDO, 2020). Chevalier e Gheerbrant (1989, p. XIV) a definem de modo
sintético como “uma comparação entre dois seres ou duas situações”. Como este significado não é
claro de imediato, é necessário mostrar como os elementos se aproximam, explicando-os. Assim, ao
final, o entendimento normalmente vem acompanhado de uma surpresa.
Já quanto ao conceito de símbolo, sua definição é muito complexa. Durante toda a
introdução do livro Dicionário de símbolos, os autores Chevalier e Gheerbrant (Ibidem., p. XIII)
alertam para o risco de assumir uma visão objetiva sobre o termo: “um símbolo escapa a toda e
qualquer definição. É próprio de sua natureza romper os limites estabelecidos e reunir os extremos
numa só visão”. Este conceito está presente em discussões sobre psicologia (fortemente em
psicanálise), história, antropologia, arte e nos estudos sobre o imaginário. Mais do que
pormenorizar sobre ele, neste trabalho intenta-se realçar que o JX foi alvo de inúmeras
interpretações simbólicas11. Assim, de maneira sucinta, símbolo será entendido como “um conjunto
de significados que representam uma ou várias ideias” (JULIÃO, 2007, p. 133), ou seja, é algo que
sintetiza em um elemento (no caso, o xadrez) o significado de tantas outras relações. Assim, pode-
se pensar a simbologia do tabuleiro, das peças, do duelo/confronto, da transformação do peão em
outra peça quando chega na última linha, do ataque/defesa, entre outros. O que se quer evidenciar

11
Dentre as mais de 1200 palavras recolhidas no Dicionário de símbolos, estão os verbetes Xadrez,
Enxadrezado e Tabuleiro.
nas linhas seguintes é que o JX, ao longo da história, foi utilizado às vezes como metáfora, uma
ferramenta comparativa para explicar algo mais abstrato, às vezes como símbolo, um elemento
disparador de variados significados.
Portanto, o JX mostrou possuir uma gigantesca riqueza metafórica e simbólica. Conforme se
aprende a jogá-lo, se entende os paralelismos e simbologias que foram utilizados para dar novas
explicações e criar novas imagens em áreas muito diferentes. Assim, o mundo do xadrez se amplia
enormemente, pois além do seu lastro histórico de mais de quinze séculos, ele possui um lastro
metafórico e simbólico, que ficará mais claro através de alguns exemplos que se seguem.

1) Metáfora da política/guerra
O JX é um jogo de guerra, entendido assim por colocar dois lados sobre um mesmo campo
de batalha (tabuleiro) em que a nenhum é dado vantagem inicial, e a vitória será de quem, usando
apenas seu raciocínio e engenhosidade, avançar estrategicamente para chegar até ela (MURRAY,
op. cit., p. 40). Desta forma, é natural que seu primeiro simbolismo esteja na própria estrutura do
jogo. Começando pelo tabuleiro, que
simboliza as forças antagônicas, que se opõem na luta pela vida e, até, na constituição da
pessoa e do universo. É por isso que o tabuleiro se presta tão bem ao jogo. Enquadra uma
situação de conflito. A formação em quadrados é uma formação de combate e o sinal da
batalha que começa. [...] Simboliza o cenário das oposições e dos combates.
(CHEVALIER; GHEERBRANT, 1989, p. 858)

O tabuleiro, assim, representa “o mundo manifestado, tecido de sombra e de luz, em que se


alternam e equilibram o yin e o yang” (CHEVALIER; GHEERBRANT, ibidem, p. 966). É o campo
em que as potências duelam para ver, ao final, de quem é a supremacia. É uma disputa binária, que
se estende também aos jogadores, pois envolve apenas um contra outro.
Talvez a relação mais conhecida do jogo de xadrez como metáfora política seja a disputa
pelo título mundial, em 1972, entre Bobby Fischer (EUA) e Boris Spassky (URSS). Em uma época
em que a Guerra Fria12 já era explícita,
uma disputa de saber homem a homem entre um soviético e um norte-americano não podia
deixar de simbolizar o choque subjacente entre as ideologias políticas, os sistemas
econômicos e as diferenças filosóficas fundamentais relativas à propriedade, lealdade e
liberdade. Assim como o jogo em si, o campeonato de xadrez entre Spassky e Fischer não
tinha nenhuma relevância direta para qualquer assunto do mundo real. E, ainda assim,
parecia simbolizar quase tudo. (Shenk, op. cit., p. 174)

