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FUNDAMENTOS DE

GEOPOLÍTICA

Autoria: Sidelmar Alves da Silva Kunz

2ª Edição
Indaial - 2020
UNIASSELVI-PÓS
CENTRO UNIVERSITÁRIO LEONARDO DA VINCI
Rodovia BR 470, Km 71, no 1.040, Bairro Benedito
Cx. P. 191 - 89.130-000 – INDAIAL/SC
Fone Fax: (47) 3281-9000/3281-9090

Reitor: Prof. Hermínio Kloch

Diretor UNIASSELVI-PÓS: Prof. Carlos Fabiano Fistarol

Equipe Multidisciplinar da Pós-Graduação EAD:


Carlos Fabiano Fistarol
Ilana Gunilda Gerber Cavichioli
Jóice Gadotti Consatti
Norberto Siegel
Julia dos Santos
Ariana Monique Dalri
Marcelo Bucci

Revisão Gramatical: Equipe Produção de Materiais

Diagramação e Capa:
Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Copyright © UNIASSELVI 2020


Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri
UNIASSELVI – Indaial.

K96f

Kunz, Sidelmar Alves da Silva

Fundamentos de geopolítica. / Sidelmar Alves da Silva Kunz. –


Indaial: UNIASSELVI, 2020.

141 p.; il.

ISBN 978-65-5646-022-2
ISBN Digital 978-65-5646-014-7
1. Geopolítica. - Brasil. Centro Universitário Leonardo Da Vinci.

CDD 327.1011

Impresso por:
Sumário

Apresentação..................................................................................5

CAPÍTULO 1
As Bases que Fundamentam o Campo de Estudo
da Geopolítica.................................................................................7

CAPÍTULO 2
Geopolítica dos Conflitos Étnico-Nacionalistas
e Separatistas em Face aos Desafios Mundiais
no Século XXI...............................................................................55

CAPÍTULO 3
A Posição do Brasil na Geopolítica Mundial............................99
APRESENTAÇÃO
A Geopolítica, como campo de estudo e enquanto disciplina, carece de com-
preensão de seus fundamentos para que se possa realizar uma prática pedagó-
gica de ensino-aprendizagem condizente com o desenvolvimento de capacidades
e habilidades que possibilite a apreensão dos fenômenos geopolíticos mundiais.

Para isso, esta obra tem por finalidade ser capaz de instrumentalizar teórico-
-metodologicamente para os estudos geopolíticos e ao exercício da práxis peda-
gógica, entendendo a Geopolítica como um campo de estudo da Geografia, como
um saber geográfico que possibilita uma abordagem interdisciplinar.

Nesse sentido, esta obra, ao longo de seus três capítulos, faz a cobertura
dos conceitos da Geografia Política e da Geopolítica, buscando situá-los em seus
recortes espaço-temporais. Além disso, é abordado também o campo de estudo
da Geopolítica, assim como as teorias e as categorias de análise. Nesse sen-
tido, é lançado um olhar para a organização do espaço mundial e as suas re-
percussões atuais em termos de conjugações de conflitos étnico-nacionalistas e
separatistas, tais como os conflitos árabe-israelense, no Cáucaso, nos Bálcãs e
os conflitos africanos. Trataremos ainda da questão basca, da questão curda, da
questão da palestina e do fundamentalismo islâmico. Esses aportes nos ajudarão
a compreender a “nova ordem mundial” e os desafios mundiais no século XXI, ce-
nário em que o Brasil possui um lugar na geopolítica mundial. E, aproveitaremos
para verticalizar interpretações acerca desse lugar ocupado pelo Brasil na geopo-
lítica hodierna.

Bons estudos!

Professor Sidelmar Alves da Silva Kunz


C APÍTULO 1
AS BASES QUE FUNDAMENTAM O
CAMPO DE ESTUDO DA GEOPOLÍTICA

A partir da perspectiva do saber-fazer, são apresentados os seguintes


objetivos de aprendizagem:

 Saber: Diferenciar o conceito de Geopolítica e de Geografia Política, o campo


de estudo da Geopolítica, as principais abordagens teóricas, metodológicas e
categorias de análise.

 Fazer: Compreender através dos instrumentos teóricos-metodológicos e das


categorias de análise como o estudo da Geopolítica auxilia o entendimento
da ordem mundial e serve para vislumbrar futuros cenários de reordenamento
global.
Fundamentos de Geopolítica

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Capítulo 1 AS BASES QUE FUNDAMENTAM O CAMPO DE ESTUDO DA GEOPOLÍTICA

1 CONTEXTUALIZAÇÃO
Neste capítulo, vamos abordar a conformação do campo de estudo da Ge-
opolítica. Entre outros aspectos para alcançar os fundamentos da geopolítica, se
faz necessário situar a Geopolítica na discussão entre a geografia e a política
e como essas duas áreas estabelecem uma abordagem interdisciplinar. Em um
primeiro momento, essas discussões são tratadas pela Geografia Política, e mais
adiante, pela Geopolítica – enquanto campo de estudo situado como subárea no
interior da Geografia.

A distinção entre os dois campos de estudo não é simples e tampouco deve


ser visto como oposição, mas se torna produtivo no âmbito científico, pois existem
contribuições significativas da Geografia Política à Geopolítica. Nesse sentido,
aprofunda-se o entendimento dos dois campos, seus pontos de aproximações e
divergências e os principais aportes de suas teorias à construção de um conheci-
mento para explicar como os fenômenos geográficos e políticos inferem a dinâmi-
ca entre os países no âmbito internacional.

A compreensão da Geopolítica como campo de estudo perpassa, então,


pelo entendimento de seus aportes teórico-metodológicos. Em razão disso é
feita uma revisão das principais teorias Geopolíticas, buscando situar as con-
tribuições dos distintos autores para a compreensão de fenômenos geográficos
e políticos desde a conformação deste campo de estudo. Esse conhecimento é
dividido em uma Geografia dos “Estados-maiores” e a Geografia dos professo-
res. Em síntese, se tem um conhecimento que é tratado e produzido por meio
do Estado e sua ação política internacional e um outro produzido no âmbito dos
pesquisadores universitários.

Para compreensão dos fenômenos geopolíticos, aprofundamos o debate


acerca das categorias de análise da Geopolítica, distinguindo inicialmente o que
são categorias de análise e sua importância para compreensão de objetos cien-
tíficos. Nesse contexto, evidencia-se a categoria Estado e sua inter-relação com
outras categorias vinculadas a outras áreas ou subcategorias da Geografia. Bus-
ca-se elucidar a inter-relação entre Estado e o desenvolvimento do capitalismo
para apreender as mudanças ocorridas histórico e geograficamente na dinâmica
econômica e política internacional e na determinação da ordem mundial. Entende-
-se que é a partir do estudo dessa categoria aliada a outras categorias ou subca-
tegorias, através da análise do sistema capitalista que é possível a compreensão
dos fenômenos geopolíticos modernos e contemporâneos.

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Fundamentos de Geopolítica

Sugerimos que você acesse a Revista Franco-Brasileira de


Geografia (CONFINS), sobretudo o artigo do professor Wanderley
Messias da Costa, intitulado Projeção do Brasil no Atlântico Sul:
geopolítica e estratégia, no site https://journals.openedition.org/
confins/ 9839?lang=pt.

2 O SURGIMENTO DO CAMPO DE
ESTUDO DA GEOPOLÍTICA E SEUS
FUNDAMENTOS: DETERMINISMO X
POSSIBILISMO
A Geopolítica é um campo de estudo interdisciplinar cujas origens de sua base
epistemológica estão calçadas nas áreas das Ciências Sociais Aplicadas (Direito e
Economia), das Ciências da Terra (Geologia), nas Ciências Humanas (Sociologia,
História, Geografia e Ciências Políticas), sobretudo nas Relações Internacionais.
Esse campo de estudo interdisciplinar encontra na Geografia (Física e Humana) os
fundamentos para explicar como os fenômenos geográficos influem nas políticas e
nas relações entre países, e assim se consolida como um campo de conhecimento
da Geografia a partir do século XIX. Desse modo, se insere como um dos campos
de estudo da Geografia que visa compreender o papel da Geografia nas relações
de poder no âmbito da ordem mundial (relações internacionais).

Isso significa buscar entender a relação entre os processos políticos, o papel


dos territórios e sua organização espacial enquanto tensão na configuração de
uma determinada ordem mundial. Nesse sentido, a base epistemológica do pen-
samento Geopolítico está assentada como uma ciência, sobre a qual a produção
de conhecimento dela gerada, a isso inclui a práxis pedagógica, pode se refletir
em conhecimentos que impactam a reformulação do pensamento social e os pro-
cessos sociais, espaciais, territoriais, políticos e econômicos.

Distintos foram os autores ao longo da evolução humana que pensaram o


papel do meio geográfico ou a dimensão espacial para estruturação da ordem po-
lítica e social. Martin, Castellar e Martins (2004) afirmam que Aristóteles (384-322
a.C.) já assinalava a existência de um vínculo estreito entre a Ciência Política e a
Geografia, sobretudo buscando compreender a localização e o tamanho do terri-

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Capítulo 1 AS BASES QUE FUNDAMENTAM O CAMPO DE ESTUDO DA GEOPOLÍTICA

tório no âmbito de uma cidade-Estado. Isso fica mais evidente na obra Geografia,
de Estrabão de Amásia (63 a.C.-21 d.C.), um tratado com 17 livros, que visa servir
de inspiração e como instrumento para as ações realizadas pelos governantes da
polis. Seu pensamento é fortemente influenciado pelo conflito entre os povos gre-
gos e romanos, no qual resulta no domínio romano na região (Grécia). Estrabão
pretendia realizar um relato detalhado sobre as características de cada território
(DESERTO; PEREIRA, 2016). Por conta de sua contribuição aos estudos territo-
riais, Estrabão é reconhecido como o precursor da Geografia Humana, com rele-
vante influência equiparada à contribuição do astrônomo Cláudio Ptolomeu aos
estudos de orientação e localização geográfica que resultam em conhecimento
sobre coordenadas geográficas (latitudes e longitudes).

No entanto, o período da Idade Média se consolida como um momento na


história em que o conhecimento geográfico que foi produzido pelos gregos e ro-
manos deixa de ter aplicação em razão da queda do Império Romano no Ocidente
e a conformação de um sistema feudal – uma propriedade territorial dotada de
autonomia por conter uma estrutura política, econômica, social e cultural própria.
Um olhar mais atento à influência da Geografia na organização social surge no
final da Alta Idade Média, no século XII, Alberto Magno (1206-1280), com base em
seu conhecimento geográfico vislumbra a criação do Canal de Suez. É o período
que antecede o Périplo Africano (séc. XV e séc. XVI), as rotas marítimo-comercial
da Europa visando encontrar um caminho para índias. Esse é o início das grandes
navegações, por isso a retomada dos estudos cartográficos para fins de navega-
ção ganha maior relevo neste período.

Na Idade Moderna, Montesquieu (1689-1755), ao tratar o pensamento ge-


ográfico, estabelece uma correlação entre clima e comportamento humano, isso
quer dizer, entre a geografia física e humana. Aspectos estes analisados para o
entendimento do “espírito das Leis” que regem cada sociedade. Mas não há um
aprofundamento no tema, pois o foco de Montesquieu era compreender a natu-
reza do Estado ou das Leis e os modos para se atingir e sustentar o poder. É a
partir de suas observações que vem a ideia de que os povos situados nas zonas
tropicais apresentam menor predisposição ao trabalho em comparação aos povos
das zonas temperadas e frias, pelos efeitos do calor nos trópicos.

Essa visão eurocêntrica tem um forte elemento geopolítico e no


contexto da práxis pedagógica deve ser explicitada. Não cabe numa
visão crítica de ensino-aprendizagem a reprodução dos processos
de dominação cultural. A geopolítica, antes de tudo é mediada pela
relação entre espaço e poder, que se manifesta nos processos

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Fundamentos de Geopolítica

de dominação cultural e por isso é fundamental traçar uma visão


decolonialista. Nesse sentido, há que se perguntar a que ordem
mundial serve o conhecimento abordado, que consequências ele
provoca no processo pedagógico de ensino-aprendizagem.

2.1 O SABER GEOGRÁFICO E A


GEOPOLÍTICA
Martin, Castellar e Martins (2004) explicam que é por conta do entendimento
sobre o processo de dominação cultural, a respeito do uso do pensamento geo-
gráfico estratégico alemão para ampliação do domínio territorial, que a geopolítica
demora para se consolidar enquanto disciplina na França. Ao passo que na Su-
écia, Alemanha, Estado Unidos, Inglaterra e Japão esse pensamento já estava
formulado. Contrários a essa ideia, os franceses criticaram o peso maior dado ao
fator ambiental no desenvolvimento das sociedades e o risco que a noção de “es-
paço vital” de Ratzel – entendida como a ausência de espaço de um determinado
povo, no caso, alemão – por representar uma aspiração expansionista territorial.
É preciso situar também o contexto histórico em que essa disciplina surge, no final
do século XIX e se amplifica nos meados do século XX em meio ao processo de
expansão do sistema capitalista a sua fase monopolista, mediada pela atuação
de “multinacionais” e de expansão imperialista em busca de novos mercados e
fontes de matéria-prima.

Cabe, antes de tratar do contexto “disciplinar” de cada uma das abordagens,


assinalar que a construção e aplicação do saber geográfico é feita como um me-
canismo de poder. Isso está presente na obra Geografia Política e Geopolítica, de
Wanderley Messias da Costa (2016), e Ives Lacoste (2012), precursor da corrente
da Geografia Crítica na França, através de seu livro “A Geografia – isso serve, em
primeiro lugar, para fazer a guerra”. Lacoste (2012) questiona qual o papel da Geo-
grafia para a sociedade e se ela tem corpus de ciência. A Geografia em sua concep-
ção é um saber estratégico, visto como uma ferramenta de poder atrelado às ações
do Estado e militares. Desse modo, a Geopolítica seria o cerne da Geografia.

“Serve em primeiro (embora não apenas) para fazer a guerra, ou seja, para
fins político-militares sobre (e com) o espaço geográfico, para produzir/reproduzir
esse espaço com vistas (e a partir) das lutas de classe, especialmente como exer-
cício do poder” (LACOSTE, 2012, p. 8).

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Capítulo 1 AS BASES QUE FUNDAMENTAM O CAMPO DE ESTUDO DA GEOPOLÍTICA

Ainda como um aporte, Lacoste é o precursor da revista Herótode, cujo pri-


meiro exemplar tinha como título Estratégias – Geografias – Ideologias. Heródoto,
considerado o “pai da história”, também foi um geógrafo, pois descreveu a relação
e os conflitos de Atenas com outros países e não apenas a sua história (LACOS-
TE, 2012). A denominação da revista abre uma importante discussão a respeito
dos estudos espaciais e territoriais ao longo da história. Se consolida pela sua de-
dicada contribuição da Geografia a uma abordagem Geopolítica multidisciplinar.

Dentro desse espectro amplo, Lacoste (2012) explica que de um lado há uma
geografia aplicada no âmbito acadêmico e cultural, e uma outra, atrelada à atu-
ação dos Estados e das grandes corporações do sistema capitalista. A geografia
praticada como poder de Estado é mais antiga, em comparação a que se concebe
enquanto ciência, esta última surge no século XIX.

Lacoste (2012) incita que os pesquisadores e professores ajam de modo es-


trategista ao pensar o espaço para poder intervir de modo mais eficaz. Isso signifi-
ca a construção de uma “geopolítica dos dominados”, como um ato de resistência
aos processos de dominação, ou seja, situar o político como eixo central da abor-
dagem geográfica.

Mas não se trata da política e sim do político. Não o indivíduo


que se ocupa profissionalmente dessa atividade e sim o proces-
so, o fenômeno ou o enigma do político enquanto experiência
fundante do social-histórico e, dessa forma, também do espacial
(ao menos na sociedade moderna) (LACOSTE, 2012, p. 9).

Para Lacoste (2012), a Geografia teria como razão de ser a ciência que me-
lhor apreende o mundo a fim de mudá-lo, na qual o espaço é estudado objetivan-
do agir nele de modo mais profícuo. No entanto, a sua noção de espaço geográ-
fico se limita a “aquilo que pode ser mapeado, colocado sobre a carta, delimitado,
portanto, com precisão sobre o terreno e definido sobre a carta cartográfica” (LA-
COSTE, 2012, p. 9).

Vesentini, no prefácio a sua obra (LACOSTE, 2012), estabelece críticas ao


pensamento lacostiano, por conceber que a ênfase dada ao cartográfico limita a
análise do campo político, escamoteia a luta de classes e simplifica a “geografia
dos professores”. Além de não se ater às relações existentes entre sujeito-objeto
e do processo histórico de construção do saber e da prática que fica oculto diante
de uma noção de geopolítica tão abrangente. O peso dado ao papel das cartas
cartográficas produzidas pelos agentes hegemônicos, a exemplo dos Estados dos
países centrais e das instituições de poder.

Para avançar no conhecimento sobre a Geopolítica é preciso antes compre-


ender a aproximação e a diferenciação entre Geopolítica e Geografia política, vi-

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Fundamentos de Geopolítica

sando estabelecer pontos comuns e divergências entre as abordagens. Nesse


sentido, buscar-se-á situar as duas abordagens geográficas no interior da Geo-
grafia, correlacionando-as com as escolas determinística e a possibilista.

