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Deficiência, Incapacidade e Vulnerabilidade: Do Capacitismo Ou A Preeminência Capacitista e Biomédica Do Comitê de Ética em Pesquisa Da UFSC
Deficiência, Incapacidade e Vulnerabilidade: Do Capacitismo Ou A Preeminência Capacitista e Biomédica Do Comitê de Ética em Pesquisa Da UFSC
Deficiência, Incapacidade e Vulnerabilidade: Do Capacitismo Ou A Preeminência Capacitista e Biomédica Do Comitê de Ética em Pesquisa Da UFSC
07792016 3265
ARTIGO ARTICLE
do capacitismo ou a preeminência capacitista e biomédica
do Comitê de Ética em Pesquisa da UFSC
Abstract Anthropology has increasingly ques- Resumo A Antropologia cada vez mais tem ques-
tioned the hegemony of biomedical knowledge in tionado a hegemonia dos saberes biomédicos nos
ethical review processes of social research projects processos de revisão ética de projetos de pesquisa
prevailing in Brazil, which was governed until social atualmente vigente no Brasil, regulado pelo
2012 by the Human Research Ethics Committee of Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos
each institution under the auspices of the National de cada instituição sob os auspícios da Comissão
Research Ethics Commission (CONEP). This was Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), atra-
mandated through Resolution No. 196/1996 pre- vés da Resolução nº 196/1996 até então vigente
vailing in 2012 when this field research was con- no momento dessa pesquisa de campo. O objetivo
ducted. The scope of this study is to recount and deste trabalho é relatar e refletir sobre os percalços
reflect upon the barriers to obtaining approval enfrentados para conseguir a aprovação, duran-
in 2012 for my master’s research project from the te o ano de 2012, de meu projeto de pesquisa de
Human Research Ethics Committee of the Feder- mestrado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com
al University of Santa Catarina (CEP/UFSC) in Seres Humanos da Universidade Federal de Santa
Florianopolis. In this ethnographic experience, in Catarina (CEP/UFSC), em Florianópolis. Nessa
the light of Crip theory, I observed how the “dis- experiência etnográfica observei, à luz da teoria
ability,” “vulnerability” and “inability” categories crip, como se articulam as categorias ‘deficiência’,
are articulated to reveal the ableism and the pri- ‘vulnerabilidade’ e ‘incapacidade’ para revelar o
macy of the biomedical model in the case of an capacitismo e a primazia do modelo biomédico
ethics review at UFSC regarding the participation dessa instância local reguladora da ética em pes-
and legal capacity of persons with disabilities as quisa na UFSC quanto à participação e capacida-
subjects of research. de legal das pessoas com deficiência como sujeitos
Key words Ethics in research, Disability, Inabil- da pesquisa.
1
Núcleo de Identidades de ity, Vulnerability Palavras-chave Ética em pesquisa, Deficiência,
Gênero e Subjetividades, Incapacidade, Vulnerabilidade
Programa de Pós-
Graduação em Antropologia
Social, Universidade Federal
de Santa Catarina. Campus
Universitário, Pantanal.
88040-900 Florianópolis
SC Brasil.
anahigm75@gmail.com
3266
Mello AG
da pela Resolução nº 466/2012, datada de 12 de trabalho também aponta para a presença do ca-
dezembro de 2012. Esta resolução, ao refletir as pacitismo do Comitê de Ética em Pesquisa com
diretrizes presentes nos principais documentos Seres Humanos da Universidade Federal de Santa
sobre ética em pesquisa lançados por associa- Catarina (CEP/UFSC). Trata-se de um relato et-
ções ou organismos biomédicos internacionais nográfico baseado em minhas reflexões de cam-
reguladores da pesquisa clínica, confrontou o po sobre os percalços enfrentados para conseguir
entendimento do que seja uma “pesquisa com a aprovação de meu projeto de pesquisa de mes-
seres humanos” nos campos biomédicos e so- trado sobre violências contra mulheres com defi-
ciais, uma vez que ignora as especificidades dos ciência pelo CEP/UFSC. Nessa experiência etno-
métodos e técnicas qualitativas de levantamen- gráfica observei como se articulam as categorias
to de dados destes últimos15,16. Segundo Debora “deficiência”, “vulnerabilidade” e “incapacidade”
Diniz16, “pesquisa social” deve ser entendida em para revelar o capacitismo e a primazia do mode-
contraposição à “pesquisa biomédica”, ou seja, lo biomédico dessa instância local reguladora da
uma pesquisa com seres humanos “que faz uso ética em pesquisa na UFSC quanto à participação
de técnicas qualitativas de investigação e/ou que e capacidade legal das pessoas com deficiência
adota perspectivas analíticas das ciências sociais como sujeitos da pesquisa.
