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Anais do 6º Encontro Celsul - Círculo de Estudos Lingüísticos do Sul

REVISITANDO O PAPEL DA HISTÓRIA NA ANÁLISE DO DISCURSO

Rossana Dutra TASSO (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)

ABSTRACT: This paper tries to make a reflection about the way of the Discourse Analysis, started by Michel
Pêcheux, deals with the history concept, in the search of comprehension over it’s intrinsic articulation with
the notions of language, subject and consequently discourse. In order to do this, it considers also some
affinities purposes.

KEYWORDS: Discourse Analysis; history; language; subject; discourse.

0. Introdução Como o próprio título sugere, o objetivo deste trabalho é realizar uma pequena revisão teórica a
fim de resgatar a maneira como a Análise do Discurso (AD) iniciada por Michel Pêcheux se apropria da
noção de história e articula-a aos conceitos de sujeito e língua. Dessa relação, emerge o discurso, que é o
objeto de análise dessa teoria.
Para tanto, começaremos apresentando a proposta de Paul Veyne. Esse autor, ainda que não seja
da área da Análise do Discurso, tem sua presença justificada aqui porque propõe que se veja a história como
um romance. Um romance que narra acontecimentos cujo centro é o homem, não sendo, portanto, uma
ciência explicativa, metodologicamente neutra. Tomaremos por base as idéias reunidas na obra Como se
escreve a história, cuja versão original (francesa) é de 19711 .
O próximo pensador a ter suas idéias consideradas aqui será Foucault. Esse filósofo trata a
história como um sistema de dispersão de enunciados e ignora a noção de documento, colocando em seu lugar
a noção de monumento – espaço para o trabalho da memória, para a constante intervenção do humano.
Fundamentaremos nossas considerações no livro A arqueologia do saber, edição brasileira de 2002.
Para a Análise do Discurso, pensar em história é referir-se ao trabalho da ideologia sobre as
práticas dos sujeitos. Sendo assim, neste artigo, faz-se necessária a passagem pelo Manifesto do Partido
Comunista, de Marx & Engels, em que é afirmado que o motor da história é a luta de classes que, por sua vez,
é a materialização da ideologia. Também contaremos com a obra A ideologia alemã, dos mesmos autores.
Feito esse percurso, chegaremos à proposta da Análise do Discurso, a fim de entender o que é a
história segundo seu ponto de vista. Nortearão nossas afirmações os postulados de Michel Pêcheux, Paul
Henry, Eni Puccinelli Orlandi, Maria Cristina Leandro Ferreira e Freda Indursky.
Como conclusão, tentaremos provar que, em Análise do Discurso, a história deixa de ser
cronologia e/ou evolução para ser memó ria discursiva – ou melhor, sentido, conforme Paul Henry.

1. Paul Veyne: a história como um romance Já nas primeiras páginas de Como se escreve a história, Paul
Veyne coloca que a história é uma ilusão até mesmo para os historiadores, porque ela está longe de ser aquilo
que eles acreditam fazer. A verdadeira história não tem método, não explica coisa alguma.
Não sendo tampouco uma ciência, a história não tem o que esperar das outras ciências. Para
Veyne, a história, tal como pensada há pelo menos dois séculos, não existe. Longe de ser uma síntese de
documentos, ou o estudo cientificamente conduzido de atividades e criações dos homens ao longo dos
tempos, em meio à vida em sociedade, a história deve ser compreendida como sendo um romance, uma
narrativa de acontecimentos que têm o homem como ator. E, como qualquer narrativa, a história é, então,
parcial e subjetiva, nada neutra. A história narrada pelo historiador toma partido, assume um certo modo de
dar a conhecer.
De modo análogo ao romance, a história não faz reviver o que conta: o registro produzido pelo
historiador não é vivido pelos atores, os homens reais. Sendo uma narrativa, é possível eliminar aspectos
considerados supérfluos, inúteis a um propósito. A história, assim, seleciona, simplifica e dá coerência aos
acontecimentos, facultando ao historiador resumir séculos e séculos em poucas linhas. Como afirma Veyne