2.2 A GEOGRAFIA POLÍTICA E A


GEOPOLÍTICA: DISTANCIAMENTO
OU APROXIMAÇÃO ENTRE OS DOIS
CAMPOS DE ESTUDO?
Toma-se como ponto de partida para a discussão a frase: “a política de um
Estado está na sua geografia”, atribuída a Napoleão Bonaparte” (VESENTINI,
2003, p. 1), cuja inspiração tem origem em Montesquieu e na sua vivência en-
quanto militar. A referida frase traz à luz algumas questões sobre o campo da
Geopolítica e a Geografia Política e da relação dicotômica entre determinismo e
possibilismo. Isso quer dizer que as condições geográficas passam a ser conside-
radas como uma importante variável para as políticas de Estado, sobretudo nas
relações internacionais. Mas buscar situar e enquadrar a relação entre espaço,
poder e território não é uma tarefa simples, pois existem possíveis diferenças e
pretensas oposição (VESENTINI, 2003).

O determinismo pode ser entendido como uma concepção em


que o homem se apresenta como produto do meio ou das condições
que determinam pontos fundamentais para as relações na sociedade.
O possibilismo reporta a ideia de totalidade com esforço em prol do
mapeamento das densidades e do gênero de vida.

Apesar de não ver utilidade em distinguir a geografia política da geopolíti-


ca, Costa (2016, p. 18) descreve que em geral a geografia política é entendida
como “o conjunto de estudos sistemáticos mais afetos à geografia e restritos às
relações de poder entre os Estados, questões relacionadas à posição, situação,
características das fronteiras etc.” A geopolítica compreende “a formulação das
teorias e projetos de ação voltados às relações de poder entre às estratégias de
caráter geral para os territórios nacionais e estrangeiros” (COSTA, 2016, p. 18).

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Capítulo 1 AS BASES QUE FUNDAMENTAM O CAMPO DE ESTUDO DA GEOPOLÍTICA

Logo, situa que seu aporte se sustenta nas ciências políticas aplicadas, tendo
uma característica mais interdisciplinar e de ação.

Costa (2016) explica que existem dois contextos no âmbito da produção de


conhecimento no campo da geopolítica. Um marcado pela influência dos proces-
sos vinculados à política dos Estados e da estrutura e desenvolvimento das rela-
ções internacionais que atinge as perspectivas civil e militar, pacífica e belicosa.
Daí a relação entre a evolução do constructo científico mediado pelas conjunturas
políticas e sociais. Isso limita a circunscrição dessa produção de conhecimento
em um corpus teórico-metodológico que apresente uma sequência lógica e histó-
ria de sua trajetória. Ainda nessa mesma linha, há um segundo contexto atrelado,
ascendência geográfico-política, disso configura que cada estudo realizado pe-
los pesquisadores está “relacionado ou não aos objetivos determinado Estado ou
grupo de Estados, mas de todo modo produzindo uma geografia política marcada
por seu contexto político e territorial” (COSTA, 2016, p. 16).

Tendo essas perspectivas como ponto de partida, Costa (2016) diz ser ne-
cessário ter cuidado ao se utilizar de “leis gerais” ou “pensamento universal” em
geografia política. Em geral, os textos visam suplantar ao contexto espaço-tempo-
ral em que estão submetidos, considerando que “o maior dos riscos a ser evitado
é o de caírem prisioneiros de suas próprias fronteiras” (COSTA, 2016, p. 16, grifo
do original). Isso se acentua porque a geografia política trata da política de Esta-
do (política territorial do Estado), cuja relação intrínseca com a materialidade não
pode ser limitada a uma ótica abstrata.

Nessa ótica, para além de outras atribuições, a geografia tem uma função
nada fácil “de examinar e interpretar os nodos de exercício do poder estatal na
gestão dos negócios territoriais e a própria dimensão territorial das fontes e das
manifestações do poder em geral” (COSTA, 2016, p. 17). Há também um outro
aspecto, a produção de conhecimento no âmbito do Estado, pois os estudos são
realizados nos seus aparelhos estatais, cuja finalidade é o desenvolvimento de
políticas públicas territoriais. Mas a Ideologia de Estado envolve inúmeros atores,
que por isso não deve ser enquadrada em uma única dimensão (COSTA, 2016).
Logo, a delimitação do escopo de ação da geografia política é descrita como sen-
do estatal-nacional, mesmo se lida com temas internacionais.

Há na literatura geográfica uma discussão entre geografia política, entendi-


da a partir da visão determinística, vinculada aos elementos naturais como fator
de estabelecimento das condições sociais. E da geopolítica como sendo a base
de uma visão possibilista, em que o ambiente natural funciona como um meio
contido de possibilidade para atuação humana, sem incidir na evolução das so-
ciedades, pois o homem é o agente de transformação do processo geográfico. É
dessa perspectiva que a visão possibilista estabelece a relação homem-natureza.

15
Fundamentos de Geopolítica

Vesentini (2003) apresenta as possíveis diferenças entre geografia política e geo-


política, bem como discute a pretensa oposição entre uma abordagem determinis-
ta e uma abordagem possibilista.

Por que é importante esclarecer a relação dicotômica entre de-


terminismo e possibilismo para entender a geopolítica? Num primeiro
olhar seria para poder situar a Geopolítica em seu campo de estudo.
Contudo, buscar enquadrar de modo fechado a Geopolítica, sem en-
tender as contribuições da Geografia Política e da abordagem de-
terminística é encobrir a produção científica da Geografia construída
ao longo dos séculos XIX e XX, os processos que estão envolvidos,
as relações de poder que estão contidas nas discussões epistemo-
lógicas e os saberes produzidos e suas influências nas práticas te-
órico-metodológicas do ensino de Geografia, e sua relação com as
políticas de Estado.

2.3 ENTENDENDO O CAMPO DE


ESTUDO DA GEOPOLÍTICA POR
MEIO DA DISCUSSÃO ENTRE
DETERMINISMO E POSSIBILISMO
Cabe situar a origem da abordagem determinística como base do pensamento
geográfico alemão, a partir de Friedrich Ratzel, e a abordagem possibilista tendo
como referência sua etimologia francesa fundamentada nas ideias de Lucien
Febvre e Paul Vidal de La Blache. É preciso situar a contribuição de Ratzel ao
retomar os estudos espaciais da política em 1897, por meio da obra Politische
Geographie. Segundo Vesentini (2003), essa obra cria uma forte contestação
dos franceses à tese de vinculação entre o “solo” e o Estado, em especial do
historiador-geógrafo Paul Vidal de La Blache, que publicou suas críticas à “escola
geográfica determinística germânica” nos Annales de géographie, em 1898. Costa
(2016) situa a contribuição de Camille Vallaux com sua obra O Solo e o Estado,
publicada em 1910, na qual critica Ratzel e situa a contraposição do possibilismo
ao determinismo no âmbito da geografia política. Sua crítica é metodológica, por

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Capítulo 1 AS BASES QUE FUNDAMENTAM O CAMPO DE ESTUDO DA GEOPOLÍTICA

considerar a teoria do Estado Orgânico, mas que ao menos essa visão trazia
o meio para discussão na relação com o Estado. Assim, considera que era
necessário separar os fenômenos sociais e naturais (COSTA, 2016). O cerne
da questão é a relação de dependência do Estado do “solo” (enquanto espaço
físico, território) e a ideia de que o desenvolvimento do Estado tinha relação com
a expansão territorial. Daí a noção de um determinismo limitado elaborado por
Ratzel, cunhado pelos franceses sobre a Geografia Política alemã.

O alemão Friedrich Ratzel, com sua obra, foi de grande


importância para a sistematização da Geografia moderna, pois
desenvolveu uma das formulações pioneiras de um estudo geográfico
especialmente direcionado à discussão dos problemas humanos, o
qual chamou de Antropogeografia. Seu estudo teórico, com grande
caráter interdisciplinar, teve a preocupação principal de entender
as diversas formas de circulação de pessoas e bens materiais;
a difusão e a distribuição dos povos sobre a superfície terrestre; a
influência das condições naturais sobre o comportamento humano,
que culminariam no determinismo; as formações do território, e
intimamente ligada a estas, a dimensão política da relação homem-
natureza” (SOUZA et al., 2016, p. 44).

A ideia de uma relação antagônica entre determinismo e possibilismo foi in-


troduzida por Lucien Febvre na obra La Terre et l´evolution humaine, publicada
em 1922. Mas essa associação deve ser refletida com base na construção do sa-
ber geográfico, por meio de dois contextos de sua formação. Um primeiro momen-
to em que se constrói um conhecimento denominado de “geografia dos Estados-
-maiores”, voltado aos interesses dos Estados, como forma de estabelecimento
de poder, cuja origem data da idade antiga (LACOSTE, 2012). Seja ele através da
dominação cultural exercida pelas representações cartográficas e do saber espa-
cial enquanto estratégia de poder.

E uma segunda via de conhecimento, edificado no âmbito acadêmico, a qual


Lacoste (2012) denomina de “geografia dos professores”. Esse constructo teórico
surge no século XIX e se manifesta como um discurso ideológico que não dialoga
com as práticas políticas, estratégias de domínio territorial militar, e com as tomadas
de decisões econômicas. Nesse sentido, furta-se tratar os mecanismos de poder
que se configuram as análises espaciais. A “geografia dos professores” é vista ini-

17
Fundamentos de Geopolítica

cialmente com essa limitação, por não atender a uma práxis pedagógica, de ocultar
o saber geográfico como mecanismo de poder, esfera de ação e uma forma política.
Por isso, tem-se a ênfase dada ao aspecto descritivo e não analítico dessa ciência e
da “geografia dos professores” até a primeira metade do século XX.

De acordo com Lacoste (2012), é Elisée Reclus (1830-1905) o precursor de


uma geografia pujante na França, não Vidal de la Blache. Mas é Vidal de la Bla-
che quem influencia a “geografia dos professores”. No entanto, não se faz uma re-
flexão epistemológica a partir de problemáticas geográficas. Isso passa a ocorrer
com a aproximação da Geografia a estudos interdisciplinares com a sociologia e
a economia por meio de Pierre George. A principal contribuição de La Blache foi
contrapor ao pensamento Ratzeliano e sua abordagem “determinística”, através
dos estudos da descrição regional, em que situa o processo histórico de atuação
humana em relação aos dados naturais, numa visão que se “aproxima” da abor-
dagem possibilista do constructo geográfico. Essa é a crítica que se faz ao seu
pensamento, apesar de inserir a questão histórica, há uma relação de dependên-
cia dos fatos humanos dos fatos físicos.

Em contrapartida, Elisée Reclus, nas obras O homem e a terra e Geografia


Universal já tratava das questões sociais, políticas e econômicas, que incluíam
temas sobre as cidades e as indústrias. Lacoste (2012) assinala que os avanços
nas Ciências Sociais e na História se deram muito mais em razão da luta de clas-
ses. E é nesse sentido que a Geografia deve perfilhar. Há que se entender que o
argumento geográfico não é neutro, pois recai em políticas e ideologias. Assim, a
geografia “dos estados maiores” se atenta para a dimensão política; e a “geogra-
fia dos professores” de base francesa negligencia essa dimensão, sendo apenas
inserida nas discussões da Geografia Humana a partir dos anos de 1950.

Para contrapor a ênfase dada à historicidade dos fatos, Lacoste (2012) cria
a noção de geograficidade para situar que temas são tidos como centrais para
análise e estudo de fenômenos geográficos. No âmbito da “geografia dos profes-
sores” alemã, o tema das questões políticas e de estratégia militar são pontuados
desde Ratzel e o início do século XX. Na França, a Geopolítica apesar de não ser
explicitada no pensamento “geográfico dos professores” no início do século XX,
sobretudo aborda os aportes de Vidal de la Blache, este último aborda o tema
nos Annales de géografhie (1898) e na obra A Franca de Leste (Lorena-Alsácia)
em 1916. Neste último livro, La Blache faz a descrição do Quadro, que dá conta
de várias questões que remetem a cidade, o papel das distintas burguesias urba-
nas, os mecanismos variados de industrialização, o modo como se originam os
capitais e as áreas que ocorrem investimentos, abarcando aspectos sociais e as
relações entre classes. O ponto-chave é o tratamento dado à geopolítica e aos
militares. Apesar disso, não há por parte de La Blache uma atenção maior desses
temas no constructo geral da produção de conhecimento, em especial se analisa-
do os Princípios de geografia humana (1921).

18
Capítulo 1 AS BASES QUE FUNDAMENTAM O CAMPO DE ESTUDO DA GEOPOLÍTICA

Lacoste (2012) atribui a Lucien Febvre a concepção de geograficidade e a


influência dessa visão na comunidade acadêmica, a partir da obra A terra e a evo-
lução humana, introdução geográfica à história (1922). É Febvre quem constrói as
proposições teóricas do possibilismo. Propõe uma “geografia humana modesta”
que não trate dos temas políticos e militares; não aprofunde as questões sociais e
econômicas; e deixe de lado uma análise sobre as cidades. Esse posicionamento
que contrapõe os avanços que Reclus e La Blache já tinham alcançado, insti-
tuindo um pensamento geográfico mais estrito ainda, mas esse pensamento está
de acordo com o domínio que os historiadores tinham acerca da questão política
sobre os Estados.

Jaen Brunhes contrapõe a abordagem de Febvre através da obra Geografia


da história, geografia da paz e da guerra (1921), que dialoga com a obra de Rat-
zel. Mas Febvre adota a frase de La Blache: “a geografia é a ciência dos lugares
e não a dos homens” para refutar a aproximação do pensamento dos sociólogos
e dos economistas nas discussões espaciais da geografia (LACOSTE, 2012, p.
117). Com isso, seu pensamento ganha maior proeminência no ambiente acadê-
mico. É nesse contexto que a “geografia dos professores” até os anos de 1960
não avança sobre os temas centrais da geopolítica (ação e poder).

Lacoste (2012) mostra a contradição ao citar que mesmo não abordando a


questão política e militar na geografia universitária francesa, as cartas cartográfi-
cas foram elaboradas para atender a tais demandas de poder. Esse afastamento
em primeiro plano tem relação com o elo entre os geógrafos universitários, o go-
verno e o Estado-maior. Mas, sobretudo, pela questão expansionista e racista da
Geopolítica alemã.

É em meio a esse contexto que se funda o debate da Geografia Política e


da Geopolítica. A Geopolítica não deve ser confundida com a Geografia Política,
cuja base de formação está assentada nas ideias de Friedrich Ratzel, cujas bases
teóricas e conceituais do autor fundamentam os estudos da Geografia Humana.
Assim, a Geopolítica não deve ser pensada como uma junção entre a Geografia
e a Política, apesar de conter uma forte influência do pensamento de Ratzel em
seus estudos. Ratzel, apesar de contribuir para esse campo de conhecimento e
para a construção do conceito de Geopolítica a partir da noção de Geografia Po-
lítica na obra Politische Geographie (1897) – Geografia Política, nunca chegou a
fazer uma menção ao termo.

O desenvolvimento dos estudos da Geografia Política por Ratzel, agregado


a pensadores como Johan Rudolf Kjellén, Alexander von Humboldt e Karl Ritter
conformam a corrente “determinística” da Geografia, na qual se fundamenta a
geopolítica alemã. Humboldt enfatiza o papel das ciências naturais e seu aporte
para lidar com as questões e as práticas imperialistas. Ritter, seguindo a mes-

19
Fundamentos de Geopolítica

ma linha, aprofunda esse cotejo de tal modo que se pode ver manifesto no que
se denomina de geografia humana (FONT; RUFÍ, 2006). São esses autores que
vão influenciar o pensamento de Ratzel. A ideia de “determinismo geográfico” de
Ratzel é uma interpretação feita da abordagem sobre a relação entre o homem e
o meio, expressa no seu livro Anthropogeographie (1882). Nessa concepção, os
elementos da natureza, a exemplo do clima e do solo, seriam os únicos fatores
que influenciam a organização e o desenvolvimento de uma sociedade.

Indo além do determinismo do meio natural como fundamento


do ― “espírito das leis”, Ratzel procurou elaborar uma verda-
deira teoria das relações entre a política e o espaço, introdu-
zindo o conceito de sentido do espaço, segundo o qual certos
povos tinham maior capacidade de ordenar as paisagens, de
valorizar os recursos naturais, de se fortalecer a partir do seu
próprio enraizamento no território. Como ocorreu com as ci-
ências sociais naquele período, o modelo de Ratzel foi forte-
mente inspirado na biologia, e os temas por ele privilegiados
respondiam à necessidade de refletir sobre os problemas de
sua época, ou seja, a disputa por territórios e o fortalecimento
do Estado nacional como garantia de poder dos povos sobre
os territórios por eles ocupados (CASTRO, 2005, p.19-20).

A Geografia Política é fundamentada em duas obras de Ratzel, Politische


Geographie (1897) e Das Meer als Quelle der Völkergrösse: eine politisch-geo-
graphische Studie (1990). O objeto de estudo da Geografia Política, segundo Rat-
zel, é a relação entre Estado, solo e sociedade. A ênfase é dada ao espaço na
dimensão política do Estado, pois há a preocupação com o espaço ocupado por
um Estado confrontado com a posição que esse espaço estabelece com os outros
espaços. O espaço é situado como mecanismo de poder, enquanto importante
agente político. Ratzel faz uma análise histórica situando que o poder mundial es-
teve efetivamente entre as potências “marítimas” e “continentais” e por isso desta-
ca o poder marítimo como a base para alcançar o poder mundial. O que ele quer
dizer com essas ideias é o papel importante dos oceanos na dinâmica comercial e
de controle das áreas dos Estados, assumindo uma função estratégica de poder.

