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LITERATURA E REPRESENTAÇÃO DA IDENTIDADE CULTURAL:

Reflexão sobre o ensino de leitura na sociedade da representação

Martanézia Rodrigues Paganini – Universidade Federal do Espírito Santo

A proposta desta comunicação é refletir sobre o ensino de leitura a partir da


identificação da literatura como signo que atravessa o olhar e a interpretação, considerando
que tudo que nos ensina alguma coisa emite signos, reiterando a idéia de que a leitura envolve
ações culturais que devem ser consideradas no espaço da escola. Assim, nesse trabalho, a
idéia é pensar a literatura como expressão de cultura, como arte suscitadora do interesse do
leitor, em que há o reconhecimento da identidade cultural capaz de dar visibilidade as
expressões abordadas pelas obras literárias.

Palavras-chave: Literatura, identidade cultural e ensino

Apresentação

Definir identidade cultural não é tarefa das mais fáceis. Então, quando se pretende entrelaçar
esse conceito com o ensino de leitura, a questão se torna mais ampla e complexa. Contudo,
vale a pena arriscar algumas considerações, trazer à baila alguns apontamentos que permitam
construir um diálogo com as propostas dos professores reunidos nesse seminário.

Nesse contexto, o propósito dessa comunicação é abrir uma perspectiva para refletir o
ensino de literatura aliada à questão do ensino-aprendizagem de leitura, mais
especificamente ao ensino de leitura como processo discursivo, considerando o aspecto
cultural para a aquisição da leitura, num possível entrelaçamento do literário com o social.
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A literatura como arte reflete as representações da cultura de um povo e a língua,


obviamente, é uma das formas de manifestar a cultura. A dissociação entre língua e cultura
é uma das problemáticas que precisa ser desmistificada. A literatura é um dos domínios da
língua. Portanto, seu conhecimento se faz necessário à competência global da língua. A
língua como instrumento de comunicação entre os indivíduos carrega também a
representação cultural, no sentido que engloba outros elementos, a expressão literária.
Como professora de língua materna, compartilho o pensamento de que o conhecimento da
língua não é suficiente para a leitura se efetivar. Reitero a idéia de leitura como um ato
interativo de compreensão do mundo. Desse modo, ler é um trabalho de construção de
significado e atribuição de sentidos, mediante a utilização de elementos lingüísticos, mas
também de reconhecimento de atividades culturais que englobam, entre outros pontos, a
perspectiva de onde se enuncia e a intencionalidade das formas escolhidas.

Nessa perspectiva, o estudo das relações culturais na literatura leva em conta uma discussão
entre texto e contexto. Desse modo, o texto como forma de permanência cultural é, ao
mesmo tempo, produtor e produto da cultura. Como tal, expressa as visões de mundo
conflitantes, que se encontram e se chocam, num amplo diálogo entre umas e outras. Por isso
mesmo, a literatura é uma das dimensões culturais capazes de propiciar condições para o
desenvolvimento do indivíduo. Pode ser instrumento e meio de ensino de muitas áreas do
conhecimento além dela própria. Vale lembrar seu uso no ensino da leitura, da escrita, da
história, da filosofia, da geografia, dentre outras ciências.

No entanto, o ensino de literatura no Brasil permanece muito precário. Há o convívio de


pensamentos ultrapassados em relação ao ensino dessa disciplina. Algumas concepções são
responsáveis por afugentar os leitores, principalmente os jovens, que, no momento atual,
convivem com outras formas de leitura e entram cada vez mais em outro “jogo”, em outras
“armadilhas” que se apóiam em outros valores que contribuem para “danificar” cada vez mais
o pensamento das novas gerações de leitores. É preciso desmistificar certas teorias que se não
contribuíram para a formação de novos leitores, acabam por produzir ainda mais as diferenças
e a indiferença em relação as formas de apropriação do discurso literário.

Relacionado ao ensino, há, por um lado, o pressuposto de que a literatura é uma grande
reserva de cultura, percebida como ideal de formação humana. Por outro, há
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o pensamento de literatura como “arte divina”. Sendo assim, ela é um produto idealizado da
cultura. E, como tal, encontra-se acabada, seu sentido está “pronto”. Por isso mesmo persiste,
ainda, a idéia de que a literatura é uma representação simbólica, repleta de mistérios e de
dificuldades de desvendamento. A literatura tem sido tratada como um universo de signos
agradáveis que auxiliam o ensino da língua materna. A ação cultural, o exercício estético,
desenvolvido no ensino de literatura, ainda é muito precário, chegando, quando muito, a “pré-
textos” para se trabalhar a gramática na sala de aula. Assim, nessa concepção, a literatura é
tratada como uma “reserva” de modelo do tempo; os escritores não intervêm senão a título de
referência, como exemplo, sem história, modelos de bem-dizer e de bem-pensar. Visto dessa
forma os textos parecem muito mais uma introdução ao sagrado, pela exaltação do escritor,
produto acabado, feito objeto de museu.

Todavia, sabemos que a literatura, como qualquer obra de arte, é um produto de teias e efeitos
comunicativos, caminhos que se abrem para a configuração de um real sentido estimulado
pela experiência. Por isso mesmo, necessita de um destinatário, um ser concreto, com planos
vivenciais, com um olhar produzido por sua própria situação contextual, além da
sensibilidade provocada por sua cultura, que irá se defrontar com essa obra, abrindo, assim,
um caminho de diversidades e diálogo que se manifesta com uma riqueza de ressonâncias, de
forma hermenêutica, como observa Hans Robert Jauss, para quem a obra de arte se constitui
na interação autor-texto-leitor.