1
Para o presente trabalho, faremos referência à tradução portuguesa de 1987.
(1987: 14), esta síntese da narrativa não é menos espontânea do que a da nossa memória, quando evocamos
os dez últimos anos que vivemos.
Se a história é uma narrativa de acontecimentos, é possível afirmar que, a respeito de um mesmo
acontecimento, várias narrativas são plausíveis, pois cada uma delas estará de acordo com a relação do
historiador com o que narra. Dessa forma, já que um acontecime nto como o impeachment do ex-presidente
Fernando Collor não representa o mesmo para um parlamentar ou para um “cara pintada” da época, diferentes
relatos são propostos hoje para o mesmo objeto, e a diferença vai além de um registro em primeira ou terceira
pessoa, por exemplo. Os testemunhos partem de posições distintas, que nem mesmo os documentos de época
são capazes de resolver qual é “a” versão correta, a verídica. A narrativa histórica coloca-se para além de
todos os documentos, visto que nenhum deles pode ser o acontecimento; não é um documentário fotomontado
e não faz ver o passado ‘em directo, como se você lá tivesse estado’2 (ibid: 15). A história, então, é uma
interpretação do acontecimento, alterado em sua essência segundo a posição do historiador. A história registra
apenas variações, possibilidades de leitura dos fatos.
O trabalho do historiador não consiste na descrição minuciosa de uma civilização em dada
época, ou na construção de um inventário de ações. Ao contrário. Conforme Veyne, o fazer do historiador se
resume a registrar aqueles aspectos que, segundo seu julgamento, são imprescindíveis para proporcionar ao
leitor o conhecimento de dada realidade. O historiador é, portanto, o mediador entre uma certa versão de um
acontecimento e o leitor, visto que ambos (historiador e leitor) não têm acesso ao passado de maneira direta –
nem mesmo os documentos com que um historiador poderia ter contato representam os acontecimentos em si
mesmos, em sua totalidade.
E o que é o acontecimento, com que a narrativa histórica se preocupa? Para Veyne, ele é,
basicamente, diferença, tudo o que não é evidente. O que individualiza os acontecimentos é o fato de eles
ocorrerem em um dado momento. Ainda que dois acontecimentos sejam muito semelhantes, ou que um
“mesmo” acontecimento volte a ocorrer em um devir, a diferença entre esses e o passado é a marca que
deixam na linha temporal, o antes e depois que instauram. Fora do tempo, um acontecimento se converte em
um ornamento do passado.
Além da diferença, o acontecimento histórico também pode ser encarado sob uma perspectiva
metonímica. Como lembra Veyne, a história é conhecimento mutilado; o historiador tem acesso somente a
vestígios dos acontecimentos, que, sozinhos, não dão conta do todo ocorrido. O historiador diz aquilo que
ainda é possível saber acerca de algo. E, por outro lado, na história, como no teatro, mostrar tudo é
impossível, não porque seriam necessárias muitas páginas, mas porque não existe facto histórico elementar,
átomo acontecimental (idid: 45). Os acontecimentos não emergem de um nada; são cortes em meio a um
tecido, a uma rede rebuscada, complexa de circunstâncias, de fatos inter-relacionados. Ousar captar sua
totalidade é perder-se no turbilhão do infinito.
Concluímos então que, para Paul Veyne, a história é uma narrativa de acontecimentos, que não
são nem universais, nem singulares, mas sim, não evidentes em um período do tempo. Semelhante ao
narrador de um romance, o historiador opera pelo princípio da seleção: determinados aspectos são escolhidos,
outros, refutados, segundo a interpretação que deles se faz. A historicidade é subjetiva: a escolha de assuntos
de história é livre, e todos os assuntos têm de direito o mesmo valor; não existe História (ibid: 48). Aí está a
aproximação de Veyne com a perspectiva da Análise do Discurso para a compreensão da história, tal como
apresentaremos mais adiante.

2. Michel Foucault: a história como um sistema descontínuo Entender a história como um sistema de
enunciados em dispersão, que ora mantêm certa regularidade. Eis a proposta de Michel Foucault em A
arqueologia do saber.
Esse filósofo sabe que sua concepção de história foge do lugar-comum que até então se aceitava
como possibilidade única. Nesse sentido, na introdução da referida obra, Foucault aponta que, por muito
tempo, a atenção dos historiadores esteve voltada para a descrição de longos períodos temporais, a fim de
revelar episódios políticos, processos irreversíveis, regulações e fenômenos que se invertem após séculos de
acumulação e continuidade. As narrativas tradicionais recobriam bases imóveis e surdas, sendo diversos seus
instrumentos, tais como modelos e análises quantitativas. Porém, esses mesmos instrumentos revelaram que
as sucessões lineares deveriam dar lugar a um jogo de interrupções em profundidade, pois as possibilidades