A Geografia Política firma-se como um campo de estudo da Geografia, e re-


cebe novas contribuições, em especial de Halford John Mackinder, com sua teoria
do “pivot geográfico da História”, na qual dá atenção especial ao poder marinho.
Outra contribuição à Geopolítica foi elaborada pelo General Karl Ernest Nikolas
Haushofer, em meio às análises sobre a Primeira Guerra Mundial, através das
“pan-regionen”, elaboradas a partir dos estudos sobre o surgimento de novas po-
tências industriais (Estados Unidos, Alemanha, Rússia e Japão) e o declínio das
colônias francesas e inglesas. No entanto, ocorreu uma forte resistência franco-
-britânica diante de uma possível atuação centralizadora da Alemanha na Euro-
pa. Assim, a geografia política era utilizada como base para as ações durante a
Segunda Guerra Mundial. As ideias de Haushofer foram em um primeiro momen-

20
Capítulo 1 AS BASES QUE FUNDAMENTAM O CAMPO DE ESTUDO DA GEOPOLÍTICA

to assimiladas por Hitler, que culminou no pacto de não agressão russo-alemão


estabelecido em 1939. Mas, pouco depois, a Alemanha invade a União Soviética,
com derrocada da Alemanha diante dos aliados.

[…] a geopolítica representa um inquestionável empobrecimento


teórico em relação à análise geográfico-política de Ratzel,
Vallaux, Bowman, Gottmann, Hartshorne, Whittlesey, Weigert,
e tantos outros. Essa é a questão essencial, desde logo,
que deve sobrepor-se às demais, a começar dos artifícios
notoriamente simplórios como o de tentar situá-la como ―
“ciência de contato” entre a geografia política e a ciência
política, a ciência jurídica etc., bastante comum nas introduções
de inúmeros generais-geógrafos-geopolíticos, a começar pelo
próprio Karl Haushofer (COSTA, 2016, p. 55).

Para aprofundar a questão, Costa (2016) cita a obra de Raztel, Geografia


Política, como sendo a base que funda tanto a geografia política quanto a geo-
política, mesmo esta última tendo Kjellén como referência. A fim de situar uma
distinção entre as duas abordagens, sugere o uso do critério do nível de compro-
metimento de pesquisadores em suas pesquisas com o escopo das ações nacio-
nais-estatais. Nesse sentido, revela o aspecto militante presente na atuação de
alguns pesquisadores, a exemplo de Haushofer e Hartshorne, mas enfatiza que
isso tem ocorrido com maior relevo no interior dos Estados-maiores vinculado com
as áreas militares e os institutos articulados a ele. Contudo, afirma que as bases
teóricas e conceituais que abarcam ambas as abordagens suplantam o problema
da militância e, por isso, deve ser considerada como ponto de partida analítico.

Costa (2016) considera um equívoco fazer o cotejo entre possibilismo e de-


terminismo ao tratar da geografia política, sem fazer as devidas ponderações. Ao
se ater à questão da vinculada do determinismo com a geografia política, situa
que para além dos aspectos naturais há em seu escopo a influência do quadro
nacional (especialmente da Alemanha) e das ideias do Iluminismo e da Revolu-
ção Francesa. Desse modo, não é possível enquadrá-la como uma ciência desde
sua origem com viés determinístico, pois há que se compreender que o discurso
determinista sobre o Estado considera “a capacidade que eles demonstram em
construir sua unidade nacional interna do ponto de vista da organização política
do território, e de transformar esse dado em poder de Estado, a fim de projetá-lo
na sua política externa” (COSTA, 2016, p. 22).

O autor qualifica esse determinismo como territorial, no qual os estudos se


concentram no equilíbrio de forças em escala macrorregional ou global, que visam
à representação do movimento da política dos Estados e dos blocos de Estados
numa dimensão de escala global. Costa (2016) vislumbra uma mudança no cená-
rio mundial orientada para redução de conflitos diretos internacionais e acordo de
paz, com um possível fim de uma abordagem da geografia política de modo isola-

21
Fundamentos de Geopolítica

do e seu encaminhamento para estudos interdisciplinares no âmbito das ciências


sociais. Essa visão considera que os conflitos não ocorrerão marcadamente por
entes territoriais objetivos, sobretudo pelo avanço da democracia em suas distin-
tas estruturas, com a aplicação de modo amplo e dispositivos de descentralização
e de consolidação do poder regional e local. Essa visão está assentada nas bases
de uma ordem mundial “globalizada” e da quebra das fronteiras entre as nações,
no entanto, o quadro geopolítico que se apresenta revela o deslocamento das
relações de poder para outras dimensões escalares, com menor peso do papel do
Estado na geografia política e na geopolítica mundial. Contudo, o Estado não dei-
xa de manter centralidade, conforme explicita Mascaro (2013), o que ocorre com
o avanço do desenvolvimento do sistema do capitalismo é que fica mais evidente
que para compreendê-lo em sua totalidade é preciso estudar o capitalismo.

2.4 A CONFORMAÇÃO DO CAMPO DE


ESTUDO DA GEOPOLÍTICA E SEUS
PRINCIPAIS TEMAS
Etimologicamente, o termo Geopolítica surge no final do século XIX, através
dos estudos do cientista político Rudolf Kjellén, no qual Tosta (1984) cita que o ter-
mo foi mencionado por ele pela primeira vez em uma conferência. O termo geopo-
lítica foi materializado por Kjellén (1905) no artigo As Grandes Potências, no qual
compreende a Geopolítica como sendo a “análise do Estado como agente apropria-
dor e controlador do espaço geográfico” (TOSTA, 1984, p. 24). Mais adiante, em
1916, o autor apresenta as bases da Geopolítica na obra O Estado como Forma de
Vida, compreendida “a ciência do Estado, enquanto organismo geográfico, tal qual
se manifesta no espaço” (KJELLÉN, 1916 apud CHAUPRADE, 2001, p. 29). Nessa
obra, o autor constrói a sua teoria Geopolítica do Estado Orgânico. Este amplia a
concepção de Estado Orgânico elaborada por Raztel e situa o Estado como um
“superorganismo” em que todos fatores políticos estariam condicionados às leis bio-
lógicas. Logo, para Kejéllen (apud WEIGERT, 1943, p. 119):

O Estado mesmo é a terra, é, em certa medida o solo ‘orga-


nizado’[...] A essência do Estado como organismo se compõe
de elementos jurídicos e elementos de força: como toda a vida
individual existente sobre a terra, consiste não somente em
moralidade, senão também em desejos orgânicos [...] Os Es-
tados, tal como (podemos) seguir seu curso na história e tal
como nos movemos entre eles e no mundo das realidades são
seres materiais e racionais, exatamente iguais aos seres hu-
manos [...] O Estado se apresenta a nós, não como uma forma
casual de simbiose humana, artificialmente envolta em noções
jurídicas, e sim como um fenômeno orgânico profundamente

22
Capítulo 1 AS BASES QUE FUNDAMENTAM O CAMPO DE ESTUDO DA GEOPOLÍTICA

enraizado em realidades históricas e, de fato, como o ser hu-


mano individual. Em uma palavra: o Estado emerge como uma
manifestação biológica ou forma de vida.

Desse modo, os estudos da Geopolítica surgem no século XIX em decor-


rência de alguns fatores. Em primeira instância pela configuração dos Sistemas
de Estados modernos resultantes da unificação da Alemanha e da Itália, pelo
auge do imperialismo europeu e sua relação entre as metrópoles e as colônias.
Os processos de independência das colônias europeias ao norte e o surgimento
dos Estados Unidos e do Japão como novas forças de grande impacto na ordem
mundial. Além do processo célere de expansão demográfica, cujos efeitos recaem
sobre os recursos naturais e suscitam discussões sobre os processos geopolíti-
cos que envolvem o tema. É nesse escopo de discussão que surge a Geopolítica
enquanto base disciplinar.

Esse campo de estudo se expande e encontra muitos expoentes em distintos


países, no qual se tentou classificá-los por correntes a partir de seus Estados de ori-
gem. De acordo com Célérier (1969, p. 11), Halford Mackinder (1861-1947) foi cria-
dor da escola de geopolítica inglesa; Ratzel (1844-1904) foi precursor da escola ale-
mã; Vidal de la Blanche (1845-1918) deu origem à Escola Francesa e Alfred Mahan
(1840-1914) instituiu a Escola Geopolítica Norte-americana. Mas essa classificação
não atendida à diversidade de pensamento produzida nos países e nem conseguia
observar os pontos em comum que tinham as ideias desses autores.

Em síntese, pode-se dizer que a noção de geopolítica encontra duas cor-


rentes de pensamento para análise dos fenômenos políticos-geográficos, mas
que não devem ser vistas como campos de estudos isolados. Segundo Glass-
ner (1993, p. 223), uma corrente baseada na ideia de determinismo ambiental,
ou como também é conhecida darwinismo social, tem como base as ideias e os
conceitos desenvolvidos por Friedrich Ratzel e Kjellén intitulada “Teoria do Estado
Orgânico”. E uma segunda corrente, denominada de Geoestratégia, na qual se
compreende a relação de influência de fatos geográficos e políticos pelos próprios
fatos. A referência desses estudos são Alfred Thayer Mahan e Halford J. Mackin-
der, autores do século XIX.

Situando esses enfoques espaço-temporalmente, convém assinalar que a


geopolítica passa a criar corpo durante os processos de entreguerras (1918-1939)
no início do século XX, no qual abarca a Primeira Guerra Mundial, em 1918, e o
começo da Segunda Guerra mundial, em 1939. Nesse período, as questões terri-
toriais trazem outra centralidade para as discussões sobre o Estado.

A geopolítica mundial ganha ênfase nos estudos da Geografia com a Guerra


Fria, pelas disputas territoriais de hegemonia política, econômica e de poder béli-

23
Fundamentos de Geopolítica

co no comando da ordem mundial. A ordem mundial está assentada nas relações


de poder e soberania entre nações, em que pesam o contexto histórico-temporal.
Observa-se dois contextos na ordem mundial, um primeiro cenário em que preva-
lece uma ordem mundial eurocêntrica, tendo como elo central o imperialismo inglês
entre os séculos XVIII e século XIX, pelas Revoluções Industriais e pela disputa de
novos territórios, um novo colonialismo. Porém, com o período entreguerras e os
resultados do pós-guerra com a conformação de uma Guerra Fria, surge uma Nova
Ordem Mundial, em que os Estados Unidos ganham centralidade em razão de sua
hegemonia econômica, um mundo Bipolar. Com o fim da Guerra Fria surge uma
Nova Ordem Mundial, assentada nos processos de globalização e numa perspecti-
va Multipolar. Entender os arranjos espaciais e territoriais das relações entre Esta-
do, poder e Política Internacional é o objeto central da Geopolítica.

Becker (2005) situa o papel que a geopolítica teve e tem no domínio de ter-
ritórios alheios, sobretudo na relação metrópole-colônia, na qual o território la-
tino-americano esteve sujeito. Há, portanto, a partir da atuação geopolítica dos
Estados um ambiente internacional com os mais variados tipos de pressões, in-
tervenções, com intensidades distintas que vão desde moderadas as situações de
guerras à obtenção de territórios. Essa configuração de conflito antes tinha como
ente central o Estado, em razão deste ser considerado a base de procedência do
poder e de expressão da política. Por isso, essa categoria se mostra central até o
desenvolvimento do capitalismo financeiro ou monopolista. “Hoje, esta geopolítica
atua, sobretudo, por meio do poder de influir na tomada de decisão dos Estados
sobre o uso do território, uma vez que a conquista de territórios e as colônias tor-
naram-se muito caras” (BECKER, 2005, p. 71).

Atividades de Estudo:

1) Elabore um texto que exponha os principais aspectos que ex-


pressam a convergência entre o determinismo e o possibilismo
na geografia. Indicamos como leitura complementar o seguinte
trabalho, que trata sobre o assunto: SOUZA, Cristiano Nunes de
et al. Determinismo e possibilismo: uma análise epistemológica
e crítica. Maiêutica-Geografia, v. 4, n. 1, 2016. Disponível em:
https://bit.ly/3dYGdwb. Acesso em: 9 mar. 2020.
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24
Capítulo 1 AS BASES QUE FUNDAMENTAM O CAMPO DE ESTUDO DA GEOPOLÍTICA

3 O CAMPO DE ESTUDO DA
GEOPOLÍTICA E AS PRINCIPAIS
ABORDAGENS TEÓRICAS
Estabelecida uma discussão inicial entre a geografia política e a geopolítica,
cabe, portanto, compreender de modo mais detalhado o campo de estudo da geo-
política e suas principais abordagens. Costa (2016, p. 55) define que a geopolítica
tratada pelos distintos teóricos é, em primeiro plano, “um subproduto e um redu-
cionismo técnico e pragmático da geografia política, na medida em que se apro-
pria de parte de seus postulados gerais para aplicá-los na análise de situações
concretas interessando ao jogo de forças estatais projetando no espaço”.

Nesse sentido, Costa (2016) assinala um reducionismo teórico diante da aná-


lise geográfico-política elaborada por Ratzel, Vallaux, Hartshorne, entre outros. Sua
crítica é a ideia de “ciência de contato” em relação à geografia política, ciência po-
lítica e as demais ciências. Uma mudança de discurso adveio pela já mencionada
associação ideológica que o termo geografia política tinha com o nazismo e, por
isso, o uso do termo geopolítica se dá largamente após a Segunda Guerra Mundial,
mas sem fazer uma distinção teórico-metodológica dele (COSTA, 2016).

Neste subtópico, estudaremos as principais abordagens da Geopolítica, si-


tuando o contexto histórico e geográfico em que essas ideias surgiram, na busca
de trazer os aportes que esses estudos podem oferecer para compreensão dos
fenômenos geopolíticos atuais.

3.1 AS IDEIAS DE RUDOLF


KJELLÉN: O PONTO DE PARTIDA DA
GEOPOLÍTICA
O sueco Rudolf Kjellén foi o precursor da geopolítica e quem introduziu o termo
numa analogia entre as relações do Estado e o território. Influenciado pelo pensa-
mento de Friedrich Ratzel, sua construção teórica agregada às ideias de Alexander
von Humboldt e Karl Ritter conformou os fundamentos da geopolítica alemã, sobre
os quais Karl Haushofer utiliza para embasar suas ideias. Kjellén tem uma trajetória
acadêmica no campo do Direito Público, em que foi catedrático das Universidades
de Gotemburgo e Upsala. Apesar de ter nascido em 1864, século XIX, sua produ-
ção científica ocorre nos primórdios do século XX, antes e depois da Primeira Guer-
ra Mundial e falece em 1922, sem ter noção do alcance de suas ideias.

25
Fundamentos de Geopolítica

As Grandes Potências e O Estado como Forma de Vida, respectivamente,


publicadas em 1905 e 1916, apresentam seus principais aportes à geopolítica.
Segundo Costa (2016), Kjellén estabelece que a geopolítica apresentava uma au-
tonomia diante da ciência política e da geografia política, esta última vinculada
como um sub-ramo da geografia.

Para Kjellén, o Estado funciona como um organismo territorial cuja natureza


biológica está presente em todo o seu contexto de existência, lutas e conflitos,
tendo como eixo central o meio e a raça e de modo periférico a economia, a so-
ciedade e o governo. Segundo Kjellén, “o Estado é um ser vivo; seu governo é a
alma e o cérebro; o império é o corpo e o povo são seus membros (RAFESTIN,
1995 apud FONT; RUFI 2006, p. 61). A ênfase dada aos Estados-maiores em
sua teoria é compreensível se tomarmos como ponto de partida sua origem de
base alemã e a existência de impérios centrais na Europa, assim denominados de
“Estados-Maiores”. Então, desse contexto que emerge sua predileção pela geo-
política, ela tem vínculo com a dinâmica estatal contrapondo-se à ideia que vinha
sendo construída dentro da geografia política de um campo de pesquisa acadêmi-
co autônomo. Costa (2016) explica que as bases dessas ideias estão centradas
como estratégias ou ações que visam atingir o domínio territorial ou hegemonia
diante de outro país. Daí a associação que se faz com suas ideias, com as teorias
sobre a geografia política da guerra, ou mais precisamente como é reconhecida a
geopolítica por ele construída pelos geógrafos franceses. Disso, portanto, decor-
re um distanciamento inicial do geógrafo com os franceses dessa denominação,
mas não desse campo de conhecimento.

Kjellén situa o Estado como sendo um ente de manifestação biológica pró-


pria, que acometido por leis naturais de crescimento, se inserido em um espaço
limitado, não encontra uma alternativa senão ampliar o seu espaço através de
processos de colonização, tomada ou agregação de outros territórios. Essa noção
de expansionismo territorial do império germânico está presente em suas obras,
sobretudo na ideia de que os Estados-Maiores deveriam desenvolver estudos
científicos para pensar aspectos geopolíticos. Em razão disso, ocorreu grande
aceitação de suas ideias nos círculos de poder, em especial, na Europa. Em geral,
os países que se utilizaram dessas ideias tinham traços de regimes fascistas e de
forte atuação militar. Isso serviu para embasar as ações dos países europeus e
latino-americanos.

Ponto central para entender o lugar do pensamento de Kjellén para a geo-


política atual é ter em mente o alcance de suas ideias enquanto fundamento para
geopolítica, pois a partir dele surge no interior dos Estados uma produção de co-
nhecimento político que não se articula com a geração de um saber acadêmico.
Isso quer dizer, distanciada da “geografia dos professores” (LACOSTE, 2012). O
maior exemplo desse sub-ramo da geopolítica são os estudos realizados pelo mili-
tar e geógrafo alemão Karl Haushofer. Haushofer não é o único, existem expoentes
desse pensamento em distintas estruturas de Estados, inclusive no Brasil. Por isso,
é importante compreender o ponto de partida desses estudos para saber qual a

26
Capítulo 1 AS BASES QUE FUNDAMENTAM O CAMPO DE ESTUDO DA GEOPOLÍTICA

finalidade da produção desse conhecimento. Como exemplo desses estudos oriun-


dos dessa tradição militar temos Mario Travassos, Golbery e Meia Mattos e Lysias
Rodrigues. Há, de modo geral, uma menção ao papel dinâmico que as ideias de
Kjellén e Ratzel deram à geografia política, a partir da geopolítica, pela aplicabilida-
de de suas ideias nas estratégicas do Estado através da geografia.