Advém à memória as palavras de Deleuze (2002), “A linguagem não se contenta em ir de


um primeiro a um segundo, de alguém que viu a alguém que não viu, mas vai
necessariamente de um segundo a um terceiro, não tendo nenhum deles, visto.” (p.14). Sendo
assim, a literatura, a obra de arte é um fenômeno sociocultural e não pode ser percebida fora
desse contexto.

A literatura afirma Antônio Candido, (1976, p. 25)

É um sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras e sobre os


leitores; e só vivem na medida em que estes a vivem, decifrando-a,
aceitando-a, deformando-a. [...] a obra de arte só está acabada no
momento em que se repercute e atua, porque
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sociologicamente, a arte é um sistema simbólico de comunicação


inter-humana. Ora, todo processo de comunicação pressupõe um
comunicante, no caso o artista; um comunicado, ou seja, a obra; um
comunicando, que é o público a que se dirige; graças a isso define-se o
quarto elemento do seu processo, isto é, o seu efeito.

Vê-se, pois que, a comunicação artística supõe três elementos fundamentais: autor, obra e
público, indissoluvelmente ligados em seus papéis sociais, como nos ensina Antonio Candido.
A atividade do artista estimula a diferenciação de grupos; a criação de obras modifica os
recursos de comunicação expressiva; as obras delimitam e organizam o público. Há um jogo
permanente de relação entre os três: o público dá sentido e realidade à obra, é o espelho onde
o autor verifica a sua imagem refletida, atuando então como um elo entre autor e obra.

Observa-se que a problemática dessa literatura é que ela começa mesmo no ato da leitura,
movimento de inscrição em que a palavra é manifestação de uma ausência que ultrapassa
autor e leitor. Portanto, não há dúvida quanto à função e a importância do leitor no processo
de criação e re-criação da obra literária.

Sendo assim, acreditamos que a formação de cidadãos-leitores de textos literários coloca-se


como um dos objetivos fundamentais do ensino. O grande desafio do professor é proporcionar
esse momento, desenvolver no aprendiz o desejo de transcendência. Para isso, a arte oferece
uma grande contribuição. A literatura como obra de arte, propicia a magia, o encantamento,
como diria Nietzsche: A palavra é encantadora loucura com ela o homem dança com
todas as coisas. Vê-se, pois, que o pensamento de Nietzsche sintetiza a concepção de prazer
na recepção do texto literário. O prazer e o gozo constituem-se como caminhos para
formação do leitor, no sentido barthesiano de leitura. Se a condição do prazer é o
“desvendamento” do enigma que atravessa a obra de arte, é preciso reencantar o ensino,
encorajando o aluno ao exercício do pensamento e da fala através da reorganização e
mediação da leitura literária, do texto-livro articulado com sua própria experiência
compartilhada coletivamente. Convém nos referirmos às formas dos signos e, especialmente,
às das imagens, pelas quais as obras de arte representam e se instituem.
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Conforme Delleuze (2003, p. 8) “Não podemos interpretar os signos sem desembocar em


mundos que se formou em nós, que se formaram com outras pessoas.” Sendo assim,
ninguém se torna leitor fora de seu contexto cultural, o leitor pré-existe à descoberta do
significado das palavras escritas. O indivíduo torna- se leitor no decorrer das experiências de
vida, desde as mais elementares e individuais às oriundas do intercâmbio de seu mundo
pessoal, do seu universo cultural e social circundante.

Dessa forma, a representação da identidade cultural é visível na obra de arte, é dessa


visibilidade que surge a questão do imaginário – ato de consciência como modo de perceber o
mundo que está ao seu redor, o ambiente de convívio. A literatura traduz peculiaridades
locais, expressando os traços do momento histórico e da realidade social. Aprender, afirma
Delleuze, “diz respeito essencialmente aos signos. [...] Aprender é, de início, considerar uma
matéria, um objeto, um ser, como se emitissem signos a serem decifrados, interpretados.”
(Deleuze, 2003, p. 4)

Como professores, sabemos que não basta ensinar a reconhecer as letras para formar um
leitor, ensinar a ler é desmistificar alguns conceitos, quebrar paradigmas que só contribuem
para fragmentar o ensino e, consequentemente, desvincular o indivíduo de sua cultura. O
predomínio da concepção idealista de literatura contribui para o esvaziamento de seu caráter
de veiculadora de cultura, universo que constitui um dos mais altos signos do pensamento-
linguagem do ser humano.

Vale lembrar que todas as disciplinas dão lugar para construção de valores, apropriação de
gestos e expressões que remetem ao universo cultural. O diálogo entre o eu e o outro começa
a se estabelecer a partir da experiência interdisciplinar. Dessa forma, a literatura, a história, a
geografia e todas as disciplinas devem oportunizar uma cultura de participação, em que os
educandos possam interagir como sujeitos de um tempo, de uma sociedade, de uma política,
interagindo na história como sujeitos atuantes na medida em que incorporarem experiências
de leitura.

Nesse ponto de vista, torna-se imprescindível considerar o conhecimento e as perspectivas de


vida de nossos alunos. Caso contrário persistirá a dificuldade em
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relação à leitura e, consequentemente, à interpretação de textos, de imagens, enfim persistirá


a dificuldade para interpretação do mundo.

REFERÊNCIAS

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. Aula. Tradução de Leila Perrone Moisés. 7 ed. São Paulo: Cultrix, 1978.

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Paulo: Nacional, 1976.DELLEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e
esquizofrenia. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira. São Paulo: Editora 34, 2005.

DELLEUZE, Gilles. Proust e os signos. Tradução Antonio Carlos Piquet e Roberto


Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

. Diferença e repetição. Tradução Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de


Janeiro: Graal, 1988.

JOZEF, Bella. A máscara e o enigma. A modernidade da representação ‘a transgressão.


Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986.

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Janeiro: Paz e Terra, 1979.

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2001.

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