e humanas”. Para fundamentar a inviabilidade
desse tipo de exigência na prática etnográfica, Breve itinerário da submissão do projeto
Luís Roberto Cardoso de Oliveira17 propôs uma de pesquisa à revisão ética do CEP/UFSC
distinção entre “pesquisa em seres humanos” e
“pesquisa com seres humanos”: Em que pese a minha sensibilidade antropo-
No caso da pesquisa em seres humanos, a rela- lógica para as implicações éticas do uso contratu-
ção com os sujeitos, objeto da pesquisa, tem como al do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
paradigma uma situação de intervenção, na qual (TCLE), devido ao fato de periódicos nacionais
esses seres humanos são colocados na condição de na interface entre as áreas biomédicas e humani-
cobaias e, por tratar-se de cobaia de tipo diferen- dades exigirem como condição sine qua non para
te, é necessário que esta condição de cobaia seja a publicação de artigos, a referência ao parecer
relativizada. É neste contexto que o consentimento do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) relativo à
informado se constitui em uma exigência não só aprovação de projetos de pesquisa e/ou mesmo à
legítima, mas da maior importância. Já no caso da citação do TCLE assinado pelos sujeitos de pes-
pesquisa com seres humanos, diferentemente da quisa, optei por submeter meu projeto de pesqui-
pesquisa em seres humanos, o sujeito da pesquisa sa de mestrado à apreciação do CEP/UFSC, uma
deixa a condição de cobaia (ou de objeto de inter- vez que minha pesquisa de mestrado, por abor-
venção) para assumir o papel de ator (ou sujeito dar violências contra mulheres com deficiência
de interlocução). Na Antropologia, que tem no tra- no contexto das relações de cuidado, imbricadas,
balho de campo o principal símbolo de suas ativi- sobretudo, em questões de assistência à saúde e
dades de pesquisa, o próprio objeto da pesquisa é na emergência de políticas públicas “do cuidado”
negociado: tanto no plano da interação com os ato- voltadas não apenas à pessoa com deficiência cui-
res, como no plano da construção ou da definição dada, mas também às suas cuidadoras, também
do problema pesquisado pelo antropólogo. Então, se insere nesta interface entre as ciências da saúde
o consentimento informado me parece pouco pro- e as ciências humanas e sociais.