Além disso, a equipe do jogador soviético era formada pelos melhores jogadores do país,
enquanto o norte-americano sempre estava sozinho, o que simbolizava também o trabalho coletivo
representado pelo modelo socialista e a liberdade individual representada pelo capitalismo

12
Guerra Fria foi a disputa global entre EUA (capitalista) e URSS (socialista), entre 1945 e 1991, em diferentes áreas
(política, econômica, tecnológica, esportiva) pela hegemonia do sistema político-econômico e de seus valores culturais.
Cf. HOBSBAWN (1995, p. 223-252).
estadunidense. Era como se nas 64 casas do tabuleiro de xadrez pudéssemos ter uma disputa de qual
sistema era o melhor. Fato é que depois de 21 partidas, o predomínio soviético que vinha desde
1948 foi quebrado. Bobby Fischer venceu o “match do século” por 12,5 a 8,5. Então, de repente,
Fischer nunca mais jogou. Como se tivesse cumprido sua missão, fez muito mais exigências para a
FIDE do que a instituição poderia aceitar para a defesa da coroa, em 1975. Renunciou ao título
mundial, que voltou para a mão dos soviéticos, com o desafiante Anatoly Karpov. Com este match,
aparentemente o mundo continuou como estava, já que tudo aconteceu no círculo mágico do
tabuleiro. Porém o mundo do xadrez nunca mais foi o mesmo.

2) Metáfora da inteligência
O JX é um jogo em que o fator aleatório é nulo. Não existe sorte ou azar, pois toda
responsabilidade recai sobre as decisões tomadas por quem joga. O próprio senso comum relaciona
positivamente a capacidade de jogar xadrez com atributos relacionados à alguma ideia sobre
inteligência. Assim, desde o início, ele foi visto como um símbolo da capacidade do raciocínio
individual, como já atesta o final do texto persa Chatrang-namak: “nele, o entendimento em
particular é reconhecido como a arma essencial em virtude da qual, como disseram alguns sábios, ‘a
vitória é obtida pelo intelecto’” (MURRAY, 2012, p. 211, tradução nossa)13. Inclusive, em todas as
línguas célticas (irl.: idchell; gaél.: gwyddwyll; bret.: gwezboell) o xadrez significa, literalmente, o
sugestivo e belo termo “inteligência da madeira” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1989, p. 966).
Em finais do século XIX e principalmente a partir do XX, com o avanço da psicologia e dos
testes psicológicos, a ideia de poder medir a inteligência ganhou cada vez mais força. Um grande
nome desse período é o psicólogo francês Alfred Binet, então diretor do Laboratório de Psicologia
Fisiológica da Sorbonne, responsável pelo primeiro grande estudo sobre como pensam jogadores de
xadrez. No caso, sua pesquisa pioneira queria entender como funcionava a memória visual e, para
isso, utilizou o JX, estudando como algumas pessoas jogavam às cegas.14
Ainda sobre o tema, podemos encontrar a relação do JX com a inteligência em uma das mais
conhecidas lendas da origem do jogo. Talvez a mais conhecida seja a que possui um capítulo inteiro
como parte de um livro com mais de 90 edições no Brasil, tornando-se um clássico da literatura e da
matemática: “O homem que calculava”, de Malba Tahan.15 No capítulo XVI, o livro traz a história
do rei indiano Iadava, que ao derrotar os invasores do seu reino teve seu filho morto em batalha.
Assolado por uma tristeza muito grande, ficava enclausurado em seu palácio. Então, um jovem

