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Eni Puccinelli Orlandi Rete fea e seu AS FORMAS DO DISCURSO Ceres O DISCURSO PEDAGOGICO: A CIRCULARIDADE * INTRODUCAO. Partindo da suposicao de que se poderiam distinguir trés tipos de discurso, em seu funcionamento — discurso liidico, discurso polé- mico e discurso autoritério — procuraremos caracterizar 0 discurso pedagégico (DP), tal qual ele se apresenta atualmente, como um discurto autoritdrio. O critério, para a disting&o dos trés tipos de discurso, podemos encontraé-lo tomando como base o referente e os participantes do discurso, ou seja, 0 objeto do discurso e os interlocutores. Considera- mos que ha dois processos — o parafrdstico e 0 polissémico — que so constitutivos da tenséo que produz o texto (Orlandi, 1978). Podemos tomar a polissemia enquanto processo que representa a tensio cons- tante estabelecida pela relagio homem/mundo, pela intromissio da pratica e do referente, enquanto tal, na linguagem. Nesse sentido, podemos caracterizar os trés tipos de discurso da seguinte maneira: © discurso Itidico € aquele em que o seu objeto se mantém presente enquanto tal e¢ os interlocutores se -expdem a essa presenca, resul- tando disso o que chamarfamos de polissemia aberta (0 exagero € 0 non-sense). O discurso polémico mantém a presenca do seu objeto, sendo que os participantes nao se expdem, mas ao contrario procuram dominar o seu referente, dando-lhe uma direcdo, indicando perspecti- vas particularizantes pelas quais se o olha e se o diz, o que resulta na polissemia controlada (0 exagero é a injiria). No discurso autoritatio, © referente esté “ausente”, oculto pelo dizer; nao ha realmente inter- * Texto apresentado na mesa-redonda “Linguagem ¢ Educacio", no XX Semi- nario do GEL, 1978. Posteriormente, foi publicado na Série Estudos, n.° 6, Uberaba, 1978 1. Isto é, enquanto objeto, enquanto coisa, 15 locutores, mas um agente exclusivo, o que resulta na polissemia con- tida (0 exagero é a ordem no sentido em que se diz “isso é uma ordem”, em que o sujeito passa a instrumento de comando). Esse discurso recusa outra forma de ser que nao a linguagem. Considerando-se que o DP se insere entre os discursos do tipo autoritério, procuraremos caracterizé-lo enquanto tal. AS FORMACOES IMAGINARIAS: O QUEM, O O QUE, O PARA QUEM Analisando-se 0 esquema que constitui 0 percurso estrito da co- municacdo pedagdgica, temos: Quem | Ensina 0 Que | Para Quem ‘Onde Imagem Inculea Imagem do Imagem Escola do referente do professor J aluno J (A) Meialinguagem (By Aparelho (Ciéncia/Fato) Ideolégico (R) (X) Que pode ser representado como segue: A ensina RaBemX Procuraremos, pois, analisar essas varidveis (A, R, B, X) tendo em vista a fungao de ensinar. Se utilizarmos a técnica de imagens (formacdes imagindrias) de Pécheux, tal como ele a define em sua AAD (Pécheux, 1969), temos no esquema seguinte o que deveria ser a imagem dominante do DP: IB(R)* A questdo que se constituiria na estratégia basica? do DP deve- ria ser a pergunta pelo referente (R), isto é, 0 objeto do discurso, que, * Imagem que B (0 aluno) faz de R (referente). 2, Trabalharemos aqui com o esquema de pergunta-resposta por considerarmos que o circuito do ensino passa pelo movimento criado pela questio. 16 no DP, aparece como aigo que se deve saber. Entretanto, parece-nos que, enquanto discurso autoritdrio, 0 DP aparece como discurso do poder, isto é, como em R. Barthes, 0 discurso que cria a nocao de erro e, portanto, o sentimento de culpa, falando, nesse discurso, uma voz segura ¢ auto-suficiente. A estratégia, a posicao final, aparece como © esmagamento do outro. Nesse sentido, poderiamos dizer que A ensi- na B = A influencia B. A estratégia basica das questées adquire a forma imperativa, isto €, as questdes sdo questées obrigativas (parentes das perguntas ret6ricas). Exemplo: exercicios, provas, cuja formulagao é: “Respon- da...?”. So questdes diretas a que se dé o nome de “questes objetivas”. esquema da imagem dominante — IB(R) — aparece de- clinado segundo uma gradagio de autoritarismo, desde IB(IA(R)), IB(IA(IB(IA(R)))) até a forma mais autoritéria, da hipertrofia da autoridade, isto é, do professor: IA(A), ou seja, a imagem que o professor tem de si mesmo. O que produz um discurso individuali- zado em seu aspecto estilistico e de perguntas diretas e sdécio-céntricas: “Nao é verdade?”, “Percebem?", “Certo?”, etc. ENSINAR Mais do que informar, explicar, influenciar ou mesmo persuadir, ensinar aparece como inculcar. Podemos caracterizar a inculcagdo através de varios fatores proprios ao discurso e que fazem parte da ordem social em que vivemos. Vejamos esses fatores: 1 — A quebra de leis do discurso, tais como as enunciadas por O. Ducrot (1972): o interesse, a utilidade ou a lei da informatividade 1.1 — A lei da informatividade diz que: se se quer informar é preciso que 0 ouvinte desconheca o fato que se Ihe aponta, Veremos agui mesmo, no item 3.b, como o DP lida com essa lei. 1.2 — Lei do interesse: lei geral do discurso segundo a qual ado se pode falar legitimamente a outrem senao daquilo que possa interessar-lhe. 17 1.3 — Lei da utilidade: lei “psicolégica” segundo a qual ndo se fala somente por falar, mas porque ha uma utilidade em fazé-lo. Em virtude dessa concepeao utilitarista da linguagem considera-se ra~ zoavel indagar, para cada ato de fala, os motivos que poderiam té-lo suscitado. Além dessas leis gerais vélidas para 0 comportamento lingiifstico em geral, hé uma regulamentacdo para cada categoria de atos de fala. Por exemplo, para ordenar exige-se uma certa relacdo hierarquica entre quem ordena e quem obedece; para interrogar, h4 também a exigén- cia de certas condigdes, e o direito de interrogar, exercido por uma autoridade, converte-se em poder de ordenar e, logo, nao pode ser atribuido indistintamente. Para cada uma das leis gerais pode-se fazer corresponder um tipo particular de subentendido. No DP, entretanto, 0 