dutivo para o trabalho do antropólogo. Quando o Após a obtenção da autorização formal da de-
antropólogo faz a pesquisa de campo ele tem que legada de polícia chefe da Divisão de Polícia Es-
negociar sua identidade e sua inserção na comuni- pecializada da Mulher, do Idoso e do Deficiente
dade, fazendo com que sua permanência no campo (DEMID) para a realização da pesquisa de cam-
e seus diálogos com os atores sejam, por definição, po na Delegacia Especializada de Atendimento à
consentidos. Entretanto, o antropólogo sempre tem Pessoa com Deficiência e ao Idoso de Belo Ho-
mais de uma identidade no campo. [...] Uma vez rizonte (DEADI), em Belo Horizonte, iniciei, no
no campo, o antropólogo também se relaciona com mês de maio de 2012, não sem muita dificulda-
os nativos enquanto ator, e frequentemente partici- de, os procedimentos para o cadastro on line do
pa do modo de vida do grupo estudado ou compar- projeto de pesquisa no site da Plataforma Brasil,
tilha experiências com seus interlocutores17. “uma base nacional e unificada de registros de
Mais que a preeminência biomédica nos pro- pesquisas envolvendo seres humanos para todo
cessos de revisão ética de projetos de pesquisa o sistema CEP/Conep”, conforme trecho extraído
social atualmente vigente no Brasil, o presente em sua página, e instituído a partir de novembro
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por continuar a pesquisa de campo antes mesmo tece em pesquisas biomédicas? Considerando
da emissão do parecer consubstanciado final pelo que a posição do CEP/UFSC tendia à avaliação
CEP/UFSC. A antecipação da entrada de campo, dos riscos em termos biomédicos e que as vio-
bem como de sua finalização, levou em conta o lências estão sempre no domínio das relações de
rigor teórico e a observância dos preceitos éticos poder, tendo na questão moral um lugar central
do campo da Antropologia, sempre implicados nos estudos das violências27, refleti sobre quais
em uma relação de reciprocidade e dádiva23,24, poderiam ser esses “riscos mínimos” em pesquisa
através de três compromissos ou responsabilida- social e de que maneira eles impactariam na vida
des éticas que os antropólogos devem assumir, a de meus sujeitos de pesquisa. Em um primeiro
saber: a) o compromisso com a verdade e a pro- momento, conclui que seus “riscos” são muito
dução de conhecimento antropológico, seguindo mais em torno de questões de “ordem psicológi-
os critérios de validade científica compartilhados ca”, ou seja, a “quebra de pactos” pode causar rea-
entre seus pares; b) o compromisso ético, moral e ções negativas nos sujeitos após a divulgação dos
político perante seus sujeitos da pesquisa, infor- resultados. Nesse sentido, a fim de minimizá-las,
mando-lhes sobre sua condição de pesquisadora reformulei esta seção esclarecendo com algum
e os objetivos e formas de abordagem da pesqui- destaque na segunda versão do TCLE que “não
sa, sempre respeitando suas práticas culturais, existem riscos associados à saúde com a partici-
sua privacidade e o livre consentimento em par- pação dos sujeitos no projeto”. Como “medidas
ticipar ou não da pesquisa; e c) o compromisso protetivas”, apontei que “qualquer atitude e/ou
com a sociedade e a cidadania, principalmente ao situação antiética de ambas as partes (pesquisa-
retribuir os sujeitos estudados por meio da divul- dora e sujeitos da pesquisa) que não corresponda
gação e publicação dos resultados da pesquisa25. às boas práticas de pesquisa, será imediatamen-
te interrompida ou cessada”, havendo ainda a
A preeminência capacitista e biomédica opção de garantir ao sujeito “o direito à recusa
presente nas recomendações do CEP/UFSC e à interrupção de sua participação na pesquisa
em qualquer momento, sem qualquer prejuízo à
As recomendações do CEP/UFSC constantes sua saúde e dignidade.” Desse modo, ainda que
no primeiro parecer foram no sentido de corrigir subordinada naquele momento aos ditames da
o TCLE e melhorar a avaliação dos riscos, bem Resolução CNS 196/1996, acredito ter resguar-
como prever medidas para a proteção dos par- dado a inviolabilidade do anonimato, da intimi-
ticipantes. Sobre os dados por mim preenchidos dade e da privacidade, bem como da garantia da
na seção de “avaliação de riscos e benefícios” da confidencialidade de informações consideradas
Plataforma Brasil, o CEP/UFSC pondera que “os sigilosas, o compartilhamento de experiências e
riscos são avaliados e até minimizados, com a o compromisso da devolução dos resultados da
informação de que são ausentes, o que evidente- pesquisa.