3.2 A DIMENSÃO HISTÓRICA E


GEOGRÁFICA DO SURGIMENTO DA
GEOPOLÍTICA
O cenário histórico e geográfico em que se constitui a geopolítica, através
dos estudos de Ratzel e Kjellén, como campo de estudo Geografia é o momento
de passagem do século XIX para o século XX. Desse modo, é fundamental situar
as transformações sociais pelas quais passou a sociedade nesse período. So-
bressai nesse período a relação entre espaço e poder, resultado de um mundo
cada vez mais atrelado à escala global e pelo surgimento de grandes potências
mundiais, tendo como seu modo de atuação mundial através de ações imperialis-
tas. Assim, a ênfase é dada ao domínio da ordem mundial. Costa (2016) assinala
a associação da noção de potência mundial e imperialismo dentro desse contexto.

No entanto, o que se expressa de modo contundente é o avanço dos proces-


sos de industrialização, em sua segunda Revolução Industrial, bem como da repro-
dução ampliada do capital, em sua fase monopolista. O capital age de modo seleti-
vo especialmente exercendo ação de concentração e centralização das indústrias e
do capital bancário em determinados países, numa inserção internacional desigual.

Costa (2016), ao considerar Lenin, explicita o caráter estratégico de expan-


são territorial das potências e do reordenamento mundial realizado por meio da
Primeira Guerra Mundial, considerando o conflito como sendo o resultado de uma
guerra imperialista que buscava a redivisão da ordem mundial, o domínio territo-
rial sobre as colônias e situar-se no campo de atuação do capital financeiro. Pois,
para o capital, já interessava atuar no mercado em escala nacional, mas atingir
em sua segunda fase, a escala mundial. Uma “guerra” pelo controle territorial e
mercado dos países, em especial das antigas colônias.

Há nesse novo arranjo da dinâmica da ordem mundial uma nova lógica de


atuação imperialista, não mais centrada na relação colônia-metrópole, mas um
imperialismo associado aos monopólios econômicos, com intrínseco elo com o ca-
pital financeiro que os situam em escala mundial. Os conflitos que se sucederam
nessa época estavam atrelados à rivalidade entre os países fronteiriços (grandes
potências) pela expansão de seu território local e das áreas de expansão colonial
(fontes de matérias-primas) situadas na Ásia, África, Oceania e América. Costa
(2016) cita Hobsbawm (1989) para explicar a mudança por que passa a noção de

27
Fundamentos de Geopolítica

imperialismo, vinculada com a ideia de grandes impérios resultados de conquis-


tas territoriais-militares, do fenômeno de imperialismo atrelado ao colonialismo de
territórios alhures, sobre o qual deu origem ao processo de industrialização na
Europa, a exemplo do imperialismo inglês.

Observa-se que até o fim do século XIX, o imperialismo tinha como principais
atores os países europeus. Desse período em diante surgem novos atores na dinâ-
mica mundial conquistando hegemonia regional, que é o caso do Japão, na Ásia, e
uma nova hegemonia mundial, exercida pelos Estados Unidos. Este último realizou
uma profunda expansão de seu território, ocupando áreas pertencentes à França
e ao México. Sua atuação expansionista se dá sobretudo no domínio da dinâmica
econômica e comercial na América; de tal modo que o governo dos Estados Unidos
cria, em 1821, a Doutrina Monroe, uma política dedicada à atuação hegemônica
dos Estados Unidos, na América, como sendo o resultado dos “direitos naturais”
que possuía na região, daí surge a noção de “América para os americanos”. Essa
política surge em contraposição às políticas da “Santa Aliança” de países europeus
que tinham o intuito de retomada das colônias americanas. Inúmeros foram os con-
flitos gerados pelos Estados Unidos com intuito de domínio e expansão territorial
que se conformou de natureza imperialista, conforme apresenta a Figura 1.

FIGURA 1 – TERRITÓRIOS ANEXADOS PELOS ESTADOS


UNIDOS APÓS CONFLITOS TERRITORIAIS

FONTE: Costa (2016, p. 65-66)

28
Capítulo 1 AS BASES QUE FUNDAMENTAM O CAMPO DE ESTUDO DA GEOPOLÍTICA

Essa expansão imperialista no continente americano resulta na criação do


protetorado de Cuba e na conquista do arquipélago das Filipinas e Porto Rico.
Emerge desse cenário uma potência econômico-militar mundial com enorme
poder de atuação externa, fundamentada no big sick, que quer dizer: “fale macio,
mas carregue um grande porrete”. Essa política serviu para desarticular as
economias subdesenvolvidas e emergentes. Mas as pretensões de controle da
ordem mundial eram maiores, com isso, aliado à Inglaterra, buscou ocupar o lugar
da Alemanha no mercado mundial a partir da construção do Canal do Panamá,
iniciado em 1980, pela França, assumido pelos Estados Unidos, em 1904, e
finalizado em 1914.

Com o avanço da hegemonia mundial econômica, política, militar e cultural


dos Estados Unidos no pós-guerra, conformando um bloco capitalista e do outro
lado a criação de um bloco socialista, União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
– URSS, liderado pela Rússia – no período que ficou convencionado chamar de
Guerra Fria (1947-1991) – a ordem mundial se divide em dois polos (bipolaridade).
Com o domínio do sistema capitalista e uma lógica mundial centrada na expansão
do comércio internacional e a quebra de “barreiras espaciais”, surge uma nova
ordem mundial de caráter multipolar (Figura 2), em que as grandes potências
exercem controle da economia de cada região. Esse controle territorial das rotas
de comercialização pode ser exercido tanto via terrestre como via marítima.

FIGURA 2 – A NOVA ORDEM MUNDIAL

FONTE: <https://interna.coceducacao.com.br/ebook/
pages/311.htm>. Acesso em: 16 ago. 2019.

29
Fundamentos de Geopolítica

3.3 MAHAN: O PODER MARÍTIMO E A


ASCENSÃO DOS ESTADOS UNIDOS
COMO POTÊNCIA MUNDIAL
Alfred Thayer Mahan (1840-1914), estadunidense formado pela Naval
Academy at Annapolis, segue a linha dos geógrafos militares, pertencente ao
quadro da marinha deste país e professor da Naval War College at Newport.
Participa da Guerra Civil Americana chegando a ser nomeado capitão de mar e
guerra em 1885. Dedica seu enfoque na geoestratégia do poder marinho (COSTA,
2016). Parte dele a influência na constituição de grandes potências marinhas no
período anterior à Primeira Guerra Mundial.

A atuação docente como instrutor de História e Táctica Naval do Colégio de


Guerra, em 1985, fez com que, orientado por Stephen B. Luce, buscasse analisar
o papel do poder naval no desenvolvimento histórico mundial. Em seus estudos, e
sua função à frente do instituto, teve a oportunidade de conhecer e conviver com
Theodore Roosevelt, que posteriormente seria presidente dos Estados Unidos.
Essas experiências docentes e de pesquisa resultam em duas grandes obras:
The Influence of Seapower on History, 1660-1783, publicada em 1890, e The
Influence of Sea Power upon the French Revolution and Empire, 1793-1812,
lançada em 1892. Cabe salientar que o pensamento de Mahan influencia Ratzel
em seu argumento a favor do poder naval alemão (FONT; RUFÍ, 2006).

Sua teoria parte do avanço das forças produtivas bélicas da França e do


Reino Unido no século XVIII e o conflito entre essas duas potências pelo controle
dos mares, sobre o qual o desenvolvimento naval foi decisivo para determinar a
vitória. Contudo, Mahan presenciava um enfoque estratégico dos Estados Unidos
de ocupação e expansão territorial para a região Oeste do país, cujo objetivo era
criar uma circulação comercial marítima dos Estados Unidos no oceano pacífico.
Havia, ainda, a crença do papel civilizatório que desempenhara os colonizadores
dos Estados Unidos, na América, descrito no século XIX no Destino Manifesto.
Assim, seus estudos situam-se no contexto histórico da grande inclinação
da política externa estadunidense. Por isso, era considerado por Morison e
Commager um teórico do expansionismo, em outras palavras, “um filósofo
naval do imperialismo” (COSTA, 2016, p. 69). E um ambiente cultural em que o
nacionalismo germânico se difundia e se concebia que democracia e imperialismo
poriam coadunar.

Clarividente do papel que a tecnologia exerceria na hegemonia do poder


naval, em contraposição às forças que preferiam os veleiros aos navios a vapor,
atuou politicamente através de seu pensamento estratégico para demonstrar sua

30
Capítulo 1 AS BASES QUE FUNDAMENTAM O CAMPO DE ESTUDO DA GEOPOLÍTICA

importância para o domínio dos mares e oceanos. Seus aportes influenciaram


ações estratégicas de desenvolvimento militar naval de potências europeias, a
exemplo da Grã-Bretanha e Alemanha, do Japão, tendo forte impacto nas duas
grandes guerras do século XX.

O grande mérito de Mahan é ter analisado e desenvolvido uma visão


integrada do poder marinho como elemento geoestratégico para as grandes
potências mundiais. Essa concepção situa que todas as atividades ligadas
ao mar devem ser integradas, disso decorre o poder. Mahan (1965, p. 8 apud
COSTA, 2016, p. 69) explica que “O teatro de guerra pode ser maior ou menor,
suas dificuldades mais ou menos pronunciadas, as armadas maiores ou menores,
os movimentos necessários mais ou menos fáceis, mas estas são simplesmente
diferenças de escala, de grau, não de tipo”. Essa frase remete ao entendimento
de que historicamente a natureza e a função social da marinha de guerra são as
mesmas, em geral os conceitos e práticas utilizadas são as mesmas descritas por
Hermócrates, há mais de 2300 anos (COSTA, 2016).

Entendido isso, situa os oceanos e mares como espaço social e político,


diferente dos espaços terrestres, mas que se articulam entre si através dos
portos e de vias (terrestres e aquáticas) de comunicação internas. No entanto,
o uso dessa lógica não é aplicado por todas as potências em razão de que as
histórias dos fluxos e o modo como cada continente e porto está posicionado são
distintas. Aquelas que fizeram o uso das rotas comerciais, das rotas marítimas
estrategicamente, tal qual Holanda e Alemanha, as vias terrestres funcionariam
como o elo que dinamiza os dois espaços e o comércio mundial. Disso decorre
uma atuação articulada e interdependente da marinha mercante e de guerra nas
grandes potências. Assim, a existência de marinha mercante é uma premissa
considerada necessária por Mahan para o desenvolvimento da marinha de guerra
(COSTA, 2016).

Tal como Mackinder, Mahan faz uma análise distorcida da atuação militar dos
Estados Unidos, não considerando suas ações agressivas. Contudo, compreende
bem o papel que tem a construção do istmo do Panamá como fator para o
desenvolvimento não só comercial e de sua indústria de guerra armamentista pelo
expansionismo marinho. O poder marinho é entendido por Mahan baseado em
três elementos:

Produção, com a necessidade de troca entre os produtos;


navegação, através da qual esta troca é realizada; e colônias,
as quais facilitam e alargam as operações de navegação e
tendem a protegê-las através da multiplicação de pontos de
apoio – encontra-se a chave para boa parte da história (bem
como da política) das nações marítimas (MAHAN, 1965, p. 28
apud COSTA, 2016, p. 71).

31
Fundamentos de Geopolítica

Para Mahan, a posição geográfica é o eixo central que propicia o poder marí-
timo (COSTA, 2016). É o caso de sucesso da Inglaterra pela sua configuração in-
sular de seus portos, tendo um forte império colonial, avançada marinha mercante
e o controle de Gibraltar na Península Ibérica. Este último, para a França, é uma
limitante para o acesso entre a costa marítima do Atlântico (norte) e do Mediterrâ-
neo (ao sul). Decorre dessa experiência a visão de que os Estados Unidos neces-
sitariam criar um canal no istmo do Panamá. Isso traria uma posição estratégica
dos Estados Unidos no continente americano. Este se torna poder estratégico à
medida que agrega ações para articular seu potencial econômico, territorial e ma-
rítimo. Essa articulação perpassa aliar a enorme presença de matérias-primas, a
dimensão e localização estratégica de seu território com o canal. Porém, Mahan
era contrário ao isolamento estadunidense e consequente da política externa da
“Doutrina Monroe”, pois compreendia que o país devia atuar como agente civili-
zatório diante das sociedades bárbaras (FONT; RUFÍ, 2006). Algo que Rafestin
considera como sendo um discurso de superioridade racial e o apregoamento do
direito ao colonialismo no final do século XIX e, portanto, a defesa de que os
povos mais organizados podiam intervir e expropriar povos tidos como bárbaros
(RAFESTIN, 1995 apud FONT; RUFÍ, 2006).

Assim, Mahan situa que é a extensão litorânea e as características de seus


portos que oferece a diferenciação ao Estados Unidos e não sua dimensão espa-
cial terrestre. Desse modo, preconizava que os Estados Unidos deviam sair da
condição de isolamento (FONT; RUFÍ, 2006). Mas esses aspectos precisam estar
articulados a uma dimensão e distribuição demográfica significativa e o conjunto
da sociedade esteja vinculado com as atividades marinhas. Em sua análise, en-
tende que os Estados Unidos no século XIX ainda não apresentavam tais condi-
ções, mas possuíam potencialidades (COSTA, 2016).

Outro caso significativo para elucidar o quão importante é essa articulação


pode ser verificado com as duas grandes potências da expansão marítima no
período colonial entre Portugal e Espanha. Esses países realizaram a expansão
marítima, mas não avançaram na articulação estrutural econômica da sociedade,
ficando apenas no processo extrativista e, logo, perdendo a sua riqueza para Ho-
landa, pela dependência comercial, e para a Alemanha, em razão da dependência
na aquisição de bens. Em síntese, o poder marinho resulta da articulação entre
suas potencialidades marítimas e as atividades internas e externas de um Estado
(COSTA, 2016).

Mahan examina o papel do “carácter do governo” na conformação do po-


der marítimo e compreende este como sendo a junção entre governo e as insti-
tuições do país. Situa dois tipos de políticas governamentais: as democráticas e
as despóticas. Para Mahan, as políticas marinhas para terem êxito devem partir
da seguinte premissa: “um governo só terá sucesso em sua política voltada para

32
Capítulo 1 AS BASES QUE FUNDAMENTAM O CAMPO DE ESTUDO DA GEOPOLÍTICA

a construção de um poder marítimo quando essa política estiver fundamentada


numa vontade nacional expressa democraticamente em tal direção” (COSTA,
2016, p. 74). E, por isso, considera que os governos despóticos não logram êxito
por ter sua política desvinculada do “caráter nacional” e da “vontade geral”.

Sua prospecção do que viria a ser o poderio estratégico naval estadunidense


expressa na ideia de que “A distância que os separa das demais grandes potên-
cias é de algum modo uma proteção, mas é também uma armadilha. O motivo
que dará aos Estados Unidos uma marinha está provavelmente agora sendo esti-
mulado pelo istmo da América Central. Esperemos que não demore muito (COS-
TA, 2016, p. 75).

Por isso, Morison e Commager afirmavam que Mahan era o “profeta do impe-
rialismo”. No entanto Mahan não conseguiu ver terminado o canal do Panamá e a
conquista da hegemonia dos Estados Unidos na ordem mundial e a consagração
enquanto potência marítima já evidenciada em 1916 (COSTA).

3.4 MACKINDER E A TEORIA DO


“PIVOT GEOGRÁFICO DA HISTÓRIA”
A Geografia Política firma-se como um campo de estudo da Geografia e re-
cebe novas contribuições, em especial de Halford John Mackinder, a partir de um
artigo publicado em 1904, em que apresenta a teoria do “pivot geográfico da His-
tória”. Mackinder dá atenção especial ao poder terrestre (MARTIN; CASTELLAR;
MARTINS, 2004). Mackinder (1861-1947) nasceu no Reino Unido, colaborador
do Royal Geographical Society, realizou estudos de geografia na Universidade de
Oxford e na London School of Economics. Este criou uma corrente de pensamen-
to tão proeminente para a geografia quanto Ratzel (FONT; RUFÍ, 2006). Além dis-
so, ele acompanhou a grande virada do século XIX para o século XX, participou
das duas grandes guerras, viu declinar o “imperialismo” e o surgimento da União
Soviética. Sua principal contribuição foi trazer à luz uma estratégia global nos es-
tudos geográficos.

Costa (2016) situa o pensamento de Mackinder como sendo pragmático, de-


finido por ele mesmo como sendo realismo, pela natureza em incluir no seu exa-
me político do equilíbrio de poder da conjuntura internacional os fatores empíricos
(tidos como concretos) oriundos de análises geográficas.

Ebraico (2005 apud SANTOS, 2017) trata a Geografia Política de Mackinder


como geoestratégia, situada como um subcampo da geopolítica, cuja base teó-
rica serve para elucidar o papel da geografia como instrumento para tomada de

33
Fundamentos de Geopolítica

decisões políticas pelos Estados. Mackinder considera débil análises das regiões
democráticas-liberais, pois não dão conta das lacunas no equilíbrio mundial e do
progresso de Estados-nações “despóticos” em seus fins de expansão territorial
(COSTA, 2016).

O ponto de partida de sua abordagem é a crítica à ênfase dada por Ratzel ao


poder marinho e a não observância de fenômenos de crescimento industrial dos
Estados Unidos, Alemanha, Japão e Rússia, bem como o desenvolvimento de um
poder bélico terrestre por parte dos Russos. Um aspecto importante de sua con-
tribuição à Geografia por meio de sua visão “aplicada” da ciência geográfica é a
crítica as projeções cartográficas “eurocêntricas”, que nada tinham a dizer sobre as
condições espaciais do continente europeu. Há, portanto, o superdimensionamento
do espaço do continente europeu. Desse modo, estabelece novas projeções carto-
gráficas relacionando-as com as grandes transformações mundiais que perpassam
pelo domínio terrestre de determinadas áreas. Elabora uma projeção “asiocêntrica”,
em que situa essa área como sendo maior que o território europeu, sendo este
último considerado uma pequena parte do que denominou de “ilha mundial” – os
continentes Europeu, Africano e Asiático (MARTIN; CASTELLAR; MARTINS, 2004).