2
Preferimos deixar as citações conforme a escrita própria do português de Portugal.
de análises aumentaram, e cada uma delas ganhou sua especificidade, um corte único. Nas palavras do próprio
autor:

Por trás da história desordenada dos governos, das guerras e da fome, desenham-se histórias,
quase imóveis ao olhar – histórias com um suave declive: história dos caminhos marítimos,
história do trigo ou das minas de ouro, história da seca e da irrigação, história da rotação das
culturas, história do equilíbrio obtido pela espécie humana entre a fome e a proliferação. As
velhas questões da análise tradicional (que ligação estabelecer entre acontecimentos díspares?
[...]) são substituídas, de agora em diante, por interrogações de outro tipo: que estratos é
preciso isolar uns dos outros? Que tipos de séries instaurar? (FOUCAULT, 2002: 3-4)

O enfoque, então, passa da descrição de épocas e séculos para a compreensão de fenômenos de


ruptura, a busca pela incidência de interrupções. As grandes manifestações, homogêneas, não têm mais lugar.
O papel da história, logo, é o de tentar registrar as transformações e as renovações, que denotam a
descontinuidade dos acontecimentos.
Se o princípio norteador proposto por esse filósofo considera a descontinuidade, o documento,
base da prática histórica tradicional, torna-se objeto de contestação. Não sendo mais interpretado ou
questionado quanto a sua veracidade, ele é trabalhado e elaborado. A história atua no interior do documento, e
não a partir dele ou de suas margens para fora. O documento deixa de ser matéria inerte, base para a
reconstrução de fatos e ditos, para se converter em tecido, em cuja trama unidades, conjuntos, séries e
relações são definidos. Segundo Foucault (ibid: 7-8),

É preciso desligar a história da imagem com que ela se deleitou durante muito tempo e pela
qual encontrava sua justificativa antropológica: a de uma memória milenar e coletiva que se
servia de documentos materiais para reencontrar o frescor de suas lembranças. (...) O
documento não é o feliz instrumento de uma história que seria, em si mesma, e de pleno direito,
memória ; a história é, para uma sociedade, uma certa maneira de dar status e elaboração à
massa documental de que ela não se separa. (grifos do autor)

O documento, então, é transformado pela prática da história atual em monumento, ou seja, em


uma massa nada homogênea, composta por elementos descontínuos que necessitam ser trabalhados, a fim de
se organizarem em conjuntos. Toma lugar, nesse processo, a arqueologia – a descrição intrínseca do
monumento.
Conforme o raciocínio de Foucault, tal inovação acarreta pelo menos quatro conseqüências. A
primeira delas é considerar a multiplicação das rupturas, o que dificulta as séries; não basta distinguir
acontecimentos mínimos, mas sim tipos de acontecimentos diferentes. A segunda consiste no fato de que a
descontinuidade ganha destaque no que Foucault chama de disciplinas históricas – se antes o descontínuo
deveria ser contornado, reduzido e/ou apagado, a fim de fazer emergir a continuidade dos acontecimentos, o
novo papel do historiador está imbricado na análise, em que ele delibera a respeito dos níveis, métodos e
periodizações que convêm ao seu objetivo. Assim, descobre as fronteiras de um processo cujo funcionamento,
muitas vezes, é irregular. Logo, o descontínuo passa de obstáculo à prática, integrando-se ao discurso do
historiador (ibid: 11).
Como terceira conseqüência dessa nova prática, Foucault menciona a impossibilidade de uma
história global, que procure reconstruir a forma do conjunto de uma civilização, reconstituir uma lei que
garanta coesão às relações homogêneas. Em seu lugar, faz-se necessária uma história geral, que determine a
relação possível entre as diferentes séries, os diferentes conjuntos em que os elementos figuram
concomitantemente. E, por fim, a quarta e última conseqüência está nos problemas metodológicos que se
impõem a essa nova história. Entre eles, a constituição de um corpus, o estabelecimento de princípios de
escolha e a definição dos nineis e dos elementos pertinentes, para citar apenas alguns.
Nesse sentido, Foucault insiste na proposta de que o fundamental à nova história é pensar a
diferença, ao se descreverem os afastamentos e as dispersões. A descontinuidade atesta o caráter vivo da
história. A história contínua e linear, para esse filósofo, serve somente para sustentar a ilusão de que o sujeito
poderá, um dia, apropriar-se de seu passado e reconstituir sua morada.
Em um momento posterior de seu livro, Foucault argumenta que a positividade dos discursos
atua como um a priori histórico, na medida em que o discurso não é dotado de apenas um sentido ou uma
verdade, mas sim, de uma história, história específica que não o redireciona às leis de um vir a ser estranho –
ao contrário. Esse a priori histórico marca uma forma de dispersão na linha do tempo, um modo de sucessão,
de estabilidade de reativação (ibid: 147), em que cada enunciado irrompe como um acontecimento. Disso,
resulta que os enunciados formam um sistema – o arquivo –, como lei do que pode ser dito, princípio que
regula o aparecimento de enunciados como acontecimentos singulares e seu funcionamento, sua inserção na
história e seu desaparecimento.
Como vemos, pensar a história sob a perspectiva de Foucault é imaginá-la como uma estrutura
aberta, viva, pulsante, composta por elementos em dispersão, cuja regularidade é um critério a ser construído
pelo historiador. A história não é algo plenamente ordenado nem homogêneo, pois sempre dá lugar para o
diferente. Semelhantes ou previsíveis, apenas os meios de dispersão.