13
“in it the understanding in particular is recognized as the essential weapon by virtue of which, as certain wise men
have said, ‘the victory is obtained by intellect’”
14
“No xadrez às cegas, um jogador joga uma ou várias partidas sem ver o tabuleiro e as peças, ou ter qualquer contato
físico com eles, sendo os movimentos comunicados através da notação enxadrística.” (SILVA, 2015, p. 177).
15
Malba Tahan era o heterônomo do professor Julio César de Mello e Souza, e a primeira edição do livro foi em 1938:
TAHAN, Malba. O homem que calculava. Rio de Janeiro: Conquista, 1974. 25. Ed.
brâmane chamado Lahur Sessa inventou um jogo para “distrai-lo e abrir em seu coração as portas
de novas alegrias” (TAHAN, 1974, p. 115). Depois de aprender as regras rapidamente e começar a
derrotar seus vizires, entusiasmado e eufórico, o rei disse a Sessa para pedir o que quisesse, como
prova de gratidão por ter inventado jogo tão interessante e instrutivo. Então, o brâmane recusou
inicialmente a recompensa, que poderia ser em ouro, terras, palácios, mas, diante da insistência do
rei, resolveu pedir grãos de trigo. Pediu que fosse um grão pela primeira casa do tabuleiro, dois
grãos pela segunda, quatro grãos pela terceira, oito grãos pela quarta casa e assim sucessivamente.
Embora tenha parecido insignificante, como prometera pagar aquilo que Sessa pedisse, Iadava
solicitou aos maiores algebristas da corte calcularem a quantia. Quando retornaram, eles concluíram
que se os grãos fossem uma montanha, “seria cem vezes mais alta do que o Himalaia!” (TAHAN,
Ibid., p. 120) e, portanto, sem condições de pagamento.16 A história termina com Sessa renunciando
ao seu pedido, sendo alçado ao cargo de primeiro-vizir do rei Iadava e ensinando uma importante
lição: “mais avisado é o que muito pondera e pouco promete.” (TAHAN, Ibid., p. 121). Esta lenda
da origem do jogo mostra não só a relação próxima entre xadrez e matemática como valoriza a
inteligência contida na sua invenção, bem como na astúcia do pedido feito.
Dessa forma, seja pelo viés da busca científica, seja pelo senso comum ou por narrativas
imemoriais, o JX carrega um forte simbolismo sobre ser o jogo da inteligência.

3) Metáfora moral ou educativa


Dentre os vários usos metafórico e simbólico do JX ao longo da história, certamente o seu
viés educacional e moralizante foi o mais empregado. O primeiro modo de comprovar isso é a
grande lista de lugares em que o jogo foi proibido. O primeiro registro é de 655, pelo califa Ali Ben
Abu-Talib (genro do profeta Maomé) e o último é na Arábia Saudita, em 2016 (!)17.
Neste sentido ainda, argumentos contrários ao xadrez para a Igreja Católica do século XIII
eram:
jogando a maior parte do tempo em uma taberna, dava origem a blasfêmias; jogava-se por
dinheiro; a estrutura maniqueísta do jogo era intolerável na época em que se desenvolvia a
heresia bogomil, porque era ímpio e sacrílego acreditar que Satã pudesse triunfar sobre o
Senhor; o transexualismo da promoção do peão era um problema terrível. Como o peão
masculino poderia se tornar uma rainha? Essa perda de identidade sexual também colocou o
problema da poligamia do rei. (DEXTREIT e ENGEL, op. cit., p. 243, tradução nossa)18