que ha é mas- caramento. Mantida a regulamentacdo para o ato de interrogar e de ordenar —— uma vez que o professor é uma autoridade na sala de aula e nao s6 mantém como se serve dessa garantia dada pelo seu lugar na hierarquia —, 0 recurso didatico, para mascarar a quebra das leis de interesse e de utilidade, é a chamada motivacdo no sentido peda- gogico. Essa motivagao aparece no DP como motivaco que cria inte- resse, que cria uma visao de utilidade, fazendo com que o DP apre- sente as razdes do sistema como razes de fato. Ex.: no léxico, 0 uso das palavras “dever", “ser preciso”, etc. Nas formacdes imagindrias que citamos mais acima — por exem- plo, IB(IA(R)) — podemos incluir a mediagdo do “dever": 1 que B deve ter da I que A deve ter do R, etc. Assim como, pela quebra das Ieis de discurso, 0 que temos é ainda a mediagdo: a desrazdo cede lugar & mediacdo da motivacdo que cria interesse, utilidade, etc. Essa motivacdo tem validade na esfera do sistema de ensino ¢ deriva dos valores sociais que se Ihe atribui. Em um e outro caso, temos sempre a anulacdo do contetido refe- rencial do ensino ¢ a sua substituicdo por contetidos ideolégicos mas- carando as razdes do sistema com palavras que merecem ser ditas por si mesmas: isto é 0 conhecimento legitimo. As mediagdes sao sempre preenchidas pela ideologia. 18 2 — OE porque & A apresentacdo de razdes em torno do referente reduz-se ao “6 porque ¢”. E 0 que se explica ¢ a razdo do “é porque é” € nao a razio do objeto de estudo. Nesse passo ,temos no DP duas caracteristicas bastante evidentes. Ao nivel da linguagem sobre 0 objeto, 0 uso de déiticos, a objetalizacdo (“isso”), a repeticao, perffrases. Ao nivel da metalinguagem, definic6es rigidas, cortes polissémicos, encadeamen- tos automatizados que levam a conclusées exclusivas dirigidas. Daf a estranheza de um discurso que é diluidor e diluido, em relagéo ao objeto, ao mesmo tempo em que apresenta definigdes categéricas ¢ é extremamente preciso e coerente, ao nivel da metalinguagem. 3 — A cientificidade A transmissio de informagdo e fixacfio sdo consideradas obje- tivos do DP. Até o momento falamos do tipo de “informacao” (com- portamento) que ele “transmite” (inculca). Gostariamos, agora, de falar sobre a natureza dessa “informagao”. E sua caracteristica esta em que ele se pretende cientifico. O estabelecimento da cientificidade do DP pode ser observado especialmente em dois pontos: a) a me- talinguagem e b) a apropriacdo do cientista feita pelo professor. a) A metalinguagem A metalinguagem tem um espaco (institucional) para existir. Vejamos essa relacdo da metalinguagem com seu espago, no DP. O conhecimento do fato fica em segundo plano em relac&io ao conhecimento da metalinguagem, da forma de procedimento, da via de acesso ao fato. Na realidade, nao ha questo sobre o objeto do discurso, isto é, seu contetido referencial, apresentando-se assim um so caminho: o do saber institucionalizado, legal (ou legitimo, aquele que se deve ter). O contetido af é a forma (artefato) e se aponta a forma como réplica do contetido. Através da metalinguagem, o que se visa é a construcao da via cientifica do saber que se opde ao senso- comum, isto é, constrdi-se ai o reino da objetividade do sistema. O objeto aparece refletido nos recortes de uma metalinguagem que se 19 constréi com maior ou menor especificidade, dividindo espacos dentro da instituicdo: Semntica Fonologia mais especifica: distingo de Sintaxe disciplina e métodos: Estruturalismo Transformacionalismo etc. Matematica mais ou menos especifica: distingZo Geografia das ciéncias: Lingiiistica ete. Racionalidade, objetividade, sistematicidade; menos especifica: distingdo Experiéncia, sensibilidade, Cigncia/Fato (Escola/fora dela) : subjetividade, ocasionali- dade, etc. Cada coisa é posta em seu devido lugar e assim se perde a nocgao do todo do saber, sua unidade. As divisGes sao estanques e a perda da unidade € recuperada em um outro conceito que toma seu lugar: o da “homogeneidade”. A homogeneidade é criada a partir da insti- tuicéio. FE no espaco da instituicéo que o conhecimento é homogéneo, pois a instituicao do saber como um todo (0 sistema de ensino, tendo no cume a Universidade) abriga todas as divisGes. Essas divisdes se agrupam: sala, aula, série, disciplina, nivel (primario, médio supe- rior), faculdade, universidade. E dessa perspectiva de metalinguagem que se podem entender questdes do tipo: posso dizer com minhas palavras? Cuja resposta é: ou nao pode, ou, mais benevolentemente, se diz que pode para depois se recusar essa linguagem e substitui-la por outra “mais adequada”. Além disso, formulam-se, através de metalinguagem da época, problemas classicos, de maneiras diferentes, sem que se tenha cons- ciéncia disso, uma vez que nao se trata de uma reflexao sobre fatos, 20 nem da histéria das diferentes formulacées dos mesmos problemas colocados pelos fatos. Desconhece-se a histéria dos conceitos, ou melhor, que os conceitos tem uma histéria. Nessa perspectiva de escolaridade, as questées nfo se podem dizer nem verdadeiras nem falsas pois nao se trata de explicar fatos mas de se mostrar a perspectiva de como podem ser vistos. No en- tanto, ao que € fortuito e ocasional (a perspectiva) atribui-se um esta~ tuto de necessidade, através da avaliacéo que a escola produz, insti- tuindo um conhecimento que € considerado valorizado ou, em outras palavras, um saber legitimo. b) O professor-cientista O professor apropria-se do cientista e se confunde com ele sem que se explicite sua voz de mediador. Ha ai um apagamento, isto é, apaga-se 0 modo pelo qual o professor apropria-se do conhecimento do cientista, tornando-se ele préprio possuidor daquele conhecimento. A opiniao assumida pela autoridade professoral torna-se definitéria (e definitiva). Pela posi¢ao do professor na instituigao (como autoridade con- venientemente titulada) e pela apropriagdo do cientista feita por cle, dizer e saber se