Mackinder elabora então, em 1904, a teoria do poder terrestre, em que situa


a área apresentada na Figura 3 como sendo a “área pivô”. Mais adiante, através
de sua obra Democratic Ideals and Reality: A Study in the Politics of Reconstruc-
tion, refaz esse conceito e cria a noção “heartland” (MELLO, 1999, p. 45), eviden-
ciada na mesma figura.

FIGURA 3 – INDICAÇÃO DE ÁREA PIVÔ E HEARTLAND SEGUNDO


MACKINDER E AS ATUAIS REPÚBLICAS CENTRO-ASIÁTICAS

FONTE: <http://www.ca-c.org>. Acesso em: 16 ago. 2019.

34
Capítulo 1 AS BASES QUE FUNDAMENTAM O CAMPO DE ESTUDO DA GEOPOLÍTICA

Para Mackinder, essa região tinha uma função estratégica para expansão do
Estado que a dominasse, adquiria tanto domínio terrestre quanto marítimo. Desse
modo, a conjuntura geopolítica poderia ser elucidada pela interação entre o “he-
artland” (coração) e os cinturões que conformavam a sua volta, no entendimento
de que “Quem dominar o coração continental dominará a ilha mundial. Quem do-
minar a ilha mundial controlará o mundo” (MACKINDER,1919 apud MELLO,1999,
p. 56, tradução livre nossa). Assim, com base em um estudo histórico e geográfico
sobre as invasões bárbaras, Mackinder observa que nas grandes estepes da Ásia
Central situavam as bases das mudanças mais significativas do mundo em razão
da mobilidade da cavalaria nessa região, sobre a qual afirma conformar “o pivot
geográfico da História” (MARTIN; CASTELLAR; MARTINS, 2004).

FIGURA 4 – A TEORIA DO PIVOT GEOGRÁFICO DA HISTÓRIA, DE MACKINDER

FONTE: <https://bit.ly/3aNXoyD>. Acesso em: 16 ago. 2019.

Com o avanço da modernidade mudam-se os meios (cavalo por trem) pelos


quais se locomovem na região, mas de acordo com Mackinder (apud MARTIN;
CASTELLAR; MARTINS, 2004) essa área denominada de “heartland” (coração)
geográfico da Ásia Central (especificamente a Rússia) era considerada uma
potência terrestre de difícil acesso das potências marítimas. Em síntese, as
grandes potências (Estados Unidos e Reino Unido) consideravam que uma
possível atuação conjunta entre a Rússia e a Alemanha levaria à derrocada do
“livre-comércio” e do domínio inglês na dinâmica mundial. É em razão disso que,
após a derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial, a Geopolítica ganha
novos contornos na Alemanha (MARTIN; CASTELLAR; MARTINS, 2004).

35
Fundamentos de Geopolítica

No entanto, Lacoste (2012, p. 235) contrapõe-se ao pensamento da geografia


física (relevo e/ou clima) instituída por Mackinder e afirma que a geopolítica “resulta
da combinação de fatores bem mais numerosos, demográficos, econômicos,
culturais, políticos, cada qual deles devendo ser visto na sua configuração
espacial particular”.

Contudo, é inegável a capacidade de Mackinder de compreender os proces-


sos histórico-geográficos, em especial pela sua relação espaço-tempo e a leitura
geográfica da perspectiva da história universal (FONT; RUFÍ, 2006). Em razão dis-
so estabelece três fases histórico-geográficas: uma pré-colombiana, pelo domínio
das potências continentais asiáticas; a fase colombiana pelas potências marítimas
(Espanha, Portugal, Países Baixos e Reino Unido); e a fase pós-colombiana, de
conflito entre as potências continentais e marítimas, conteúdo presente em sua
teoria sobre o pivô geográfico da história (FONT; RUFÍ, 2006). Na realidade, surge
como uma reflexão técnica que chama atenção para os limites do poder marítimo
do império britânico para lidar com o “pivô geográfico” pelo avanço das comunica-
ções terrestres. Assim, define que a geografia do poder é fruto de seus espaços
(FONT; RUFÍ, 2006). Mas que, em 1904, o pivô estaria sob domínio das potências
marítimas. Todavia, que a Rússia em razão de seu território e condições naturais
tinha amplas condições de organizar a ilha mundial (COSTA, 2006).

Enquanto proposta política, sugere que o Reino Unido aplique políticas


internas novas e estabeleça novas cooperações internacionais. Esta última
resultou em coalização com as potências marítimas, a exemplo dos Estados
Unidos, Canadá, África do Sul, Austrália e Japão (FONT; RUFÍ, 2006). Sua
antevisão sobre os acontecimentos históricos-geográficos chama atenção, pois a
mudança de denominação da área pivô para heartland é acompanhada de uma
ascensão do domínio da Europa oriental dessa área. Sua clarividência para os
acontecimentos das duas grandes guerras é revelada por Gallois (1990, 253-254
apud FONT; RUFÍ, 2006, p. 71-72).

O centro de seu pensamento talvez seja a revelação de que as


fronteiras do “bloco soviético” foram praticamente as mesmas
que as Heartland.
Tanto um longo período histórico, como os acontecimentos que
é testemunha direta traçam uma linha de divisão entre o Leste
e o Oeste da Europa. Traçando uma reta a partir do Adriático
– deixando Veneza a Oeste – Até o Mar do Norte, a leste dos
Países Baixos, Mackinder separa a Europa em dois blocos irre-
dutíveis. [...] Aí está a divisão entre o Heartland e o Coastland,
entre os do mar e os da terra. [...] Quem domina a Europa do
leste domina o Heartland; quem domina o Herartland domina a
maior ilha do mundo; e quem a domina controla o mundo.
É no continente, a partir da cabeça do poente do istmo euro-
peu, onde as “potências do mar” devem organizar a defesa
[...] contra o impulso das “potências da terra”. A Alemanha do

36
Capítulo 1 AS BASES QUE FUNDAMENTAM O CAMPO DE ESTUDO DA GEOPOLÍTICA

amanhã somente poderá participar dela se não desembocar


em uma organização estática sem piedade [...] Entre o Báltico
e o mar Negro vivem sete povos não germânicos. Aí devem-se
construir Estados sustentados pelas Potências Vitoriosas, pela
Sociedade das Nações, de modo que garantam a separação
entre germânicos e eslavos.
É necessário criar novos Estados, e o geógrafo os desenha em
um mapa: a Estônia, a Lituânia, a Grã-Boêmia, a Grã-Servia,
que com a Polônia, a Hungria, a Grã-Romênia e a Bulgária se-
param fisicamente as potências do litoral daquela que domina
o continente.

Assim, segundo Font e Rufí (2006), o seu grande feito foi antevê por meio da
geografia a ordem mundial (Guerra Fria) no pós-guerra, o papel que a democracia
teria no Ocidente, a divisão da Europa, bem como a Aliança Atlântica. Porém,
suas análises não foram tão assertivas sobre o papel do Reino Unido nesse
cenário todo.

3.5 HAUSHOFER: APORTES


PARA A GEOPOLITIK ALEMÃ E
REPRESENTAÇÃO DA ORDEM
MUNDIAL EM PAN-REGIÕES
Outra contribuição à Geopolítica foi elaborada pelo General Karl Ernest Niko-
las Haushofer 1869-1946), em meio às análises sobre a Primeira Guerra Mundial.
Oriundo da região da Bavária, na Alemanha, atuou no Japão enquanto atividade
oficial nos anos de 1908 a 1910 e em seu retorno doutora-se em Geografia, Ge-
ologia e História na Universidade de Munique, na qual em 1919 passa a ocupar
a cátedra de Geografia. Seus feitos são baseados nas ideias Mackinder de uma
ciência voltada para uso do conhecimento geográfico na ação política, em razão
disso influenciou para que a Geopolitik fosse aplicada no imperialismo nipônico
(FONT; RUFÍ, 2006). Disso resulta a sua obra O desenvolvimento geopolítico do
império japonês (1921).

Inspirado pela experiência no Japão, percebera o papel da fronteira para atu-


ação do Estado (MARTIN; CASTELLAR; MARTINS, 2004). Observa o declínio
das colônias inglesa e francesa, em meio à ascensão de novas potências indus-
triais, tais como: Estados Unidos, Alemanha, Rússia e Japão, isso fez com que
elaborasse a teoria das “pan-regiões”, publicada na obra Geopolítica das pan-
-regiões (1931). Nela, o espaço ganha centralidade como categoria de ação e
análise. Logo, institucionaliza a geopolítica como uma ferramenta científica para o

37
Fundamentos de Geopolítica

exercício do poder estatal, e sua visão organicista que situa a relação entre terri-
tório e raça, bem como o domínio global pelas quatro grandes potências (Estados
Unidos, Rússia, Japão e Grã-Alemanha) para tanto atender às demandas internas
regionais quanto externamente determinar a ordem mundial (FONT; RUFÍ, 2006).

Desse modo, cria uma regionalização do espaço mundial em pan-regiões:


Panamércia, de incumbência dos Estados Unidos; Euráfrica, controlada pela Grã-
-Alemanha; Panrúsia, atribuída à Rússia; e Zona de Coprosperidade asiática,
também conhecida como Leste-Asiática, de domínio do Japão. O modelo traçado
prevê em cada uma dessas pan-regiões uma estrutura pensada como uma região
autônoma, na qual existe um centro industrial dinâmico de estímulo às áreas com
menor desenvolvimento; área com pouco povoamento a ser utilizada nos proces-
sos de expansão e como fonte de matérias-primas; e área dotada de mão de
obra barata para facilitar a industrialização no centro e servir de base para o po-
voamento das áreas com baixa densidade demográfica (MARTIN; CASTELLAR;
MARTINS, 2004).

FIGURA 5 – PAN-REGIÕES

FONTE: Tosta (1984 apud MARTIN; CASTELLAR; MARTINS, 2004, p. 26)

Haushofer cria o Instituto de Geopolítica e a Revista de Geopolítica, ambos


centrados na ideia de fazer valer um “lebensrau” (um espaço vital) ou de afirmar

38
Capítulo 1 AS BASES QUE FUNDAMENTAM O CAMPO DE ESTUDO DA GEOPOLÍTICA

um “raumsinn” (sentido de espaço), em que o povo alemão teria uma condição


diferenciada diante dos demais países de dinamizar seu espaço habitado. Essas
ideias, bastante exploradas em cartografias, serviram de base para uma atuação
expansionista imperialista que se viu aplicada nas ações do III Reich, Hitler e
coadunavam com a rejeição que Haushofer tinha ao Tratado de Versalhes (1919).
Disso, decorre uma crítica profunda à teoria geopolítica alemã.

3.6 SPYKMAN: A GEOPOLÍTICA


ESTADUNIDENSE E A TEORIA DO
“RIMLAND”
Nicolas John Spykman (1893-1943) nasceu na Holanda, mas se destacou pela
sua contribuição à Geopolítica e à Geoestratégia estadunidense. Spykman era jor-
nalista, mas atuava mesmo como professor de Relações Internacionais na Univer-
sidade de Yale. O seu principal aporte é a teoria do Rimland. Contrário à geopolítica
alemã em seu aspecto metafísico, é duro também quanto às políticas de sacraliza-
ção da fronteira e da operacionalização da violência (FONT; RUFÍ, 2006).

Nesse sentido, sua atuação é voltada para formulação de uma política exter-
na dos Estados Unidos. Essa política tem por finalidade duas vias, fazer uma opo-
sição objetiva ao nazismo, mas sobretudo reagir e conter o avanço do comunismo
no pós-Segunda Guerra Mundial (1945). Não há contradição entre o pensamento
de Mackinder e Spykman. Contudo, o objeto de atenção de Spykman são as po-
líticas intervencionistas, em especial aquelas dedicadas ao continente europeu
(FONT; RUFÍ, 2006).

Parte do Yale Institute of International Studies desde os anos de 1935,


Spykman tem como premissa para as relações internacionais o pensamento
hobbesiano, no qual concebe que o conflito ocorre permanentemente, seja ele
como algo que está ativo ou velado. Essas são as bases que fundamentam a
atuação dos Estados Unidos durante o período pós-Segunda Guerra Mundial, de-
nominado Guerra Fria (FONT; RUFÍ, 2006).

Mello (2015) situa que o período entreguerras havia um foco central na dis-
cussão da política adotada pelo Estados Unidos em âmbito internacional. Disso
surgiram dois pontos que se consolidaram nos grandes debates que ocorriam so-
bre o tema. A questão da preservação da paz, de um lado, que devia se articular
e coadunar com a política externa americana, decorre o surgimento de dois pen-
samentos: um isolacionista e outro intervencionista. O pensamento isolacionis-
ta propunha uma atuação estadunidense isolada do contexto internacional, sem

39
Fundamentos de Geopolítica

vínculos com as questões de outros continentes. E o pensamento intervencionista


considera que é imprescindível que haja uma atuação objetiva nos Estados Uni-
dos quando o cenário internacional apresentasse uma ameaça ao poder do país.

Na obra Geography of The Peace (1944), Spykman concebe que a paz é


resultado de uma tensão política que promova um contexto internacional de “equi-
líbrio” e “inabalável”, pois concebia que o sistema internacional se mostra caótico
e com grande potencial bélico (MELLO, 2015).

Para que o equilíbrio viesse a ocorrer era necessária uma estabilidade espa-
cial no chamado de Rimland, a periferia da Herartland, retratada por Mackinder
pelo termo inner crerscent (FONT; RUFÍ, 2006). O Rimland é uma zona que se
situa entre as potências marítima e terrestre, delimitada pela Europa Ocidental, o
Médio Oriente, a Turquia, o Irã, a Índia, o Paquistão, a China, a Coreia, o Japão, o
Sudoeste Asiático e a costa do pacífico da Rússia, considerada uma área geoes-
tratégica para manutenção da hegemonia estadunidense na ordem mundial. Por
isso, recebe uma atenção especial nas alianças políticas militares entre os Esta-
dos Unidos com outros países.

É nesse espaço que as relações de poder mundial eram determinadas, em


razão disso é a ideia de Spykman de quem “dominar o Rimland significa controlar
o mundo”. Este concebia que uma ação integrada pelos Estados europeus de-
veria ser evitada, para conter a centralização de poder no Velho Mundo (FONT;
RUFÍ, 2006).

Numa perspectiva similar à de Spykman, Stratauz-Hupé, em sua obra The


Balance of Tomorrow (1945), elabora a ideia de “balanço de poder”, na qual con-
cebe que atuação política em âmbito internacional deva ser constante em razão
de um contexto de equilíbrio precário. Isso vai ser pensado de modo prático, no
entendimento que a geopolítica deva ter um fim, de atuar como um mecanismo
que influi no processo das relações de poder. Isso posto, a geopolítica ganha cor-
po como parte de uma estratégia do Estado estadunidense através do aparato
militar e da ação política de gestão da Guerra Fria.

O pensamento geopolítico estadunidense teve outras contribuições, a desta-


car o aporte de Coheh, no qual vai além das abordagens tradicionais e compreen-
de a conformação de dois contextos no cenário internacional. Um medicado pela
relação entre as duas grandes potências da Guerra Fria (Estados Unidos e União
Soviética) que atuam de modo geoestratégico em âmbito mundial. E uma outra
dinâmica regional com caráter geopolítico, que vislumbra também as áreas de ins-
tabilidade em razão de sua organização política em blocos (FONT; RUFÍ, 2006).

40
Capítulo 1 AS BASES QUE FUNDAMENTAM O CAMPO DE ESTUDO DA GEOPOLÍTICA

4 AS CATEGORIAS DE ANÁLISE DA
GEOPOLÍTICA
Antes de descrever e definir quais são as principais categorias de análise da
geopolítica é preciso esclarecer o que são categorias de análise. Para que possamos
realizar um exame dos problemas ou fenômenos que envolvem a geopolítica é preci-
so ir além da interpretação científica destes e sua lógica particular, a fim de entender
as determinações históricas em que estes estão envolvidos. Assim, para definir quais
instrumentos e técnicas utilizar em estudos geopolíticos é salutar ter algum emba-
samento. Isso significa alcançar a teoria do conhecimento; o domínio da lógica; da
compreensão da dialética e sua metodologia de análise; das leis e categorias que aju-
dam a problematizar; aprender a fazer o recorte do tema e delimitar problemas; saber
elaborar as questões científicas e definir qual o caminho lógico para se alcançar os
resultados esperados e obter as respostas ao problema de pesquisa.

Isso posto, objetiva-se explicar de modo breve o que são as categorias e


como utilizá-las de modo assertivo, a fim de tentar apreender o cerne da realidade
através da pesquisa e produção de conhecimento científico. O não entendimento
das categorias e/ou a ausência de emprego destas implica o desempenho do co-
nhecimento científico sobre a geopolítica.

Marx (1983, p. 218-229) entende o movimento das categorias como o resul-


tado da ação de produção do real. Elas exprimem as relações entre os homens e
sua relação com a natureza, estas são geradas por meio do avanço do conheci-
mento e da ação social. As categorias compreendem os conceitos mais relevan-
tes em uma teoria (MINAYO, 2004). As categorias podem ser divididas, de acordo
com Minayo (2004), em analíticas e empíricas. As categorias analíticas conser-
vam as relações sociais relevantes para a pesquisa e delimitam as fronteiras para
o entendimento do objeto de pesquisa em seu escopo mais amplo. As categorias
empíricas são elaboradas como meio para instrumentalizar a pesquisa de campo
ou mesmo constituída através da atividade empírica, de tal modo que elas têm a
qualidade de serem capazes de captar os preceitos e as particularidades que se
manifestam nas ocorrências empíricas. Assim, esses conhecimentos ajudam de
um lado a compreender histórica e geograficamente as concepções teórico-me-
todológicas sobre a Geopolítica, os fundamentos que imperam na realização, as
leis e categorias utilizadas; do outro lado, favorece a geração do avanço científico,
articulado de modo coeso e ajustada à abordagem empregada, a Geopolítica em
suas dimensões teórica e aplicada.