mente não é o caso em qualquer pesquisa envol- Sobre a outra recomendação, em um primei-
vendo violência domiciliar”. Em relação à apre- ro momento considerei impertinente a sugestão
sentação obrigatória dos documentos, considera de dois TCLE, um para mulheres com deficiên-
que ‘O TCLE é insuficiente, uma vez que único cia; outro, para policiais, uma vez que o objeto
para policiais e mulheres que sofreram violência da investigação não são exatamente as práticas
e linguagem complexa. Embora trabalhando com policiais da delegacia, mas a experiência de mu-
deficientes, não há previsão para que a autorização lheres com deficiência que procuram a delegacia
seja feita por representante nomeado no caso de in- para prestar queixas e registrar denúncias: As
capazes [grifo meu], bem como Termo de Assenti- entrevistas e conversas com policiais ou qualquer
mento das mesmas.’ (Parecer). outro profissional da delegacia não têm o intuito de
Na concepção do CEP/UFSC, o que significa avaliar e analisar as práticas policiais, mas de obter
melhorar os “riscos e benefícios”, salvaguardando desses profissionais dados relevantes unicamente
os direitos dos sujeitos, uma vez que a pesquisa sobre violências contra mulheres com deficiência.
social deve considerá-los contemporâneos26 da (Resposta da pesquisadora ao CEP/UFSC).
pesquisadora e do pesquisador ou, nos termos Desse modo, justifiquei ser suficiente as duas
de Luís Roberto Cardoso de Oliveira, sujeitos de representações em um único TCLE, uma vez que
interlocução17, oferecendo “risco mínimo”15, por- estavam imbricadas entre si. Para me deter com
quanto não implica em intervenções nos corpos mais acuidade de registro etnográfico às experi-
com impedimentos, tratando-os na condição de ências das sujeitas, às várias relações (conjugais,
cobaias de experimentos científicos como acon- de filiação, etárias, socioeconômicas etc.) nas
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tologia cujo resultado seria a ‘incapacitação’ social den conseguir, y también a lo que su sociedad les
e muitas vezes também intelectual e de autonomia dije que es una meta adecuada para alguien como
pessoal dos sujeitos com deficiência. (Trecho da ellos. Las mujeres y otras personas desfavorecidas
carta-resposta enviada ao CEP/UFSC). muestran a menudo esta clase de ‘preferencias
Os estudos recentes sobre o tema definem adaptativas’, formadas en el contexto de unas con-
como capacitismo13,14,28-31 a forma como pessoas diciones injustas”36.
com deficiência são tratadas como “incapazes”, Desse modo, “esquece-se” que as pessoas com
aproximando as demandas dos movimentos de deficiência podem desenvolver outras habilida-
pessoas com deficiência a outras discriminações des não agregadas à sua incapacidade biológica
sociais como o racismo, o sexismo e a homofobia. (não ouvir, não enxergar, não andar, não exercer
Para Fiona K. Campbell29,30, o capacitismo, que de forma plena todas as faculdades mentais ou
está para as pessoas com deficiência assim como intelectuais etc.) e serem socialmente capazes de
o racismo está para os negros e o sexismo para as realizar a maioria das capacidades que se exige
mulheres, pode ser associado com a produção de de um “normal”, tão ou até mais que este. Esse
poder e se relaciona com a temática do corpo e por argumento corrobora com o exemplo dado por
uma ideia de padrão corporal/funcional perfeito: Patricia Rosa37 sobre a aprendizagem de crianças
[…] a network of beliefs, processes and practices “normais” e “anormais” na educação, quando faz
that produces a particular kind of self and body (the sua crítica à concepção clássica de categorização
corporeal standard) that is projected as the perfect, que parte do uso de conceitos universais:
species-typical and therefore essential and fully hu- O problema que pode ser ressaltado é que es-
man. Disability is cast as a diminished state of being ses pontos só poderiam ser verdadeiros se todos os
human29. Essa rede de crenças, processos e práti- ‘normais’ tivessem habilidades iguais e todos os ‘a-
cas sobre os corpos com impedimentos tem pro- normais’ tivessem um outro grupo de habilidades
fundas raízes na antiga civilização greco-romana, iguais, mas o que seria destacado é a falta de habi-
quando havia uma generalização consentida do lidade para aquilo que os ‘normais’ são hábeis. En-
infanticídio, seja por razões de ordem econômi- tretanto, algumas crianças ‘normais’ têm grandes
ca (por exemplo, impossibilidade de sustentar a dificuldades para o aprendizado de disciplinas que
criança) ou por considerar socialmente inviável exigem a habilidade da abstração, por exemplo.