equivalem, isto é, diz que z = sabe z. E a voz do saber fala no professor. Poderfamos, entdo, perguntar: o que é 0 aluno e 0 que é 0 pro- fessor? O aluno é idcalmente B, isto é, a imagem social do aluno (o que no sabe e estd na escola para aprender), e 0 professor é ideal- mente A, isto é, a imagem social do professor (aquele que possui o saber e esta na escola para ensinar). E assim que se “resolve” a lei da informatividade e, de mistura, a do interesse e utilidade: a fala do professor informa, e, logo, tem interesse e utilidade. O professor diz que e, logo,sabe que, o que autoriza o aluno, a partir de seu contato com 0 professor, a dizer que sabe, isto é, ele aprendeu A distancia entre a imagem ideal e 0 real é preenchida por pre- sungées, mediacéio essa que nao é feita no vazio mas dentro de uma ordem social dada com seus respectivos valores. As mediacdes se suce- dem em mediagdes provocando um deslocamento tal que se perdem de vista os elementos reais do processo de ensino ¢ aprendizagem. 21 Podemos citar, por exemplo, o material didético, que tem esse cardter de mediagdo e cuja funcio sofre o processo de apagamento (como toda mediacdo) e passa de instrumento a objeto. Enquanto objeto, o material diddtico anula sua condigéo de mediador. O que interessa, ento, nao é saber utilizar o material didatico para algo. Como objeto, ele se d4 em si mesmo, e 0 que interessa é saber 0 ma- terial didatico (como preencher espacos, fazer cruzinhas, ordenar se- aiiéncias, etc.). A reflexao é substitufda pelo automatismo, porque, aa realidade, saber 0 material didatico € saber manipular. Entre a imagem ideal do aluno (o que nao sabe) e a imagem ideal do professor (0 que tem a posse do saber que é legitimado pela esfera do sistema de ensino) ha uma distancia fartamente preenchida pela ideologia. A ESCOLA (O ONDE): A REPRODUCAO CULTURAL, A LEGITIMIDADE Podemos ler em Bourdieu (1974). que a escola é a sede da re- produgo cultural e o sistema de ensino é a solucdo mais dissimulada para o problema da transmissao de poder, pois contribui para a repro- duco da estrutura das relacdes de classe dissimulando, sob a aparén- cia da neutralidade, 0 cumprimento dessa fungéo. Além disso, a defi- nigdo da escola em sua fungao de transmissao da informagao acumulada (definicao tradicional) dissocia sua funcéo de reproduc&o cultural de sua fungo de reprodugdo social, aparecendo como colaboradora que harmoniiza a transmissiio de um patriménio cultural que aparece como bem comum. No entanto, ha uma correspondéncia entre a distribuigao do capital cultural e do capital econémico e do poder entre as dife- rentes classes: a posse de bens culturais, e que uma formagdo social seleciona como dignos de serem possuidos, supde a posse prévia de um cédigo que permite decifré-lo. E assim instala-se uma circulari- dade: 86 os possui o que j4 tem condigdes de possut-lo. Por outro lado, a escola tem uma fungiio de dissimulagio: apresenta hierarquias sociais © a reproducéio dessas como se estivessem baseadas na hierarquia de “dons”, méritos ou competéncias e nao como hierarquia fundada na afirmagéio brutal de relagdes de forca. Convertem hierarquias sociais em hierarquias escolares e com isso legitimam a perpetuacio da ordem social. 22 Através de que ag&o a escola faz isso? A escola atua através da convengao: 0 costume que, dentro de um grupo, se considera como valido e esté garantido pela reprovacdo da conduta discordante. Atua através dos regulamentos, do sentimento de dever que preside a0 DP ¢ este veicula. Se define como ordem legitima porque se orienta por maximas € essas méximas aparecem como vilidas para a aco, isto ¢, como modelos de conduta, logo, como obrigatérias. Aparece, pois, como algo que deve ser. Na medida em que a convencio, pela qual a escola atua, aparece como modelo, como obrigatéria, tem o prestigio da legitimidade. E a escola é a sede do DP, Em tiltima instincia, é 0 fato de estar vinculado a escola, isto é, a uma instituicéo, que faz do DP aquilo que ele é, mostrando-o em sua funcao: um dizer instituciona- lizado, sobre as coisas, que se garante, garantindo a institui¢do em que se origina e para a qual tende. E esse o dominio de sua circula- ridade. Circularidade da qual vemos a possibilidade de rompimento através da critica *. Finalmente, como a nossa suposigao é a de que o que caracte- riza o DP € a elisao (ilusio?) do referente através de mediagdes que rompem o percurso do dizer e se transformam em fins em si mesmas, consideramos que um estudo importante a ser feito é o da fungao referencial para o DP. BIBLIOGRAFIA BOURDIEU, P. — A Economia das Trocas Simbélicas, Perspectiva, SA0 Paulo, 1974, DUCROT, 0. — Dire et ne pas Dire, Hermann, Paris, 1972. ORLANDI, E. — “Protagonistas do/no Discurso", Foco e Pressuposigio, Série Estudos 4, Fista, Uberaba, 1978. PECHEUX, M. — Analyse Automatique du Discours, Dunod, Paris, 1969. 3. Desenvolvemos este aspecto de ruptura em relagéo ao DP dominante em “Para quem € 0 DP”, neste volume. 23 PARA QUEM E O DISCURSO PEDAGOGICO * INTRODUCAO Inicialmente, procurarei explicitar minha concepcao de lingua- gem, situar o que entendo por discurso e, tipicamente, por discurso pedagdgico (DP). Posso considerar a linguagem como um trabalho. No sentido de que ndo tem um carater nem arbitrério nem natural, mas necessério. E essa necessidade se assenta na homologia que podemos fazer entre linguagem e trabalho, i. ¢., considerando que ambos sao resultados da interacdo entre homem é realidade natural e social, logo, mediacao necessaria, producio social. Quando falamos em mediacao, gostarfamos de dizer que nao pensamos essa mediagdo no sentido de colocar a linguagem como instrumento, mas pensamos, antes, a mediagéo como relagao consti- tutiva, aco que modifica, que transforma. Ainda que pareca pseudonatural, uma vez que o produtor da linguagem nao possui seu controle, ainda assim sua naturalidade nao é natural nem sua arbitrariedade arbitréria, pois encontra sua moti- vacao na forma social, no sistema de producdo a que pertenca (Rossi- landi, 1975). © estudo da linguagem nao pode, pois, nessa perspectiva que adotamos, estar apartado da sociedade que a produz. Entao, os pro- cessos que entram em jogo na constituigao da linguagem sao processos histérico-sociais, e seria interessante acrescentar que, em se tratando * Esse texto foi apresentado em uma mesa-redonda da 32. Reuniio da SBPC (1980). 