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Religiões Afro-Brasileiras (Silva)
Religiões Afro-Brasileiras (Silva)
AFRO-BRASILEIRAS
82 REVISTA USP, São Paulo, n.55, p. 82-111, setembro/novembro 2002
INTRODUÇÃO: LUGARES DE ONDE
OLHAR
do Nina Rodrigues sobre as línguas e as médico acabou interessando-se pelo uni- 10 Nas últimas décadas do sécu-
lo XIX, os principais centros
religiões africanas, as quais contribuíram verso místico desses grupos que lhe pare- institucionais de produção ci-
entífica eram as faculdades de
para uma primeira transformação do status ceu oferecer “referências positivas” da in- medicina e de direito, os mu-
das representações sobre os negros. capacidade intelectual dos devotos. seus de etnografia e história
natural e os institutos históricos
Nina Rodrigues, atuando num dos prin- As descrições feitas a partir de suas in- e geográficos. Ver: Corrêa,
cipais centros científicos de sua época, a cursões científicas pioneiras aos terreiros 1982; Schwarcz, 1993.
Faculdade de Medicina da Bahia (10), in- baianos e outros lugares de culto foram 11 Os principais veículos de di-
vulgação dos trabalhos de
teressou-se pelo estudo do negro levado a reunidas em dois livros. No primeiro deles, Nina Rodrigues foram as revis-
tas médicas, sendo algumas
princípio pelo interesse num campo prati- L’ Animisme Fétichiste des Nègres de Bahia especializadas em “medicina
camente inexistente no Brasil, o da medici- (14), Nina Rodrigues pretendeu demons- legal e antropologia” e em
“antropologia criminal”. Ver
na legal e da antropologia criminal (11). trar, com descrições da teologia, liturgia, Corrêa, 1982.
No período em que escreveu, a sociedade oráculo e possessão presentes na religiosi- 12 Levado por essas preocupa-
brasileira passava por importantes mudan- dade afro-brasileira, a incapacidade psíqui- ções, Nina Rodrigues passou
a defender a criação de uma
ças decorrentes da Abolição e da Procla- ca do negro de adotar uma religião baseada legislação penal que diferen-
ciasse os grupos raciais em
mação da República. Os conflitos e inse- em conceitos abstratos tais como os do cris- função de suas diferentes ca-
guranças gerados por essas mudanças va- tianismo. pacidades intelectivas, unindo
o saber médico ao saber jurí-
lorizavam ainda mais as explicações e pa- No segundo livro, Os Africanos no Bra- dico na determinação das for-
mas de relacionamento entre
receres dos cientistas que desfrutavam de sil – para o qual o apelo de Silvio Romero as raças e posicionamento do
grande legitimidade como portadores de um citado acima serviu de epígrafe –, Nina Estado diante delas. Ver
Rodrigues, 1933.
conhecimento útil para balizar as políticas Rodrigues ampliou a área de estudos siste-
13 Segundo Lamartine de
de intervenção social. Nina Rodrigues matizando suas observações empíricas jun- Andrade Lima (1984), o valor
empenhou-se inicialmente em interpretar tamente com dados obtidos de fontes docu- do trabalho de Nina Rodrigues
foi reconhecido por alguns fa-
os condicionantes biológicos dos compor- mentais escritas. Com isso o livro adquiriu mosos intelectuais europeus da
área da medicina legal, como
tamentos sociais considerados “desviantes” uma abordagem mais historiográfica abran- Césare Lombroso, que consi-
(crimes, estupros, pederastia, fanatismo gendo assuntos diversificados como a pro- derou Nina Rodrigues “o após-
tolo da medicina legal no Novo
religioso, etc.) que identificou principal- cedência dos grupos africanos vindos para Mundo”. O primeiro livro de
mente entre a população negra e mestiça. o Brasil, as revoltas dos negros maometa- Nina Rodrigues dedicado à
descrição da religião dos ne-
Para ele a inferioridade racial dos negros e nos, a formação do quilombo de Palmares, gros baianos ( L ’ Animisme
Fétichiste des Nègres de Bahia)
a miscigenação – fator de degeneração das além dos aspectos religiosos e lingüísticos foi resenhado e elogiado por
raças – eram os principais desafios que a dos grupos negros. Marcel Mauss no L ’ Année
Sociologique (1900-01, p.
medicina (como um saber dedicado à Através dos textos de Nina Rodrigues a 224).
profilaxia e à higienização) e a nova ordem religiosidade de origem africana foi vista 14 Esse livro reuniu uma série de
artigos publicados entre 1896
jurídica, política e econômica do Brasil como um “dado psicológico positivo”, num e 1897 na Revista Brazileira.
deveriam enfrentar (12). contexto em que não se pensava que essa Editado em 1900 no Brasil em
francês pela Reis & Cia., so-
Por outro lado, pensar o país segundo as religiosidade fosse sequer passível de ser mente em 1935 teve uma edi-
mais avançadas teorias científicas do perío- observada seriamente, muito menos pela ção em português na forma de
livro: O Animismo Fetichista dos
do, como o evolucionismo social, trazendo ciência. Negros Bahianos.