Há um ponto em questão que precisa ser avançado tanto no âmbito da geo-


grafia política quanto na geopolítica, que é o aprofundamento sobre a base con-
ceitual de suas categorias de análise, tais como a noção de Estado, território,

41
Fundamentos de Geopolítica

espaço, fronteira, entre outros termos. O ponto central é que existem diversos
enfoques sobre os quais esses termos podem ser concebidos, e desconsiderar
isso é ocultar as contradições internas e o movimento histórico, o que exclui as
dimensões sociais, política e da natureza humana da análise, reificando conceitos
cuja natureza não é de uma lei geral e puramente abstrata.

No entanto, cabe salientar que a finalidade de discussão deste subtópico não


é construir conceitos ou validar uma ou outra acepção, mas trazer à luz como
essas categorias de análises são edificadas histórica e geograficamente. Isso
significa tentar compreender os limites de alcance de suas abordagens para dar
conta de problemas atuais, bem como as mudanças por que passaram distintas
sociedades desde a instituição dos Estados Modernos. Transformações estas que
apresentam outros atores para além do Estado, a exemplo das corporações mul-
tinacionais, blocos regionais e organismos supranacionais, cuja emergência se dá
por conta das alterações na dinâmica econômica capitalista mundial que alcança
um novo estágio. Essas mudanças em grande medida são resultantes dos avan-
ços tecnológicos, sobretudo nas áreas de comunicação e transporte que intensi-
ficou o comércio internacional e as relações das distintas sociedades na escala
global com efeitos na ordem mundial.

Porém, no âmbito da geopolítica, falta uma abordagem que trate os conflitos


de modo a revelar as contradições e a luta de classes, os sujeitos e atores envol-
vidos. Segundo Costa (2016), isso ocorre porque o tratamento isolado de cada
categoria geraria uma quebra da estrutura que dá coesão, por isso a associação
e aplicação indistinta das noções de Estado, nação e território. Mas, na realidade,
essa visão não ajuda, pois é preciso saber compreender cada um desses con-
ceitos e qual é a forma política do Estado. Para Mascaro (2013), mediante suas
formas jurídica e mercantil, o Estado se configura como a representação da reali-
dade estritamente típica do capitalismo. Por isso, mesmo diante do atual contexto
de estrutura internacional com múltiplos atores, o Estado é considerado uma cate-
goria analítica importante para a Geopolítica.

4.1 A CATEGORIA ESTADO


A primeira e grande categoria a ser pensada na geopolítica é a noção de
Estado. A etimologia do termo Estado advém do latim status, que significa:
modo de estar, situação, condição. O termo Estado moderno surge no século
XII (FONT; RUFÍ, 2006). O Estado está relacionado com a ideia de soberania de
um país, que tenha uma estrutura própria e possua uma organização política, ou
mesmo, a totalidade das instituições que comandam e administram uma nação
(HOUAISS, 2001).

42
Capítulo 1 AS BASES QUE FUNDAMENTAM O CAMPO DE ESTUDO DA GEOPOLÍTICA

O Estado Moderno é fruto do desenvolvimento do capitalismo mercantil


(MASCARO, 2013). Tem como referência a França, Inglaterra, Espanha e Portu-
gal, e posteriormente, a Itália. Suas raízes estão na passagem da sociedade feu-
dal para uma sociedade absolutista. É nessa nova fase que a classe mercantilista
se estabelece, essa classe busca suprir as barreiras comerciais e a classe aris-
tocrata, visando dirimir a fragmentação política e territorial herdada da estrutura
de funcionamento do sistema medieval. Nesse aspecto, tem também por objetivo
diminuir o poder que a igreja, através do papa, exercia sobre a sociedade feudal.
Logo, é pela aliança dessas duas classes (econômica e política) que o Estado
moderno é instituído (FONT; RUFÍ, 2006).

O Estado, no modo como este se conforma hodiernamente, não é uma estru-


tura política presente em sociedades pregressas ao capitalismo. Nesse sentido,
não considera as forças políticas e econômicas anteriores associadas ao termo.
Sua constituição é moderna e, por assim dizer, capitalista (MASCARO, 2013). O
ponto central dessa distinção é que nas sociedades anteriores não havia separa-
ção estrutural entre quem domina a dimensão política e econômica da sociedade,
pois eram constituintes das mesmas classes, grupos e indivíduos, que podem ser
reconhecidos como os senhores de escravos ou senhores feudais. Assim se tinha
um único ente que impera o político e o econômico. No capitalismo há uma segre-
gação, de um lado quem detém o domínio econômico e do outro quem possui o
domínio político. Nesse sentido, o burguês não é imperiosamente equivalente ao
próprio Estado. Nessa concepção, o Estado tem um papel central para a reprodu-
ção capitalista (MASCARO, 2013).

Para manter essa nova estrutura de sociedade e garantir tanto suas conquis-
tas quanto sua integridade territorial foi preciso criar um exército com contingente
substancial e de grande estrutura. Assim, para além do poder econômico, ideoló-
gico e político, tem-se a configuração de poder militar (bélico). Há, a partir dessa
configuração, uma série de definições que visam apreender a natureza do Esta-
do enquanto instituição. Temos aqueles que consideram que o Estado deva ser
absolutista, baseado na força e na imposição das relações sociais, é o caso de
Hobbes, na obra Leviatã (1651), e aqueles que propõem através de um contrato
social que a natureza do Estado seja o resultado do somatório das boas vontades
do cidadão, devendo garantir a liberdade política e civil dos cidadãos (ROUSSE-
AU, 1972 apud FIORT; RUFÍ, 2006). Segundo Mascaro (2013), a ótica do contrato
social embasada pela legitimidade racional do poder acaba conservando a estru-
tura de classes vigente. Assim, para um estudo marxista do Estado, essa visão
está imersa em uma relação de poder em que os que detêm o controle econômico
e político determinam as regras sociais que incidem sobre mais fracos. Logo, o
Estado não pode ser visto como um elemento neutro.

43
Fundamentos de Geopolítica

Em síntese, ocorre a formação de Estados absolutistas e as monarquias ins-


titucionais, nos quais apresentam como traço comum a centralização do poder, o
rompimento com as estruturas feudais e a salvaguarda dos ganhos econômicos
do Estado. Estes são a base de mudança paradigmática do sistema mercanti-
lista-capitalista. Logo, o Estado atuou como a mola propulsora de expansão do
mercantilismo e do sistema capitalista no século XVI, através da garantia e de
incentivo aos mercados (FONT; RUFÍ, 2006).

Um novo quadro paradigmático para a noção de Estados modernos surge


com a Revolução Francesa (1789), pois afasta-se da concepção de monarquia
absolutista, estimula o processo de independência das colônias e sua soberania
é relacionada a uma nova forma de contrato entre os cidadãos (sociedade) e as
entidades. O Estado é chancelado como uma instituição política. Desse modo, o
Estado emerge como um importante mecanismo da modernidade. Isso se torna
mais evidente com a expansão do papel do Estado para o avanço do imperialismo
no século XIX.

4.2 AS DISTINTAS CONCEPÇÕES DE


ESTADO E SUA RELAÇÃO COM AS
SUBCATEGORIAS PODER, NAÇÃO E
TERRITÓRIO
A partir dessa ruptura, desponta uma série de concepções atribuídas à noção
de Estado, delimitadas em quatro definições centrais. A primeira é o Estado-admi-
nistrativo, entendido por Lacoste (1997 apud FONT; RUFÍ, 2006) como expressão
com sentido semelhante à ideia de Pátria ou território, no qual funciona como
aparelho ideológico de repressão. Decorre daí a ideia de que a interação entre os
processos históricos e territoriais fez surgir diversos modelos de Estados: autori-
tários, centralizados, democráticos, descentralizados, regionais ou autonomistas,
federativos, confederativos (SÁNCHEZ, 1992 apud FONT; RUFÍ, 2006).

A segunda é a noção de Estado-nação, esta envolve alguns cenários, um que


concebe o conceito de nação refere-se a uma comunidade estabelecida em razão
do compartilhamento de aspectos histórico e culturais. De outro modo, existem Es-
tados que contêm inúmeras nações em seu interior e ao mesmo tempo existem
nações que não se configuram em Estado. E ainda, nações que estão presentes
em distintos Estados. Além disso, o aspecto geopolítico do termo Estado-nação visa
tanto fortalecer quanto extinguir nações para instituir um ente estatal nacionalmente
mais uniforme e juntar as economias (SÁNCHEZ, 1992 apud FONT; RUFÍ, 2006).

44
Capítulo 1 AS BASES QUE FUNDAMENTAM O CAMPO DE ESTUDO DA GEOPOLÍTICA

Existe ainda o conceito de Estado-poder, que tem relação com a capacidade


institucional do Estado em realizar coerção em sua acepção mais ampla. Sua atu-
ação é feita com base em modelos e atende a determinados interesses. Na con-
figuração atual, o Estado não se configura em um único poder, portanto existem
muitas relações que devem ser analisadas por meio dessa categoria.

Há um termo que gera muita controvérsia, que é a noção de Estado-território,


pois existem autores que consideram que todo Estado engloba um território, no qual
é soberano. E que o Estado em sua totalidade é um território. Entendido dessa
maneira, ele se configura pela delimitação de sua fronteira, na qual está inserida
a população que se manifesta na cidadania que é regulada pela soberania estatal.

A atuação expansionista e o caráter imperialista caracterizam a dinâmica in-


ternacional desses países. Sua constituição foi feita à base da força e detém para
si a soberania do Estado, não aceitando interferências externas. Nessa acepção,
a noção de território é compreendida como o espaço geográfico que circunscreve
a ação do Estado, por vezes confundido com o próprio Estado. Comumente, os
autores clássicos da geopolítica tratam o termo nação e Estado como correlatos. O
Estado emerge como categoria principal por ter sido desde sua constituição o prin-
cipal agente político e de estrutura das sociedades (FONT; RUFÍ, 2006). Em geral, a
associação entre Estado e território se dá porque os territórios foram integralmente
estatizados. É por isso que encontramos as noções de Estados-maiores, Estado
orgânico como categorias de análise para explicar os fenômenos geopolíticos.

Contudo, é preciso pensar que o Estado envolve três elementos:


população, governo e território, estes são elementos que quando
analisados pela categoria Estado-território devem ser vistos como
uma relação de interdependência. Desse modo, é possível existir
Estado sem território, ou seja, sem uma espacialidade? E território
sem Estado?

Os exemplos anteriormente citados expõem a existência da categoria Estado,


mas há presença de subcategorias de análise, tais como território, nação, poder,
administração. O modelo de Estado a ser analisado altera o modo como as diver-
sas dimensões sociais são examinadas. Acrescenta-se a isso as ideias de “Estado
contentor” de Hartshone, se referindo ao poder político, que atinge uma dada socie-
dade econômica como uma unicidade que atua no interior do sistema internacional.

45
Fundamentos de Geopolítica

4.3 AS FUNÇÕES DO ESTADO


Há controvérsias se o Estado seria um bem para sociedade ou um mal (não)
necessário. A primeira ideia está vinculada com a “natureza” social contra a bar-
bárie (Hobbes) ou como resultado do avanço das relações sociais (Rousseau).
A segunda ideia assenta-se de um lado em um viés liberalista em que o Estado
busca atender às relações de mercado, que pode ser em sua condição extrema
de um Estado mínimo, que regula e assegura alguns direitos, mas seu principal
foco é defender a propriedade privada e uma economia de livre mercado. Em
uma concepção mais branda, o Estado vai além de suas condições mínimas, para
realizar o ordenamento social e a intervenção quando há interesses contrários. E
para além de tais concepções, há a ideia de que o Estado atuaria como um mal
não necessário. Essa visão é atribuída à vertente marxista da Geopolítica, em
que o Estado é tido como um aparelho ideológico com vistas a oprimir os mais
fracos (dominados) e fazer valer o poder de determinados interesses de grupos
dominantes. Quem desenvolve um estudo nessa linha é Lefebvre (1991), o qual
discute a produção capitalista do espaço em que se aborda o Estado capitalista,
entendido como um mecanismo de classe.

Para Mascaro (2013), o marxismo estabelece uma nova forma de compreen-


são das categorias políticas e dos fenômenos sociais, representados pelo Estado,
por conceber em seu escopo de análise o concreto e o abstrato, bem como si-
tuar o político e o estatal vinculado ao processo de reprodução social capitalista.
A forma política é vista como decorrente da forma-mercadoria desencadeada no
capitalismo. Assim, há uma correlação entre a forma política e a forma econômica
capitalista interposta pela luta de classes. Logo, do ponto de vista teórico e analítico
busca-se não separar o Estado e a política do todo, pois é importante alcançar as
causas exteriores e não apenas dos aspectos internos, devendo observar as raízes
históricas, estruturas e antagonismos (MASCARO, 2013).

São inúmeras as funções que o Estado pode assumir, dentre elas a sobe-
rania, que garante a ordem, a governabilidade, a integridade e uma atuação na
política exterior. No âmbito da política de Estado, ela se resume em relações exte-
riores e segurança, voltadas em geral aos interesses nacionais. Uma outra função
é servir de objeto de poder que pode ser tanto econômico, ideológico e político
(BOBIO, 1984 apud FONT; RUFÍ, 2006).

Existem seis perspectivas de função do Estado como protetor, arbitragem,


força de coesão, facilitador, investidor e burocracia (JHONSTON, 1982 apud
FONT; RUFÍ, 2006). O Estado enquanto protetor é o guardião da ordem, defesa
e segurança dos cidadãos. Essa visão é muito aplicada para manter as relações
de poder e o aparato militar. A arbitragem se relaciona ao aparelho legislativo, que

46
Capítulo 1 AS BASES QUE FUNDAMENTAM O CAMPO DE ESTUDO DA GEOPOLÍTICA

tem o encargo de solucionar conflitos entre os cidadãos e interesses. A coesão


se refere ao arranjo social e territorial uno. O Estado como facilitador atua para
regular a economia, as relações com o mercado de trabalho e a produtividade
econômica. Enquanto investidor, seu papel é impulsionar a economia através de
subsídio e financiamento das áreas de produção de conhecimento: pesquisa e
educação. A função burocrática serve como eixo que mantém as demais ativida-
des em andamento.

4.4 ESTADO E SOBERANIA EM


TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO
ECONÔMICA
O atual sistema econômico capitalista mundializado permite que haja por
parte dos Estado uma menor intermediação em comparação com os sistemas
precedentes. Nele, a multiplicidade de escalas em que opera cede espaço da es-
cala nacional para as escalas local, regional e supranacional (global), refletindo a
outorga em parte de sua soberania econômica, política e cultural (FONT; RUFÍ,
2006). Logo, o Estado moderno deu impulso aos processos de homogeneizantes
da globalização, promovendo em grande medida a sua dissolução e a fragmenta-
ção das identidades nacionais. A discussão que paira sobre esse aspecto remete
às categorias poder e soberania, relacionadas à política, economia e ideologia de
dada sociedade que no atual contexto do sistema mundial encontra-se fragmen-
tado em vários agentes e não somente restrito ao Estado. Daí a importância de
esmiuçar bem a categoria Estado, pois ela pode não mais ser o elemento central
de análise e necessitar o estudo de outros agentes que interferem a ordem mun-
dial, mas sem perder de vista que a soberania e o território ainda são o alicerce do
sistema mundial.

A esse aspecto cabe situar em certa medida a conjuntura da desnaciona-


lização do território e descentralização da soberania e em decorrência disso o
surgimento de outras instituições (SASSEN 1996 apud FONT; RUFÍ, 2006). As-
sim, compreende-se que as categorias soberania e território são os pilares para
compreender as mudanças que atravessam a categoria Estado. Isso abre prece-
dente para compreender a globalização, enquanto sistema mundial que convive
de modo contraditório com a fragmentação estatal e revela a vulnerabilidade que
atinge a soberania estatal, bem como a crise do Estado.

Contrário a essa ideia de perda de poder do Estado no atual contexto do sis-


tema capitalista, Mascaro (2013, p. 18) aclara que:

47
Fundamentos de Geopolítica

No capitalismo, a apreensão do produto da força de trabalho


e dos bens não é mais feita a partir de uma posse bruta ou
da violência física. Há uma intermediação universal das
mercadorias, garantida não por cada burguês, mas por
uma instância apartada de todos eles. O Estado, assim, se
revela como um aparato necessário à reprodução capitalista,
assegurando a troca das mercadorias e a própria exploração da
força de trabalho sob forma assalariada. As instituições jurídicas
que se consolidam por meio do aparato estatal – o sujeito de
direito e a garantia do contrato e da autonomia da vontade, por
exemplo – possibilitam a existência de mecanismos apartados
dos próprios exploradores e explorados.

Podemos dizer que há algo de novo com a globalização? Não,


pois esta nada mais é que uma etapa ampliada do processo de ex-
pansão do sistema capitalista e o aumento da concentração da eco-
nomia financeira nas mãos de poucos países. Representa, ainda,
uma compressão das relações espaço-tempo, tão bem explicitada
por Harvey (1996), por diminuir as distâncias e intensificar as ativida-
des econômicas de comércio, financeira e cultural. O que se entende
é que a globalização produz uma mudança qualitativa no avanço do
capitalismo. Isso atinge a soberania estatal, que precisa se ajustar
para inserir-se no novo sistema mundial, cabendo ao Estado uma
função central no ordenamento da economia mundial, sobretudo na
questão das finanças e na política monetária. Tenta-se formar nesse
cenário um sistema mundial unificado, com arranjo econômico e polí-
tico fragmentados. Por isso, há a imbricação entre soberania e inter-
dependência que atuam com certa estabilidade (FONT; RUFÍ, 2006).