25 de processos, nao consideramos nem a sociedade como um dado nem a linguagem como um produto. Em decorréncia dessa perspectiva € que vemos a Anilise do Dis- curso como uma regidio privilegiada porque o discurso pode ser visto justamente como a instanciagdio do modo de se produzir linguagem, isto €, no processo discursivo se explicita 0 modo de existéncia da linguagem que é social. Especificando agora esta nogao, considero o discurso (M. Pécheux, 1969) no como transmissdo de informagaéo mas como efeito de sen- tidos entre interlocutores, enquanto parte do funcionamento social geral. Ent&o, os interlocutores, a situacdo, 0 contexto hist6rico-social, i. @,, a8 condigdes de producdo, constituem o sentido da seqiiéncia verbal produzida, Quando se diz algo, alguém o diz de algum lugar da sociedade para outro alguém também de algum lugar da sociedade e isso faz parte da significacdo. Como € exposto por Pécheux, ha nos mecanismos de toda formacio social regras de projecdo que estabele- cem a relacao entre as situacdes concretas e as representacoes dessas situacdes no interior do discurso. E o lugar assim compreendido, en- quanto espaco de representagdes sociais, que é constitutive da signi- ficagao discursiva. E preciso dizer que todo discurso nasce de outro discurso e reenvia a outro, por isso nao se pode falar em um discurso mas em estado de um processo discursivo, e esse estado deve ser compreendido como resultando de processos discursivos sedimentados, institucionalizados. Finalmente, faz parte da estratégia discursiva pre- ver, situar-se no lugar do ouvinte, antecipando representacdes, a partir de seu préprio lugar de Tocutor, 0 que regula a possibilidade de res- Postas, o escopo do discurso. Considerando-se ainda, no estudo da linguagem, 0 proceso que retine o eu e o outro, na simultaneidade falante-ouvinte, podemos chegar a articulagao social entre interlocutores e deriva dai a possi- bilidade de se apreender a ilusio subjetiva que muitas vezes esta re- fletida, nao criticada, nas teorias lingtifsticas: 0 sujeito que produz linguagem também esté reproduzido nela, acreditando ser a fonte ex- clusiva de seu discurso, quando, na realidade, retoma um sentido precxistente. Essa ilusao de ser a fonte de sentido se desfaz se atentarmos ao fato de que, para ter sentido, qualquer seqiiéncia deve pertencer a uma formagao discursiva que, por sua vez, faz parte de uma formacao ideol6gica determinada. 26 Cada formagdo ideoldgica, segundo Cl. Haroche (Haroche et alii, 1971), “constitui um conjunto complexo de atitudes ¢ represen- fades que nao so nem individuais nem universais mas se reportam, mais ou menos diretamente, as posicées de classe em conflito umas com as outras”. Dessas formacées ideoldgicas, fazem parte, enquanto componentes, uma ou mais formagées discursivas interligadas. Segundo essas consideragSes, a relacéo entre as condices Sécio-histéticas e as significagdes de um texto & constitutiva € nado secundaria. Por isso tudo, de acordo com os autores citados acima, falar € outra coisa que produzir um exemplo de gramatica. As formacdes Siscursivas séo formacdes componentes das formagées ideolégicas que determinam o que pode e deve ser dito a partir de uma posi¢ao dada em uma conjuntura dada. As palavras mudam de sentido ao passarem de uma formacio ‘Gscursiva para outra. Assim, nao séo somente as intengdes que deter- o dizer. Ha uma articulacdo entre intencdo e convencées iais. Hé uma selecéio em relago aos meios formais que uma lingua ece, selecdo feita pelo falante que vai delimitando o que diz ¢, eqiientemente, tudo o que seria possivel dizer. Porém, o sujeito se apropria da linguagem num movimento individual: hd uma social de apropriacdo da linguagem em que esta refletido modo como ele o fez, ou seja, sua ilusdo de sujeito, sua interpe- Zo feita pela ideologia. Teoricamente, e em termos bastante gerais, podemos dizer que produgdo da linguagem se faz na articulagio de dois grandes 808: 0 parafrdstico e o polissémico. Isto 6, de um lado, ha retorno constante a uma mesmo dizer sedimentado — a pard- — ©, de outro, ha no texto uma tensio que aponta para o imento. Esta é uma manifestacio da relacio entre 0 homem e ido (a natureza, a sociedade, 0 outro), manifestagdo da pritica referente na linguagem. HA um conflito entre o que é garantido gue tem de se garantir. A polissemia é essa forga na linguagem desloca 0 mesmo, 0 garantido, o sedimentado, Essa € a tens%o do discurso, tensio entre o texto e o contexto histérico-social: lito entre o “mesmo” e o “diferente” (Orlandi, 1978), entre frase € a polissemia. 27 Nao hd, pois, razio para se considerar o discurso como mera transmissao de informagio mas, antes, devemos consideré-lo como feito de sentidos (Pécheux, 1969). Dessa maneira, 0 social aparece em relaco a linguagem, na sua forca contraditéria: porque o social é constitutive da linguagem, esta se sedimenta (ilusio do sujeito), © porque é fato social, ela muda (polissemia). O que €, entao, o DP? Eu o tenho definido como um discurso circular, isto é, um dizer institucionalizado, sobre as coisas, que se garante, garantindo a instituicao em que se origina e para a qual tende: a escola. O fato de estar vinculado a escola, a uma institui¢do, por- tanto, faz do DP aquilo que ele é, e 0 mostra (revela) em sua funcao. Bourdieu (1974) trata da escola como sede da reprodugdo cultural, ¢ 9 sistema de ensino como sendo a solucdo mais dissimu- lada para o problema da transmissio de poder, ao contribuir