3. Marx & Engels: a história movida pela luta de classes3 A posição de Karl Marx e Friedrich Engels quanto à
história é a de que ela tem um motor: a luta de classes, que nada mais é do que a materialização da ideologia
concernente ao modo de produção capitalista. Entendamos melhor essa perspectiva.
Conforme o pensamento marxista, a essência do homem está radicada no conjunto das relações
sociais. A configuração corporal, orgânica é necessária, mas não suficiente: a humanização do ser é
decorrente de sua relação com os demais em sociedade. Nesse sentido, a história, como ciência positiva, deve
estar voltada aos indivíduos humanos reais, considerando suas ações, relações e condições reais de vida. Toda
história humana é a existência de indivíduos humanos viventes. Esse é o fundamento do Materialismo
Histórico.
A diferença entre um e outro indivíduo está na maneira como cada um produz seu meio de vida,
maneira essa que, logo, caracteriza-o. O que um indivíduo é coincide com sua produção, por duas vias: tanto
pelo o que produz quanto pelo modo como produz. O “ser”, portanto, está intrinsecamente relacionado às
condições materiais de produção. Daí, a célebre afirmação: Não é a consciência que determina a vida, senão
a vida é que determina a consciência.
Para que os homens, seres de carne e osso , produzam história, é preciso que suas necessidades
básicas estejam satisfeitas. E essa satisfação propicia o surgimento de outras, o que obriga os homens a
produzirem, a integrarem-se em forças produtivas, a serem parte de um modo de produção.
O modo de produção, por sua vez, está associado ao princípio da sociedade civil, em que se
circunscrevem as necessidades materiais dos indivíduos, os seus interesses. Em outras palavras, a sociedade
civil é a expressão das relações econômicas e, subseqüentemente, o suporte de toda história.
O desenvolvimento histórico está, portanto, atrelado às relações de trabalho e às conseqüências
de sua divisão. A história é o registro de uma sucessão de modos de produção, semelhantes e dessemelhantes
ao mesmo tempo.
Tendo esses pressupostos em mente, é possível entender as afirmações que abrem a primeira
parte do Manifesto do Partido Comunista:

A história de todas as sociedades que existiram até hoje é a história de lutas de classes.
Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestres e companheiros, numa
palavra, opressores e oprimidos, sempre estiveram em constante oposição uns aos outros,
envolvidos numa luta ininterrupta, ora disfarçada, ora aberta, que terminou sempre ou com
uma transformação revolucionária de toda a sociedade, ou com o declínio comum das classes
em luta. (MARX & ENGELS, 2004: 45-46)

A crítica maior do Manifesto se dirige à burguesia que, segundo seus autores, só se sustenta por
meio da exploração da classe proletária. Esta, não tendo os meios de produção, está condicionada a vender