Numa perspectiva relacional, Mascaro (2013) explica que o estudo da


categoria Estado não deve ser neutro, pois ele manifesta relações sociais
específicas por meio das formas sociais. Sua conformação institucional no tempo
e no espaço não é suficiente para explicá-lo, mas deve ser compreendido pela
relação que estabelece com as estruturas de incremento do capital.

[...] não é partindo das características do aparato estatal em


si mesmo que se descobrirá a sua eventual utilização ou não
pela burguesia. Pelo contrário, é pela estrutura da reprodução
do capital que se entende o locus desse aparato político
específico e relativamente alheado das classes que se chama
hodiernamente Estado (MASCARO, 2013, p. 19).

48
Capítulo 1 AS BASES QUE FUNDAMENTAM O CAMPO DE ESTUDO DA GEOPOLÍTICA

Em sua acepção, segundo Mascaro (2013, p. 13), o Estado não deve ser
visto como o eixo central que gera o modo de produção capitalista, pois “o Estado
nesse contexto corrobora por alimentar a dinâmica de valorização do valor, como
também, a seu modo, as interações sociais dos capitalistas e dos trabalhadores,
tudo isso num processo contraditório”. Assim, mesmo o Estado agindo para me-
lhoria das condições sociais, atua favorecendo a lógica do valor. Mas, não é o
agente representante do Estado em seu exercício político que será suficiente para
garantir a atividade capitalista. O que mantém é um processo global e estruturado
que sustenta sua reprodução. Porém, há um fator que é capaz de elucidar as con-
dições particulares da política e da economia no interior do capitalismo, a luta de
classes. Outros elementos são importantes para compreensão da forma política
estatal, as formas sociais do capitalismo propagadas.

A relação entre Estado e crises do capitalismo se mantém, com o Estado ten-


do um papel central nesse contexto (MASCARO, 2013). Haja vista que ele se con-
figura como forma essencial para a reprodução social, ainda que haja a presença
de múltiplos agentes sociais na configuração da ordem mundial.

4.5 A DIMENSÃO ESPACIAL DA


GEOPOLÍTICA: AS RELAÇÕES DE
PODER E A ORDEM MUNDIAL
Com o avanço dos processos de desenvolvimento do capitalismo em nível
mundial, a dimensão espacial do poder e dos recursos geopolíticos ganham uma
nova centralidade na discussão Geopolítica. Isso decorre, de acordo com Masca-
ro (2013), pela segregação da dimensão política e econômica com o desenvolvi-
mento do sistema capitalista.

Emerge daí a formação de blocos econômicos, a constituição de organismos


supranacionais de controle do comércio, da economia, do sistema monetário dos
países e do poderio militar em nível mundial. Situam-se nesse contexto o surgi-
mento do Fundo Monetário Internacional (FMI), os Acordos Gerais sobre Impostos
e Comércio (GATT), a União Europeia (U.E.), Mercado Comum do Sul (MERCO-
SUL), Organização do Tratado do Atlântico Norte, entre outros. Em função disso,
os temas de integração regional passam a ter relevância no debate no comércio
internacional e das relações exteriores. Ganham evidência também a atuação im-
perialista a partir das grandes empresas multinacionais ou transnacionais por uma
guerra pela manutenção da dependência tecnológica e econômica dos países
subdesenvolvidos dos países desenvolvidos. Estes últimos ainda mantêm (atra-
vés dos Estados e de corporações) a presença dos antigos impérios e potências

49
Fundamentos de Geopolítica

colonizadoras mundiais, perpetuando, portanto, sua participação na divisão do


poder sobre o controle da ordem mundial, mas apresenta novos atores regionais
que necessitam ser analisados. Contrariamente a esse movimento de globaliza-
ção das economias nacionais e das fragmentações internas surgem movimentos
de renacionalização dos Estados.

Há que se ter em conta que o sistema mundial atual coloca em questão o


papel do Estado, que tem por base de suas transformações “o processo duplo
de globalização e relocalização dos fenômenos políticos, econômicos e culturais”,
tema que visa situar as mudanças na dinâmica da ordem mundial (FONT; RUFÍ,
2006, p. 95).

Costa (2016) situa que existem processos sociais concretos que se desen-
rolam de modo histórico no âmbito das relações entre sociedades. Cabendo, por-
tanto, ao se analisar a Geografia Política questionar “se e como as suas teorias
têm sido ou serão capazes de apreender os fatos da relação espaço/poder como
processos sociais” (COSTA, 2016, p. 26). Nessa perspectiva, entende que “toda
sociedade, em qualquer tempo e lugar, define formas particulares de relações
com o seu espaço de vivência e produção; em outras palavras, valoriza-o a seu
modo” (COSTA, 2016, p. 26).

A compreensão da relação entre espaço e poder deve ser entendida a partir


da ideia de que “toda sociedade que delimita um espaço de vivência e produção,
delimita ao mesmo tempo um espaço político, uma dada projeção territorializada
das suas relações econômicas, sociais, culturais e políticas” (COSTA, 2016, p.
29). Assim, “a relação espaço/poder é a relação social por excelência” (COSTA,
2016, p. 29).

Cabe pontuar que os estudos espaciais no âmbito da Geopolítica também


perfazem análise da produção capitalista do espaço, no qual o capitalismo produz
um determinado padrão de produção espacial, atuando seletivamente. Para o de-
senvolvimento de seus estudos do desenvolvimento geográfico desigual, Harvey
(2004; 2005) recorre a Marx, por meio de sua teoria geral que aborda a questão
da acumulação de capital numa escala expansível e intensificada. Desse modo,
Harvey (2005) enfatiza que a teoria do imperialismo que surgiu pós-Marx, ajuda
o entendimento do atual contexto de ação do Estado e das grandes corporações
multinacionais (um novo imperialismo) exercido por meio do capital. Essa visão
baseia-se e tem como suporte a teoria da localização de Marx, que esclarece
como ocorre a teoria capitalista do espaço.

Há que lembrar que os estudos acadêmicos sobre os temas da política e os


conceitos nela aplicados – território, fronteiras, descentralização, questão fede-
rativa, o nacional, desestatização – estão no centro do estado da arte da geopo-

50
Capítulo 1 AS BASES QUE FUNDAMENTAM O CAMPO DE ESTUDO DA GEOPOLÍTICA

lítica (COSTA, 2016). Nesse escopo, considera-se que são valiosos os estudos
que versam sobre a distribuição do poder em distintas escalas e como eles se
distribuem no interior da sociedade, cujas práticas sociais se dão de modo mais
territorializado.

Atividades de Estudo:

1) Assista ao vídeo Atualidades - Teorias da geopolítica dinâmica do


poder do espaço - Carecas de Saber, do Canal Carecas de Saber
Videoaulas, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=ek-
MebZFkKjk e produza um texto em que você expresse a impor-
tância das teorias geopolíticas para pensar as realidades políticas
e econômicas dos países na Nova Ordem Mundial.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
A discussão realizada ao longo do capítulo sobre a diferenciação entre
o conceito de Geopolítica e de Geografia Política evidenciou que na realidade
existem duas perspectivas de abordagem. Uma baseada em uma discussão mais
teórica sobre a Geopolítica (dos “Estados-maiores”), na relação entre geografia
e política – marcada pelos estudos da Geografia Política, tendo por fundamento
o pensamento alemão. Nela, se estabelece um conhecimento voltado para a
contribuição da Geografia para o desempenho do Estado no âmbito de sua ação
internacional. O saber geográfico constitui-se como um importante instrumento de
poder.

E um outro campo da Geopolítica (geografia dos professores), cuja origem


é mais recente, cuja produção científica passa a emergir no século XIX. Seu
escopo de análise e sua razão de ser não é instrumental, no intuito de servir
como embasamento para ações estratégicas das Estados. A grande crítica feita
a essa corrente situa-se entre sua formação até os meados dos anos de 1950,
por não ter situado o papel da geografia como um saber a serviço do poder, como
instrumento para ação militar e desenvolvimento de conflitos entre os países e
como via para moldar uma forma política.

51
Fundamentos de Geopolítica

A ideia de antagonismo entre determinismo e possibilismo é fundada em


grande medida pela diferenciação que a corrente Geopolítica, na França, faz
de suas ideias e fundamentos em razão de associação e aplicação das teorias
Geopolíticas alemãs no contexto das práticas nazistas durante a Segunda Guerra
Mundial.

Nesse sentido são analisadas as contribuições de distintos teóricos clássicos


do pensamento geopolítico, a saber: Mahan, Mackinder, Spykman, Kjellén e
Haushofer. Em síntese, todos buscaram pensar a realidade do Estado em que
estava inserido e suas perspectivas, e através da geografia compreender os
mecanismos pelos quais podiam determinar uma ordem mundial ou vislumbrar
cenários diante das condições naturais geográficas que garantiriam maior
competividade e do pensamento estratégico geopolítico para dominar e conquistar
territórios. Esse pensamento perpassa as discussões entre o poder terrestre x
marítimo, as áreas geográficas estratégicas para a hegemonia de dado Estado
nação ou regiões.

O que precisa ficar claro quando tratamos de fundamentos da geopolítica


é que essas abordagens teóricas-geográficas foram influenciadas e influenciou
determinados contextos histórico-geográficos, numa relação dialética que só pode
ser melhor entendida através da relação entre o Estado e o sistema capitalista.
É nesse sentido que os instrumentos teórico-metodológicos e as categorias de
análise devem ser apreendidos. As categorias de análise ajudam a compreender
o ordenamento mundial, as mudanças no campo das forças hegemônicas que
regulam a dinâmica econômica e política nas relações internacionais. São a
base para alcançar e antever cenários de reordenamento global, alicerçadas
em categorias de análises geopolíticas que possam elucidar problemas, apontar
caminhos de pesquisa, explicar fenômenos e estabelecer o avanço desse campo
de estudo.

REFERÊNCIAS
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52
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WEIGERT, H. Geopolítica: generales y geógrafos. México: Fondo de Cultura


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54
C APÍTULO 2
GEOPOLÍTICA DOS CONFLITOS ÉTNICO-
NACIONALISTAS E SEPARATISTAS EM
FACE AOS DESAFIOS MUNDIAIS NO
SÉCULO XXI
A partir da perspectiva do saber-fazer, são apresentados os seguintes
objetivos de aprendizagem:

 identificar os conflitos no espaço mundial a partir das estratégias nacionais e


das relações interestatais, em diferentes contextos históricos;

 reconhecer os pontos de influência e interferência do poderio na geopolítica,


chamando a atenção para os fatores e atores que influenciam as relações entre
espaço e poder;

 correlacionar as relações entre espaço e poder, a partir da análise dos conflitos


emergentes da nova ordem mundial.
Fundamentos de Geopolítica

56
GEOPOLÍTICA DOS CONFLITOS ÉTNICO-NACIONALISTAS E
Capítulo 2 SEPARATISTAS EM FACE AOS DESAFIOS MUNDIAIS NO SÉCULO XXI

1 CONTEXTUALIZAÇÃO
Neste capítulo, abordaremos conflitos de ordem étnico-nacionalistas, bem
como os separatistas, sob um prisma da leitura do espaço geográfico e das
disputas envolvidas, considerando as relações de poder e o uso do território
na realidade contemporânea. Nesse tocante, dentre a plêiade de conflitos,
priorizaremos na nossa exposição os conflitos africanos em razão à primazia de
sua relevância no cenário atual. No entanto, trataremos, também, dos conflitos no
Cáucaso, da questão curda, dos conflitos árabe-israelenses, da questão basca,
da questão da palestina e do fundamentalismo islâmico.

Essa nossa leitura geopolítica dos conflitos pretende explicitar os conflitos


no espaço mundial, demonstrando como são desenhadas as estratégias no
tabuleiro das relações de força no espaço mundial. Todavia, buscamos evidenciar
como os processos históricos atribuem um contorno específico para cada
cenário observado. Para tanto, identificamos e tornamos notórias as influências e
interesses dos Estados nacionais na edificação de geopolíticas para os diferentes
territórios no globo.

Assim, os atores e os fatores foram pensados em uma visão holística em


que a expressão espacial assume a centralidade das discussões e decisões que
envolvem as relações entre poder e espaço, iluminando os conflitos de modo a
pensar as suas consequências para as realidades local, regional e mundial.

2 CONFLITOS GEOPOLÍTICOS NA
ÁFRICA
A África é um continente que ocupa cerca de 25% das terras emersas do
planeta. Esse dado sinaliza que se trata de um continente estratégico para pensar
a geopolítica mundial e discutir os conflitos africanos implica lançar luz em temas
como a Primavera Árabe, que não se tratou de um ponto de tensão exclusivo do
território africano, mas que o principal eixo de transformações (ou a maior área
envolvida) se deu nesse continente na sua região setentrional, também conhecida
pela denominação “África Branca”, a qual é imprecisa e carregada de preconceitos
(Figura 1), conforme nos esclarece Wedderburn (2005, p. 11):

No entanto, no caso da África, chegou-se a afirmar que a


civilização do Egito faraônico tivesse sido “trazida de fora” por
misteriosos povos “de pele branca”, supostamente vindos do
Oriente Médio. Ou que as outras antiquíssimas civilizações do
continente (Kerma, Kush-Meroé, Axum, Mwenemotapa) tinham

57
Fundamentos de Geopolítica

sido, presumivelmente, a obra de uma “raça camita” que até


hoje a ciência não consegue localizar em região alguma do
planeta. O Egito faraônico foi sumariamente “amputado” da
África e colocado ora na esfera histórica do Mediterrâneo
Europeu, ora na esfera histórica do Oriente Médio ou da
África do norte, até que um intrépido historiador contestasse
virulentamente tamanha impostura de caráter racista. Numídia
e Cartago sofreram desde então a mesma sorte, e a África
foi ideologicamente dividida entre uma “África negra” e uma
“África branca”, para marcar a coincidência entre o conceito de
raça e o conceito de civilização.

FIGURA 1 – PRIMAVERA ÁRABE

FONTE: <https://slideplayer.com.br/slide/10174153/>. Acesso em: 23 nov. 2019.

A Primavera Árabe consistiu em sucessivos protestos e revoltas resultantes


do inconformismo da população com os governos do mundo árabe da região.
Marques (2018, p. 13) leciona que:

Em dezembro de 2010, Mohamed Bouazizi, um vendedor de


rua na Tunísia, ateou fogo a si próprio depois de sua merca-
doria ter sido confiscada por policiais. A ação unificou diversos
movimentos sociais no país e, alguns dias depois, uma série
de atos antigoverno se sucedeu, levando ao fim do regime de
mais de 23 anos do presidente Zine El Abidine Ali, o qual teve
que fugir da Tunísia. O ímpeto e eficácia inicial das ações se
espalharam pela região e incentivaram movimentos de protes-
to por parte da sociedade civil em diversos países, o que ficou
conhecido como Primavera Árabe.

58
GEOPOLÍTICA DOS CONFLITOS ÉTNICO-NACIONALISTAS E
Capítulo 2 SEPARATISTAS EM FACE AOS DESAFIOS MUNDIAIS NO SÉCULO XXI

Esses conflitos aconteceram em 2011 e o que sobrelevou a essa situação fo-


ram as intermináveis crises socioeconômicas e as posições ditatoriais dos gover-
nos instituídos. Ressalta-se que as redes sociais exerceram um papel muito im-
portantes para a organização desses protestos. Foram expressivas as ditaduras
desfeitas na Tunísia e Egito com a deposição de seus ditadores (Zine El Abidine
Bem Ali – 23 anos no poder – e Hosni Mubarak – 30 anos no poder –, respectiva-
mente) e na Líbia, onde Muammar Kadafi – 42 anos no poder – foi assassinado
em uma rebelião.

Uma das faces desse processo é a relação geopolítica entre os Estados Uni-
dos e as ditaduras árabes para assegurar suas relações de acesso às maiores
reservas de petróleo do planeta, as quais se encontram nessa região da África
e do Oriente Médio. Esse processo da Primavera Árabe teve impacto e jogo de
forças políticas e econômicas em escala planetária porque a política externa dos
EUA está intimamente relacionada a essa região e assim teve que consolidar
mediações da crise com a Liga Árabe liderada pela Arábia Saudita e Catar. Isso
demonstrou mais uma vez a importância e os interesses das grandes potências
na exploração do território africano e assim tem, sistematicamente, interferido na
condução de suas vidas por meio de modulações no campo econômico, político,
social e cultural. Na África, à medida que os conflitos se intensificam é uma cons-
tante desembocar para a luta armada.

Entendemos ser de grande relevância que você assista ao Filme


Hotel Ruanda (2004). Trata-se de um longa que conta a história do
gerente de hotel que abrigou mais de 1,2 mil pessoas da etnia tutsi,
perseguidas pelas tropas militares hutus, durante o genocídio em
Ruanda. O conflito deixou quase um milhão de mortos em cem dias.
O filme foi indicado aos Oscars de melhor ator (Don Cheadle), atriz
(Sophie Okonedo) e roteiro original.

Para uma melhor visualização da regionalização da África, apresentamos a


Figura 2, a qual expõe as áreas da África do Norte e a África Sub-Saariana.