para a reprodugao da estrutura das relagdes de classe mascarando sob a aparéncia da neutralidade o cumprimento dessa fungio. Indo mais além, Marilena Chaui, na Folha de S. Paulo de 29 de junho (1980), diz que mais que a reprodugo da ideologia dominante, das estru- turas de classe e das relacées de poder, a educagdo agora é tomada pelo seu aspecto econdmico mais imediato, sendo a funciio da escola reproduzir a forga de trabalho. Diz cla: “hoje a educagao é encarada imediatamente como capital, produg&o ¢ investimento que deve gerar Iucro social". Como a escola faz isso? A escola se institui por regulamentos, por maximas que apare- cem como validas pata a ag&o, como modelos. Ela atua pelo prestigio de legitimidade e pelo seu discurso, o DP. Quando falo em DP estou falando em um tipo de discurso. Tipo, aqui, em relacdo a outros, como 0 jornalistico, o teolégico etc. E a empresa tipolégica é uma retrica: um tipo de discurso é uma configuracéo de tracos formais associados a um efeito de sentido caracterizando a atitude do locutor de base a frase com o verbo ser (definigdes). Do ponto de de seu referente, 0 DP seria puramente cognitivo, informacional. No entanto, a pratica. E essa tipologia que tematiza essa neutra- nfo me foi suficiente, na minha reflexdo sobre o DP, enquan- eu mesma fago parte da escola. Minha experiéncia me mostrava coisa que essa neutralidade suposta. Crici outra tipologia. A de existem, fundamentalmente, trés tipos de discurso em seu funcio- ito: 0 Tidico, o polémico e o autoritario. O critério para a cdo estd na relacdo entre os interlocutores e o referente, isto suas condicées de produgao. De acordo, entéo, com a dinamica das condigédes de produgéo 108 os varios tipos de discurso, tal como os definimos em “O Dis- Pedagégico: a Circularidade”: no discurso Itidico, ha a expan- > da polissemia pois o referente do discurso est4 exposto a presenca interlocutores; no polémico, a polissemia é controlada uma vez os interlocutores procuram direcionar, cada um por si, 0 refe- do discurso e, finalmente, no discurso autoritario hé a conten- da polissemia, j4 que 0 agente do discurso se pretende tinico ita o referente pelo dizer. A teversibilidade na relaco dos interlocutores pode fazer parte critério de distingio desses tipos de discurso, ou melhor, desses ionamentos discursivos: o discurso autoritério procura estancar rsibilidade; 0 lidico vive dela; no polémico, a reversibilidade sob condicées. Gostaria de explicitar, nesse momento, que, ao colocar entre tipos de discurso 0 discurso hidico, isso nao contraria a hipdtese, no inicio, da linguagem vista como trabalho. A forma como 0s a noco de trabalho, isto é, como mediagao, inclui o . No entanto, a maneira como o trabalho se da em uma forma- social determinada pode excluir a possibilidade do hidico, depen das caracteristicas desta formacio. Procurando caracterizar o DP, pudemos observar que tal qual Se mostra atualmente em uma formagdo social como a nossa, Se apresenta como um discurso autoritério, logo, sem nenhuma ‘idade. O DP se dissimula como transmissor de informacio, ¢ faz isso tizando essa informagao sob a rubrica da cientificidade. O esta- 29 belecimento da cientificidade é observado, segundo o que pudemos verificar, em dois aspectos do DP: a meta-linguagem © a apropria- cao do cientista feita pelo professor. O problema da metalinguagem se funda no tratamento do refe- rente, isto €, o conhecimento do fato fica subsumido, no DP, pelo conhecimento de uma certa metalinguagem: fixam-se as definicdes e excluem-se os fatos. O referente é um referente discursivo: sao con- ceitos elaborados naquele ou em outros discursos, enunciados impli- citos. A citacao de outros discursos pode ser ou nao explicitada no DP, o que torna mais dificil decidir sobre os limites dele e as vozes que falam nele. Na realidade, nao ha questo sobre o objeto do discurso, isto é, seu contetdo referencial. Através da metalinguagem estabelece-se 0 estatuto cientifico do saber que se opoe ao senso comum, isto é, constrdi-se com a metalinguagem 0 dominio da obje- tividade do sistema. O DP utiliza, dessa maneira, uma linguagem que dilui seu objeto ao mesmo tempo em que se cristaliza como metalinguagem: as definigdes sao rigidas, ha cortes polissémicos, encadeamentos automatizados que levam a conclus6es exclusivas (Ex.: uso do verbo ser nas definigdes “X é...”). As questdes nao so verdadeiras nem falsas, pois a apresentagdo das razGes em torno do referente se reduz ao é-porque-é. O que se explica é a razio do é-porque-é e nfo a razdo do objeto de estudo. Outra funcao da metalinguagem, segundo o que observamos, é produzir recortes no obje- to, recortes esses refletidos dentro do sistema de ensino em sua totalida- de; desde recortes mais gerais até os mais especificos (disciplinas, métodos, ciéncia/fato), desde os mais tedricos até os mais concretos (Humanas, Exatas, 1. série, 2.2 série, salas de aula diferentes, etc.). E o sistema de ensino é essa fragmentag&o toda em que o conceito de unidade cede lugar ao de homogeneidade e com ele se trangiiiliza técnica € burocraticamente sob o pretexto de niveis de especializacdo. Nao se trata, entéo, da explicacdo dos fatos, mas de se determinar a perspectiva de onde devem ser vistos e ditos. A essa perspectiva, e pela avaliacgéo que a escola estabelece, atribui-se um estatuto de necessidade (de dever) e se institui, dessa forma, um conhecimento valorizado, um saber legitimo. Nesse saber, através dessa metalin- guagem, tudo se achata. Isto é, se torna ébvio o que é complexo € se complica o que é ébvio. Hé uma indistincao feita pela lingua- gem escolar que se presta a uma fungio tranqiiilizante: nao ha sustos, diividas ou questées sem resposta. Assim se constréi o saber devido, o saber itil (vale perguntar: para quem?). 