investigação patrocinada pela Unesco com Para que a etnografia da “magia negra” 34 “Depoimento de René Ribeiro”,
op. cit., pp. 9 e 10. Além do
o objetivo de divulgar ao mundo o exemplo atingisse sua maioridade como campo le- livro Religião e Relações Raci-
ais de René Ribeiro, outros tra-
brasileiro de “convivência harmoniosa” gítimo de interesse etnográfico foi preciso balhos resultantes das pesqui-
entre as raças. Esse projeto, idealizado por esperar pelo “olhar francês” que primeiro sas da Unesco foram publica-
dos como: Race and Class in
Artur Ramos (33) e levado adiante pelo insistiu no elevado significado dessa ma- Rural Brasil (1952) organiza-
antropólogo Alfred Métraux, consistiu gia em termos de compor um sofisticado do por Charles Wagley com
estudos na área da Bahia; Les
numa série de pesquisas realizadas em vá- “complexo religioso” e depois lhe imputou Elites de Coleur dans une Ville
Bresilienne (1953) de Thales
rios pontos do Brasil, aproveitando em mui- uma valorização desde dentro revelando as de Azevedo, com estudos na
tos casos as pesquisas que já estavam em “sutis metafísicas” que o compunham. área de Salvador; O Negro
no Rio de Janeiro (1953) de L.
andamento. Abrangeu desde estudos em co- Um dos primeiros contrastes que os A. Costa Pinto e Brancos e
Negros em São Paulo (1955)
munidades rurais que vinham sendo feitos “novos estudos afro-brasileiros”, de influ- de Roger Bastide e Florestan
principalmente na Bahia por antropólogos ência francesa, estabeleceram em relação Fernandes. Os resultados con-
traditórios em relação ao pre-
norte-americanos como Charles Wagley e aos estudos raciais e culturalistas norte- conceito racial ao qual chega-
Marvin Harris, até em áreas urbanas, como americanos foi o de substituir a busca pelas ram tanto os pesquisadores da
Unesco como outros pesquisa-
Recife, Rio de Janeiro e São Paulo, onde formas com que a África se dissolveu no dores podem ser entendidos de
várias formas. No caso de al-
participaram principalmente pesquisadores Brasil pelos pedaços indissolúveis da Áfri- gumas pesquisas conduzidas
brasileiros. ca que teriam permanecido no Brasil. À por norte-americanos, o mode-
lo de discriminação racial exis-
O tema das religiões afro-brasileiras não frente dessa jornada se colocou Roger tente em seu país de origem
pode ter atuado em suas per-
parece ter sido inicialmente valorizado na Bastide, professor francês que chegou ao cepções sobre as relações ra-
proposta do projeto da Unesco, embora seu Brasil em 1938 fazendo parte da delegação ciais no Brasil. A visão de
Donald Pierson e Ruth Landes,
primeiro incentivador, Artur Ramos, tenha de professores estrangeiros que integrava por exemplo, sobre a ausên-
se especializado muito mais nessa área do o quadro docente do Departamento de Ci- cia ou a pouca discriminação
nas relações raciais entre bran-
que na de relações raciais. A presença des- ências Sociais da recém-criada Faculdade cos e negros no Brasil talvez
graduação que era a única escola que tinha em 1935 e ocupada pelo engenheiro Plínio 44 Uma das características
marcantes dessa renovação foi
pós-graduação na época. Combinei com o Ayrosa. Nessa cadeira, como o próprio a crescente especialização
que as faculdades de filosofia
Pierson que dirigia o Departamento de Pós- nome revela, o estudo das sociedades indí- impuseram às ciências huma-
Graduação que eu daria dois cursos no curso genas foi prioridade. Uma certa visão do nas.
normal da Escola, um de Introdução à colecionismo museográfico ainda vigorou 45 A criação dessa cátedra foi
conseqüência da exigência de
Antropologia e outro de Antropologia Fí- nessa cátedra como exemplificou a criação adequação do regimento da
sica e que no estudo de pós-graduação eu do Museu de Etnografia, instituído nessa Faculdade de Filosofia, Ciên-
cias e Letras da USP ao pa-
daria um curso sobre o negro no Novo faculdade. Somente em 1941 foi criada a drão estabelecido pela Facul-
dade Nacional de Filosofia do
Mundo. Para minha surpresa o Florestan disciplina “antropologia” associada à cáte- Rio de Janeiro que, por decre-
inscreveu-se nesse curso em 1946, era um dra de etnografia e voltada para “os estudos to federal de 1939, foi consi-
derado oficial para todas as
curso semestral e o Florestan foi meu aluno raciais e etnobiológicos” (Schaden, 1984, instituições congêneres do
e tornamo-nos bons amigos, freqüentei p. 253) (45). Essa disciplina foi lecionada país. Sobre a organização e
atividades dessa cátedra, ver:
várias vezes a casa dele, mas as oportuni- por Emílio Willems que, nesse mesmo ano Pereira, 1966.
BIBLIOGRAFIA