16
O valor obtido se dá pela fórmula matemática S = 2 64 – 1, pois será a soma dos sessenta e quatro (número das casas
do tabuleiro) primeiros termos desta progressão geométrica, retirando uma unidade. O resultado é um número
gigantesco: 18.446.744.073.709.551.615 grãos de trigo! (TAHAN, op. cit., p. 266).
17
Matéria sobre a proibição do xadrez na Arábia Saudita pelo grão-mufti (autoridade religiosa), Abdulaziz al-Sheikh,
em 2016, pode ser acessada no link: https://oglobo.globo.com/mundo/xadrez-proibido-na-arabia-saudita-18546019.
Acesso em 30 abr. 2023.
18
“se jouant la plupart du temps em taverne, il donnait lieu à des blasfemes; il se jouait solvente pour de l´argent; la
structure manichéiste du jeu était intolérable au moment où se dèveloppait l´hérésie bogomile, parce qu´il était impie et
sacrilège de croire que Satan pouvait triompher du Seigneur; le transsexualisme de la promotion du pion étair um
Assim, sempre esteve presente na história do JX ser um modelo mais fácil para ensinar as
pessoas sobre como é e funciona a sociedade. Outro exemplo paradigmático é o texto escrito por
Benjamin Franklin, um dos principais líderes do processo de independência dos EUA. Em 1786,
publicou o texto “A moral do xadrez” com o objetivo de corrigir algumas práticas durante sua
realização. Elenca, na parte final do texto, oito ações que devem ser seguidas para jogar, como se
fosse um “manual de condutas”. Porém, antes disso, aponta hábitos que o jogo produz ou reforça e
são úteis ao longo da vida:
1. Previsão: olhar um pouco para o futuro e considerar as consequências que podem
aguardar determinada ação;
2. Circunspecção: observar todo o tabuleiro, mas também as relações e situações de cada
peça individualmente;
3. Precaução: não realizar jogadas muito apressadamente, pois assim como na vida, não há
retorno;
4. Perseverança: por fim, não se desencorajar com a aparência ruim da situação e sempre
esperar por uma mudança favorável, buscando soluções. (SHENK, op. cit., p. 272-5)
Deste modo, como Franklin explicita, alguns medievais sabiam e outros temiam, o JX pode
ser uma grande ferramenta educativa. Entretanto, antes de pensar como se dá os possíveis
benefícios cognitivos, ele foi importante para ensinar hábitos, comportamentos e valores morais: “o
xadrez é um instrumento de ensino e aprendizado mais antigo que os quadros de giz, os livros
impressos, o compasso e o telescópio”. (SHENK, op. cit., p. 27)
Recentemente, a relevância do seu valor simbólico foi observada por uma imagem que foi
amplamente compartilhada nas redes sociais. com a campanha publicitária da grife francesa Louis
Vuitton, um dia antes da estreia da Copa do Mundo, em 2022, no Catar (Figura 9). Querendo
transmitir a ideia de disputa, inteligência e capacidade individual, a marca recorreu ao velho jogo
indiano, com os dois jogadores de futebol mais premiados do século XXI:
Figura 9: Propaganda Louis Vitton (2022)

terrible problèm. Comment le pion mâle pouvait-il devenir une Dame? Cette perte d´identité sexuelle posait également
le problème de la polygamie du Roi”
Fonte: Retirado de STORCH, 2022.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Feito todo este caleidoscópio de exemplos, percebe-se que o mundo do xadrez é imenso.
Seja ao atrair pessoas para jogá-lo, seja como metáfora, ao ser uma linguagem mais fácil para
entendimento de elementos complexos, o JX está presente há quinze séculos na cultura geral. E boa
parte de sua permanência - conseguindo até superar proibições ao longo da sua existência - se deve
a isso:
quem necessitasse de um símbolo dinâmico para explorar e transmitir elementos de guerra,
competição, hierarquia, poder político, luta por recursos, controle por uma potência
superior, meritocracia, natureza do pensamento, futilidade, movimento abstrato,
complexidade ou infinitude teria ali um veículo de alta qualidade, pronto para alçar vôo
metafórico. (SHENK, op. cit., p. 81)

Assim, ainda que a maioria das pessoas não precise saber destas informações para se
encantar com a dinâmica e as questões específicas do jogo, este se particulariza por ter exatamente
estes lastros histórico, metafórico e simbólico. Isso significa que o mundo do xadrez vai muito além
do que acontece nos tabuleiros: ele está inserido na cultura e dialoga com ela ao longo da história,
fazendo com que muitas pessoas conheçam elementos relacionados a ele, mesmo que nunca o
tenham jogado.
Este conhecimento amplia a perspectiva sobre o jogo. Para além dos benefícios que ele
possa gerar, o JX possui um mundo que o legitima ser transmitido às novas gerações, para que sua
prática, sua história e seus simbolismos sejam trabalhados na escola, uma das instituições
responsáveis por transmitir o legado cultural da humanidade.

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gestos, formas, figuras, cores, números). 2.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989.

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