30 Q sistema de ensino atribui a posse dessa metalinguagem ao professor, autorizando-o. O professor, por sua vez, se apropria do cientista € se confunde com ele sem se mostrar como voz mediadora. Apaga-se o modo pelo qual se faz essa apropriacio do conhecimen- to do cientista tornando-se, o professor, detentor daquele conheci- mento. Como o professor, na instituigSo, é autoridade convenien- temente titulada, ¢ como ele se apropria do cientista, dizer e saber se equivalem. O professor € institucional ¢ idealmente aquele que Possui o saber e esté na escola para ensinar, o aluno é aquele que ado sabe ¢ esté na escola para aprender. O que o professor diz se converte em conhecimento, 0 que autoriza o aluno, a partir de seu sontato com o professor, no espaco escolar, na aquisicio da metalin- guagem, a dizer que sabe: a isso se chama escolarizacio. Na interlocugao, o DP se caracteriza pela quebra de leis discur- ‘sivas, como as enunciadas por Ducrot: interesse, informatividade utilidade. A quebra dessas leis se resolve pela motivacao pedagogica © pela legitimidade do “conhecimento” escolar (dai sua utilidade) escorada na idéia de que hd um desenvolvimento no proceso escolar, paralelo ao da maturacao do aluno. Enquanto ele for aluno “alguém” sesolve por ele, cle ainda nao sabe o que verdadeiramente lhe inte- ressa, etc. Isso é a inculeagdo. As mediagées, nesse jogo ideoldgico, se transformarn em fins em si mesmas e as imagens que o aluno vai fazer de si mesmo, do seu interlocutor e do objeto de conhecimento ~20 estar dominadas pela imagem que ele deve fazer do Ingar do professor. Pelo lado do aluno (nessa caracterizagao do DP), ha aceitacao © exploracio dessas representagdes que fixam o professor como auto- fidade e a imagem do aluno que se representa o papel de tutelado. nvolvem-se ai tipos de comportamento que podem variar desde autoritarismo mais exarcebado ao paternalismo mais doce. OPOSTA Como encaminhar uma posigao critica diante dessa caracteriza- do DP? Seria, talvez, torné-lo um discurso polémico. Falei anteriormente que hé uma relacdo entre a formacao dis- iva e a formaciio ideolégica, e insisti no fato de que um discurso efeito de sentidos ¢ nado transmissio de informacao, 31 © jogo ideoldgico esté na dissimulacio dos efeitos de sentido sob a forma de informacdo, de um sentido tnico, e na ilusdo di cursiva dos sujeitos de serem a origem de seus proprios discursos, Ora, hé um compromisso da linguagem com o processo histérico social; os efeitos de sentido tém origem na constituicao dos interlo- cutores e do contexto como elementos da significacdo, Como a so- ciedade, tal qual ela se apresenta hoje, € dividida, 0 sentido distri- bufdo nao € s6 miltiplo ele esta despedacado © a aparéncia de unidade € dada pelo sentido garantido, o sentido sedimentado, institucionali- zado, 0 dominante. Se a ideologia dominante coloca, entéo, certos pressupostos, certos implicitos, é preciso interferir na constituicdo dos sentidos assim construfdos. O autoritarismo esté incorporado nas relacées sociais. Esté na escola, esta no seu discurso. Pois bem, uma forma de interferir no cardter autoritaério do DP é questionar os seus implicitos, o seu caré- ter informativo, sua “unidade” e atingir seus efeitos de sentido. Com 0s implicitos, 0 discurso coloca algumas “informacées”, informacdes que aparecem como dadas, predeterminadas, ¢ nao deixa espago para que se situe a articulacéio existente entre o discurso e 0 seu contexto mais amplo. Esses implicitos prendem os interlocutores no espaco do instituido. Especificamente, em relac3o ao DP, uma forma nao auto- ritéria é explicitar 0 jogo dos efeitos de sentido em relagdo a “informa- des” colocadas nos textos e dadas pelo contexto histérico-social, Do ponto de vista do autor (professor) uma maneira de se colo- car de forma polémica ¢ construir seu texto, seu discurso, de maneira a expor-se a efeitos de sentidos possiveis, é deixar um espaco para a existéncia do ouvinte como “sujeito” *. Isto é, é deixar vago um espaco para 0 outro (o ouvinte) dentro do discurso e construir a prépria possibilidade de ele mesmo (locutor) se colocar como ouvinte. E saber ser ouyinte do préprio texto e do outro. 1, Em um curso de pés-graduacio (UNICAMP) sobre 0 Discurso da Histéria, Maria Irma Hadler Coudry e Silma R. C. Leite apresentaram, como traba- tho final, uma dissertacéo em que falam sobre o carater informacional do discurso em que “si jogadas informagdes sem cfeitos de sentido” e con- trapdem a ele “um texto em que cxiste um jogo de sentidos x informacées”, mostrando que ¢ deste movimento que nasce o espaco que dé lugar para a incorporagio do leitor como sujeito. Distinguem o texto em que ha “espago para o re-fazer do percurso do autor” daqueles em que nao existe esse espago, 32 Da parte do aluno, uma maneira de instaurar 0 polémico é exer- cer sua capacidade de discordancia, isto é, nao aceitar aquilo que o texto propGe ¢ o garante em seu valor social: é a capacidade do aluno de se constituir ouvinte e se construir como autor na dindmica da interlocugdo, recusando tanto a fixidez do dito como a fixacaéo do seu lugar como ouvinte. Ou seja, é préprio do discurso autoritario fixar © ouvinte na posiciio de ouvinte ¢ o locutor na posicéo de locutor. Negar isso nao € negar a possibilidade de ser ouvinte, é nao aceitar a estagnacdo nesse papel, nessa posicdo. Seria oportuno fazer, nesse passo, uma observactio a respeito da aogio de sujeito. Como considero que a apropriacdo da linguagem é constituida socialmente, esse sujeito do qual falo nao ¢, pois, 0 sujeito- em-si, abstrato e ideal, mas o sujeito mergulhado no social que o envolve, ¢ preso, pois, da contradi¢ao que o constitui. Por isso prefiro 2 nogao de proceso, de interlocucao. Desse ponto de vista, diria que considero inadequada a termi- nologia que distingue condigdes de producdo e condigoes de recepedo, pois acredito que a nocdo de condigdes de produgao abrange, como um todo, a emissao e a recepciio. Se distinguimos emissdo e recepgao é por uma questiio de fato e nao de direito. Isto é, tanto emissor quanto