3
Não é redundante lembrar que as considerações que aqui propomos podem ser encontradas nas obras que
referimos na Introdução.
sua mão-de-obra, corroborando, então, para a produção do capital – a riqueza do burguês. Forma -se um
círculo vicioso: o burguês é mantido pelo operário, que, por sua vez, só vive se tiver um trabalho; e os postos
de trabalho existem somente na medida em que possam aumentar o capital que mantém o burguês. Instaura -se
a contradição.
Em suma, uma classe só é a opressora, e a outra só é a oprimida, enquanto perdurarem
condições que assegurem tal estado de coisas. E qual seria a principal – senão a única – condição que atua
para isso? A ideologia, presente nas relações de produção e, por conseguinte, refletida nas práticas sociais.
A ideologia consiste, basicamente, na produção de idéias e de representações que são, ao mesmo
tempo, criadas e disseminadas pelas práticas dos homens, pelo processo da vida real. No entanto, ela (a
ideologia) não tem uma história nem desenvolvimento, porque é uma construção imaginária: são os homens
que, ao desenvolverem sua produção material e suas relações materiais, transformam, com a realidade que
lhes é própria, seu pensamento e também os produtos de seu pensamento (MARX & ENGELS, 2002: 20). O
pensamento do homem já é, por si só, calcado na ideologia, que fornece os instrumentos necessários para que
se mantenham as relações contraditórias de produção.
Na presente proposta, a história prescinde de ser uma coleção de fatos sem vida, para, então, dar
conta de todo o processo de atividade vital humana – atividade essa norteada pela eterna satisfação de
necessidades e pelo modo contraditório como o homem pensa a respeito de si próprio e dos demais.

4. Finalmente, a perspectiva da Análise do Discurso: a história como fazer sentido O conceito de história é tão
importante à Análise do Discurso iniciada por Michel Pêcheux que já aparece incluído no próprio quadro
epistemológico dessa teoria: ao lado da Lingüística e da Psicanálise, está o Materialismo Histórico.
Conseqüentemente, os objetos dessas três áreas do saber estão implicados. A Análise do
Discurso entende que a história é o elemento que constitui a língua, a que o sujeito, inconscientemente, está
subordinado. Dessa inter-relação, resulta que a língua, como materialidade, reúne em si o histórico (pelo
acontecimento) e o lingüístico (pelo arranjo dos significantes), configurando o modo como o sujeito produz
seu dizer e materializa discursos.
Pensada dessa forma, a história não pode ser concebida como cronologia ou evolução, porque
está intrinsecamente relacionada com o sentido. Essa relação é facultada pelo fato de que qualquer
acontecimento histórico só permanece “vivo”, toma lugar na memória, porque faz sentido, ao suscitar uma
interpretação. Dentro da história, não temos acesso aos acontecimentos por si mesmos, graças a barreiras
como a do tempo, mas sim ao se disse (e ainda se diz) sobre eles. Além disso, as próprias condições sócio-
históricas constroem interpretações outras ao longo dos tempos. Daí, a pertinência da afirmação de Paul
Henry – a história não é evolução nem cronologia, mas sim, sentido:

(...) é ilusório colocar para a história uma questão de origem e esperar dela a explicação do
que existe. Ao contrário, não há “fato” ou “evento” histórico que não faça sentido, que não
peça interpretação, que não reclame que lhe achemos causas e conseqüências. É nisso que
consiste para nós a história, nesse fazer sentido, mesmo que possamos divergir sobre esse
sentido em cada caso. Isto vale para a nossa história pessoal, assim como para a outra, a
grande História. (HENRY, 2003: 51-52)

A história é, então, um sentido à espera de “atualização” – correções, retificações, acréscimos ou


apagamentos. Ou seja, à espera de um gesto de interpretação por parte dos sujeitos. Para a Análise do
Discurso, a história é produção de sentidos. Não é contexto nem explicação, muito menos cronologia.
A intervenção da história no dizer, fazendo com que o sentido seja dotado de movimento, se dá
pela atuação das práticas sociais e de seus significados. Assim, na Análise do Discurso, entre a língua e o
discurso (seu objeto de análise), não vigora uma oposição, e sim, uma contradição. A história não é exterior
ao discurso, como determinação: sua posição é interna a ele, uma vez que é a responsável pela constituição do
sentido. Como lembra Orlandi (2004), a ordem da língua (a materialidade his tórica dos processos de
significação) e a ordem da história (a materialidade simbólica da relação do homem com o mundo)
constituem a ordem do discurso.
Pensar a língua e, conseqüentemente, a história como materialidades é pressupor que ambas não
são transparentes nem neutras. Sendo, portanto, revestidas por uma opacidade, é a partir delas que podemos
notar a atuação da ideologia no discurso.
Como ressalta Pêcheux (1997), com base nos postulados de L. Althusser, a ideologia interpela
indivíduos em sujeitos. E essa interpelação ocorre pelo assujeitamento do sujeito à língua, processo
engendrado na história. A ideologia, por si mesma, é a-histórica, é eterna, visto que atua como sendo uma
estrutura fundamentada em duas evidências: evidência do sentido (uma palavra designa determinada coisa) e
da existência do ser (o sujeito se sente plenamente consciente e livre).
À Análise do Discurso interessa, então, observar as falhas, os equívocos e a ambigüidade do
dizer, como modos de constatar o trabalho da história na produção do sentido, mesmo em face à resistência do
significante4 . A falha e a falta são constitutivas do simbólico, e o equívoco é produzido na inserção da língua
no histórico – espaço de contradição movido pela luta de classes (que, por sua vez, é de natureza ideológica).
Como produto da história na língua, temos a historicidade. Concebida como sendo o trabalho
discursivo que organiza sentidos conflitantes para as relações de poder presentes em uma formação social
(INDURSKY, 1998: 14), a historicidade serve de espaço e de condição para a produção de sentidos pelos
discursos. E, uma vez que não existe discurso sem sujeito, podemos concluir que a história, através dessa
produção de sentidos, exerce um duplo papel na Análise do Discurso: constituir a língua e também o sujeito.