a sobrevivência de crianças recém-nascidas com Contudo, a pressuposição dessa habilidade num
alguma deficiência32-35. Nesse sentido, a manifes- grau mínimo exigido dentro da classificação em
tação da deficiência lesiona o ideário eugênico que estão colocados, ‘normais’, faz com que essas
de corporeidade grega tão intimamente enraiza- crianças não tenham os estímulos que seriam ne-
do em nós. No caso do capacitismo, ele alude a cessários para que desenvolvessem aquele grau mí-
uma postura preconceituosa que hierarquiza as nimo exigido [de capacidades]. Por outro lado, al-
pessoas em função da adequação dos seus cor- gumas crianças que são classificadas como ‘a-nor-
pos à corponormatividade. É uma categoria que mais’, com o estímulo adequado, podem alcançar as
define a forma como as pessoas com deficiência habilidades pressupostas para os ‘normais’ de uma
são tratadas de modo generalizado como inca- maneira que muitos ali classificados jamais seriam
pazes (incapazes de produzir, de trabalhar, de capazes, simplesmente porque suas habilidades e
aprender, de amar, de cuidar, de sentir desejo e seus interesses são outros37.
ser desejada, de ter relações sexuais etc.), aproxi- Essa autora sugere rejeitarmos qualquer ca-
mando as demandas dos movimentos de pessoas tegorização que parta de conceitos universais,
com deficiência a outras discriminações sociais, porque eles impõem padrões e valorações arbi-
como o sexismo, o racismo e a homofobia. Essa trárias. Ao invés disso, propõe que se reconheça a
postura advém de um julgamento moral que as- singularidade de cada ser humano. Contudo, em
socia a capacidade unicamente à funcionalidade Antropologia aprendemos que as relações sociais
de estruturas corporais e se mobiliza para avaliar são construídas a partir de categorias binárias ou
o que as pessoas com deficiência são capazes de de oposição, ainda que dediquemos todo nosso
ser e fazer36 para serem consideradas plenamente tempo e empenho a desconstrui-las. A vida de
humanas. Em sua crítica ao enfoque utilitarista, cada pessoa está e sempre estará em relação a al-
a filósofa feminista Martha Nussbaum36 chega a guma coisa e as categorizações sociais da defici-
argumentar que ência também não fogem à regra. Como exemplo,
“[...] también queremos saber que es lo que son cito trechos de alguns trabalhos que evidenciam
realmente capaces de ser y de hacer. Las personas a perpétua associação preeminente da deficiência
ajustan sus preferencias a lo que piensan que pue- à incapacidade:
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tados-Parte, entre outras, a obrigação de prover ciência, de acordo com Wendy Rogers e Angela
todos os apoios que permitam a autonomia e o Ballantyne46, a vulnerabilidade “decorre [tanto]
desejo da própria pessoa, agora não mais tratada do contexto socioeconômico no qual vivem os
de forma diferente perante a lei e os atos públi- participantes de pesquisa” (vulnerabilidade ex-
cos da vida. Por isso, a demanda feita pelo CEP/ trínseca), de modo que “circunstâncias sociais
UFSC para que no TCLE haja “previsão para que injustas [impostas] podem resultar em vulnera-
a autorização seja feita por representante nomea- bilidade de várias maneiras”, quanto “advém de
do no caso de incapazes” fere uma convenção in- características específicas relativas a indivíduos
ternacional da qual o Brasil é signatário. Portan- ou populações” (vulnerabilidade intrínseca), ou
to, aceitar a demanda do CEP/UFSC de um TCLE seja, como a deficiência é uma condição intrinse-
ou mesmo um Termo de Assentimento que exige camente adversa, conclui-se que as pessoas com
uma adequação para pessoas “incapazes” é tan- deficiência são intrínseca e socialmente vulne-
to um erro teórico quanto um grave problema ráveis, porquanto vulnerabilidade não deve ser
político, pois estaria tratando como “incapazes” confundida com incapacidade em função de uma
os sujeitos de uma pesquisa que visa justamente premissa capacitista.