receptor so, de direito, produtores da instancia de interlocugiio, ambos interagem simultaneamente, embora, de fato, cada um tenha seu tempo de atuacdo. Ainda desse ponto de vista, gostaria de notar que hé um deslize tedrico na lingiiistica, deslize este que se caracteriza por cons- tituir uma lingiiistica, feita do ponto de vista do locutor. Essa lin- siifstica, no meu parecer, generaliza para a caracterizacio da natu- reza da linguagem, isto é, considera como fundamental algo que, no entanto, é wm dos modos de funcionamento dela: aquilo que chamo de um funcionamento discursivo e cuja sedimentacao sdcio- hist6rica resulta em um tipo. Assim toda a linguagem é vista sob a perspectiva do que vejo como discurso autoritério. Isso porque se desarticula 0 caracteristico da interlocugao que é a articulacao locutor/ cuvinte ¢ as outras articulagdes que dai decorrem, constituindo dico- tomias. Do interior de uma de suas perspectivas, a do eu-locutor, se generaliza o olhar, absolutizando-a. E dentro desses limites que venho considerando a homologia entre linguagem ¢ trabalho, visando os funcionamentos discursivos. Nao coloco em causa a especificidade da linguagem em relagio a0 trabalho, considero entretanto que a homologia estabelecida entre 33 essas duas nogdes me permite observar melhor esse aspecto da lin- guagem que se pode ver através do funcionamento discursivo: pensar a pratica discursiva junto as prdticas sociais em geral. Segundo Benveniste (1976), “a polaridade das pessoas é na Finguagem a condigao fundamental. ..”; mais adiante ele diz que “essa polaridade nao significa igualdade nem simetria: ego tem sempre uma posicao de transcendéncia quanto a tu; apesar disso nem um dos dois termos se concebe sem o outro”. A partir daf este autor desenvolve uma andlise que, considerando a apropriacdo da lingua pelo sujeito falante, destaca as formas lingiiisticas que revelam a subjetividade na linguagem, que organizam as relagdes espaciais e temporais em torno do “sujeito tomado como ponto de referéncia”. Mas como “nenhum dos dois termos se concebe sem 0 outro”, 0 que propomos 6 que se considere 0 outro pélo, 0 do ouvinte, e se procure suas marcas, as formas lingitisticas que revelam seu papel. E se hé, pois, formas lin- giiisticas que marcam a presenga do ouvinte dentro do texto, a forma polémica pode ser construida através dessas marcas, justamente opon- do-se ao discurso que, ao lidar com essas marcas, constréi no texto o aprisionamento do outro no escasso lugar que Ihe € atribuido pelo discurso autoritario. essa dinamica de papéis que caracterizaria a possibilidade do discurso polémico, e, junto a isso, haveria a recuperagaéo do objeto da reflexdo, isto é, dos fatos, dos acontecimentos, encobertos pela fixidez desse tipo de discurso que é 0 autoritério. Onde esta a lingua- gem esta a ideologia. Ha confronto de sentidos, a significagéo nao é imével ¢ est no processo de interagao locutor-receptor, no confronto de interesses sociais. Portanto, dizer nao é apenas informar, nem comunicar, nem inculcar, é também reconhecer pelo afrontamento ideoldgico. Tomar a palavra é um ato dentro das relagdes de um grupo social. Ha, em relag&o a escola, uma selecdo que decide, de antemio, quem faz parte dela e quem nao faz, quem esté em condicdes de se apropriar desse discurso e quem nao esté. Ha, entretanto, um outro processo, interno, que ndo é o da simples selegéo mas o do esmaga- mento do outro. HA um artigo de Marilena Chaui, na revista Educagao e Socie- dade (1980), onde ha colocag6es fecundas sobre o problema da 34 educagdo. Ficam entretanto, a meu ver, certos pontos passiveis de -discussao a respeito de ideologia. Por exemplo, quando a ideologia é “vista como estando dentro de nés, encontramos a afirmacdo: “ela ‘est dentro de nés talvez porque tenhamos boas intengdes”. Concordo =m que ela esteja dentro de nés, mas, do meu ponto de vista, ela prescinde de nossas intengdes. Sejam boas ou més. Nao vejo essas di- ‘sises. E o “talvez” usado na expresso (talvez porque tenhamos boas ‘istengdes) revela, em termos de anélise de discurso, agora voltadas para © proprio texto de Marilena, uma questo que podemos fazer-lhe: e voz é essa que fala em seu discurso? E uma voz critica, E em que se coloca essa voz? B ainda nessa direcfio que gostaria de mentar outra passagem desse texto: “Quem portanto est4 excluido do discurso educacional?”. Ao que Marilena responde: os professo- s € os estudantes. Pois bem, como ato de linguagem, é o poder de , € concordo com Marilena quando diz que nds, professores, amos excluidos desse dizer-ato-decisio quando se trata do discurso © poder que se pronuncia sobre a educacdo definindo seu contetido, forma, seu sentido, sua finalidade. Mas gostaria de acrescentar enquanto professores, nao estamos excluidos do dizer-ato-decisao ando se trata do trabalho pedagégico. Trata-se, entdo, em relagéo discurso educacional, de atuarmos criticamente, nas duas direcdes, 2 relagdo aos que nos cristalizam (os que se promunciam sobre a ucag4o) e aos que nés, reprodutoramente, cristalizamos (em nosso lho de educacio). Também nao vejo o procedimento autoritario mo o de simples e pura exclusao, trata-se antes de dominagao, ¢ o ador n&o exclui o dominado, o incorpora como tal. De um lado, portanto, deve-se questionar os implicitos, os lo- ores, 0 contetido, a finalidade, o sentido dado ao ensino pelo DP > poder e, de outro, fazer a mesma coisa com o discurso que nds oduzimos internamente uo trabalho pedagégico. Isto é, questionar condigdes de producio desses discursos. Quando Marilena fala do professor, diz que “uma pedagogia eri- deveria interrogar esse risco cotidiano: de onde vem e por que vem a sedugdo do tornar-se ‘guru’, de onde vem o por que vem em nos alunos 0 desejo de que haja um mestre, o apelo A figura de widade?”