5. Conclusão Observando o percurso deste trabalho, é possível inferir que cada definição de história aqui
apresentada, de certa forma, aproxima-se da visão singular que tem a Análise do Discurso sobre esse tema.
Paul Veyne assinala que o trabalho do historiador consiste em selecionar acontecimentos e dar-
lhes uma ordem, constituindo uma narrativa. A semelhança com o pensamento da Análise do Discurso está no
fato de que as escolhas geram efeitos de sentido, e o que permanece são apenas os discursos sobre os
acontecimentos. Não temos acesso ao que realmente ocorreu. Além disso, a verdade é múltipla: um mesmo
acontecimento pode ser vinculado a diferentes discursos.
Michel Foucault vê a história como um sistema descontínuo de enunciados, movido pela
emergência de rupturas. Assim, esse filósofo questiona a importância do documento, propondo que, em seu
lugar, consideremos o monumento, massa de elementos descontínuos descrita por uma arqueologia. Eis a
analogia com a Análise do Discurso: se a história é um sistema de elementos em dispersão, isso autoriza
pensar que o sentido, por sua vez, é mutável e descontínuo. O arquivo (ou a memória do dizer) é lacunar,
abrindo espaço para o sujeito produzir formulações que tentem estabelecer relações.
E Karl Marx e Friedrich Engels pensam a história como produto das práticas da vida humana,
pautadas pela sociedade de classes. Disso resulta o Materialismo Histórico, que é um dos elementos do tripé
epistemológico da Análise do Discurso. Essa perspectiva de história traz consigo o conflito e a contradição, o
que abre espaço para a ideologia e, assim, justifica sua apropriação pela teoria de Michel Pêcheux.
Sentido, memória, contradição, falha, equívoco. Componente do discurso. Isso é o que
representa a história para a Análise do Discurso.

RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo realizar uma reflexão acerca da maneira como a Análise do
Discurso iniciada por Michel Pêcheux trabalha com o conceito de história, buscando compreender sua
intrínseca articulação com as noções de língua, sujeito e, conseqüentemente, discurso. Para isso, percorre
também algumas propostas afins a essa.

PALAVRAS-CHAVE: Análise do Discurso; história; língua; sujeito; discurso.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FERREIRA, Maria Cristina Leandro. Da ambigüidade ao equívoco: a resistência da língua nos limites da
sintaxe e do discurso. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 2000.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 6.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.

4
Para dar continuidade a essa reflexão, sugerimos a obra Da ambigüidade ao equívoco: a resistência da
língua nos limites da sintaxe e do discurso, de Maria Cristina Leandro Ferreira (ver referências
bibliográficas).
HENRY, Paul. A história não existe? In: ORLANDI, Eni Puccinelli (org.). Gestos de leitura: da história no
discurso. 2.ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003, p. 29-55.
INDURSKY, Freda. A análise do discurso e sua inserção no campo das ciências da linguagem. In: Cadernos
do Instituto de Letras da UFRGS, n. 20, dez. de 1998, p. 07-21.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
_____. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Martin Claret, 2004.
ORLANDI, Eni Puccinelli. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Campinas: Pontes,
2004.
PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 3.ed. Campinas: Editora da
UNICAMP, 1997.
VEYNE, Paul. Como se escreve a história. Lisboa: Edições 70, 1987.

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