reconhecer a autonomia destes, em particular em
sua agência contra as violências das quais foram
(e muitas vezes continuam sendo) vítimas. Em Considerações finais
outras palavras:
[...] se fazemos um TCLE com este termo os O capacitismo pode até ser uma categoria insu-
recolocaremos simbolicamente (e com extrema vio- ficiente na língua portuguesa, mas é justamente
lência) no campo de representação no qual eles jus- a capacidade de ser e fazer que é reiteradamente
tamente estão se distanciando ao se reconhecerem negada às pessoas com deficiência em diversas es-
enquanto cidadãos em busca de seus direitos. Ajus- feras da vida social. Por isso, para efeitos práticos,
tar a segunda versão do TCLE, adaptando-o aos proponho a sua adoção nos movimentos sociais,
critérios desse comitê no que diz respeito aos ‘in- nas produções acadêmicas e em documentos ofi-
capazes’, seria, portanto, agir de forma incoerente ciais e políticas públicas.
tanto no aspecto jurídico-legal quanto em relação Conforme aponta Debora Diniz e Iara Guer-
ao aspecto político no que diz respeito à capacida- riero15, a divergência perante a regulamentação
de legal das pessoas com deficiência. [...] Encami- nacional da ética em pesquisa basicamente se re-
nhamos nova versão do TCLE em dois modelos, tal sume em dois pontos críticos: o primeiro é o mo-
como nos foi demandado, um para os profissionais delo de raciocínio dedutivo que se espera de um
da delegacia e outro para as pessoas com deficiência projeto de pesquisa submetido à avaliação de um
a serem entrevistadas, sem, todavia, acolher a de- comitê de ética em pesquisa, uma vez que no caso
manda deste comitê de tratá-las como ‘incapazes’. de pesquisa social não faz sentido apresentar as
Esperamos ter esclarecido este comitê sobre as im- mesmas seções de uma pesquisa biomédica, isto
plicações éticas, políticas e científicas de nosso en- é, “com especificações sobre pergunta, problema,
caminhamento e colocamo-nos à disposição para hipótese, amostra, critérios de inclusão e exclu-
outros esclarecimentos que se fizerem necessários. são de participantes, riscos ou benefícios pré-es-
(Trechos finais da carta enviada ao CEP/UFSC) tabelecidos”15, porquanto esta perspectiva prima
O desfecho se deu com um Parecer consubs- pela hegemonia da objetividade e racionalidade
tanciado, emitido em 10/12/2012, e dessa vez o científica tratando a ética em pesquisa com seres
CEP/UFSC sinalizou pela aprovação do projeto humanos fora de suas particularidades culturais;
de pesquisa. Mas a esta altura, eu já me encontra- e 2) a obrigatoriedade do termo de consentimen-
va fora de campo, de volta a Florianópolis. Cabe to livre e esclarecido por escrito e anterior à eta-
ainda ressaltar que incapacidade não é o mesmo pa da coleta de dados, especialmente no caso de
que vulnerabilidade. Vulnerabilidade aqui não pesquisas de cunho etnográfico. Não obstante a
implica em coerção da vontade do sujeito para expressiva reação da comunidade antropológica
a ação social, como a de interagir com a pesqui- brasileira à hegemonia do modelo biomédico de-
sadora, mas deve ser compreendida como um dutivista da aplicação da Resolução 196/1996 no
indicador da desigualdade social que se expressa que concerne à ética e regulamentação na pesqui-
nos processos de exclusão de grupos sociais que sa antropológica, bastante documentada em vá-
têm sua capacidade de ação e reação reduzida em rios artigos em coletâneas organizadas por Ceres
função da discriminação e opressão a que são Víctora et al.47, Soraya Fleischer e Patrice Schu-
submetidos44,45. No caso das pessoas com defi- ch48, Cynthia Sarti e Luiz Fernando Dias Duarte49,
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Florianópolis: Letras Contemporâneas; 2010. p. 176. Aprovado em 05/07/2016
Versão final apresentada em 07/07/2016
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