. Gostaria de acompanhar isso que Marilena diz com a observa¢do: mesmo que criticos (quando 0 somos) nés estamos 35 fixados pela instituigéo enquanto professores. Ndo acompanhamos o aluno, ficamos no mesmo lugar e esse lugar é 0 que nos aponta como professores (mestres, “gurus”). Daf o risco da cristalizacio. Nao é abstrata essa vontade da autoridade, ela é claramente marcada na relac&o de ensino. Uma outra coisa que Marilena traz 4 tona com muita proprie- dade € a questéo da maturidade e imaturidade atribufdas aos que participam do processo da educac%o. Em outro lugar desse trabalho, falo sobre o aluno como tutelado; aqui, nesse passo, gostaria de fixar minha atengéo no que Marilena diz (p. 29 da revista citada): “se fizermos falar o siléncio da imaturidade o discurso sobre a imaturi- dade permanecerd intacto?”. A vontade é a de considerar a pergunta como pergunta retorica e responder “Nao”, e pronto. Mas eu gostaria de ver isso de uma outra maneira, isto é, 0 sentido é também o resultado de uma situagao discursiva, uma espécie de intervalo entre enunciados efetivamente realizados. Esse intervalo nao é um vazio, é, antes, 0 espaco ocupado pelo social, Nesse sentido, as lacunas consti- tutivas da ideologia so os implicitos, os pressupostos, nao sao silén- cios. Nao ha separacdo entre o siléncio do oprimido (da imaturidade) © o discurso do opressor (da maturidade). Dentro de um estd 0 outro © se sussurram. Coloco, portanto, a disputa a nivel de explicitacéio de pressupostos, aquilo que garante o texto em sua legitimidade, se ja nao se esta de acordo com ela. Ainda em relagao a essa quest&o do siléncio, a minha posic&o é a de que nao acredito que apenas nao se esteja dizendo o suficiente. Nao se est4 ouvindo o necessdrio. Nem ha separacio entre essas coisas, e vejo nisso um processo. H4 um momento no processo do discurso pedagégico ou outro discurso (autoritério?) qualquer em que o outro ouve no esmagamento, tentando reproduzir, repetir, copiar? a voz 2. Lourengo Chacon J. Filho, em um trabalho do curso de pés-graduacéo (UNICAMP), abordando algumas conseqiiéncias do autoritarismo no DP, analisou trabalhos, provas e redacées de alunos pré-vestibulandos. Ele mos- tra como 0 aluno, ao copiar, imitar 0 que o professor faz com a linguagem, produz textos estropiados. Ex.: “o texto esta mostrando sitagdes que se encontram numa sociedade relativamente de nivel econdmico precério, justa- mente pelo qual no texto diz que; trabalhadores misturam com malandros, © bar logo, lotou etc.”, em que ha problema de coesio textual e, por 36 auto-suficiente do locutor; em outro momento ha a ambigilidade * de falantes sem ouvintes: a forga de tentar resistir aos que procuram nos ar A posig&io de apenas ouvintes (e ouvintes de discursos jA cris- talizados), deixamos de ouvir mesmo os nossos pares, 0 que n&o nos gjuda a deslocar efetivamente a relacdo de dominacao. E ha um ter- ‘ceiro momento, é o momento critico, aquele em que se estabelece uma -telacéo menos hierarquizada entre interlocutores, o da disputa pela ‘posse da palavra. Da primeira vez em que expus algumas dessas idéias, a respeito do DP, como discurso autoritdrio, foi-me feita uma questao, pelo -eolega R. Ilari: seria o autoritarismo um mal de raiz do DP? Hoje, eu diria, o DP, sendo um discurso institucional, reflete relag6es insti- ‘ucionais das quais faz parte; se essas relagdes so autoritérias, ele ser4 autoritério. O seu mal de raiz é, pois, refletir a ordem social na qual existe. Mas como essa nfio é uma relacio mecdnica, alguma coisa escapa e é sempre possivel a critica. Mais ainda, nada nos impede de imaginar uma sociedade sem escola. E volto ainda uma vez A fala da Marilena: “Nao seria mais rica uma pedagogia que levasse a sério ‘ofendmeno da consciéncia contraditéria? (...) trata-se de uma peda- cogia capaz de criar condigdes (0 que pode ser obra tanto dos alunos, quanto dos professores, quanto de todos) para que a descoberta possa acontecer” (Chauf, 1980). E af perguntamos: se levarmos ao limite ‘essa questio, podemos dizer que a criacdo dessas condicées pode ser ‘obra de todos (em sentido amplo e nao no do conjunto de professores alunos) e portanto nao é preciso que a escola ocupe esse lugar, esse espaco. Ou, dito de outra forma, para qué a escola como lugar privilegiado para essa descoberta? Isso para o caso de realmente podermos imaginar uma outra sociedade. No entanto, nossa realidade a presente e a minha proposta atual é a de buscarmos, professores e alunos, um DP que seja pelo menos polémico e que nao nos obrigue a 20s despirmos de tudo que é vida 14 fora ao atravessarmos a soleira da porta da escola. exemplo, outro texto em que hé problema de consisténcia de registro quan- do, em um texto coloquial, aparece abruptamente o estilo formal: “Agua és tu o alimento mais importante da terra”. 3. Ambigitidade: porque o fato de se negar como ouvinte pode ser tratado como a recusa da cumplicidade com um certo dizer mas também como a negagio pura e simples do outro, o que é também um ato autoritério, 37 BIBLIOGRAFIA BENVENISTE, E. — “Da Subjetividade na Linguagem", Problemas de Lingiits- tica Geral, Cia. Ed. Nacional/EDUSP, So Paulo, 1976. BOURDIEU, P. — A Economia das Trocas Simbélicas, Perspectiva, Sio Paulo, 1974, CHAUL, M. de Souza — “Ideologia e Educacio", em Educacdo e Sociedade, CEDES, Cortez Ed., Autores Associados, Ano II, n.° 6, 1980. HAROCHE, Cl; HENRY, P, & PECHEUX, M. — “La Semantique et la Coupure Saussurienne: Langue, Langage, Discours", em Langages, n.° 24, Didier/Larousse, Paris, 1971. MARANDIN, J. M. — “Problémes d’analyse du discours; essai de description du Discours Frangais sur la Chine", Langages, n.° 55, Larousse, Paris, 1979. ORLANDI, E. P. — “Protagonistas do/no Discurso”, Série Estudos 4, Uberaba, 1978, PECHEUX, M. — Analyse Automatique du Discours, Dunod, Paris, 1969. ROSSI-LANDI, F. — “A Linguagem como Trabalho e como Mercado", em Semiologia e Lingitistica Hoje: organizagio de Carlos Henrique Escobar, Rio de Janeiro, Pallas S/A., 1975. 38

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