59
Fundamentos de Geopolítica

FIGURA 2 – A ÁFRICA EM DUAS REGIÕES


EUROPA

TUNÍSIA
ORIENTE MÉDIO
MARROCOS

ARGÉLIA
LÍBIA
SAARA EGITO
Oceano OCIDENTAL

Atlântico MAURITÂNIA
MALI
NÍGER
SUDÃO 6
SENEGAL CHADE
1
GÂMBIA
4
GUINÉ-BISSAU NIGÉRIA
2 3 ETIÓPIA
SERRA LEOA SUDÃO
Oceano
5
CAMARÕES DO SUL

A
LIBÉRIA

LI
Índico

Á
COSTA DO GUINÉ
DA

M
EQUATORIAL N

SO
MARFIM G
A
QUÊNIA
U
12 CONGO-
7
KINSHASA 8
NORTE DA ÁFRICA GABÃO
CONGO- TANZÂNIA 16
ÁFRICA SUB-SAARIANA BRAZZAVILLE

15
ANGOLA 9

UE
ZÂMBIA

AR
IQ
1 - BURKINAFASO

MB

SC
2 - GANA

ÇA
NAMÍBIA

GA
3 - TOGO ZIMBÁBUE

MO
4 - BENIM 14

DA
5 - REPÚBLICA CENTRO-AFRICANA BOTSUANA 13

MA
6 - ERITREIA
7 - RUANDA
10
8 - BURUNDI ÁFRICA
9 - MALAUÍ DO SUL
11
10 - SUAZILÂNDIA
11 - LESOTO
12 - SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE
13 - MAURÍCIA
14 - REUNIÃO (França)
15 - MAYOTTE (França)
16 - COMORES

FONTE: <https://bit.ly/2Vk1dEW>. Acesso em: 23 nov. 2019.

Assinalamos que o divisor natural dessas duas áfricas é o deserto do Saara.


O maior deserto quente do mundo, com aproximadamente oito milhões de
quilômetros quadrados (BRAGA, 2006). Recorremos ao esclarecimento a seguir.

Ao contrário da imagem que muitas vezes temos do deserto,


e neste caso do Saara, a maior parte da sua superfície não é
ocupada por imensas sequências de dunas, os chamados Ergs.
Pelo contrário, as cadeias dunares representam apenas uma
quarta parte de toda a sua extensão. A fisionomia do deserto
compõe-se de uma variedade assombrosa de geografias e pai-
sagens que quebram a suposta monotonia do terreno: vastas
planícies pedregosas conhecidas como Hamadas ou Regs, que
ocupam a maior parte do território; os Tassili ou Djebel, cadeias
montanhosas que salpicam o mapa do Saara e onde se con-
centra a maior parte da arte rupestre da região; os Oued ou rios
secos, onde de forma temporal pode surgir água que permite a
aparição de vegetação e fauna; as Sebkhas, fundos salgados
de antigos lagos; os Oásis que marcam não só a fisionomia mas
também a história da ocupação humana da região, uma vez que
foram, e continuam a ser, os únicos refúgios onde a vida huma-
na foi sempre possível (BRAGA, 2006, p. 361-362).

60
GEOPOLÍTICA DOS CONFLITOS ÉTNICO-NACIONALISTAS E
Capítulo 2 SEPARATISTAS EM FACE AOS DESAFIOS MUNDIAIS NO SÉCULO XXI

Após termos deixado claro esse importante demarcador geográfico africano,


apresentamos na Figura 3 uma representação dos conflitos no continente afri-
cano, os quais envolvem fatores (que têm ampliado a tensão nesse continente)
como guerras civis, intensificação de índices de violência interna, movimentos se-
paratistas, aumento do fundamentalismo islâmico, conflitos de fronteira, anexação
de território, fome crônica e fluxos de refugiados.

FIGURA 3 – CONFLITOS NA ÁFRICA

FONTE: <https://fabianaklink.wordpress.com/2012/06/03/
os-conflitos/>. Acesso em: 26 nov. 2019.

Na atualidade, a violência política com o propósito de obter o poder do Estado


tem se apresentado como um dos principais pontos que agravam os conflitos que
podemos visualizar na Figura 3.

61
Fundamentos de Geopolítica

Recomendamos que você assista ao filme O Jardineiro fiel


(2005). É uma produção que retrata a morte misteriosa de uma
ativista, interpretada por Rachel Weisz, no Quênia, o que leva seu
marido, vivido por Ralph Fiennes, a uma viagem por três continentes
em busca do que realmente aconteceu com sua esposa. Weisz
ganhou o Oscar de atriz coadjuvante por seu papel no filme, dirigido
por Fernando Meirelles.

Como constatado, são abundantes esses embates e se complexificam à


proporção das ocorrências de eleições fraudulentas, do uso da força para obter
o poder e a coerção para manutenção ou o impedimento da alternância de poder.
Esses desajustes sociais resultam em marginalizações de etnias e isso, também,
contribui para a promoção de mais conflitos.

Entendemos que é significativa a iniciativa que se assista ao


filme O último rei da Escócia (2006). Este longa narra a trajetória do
ditador Idi Amin Dada, que assumiu o poder em Uganda entre 1971 e
1979, a partir do olhar de um médico escocês que está no país para
ajudar com suas habilidades profissionais. Forest Whitaker ganhou o
Oscar pelo papel principal.

Essa realidade se contextualiza em uma dinâmica de intervenções das


potências colonialistas que assolaram o continente e os designaram para uma
precariedade socioeconômica sustentada na desigualdade em meio a tantas
riquezas. Esse processo teve início ainda no século XV com a ocupação europeia
durante o mercantilismo com forte expressão no litoral africano. Para iluminar
essa herança condenável do século XV, recorremos a Charles e De Sá (2011, p.
5), os quais pontuam que:

A obtenção de pedras, metais preciosos e especiarias era


feita pelos sistemas de captura, de pilhagem e de escambo. O
método predador provoca o abandono da agricultura e o atraso
no desenvolvimento manufatureiro dos países africanos. A
captura e o tráfico de escravos dividem tribos e etnias e causam
desorganização na vida econômica e social dos africanos.
Milhões de pessoas são mandadas à força para as Américas,
e grande parte morre durante as viagens.

62
GEOPOLÍTICA DOS CONFLITOS ÉTNICO-NACIONALISTAS E
Capítulo 2 SEPARATISTAS EM FACE AOS DESAFIOS MUNDIAIS NO SÉCULO XXI

A Figura 4 expõe o cenário da África antes da Corrida Colonial e a Figura


6 apresenta o quadro de ocupação da África antes de 1884. A leitura de ambas
demonstra que a expressão espacial repercute o processo iniciado no século XV,
em que nações, como a portuguesa e a espanhola, se sentiam donas da África e
dos seus povos ao ponto de lançar seus investimentos com o intuito de garantir
suas vantagens econômicas por meio da exploração humana dessas sociedades.
Desde o século XV, os europeus estabeleceram feitorias, portos e enclaves no
litoral africano em intenso processo de consolidação de atividades (como as de
traficantes de escravos, madeira, marfim, peles, ouro etc.).

Indicamos assistir ao filme Infância roubada (2005). Essa


indicação se deve ao fato de que esse filme retrata uma realidade
em que Tsotsi é um menino de Johanesburgo que rouba um carro e
encontra dentro dele um bebê abandonado. O menino resolve cuidar
daquele que passa a ser “seu filho” no gueto onde mora. Ganhou o
Oscar de melhor filme estrangeiro.

Essa conexão da África com a história europeia não se estabeleceu com


níveis de civilidade e respeito e sim em processos vorazes de exploração de
riquezas e de relações que devoraram a condição humana em nome do poder e
do domínio econômico a qualquer custo no contexto do capitalismo mercantilista
dos séculos XVI a XIX. E o tráfico de escravos movimentou inicialmente Portugal e
Espanha fornecendo mão de obra escrava para as plantações de cana-de-açúcar
das Antilhas e do Brasil. No século XVII, os holandeses também ingressaram
nesse comércio sombrio e, a partir do século XVIII, os ingleses se fizeram
presentes de modo contundente.

63
Fundamentos de Geopolítica

FIGURA 4 – A ÁFRICA ANTES DA CORRIDA COLONIAL

FONTE: <https://www.educabras.com/ensino_medio/materia/geografia/
continentes_e_paises/aulas/africa_aspectos_historicos>. Acesso em: 26 nov. 2019.

As civilizações milenares africanas foram desconsideradas, mesmo com


toda a riqueza de organização política, econômica e social. A visão eurocêntrica
maculou o olhar acerca da África que já era presente em textos antigos tanto
da Europa quanto da Ásia Menor (apresentamos a sua localização geográfica na
Figura 5).

64
GEOPOLÍTICA DOS CONFLITOS ÉTNICO-NACIONALISTAS E
Capítulo 2 SEPARATISTAS EM FACE AOS DESAFIOS MUNDIAIS NO SÉCULO XXI

FIGURA 5 – ÁSIA MENOR (OU ANATÓLIA)

FONTE: <https://escola.britannica.com.br/artigo/%C3%81sia-
Menor/480681>. Acesso em: 26 nov. 2019.

FIGURA 6 – OCUPAÇÃO DA ÁFRICA ANTES DE 1884

FONTE: <https://bit.ly/3b0dSDX>. Acesso em: 26 nov. 2019.

65
Fundamentos de Geopolítica

Inspirados em Masongele (2016), afirmamos que com a intensificação da


colonização europeia do século XIX se intensificou a exploração das matérias-
primas na África. Na Conferência de Berlim, 1984 a 1985, em que se instituiu a
partilha do continente África entre as potências europeias (Figura 7), se verifica
uma divisão arbitrária em desconsideração das etnias e culturas existentes no
continente europeu. Um verdadeiro desrespeito à diversidade étnica dos povos,
até mesmo porque se estima que a Europa só conhecia de 8 a 9% do território da
África, no entanto fez a divisão de todo ele.

FIGURA 7 – A PARTILHA DA ÁFRICA

FONTE: <https://bit.ly/2V5jqWY>. Acesso em: 28 nov. 2019.

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GEOPOLÍTICA DOS CONFLITOS ÉTNICO-NACIONALISTAS E
Capítulo 2 SEPARATISTAS EM FACE AOS DESAFIOS MUNDIAIS NO SÉCULO XXI

Assista ao filme Diamante de sangue (2006), é de grande


relevância para a compreensão dos conflitos africanos porque nos
apresenta um cenário em que o pescador Solomon Vandy (Djimon
Hounsou) conhece Danny Archer (Leonardo DiCaprio), um ex-
mercenário nascido no Zimbábue que se dedica a contrabandear
diamantes para a Libéria. Os dois começam uma busca por um
diamante rosa encontrado por Solomon. Indicado a cinco Oscars.

As regras da divisão africana entre as potências foram questionadas posterior-


mente pelas potências dominantes que reivindicavam direitos no continente e isso
colaborou para o desembocamento na Primeira Guerra Mundial, em 1914, como
expressão de revanchismos que envolviam o controle de riquezas como ouro e dia-
mante por parte das potências no século XIX. Como exemplo de investimentos que
envolviam essa natureza de interesse podemos citar a construção estratégica do
Canal de Suez (Figura 8), com a finalidade de fazer a ligação do Mar Vermelho com
o Mar Mediterrâneo para ampliar o comércio e a dominação de territórios africanos.

FIGURA 8 – POSIÇÃO ESTRATÉGICA DO CANAL DE SUEZ

FONTE: <https://bit.ly/39PF2vN>. Acesso em: 28 nov. 2019.

67
Fundamentos de Geopolítica

Esse canal é uma das vias marítimas mais estratégicas do planeta porque
se trata do eixo de relações entre o Oriente e o Ocidente. São 163 quilômetros
de extensão em um istmo que faz a conexão da África com a Ásia. Um canal
interoceânico dessa natureza que liga o Mar Vermelho ao Mar Mediterrâneo em um
cenário de geopolíticas que envolvem a Península do Sinai e os Golfos de Suez e
de Akaba. É um encurtamento de distâncias entre Europa, Oriente Médio e Índia,
com destaque para a ampliação da exploração do petróleo. Começou a funcionar
em 27 de novembro de 1869, época em que Ismail Pacha era governador do
Egito. Foi um esforço conjunto de construção: mão-de-obra egípcia, capital inglês
e tecnologia francesa.

FIGURA 9 – O CANAL DE SUEZ

FONTE: <http://geoconceicao.blogspot.com/2011/11/canal-
de-suez.html>. Acesso em: 28 nov. 2019.

Pontuamos que a discussão acerca da África nos impõe refletir que o


processo de exploração da África sucumbiu uma realidade em que esse continente
tinha cerca de 1.300 organizações sociais tribais, que foram desprezadas ao
ponto de culminarmos na divisão africana utilizando conhecimentos geodésicos
que consolidou um conjunto de limites geométricos artificiais como se estivessem
partindo um bolo entre as potências, com destaque para Inglaterra e França.
Potências que passaram uma visão dos africanos como animais e fontes de
exploração escrava. E a dominação ideológica condenou o continente para uma

68
GEOPOLÍTICA DOS CONFLITOS ÉTNICO-NACIONALISTAS E
Capítulo 2 SEPARATISTAS EM FACE AOS DESAFIOS MUNDIAIS NO SÉCULO XXI

leitura dos europeus como se a África não tivesse história. Enfim, uma realidade
africana massacrada pelo capitalismo mundial historicamente constituído.

O processo de descolonização da África após a Segunda Guerra Mundial foi


consequência da existência nesse período de uma Europa fragilizada em razão da
guerra sob o ponto de vista militar e econômico, bem como em razão da opinião
pública que reprovava a existência dessas colônias sob o jugo da Europa e as
tensões resultantes do processo da Guerra Fria marcada pelas disputas entre o
capitalismo e o socialismo (FERNANDES, 2015).

Sugerimos assistir ao filme Invictus (2009), que promove uma


reflexão em que o presidente da África do Sul, Nelson Mandela,
vivido por Morgan Freeman, usa o Rúgbi para unir o país ainda
marcado pelo apartheid. Para isso, conta com o título na Copa do
Mundo de 1995. Duas indicações ao Oscar.

A independência dos países ficou manchada com a dependência econômica


e tecnológica em meio aos graves problemas sociais e instabilidades políticas
edificadas em sua maioria por decisões arbitrárias, como a partilha da África
durante a Conferência de Berlim. Na prática, podemos dizer que os países
europeus abandonaram suas ex-colônias com suas crises e dificuldades após
anos de exploração e enriquecimento das potências europeias. Como exemplo
de modelos equivocados implantados podemos citar o modelo das plantations
que condenaram os países a uma profunda dependência do restante do mundo.
Complementarmente a essa discussão, podemos pontuar os descaminhos e as
subordinações africanas apresentados por Fernandes (2015, p. 135):

Descaminhos por conta do atraso que se seguiu logo após a


conquista, e subordinação como divididos ao sabor das vonta-
des políticas, econômicas, psicológicas e diplomáticas dos países
europeus, à revelia dos cidadãos africanos. Em alguns casos, a
independência política e/ou econômica não foi forte o suficiente,
e sob mesma nação foram postas etnias, religiões e grupos que
não poderiam viver sob mesma política nacional, fazendo com
que, quando da independência de alguns países, logo fossem
encontrados pretextos para mais problemas políticos e sociais,
desta vez endógenos e dependentes da própria África.

69
Fundamentos de Geopolítica

FIGURA 10 – A ECONOMIA MUNDIAL: US$ 80 TRILHÕES (2019)

FONTE: <https://twitter.com/ricamconsult/
status/1084229814423293952>. Acesso em: 28 nov. 2019.

Como notamos pela leitura da Figura 10, em razão dos Estados africanos
não terem avançado do ponto de vista econômico em função da extrema
dependência, a sua participação na economia mundial é pífia. Assinalamos os
aspectos seguintes para contextualizar os insumos que intensificam os conflitos
no território e nos dão a noção do atual cenário e dos desafios que precisam ser
superados para se constituir uma nova África melhor articulada do ponto de vista
geopolítico e capaz de, de fato, ingressar no século XXI:

• A AIDS ainda é uma preocupação. Estima-se que são 20 milhões de pes-


soas com essa doença, sobretudo na África do Sul, que figura com ele-
vados índices de ocorrência.
• Na Nigéria, os conflitos religiosos são significativos e precisam de uma
atenção especial.
• A extração de minérios no continente demanda uma política continental
para evitar a repetição dos erros históricos que repercutiram na opressão
e na exploração das riquezas sem um retorno efetivo para suas popula-
ções. E, assim, saber promover uma boa gestão dos recursos resultan-

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GEOPOLÍTICA DOS CONFLITOS ÉTNICO-NACIONALISTAS E
Capítulo 2 SEPARATISTAS EM FACE AOS DESAFIOS MUNDIAIS NO SÉCULO XXI

tes de seu relevo marcadamente de planaltos com formação antiga, em


sua maioria.
• A Angola nos últimos anos deu sinais que há um esforço local no sentido
de promover melhoras nas condições sociais.
• A geopolítica do continente precisa considerar as potencialidades de
seus rios como são os casos do Nilo, Níger e Congo.
• A África do Sul como uma locomotiva econômica no continente precisa
olhar com seriedade para a segregação racial que tem suas raízes na
desigualdade social.
• O controle da desertificação (criação de desertos) deve ser priorizado
para evitar a ampliação da fome em muitas regiões, como é o caso da
área ao sul do Saara que tem passado por intensos desmatamentos de
árvores e, por conseguinte, impacta a ampliação de áreas desérticas.
• A preocupação com a educação deve considerar o contingente expressi-
vo de órfãos com maior incidência na África Subsaariana.
• É relevante trazer para o debate internacional fóruns de discussão acer-
ca das dívidas externas elevadas que foram adquiridas, em muitos ca-
sos, como meios para o enriquecimento imoral de muitas famílias, bem
como com sedes em contratos duvidosos do ponto de vista dos benefí-
cios que poderiam acarretar para suas nações.

Ao pensarmos a África no século XXI e depois de, no conjunto, há mais


de 50 anos da independência da colonização. Nos posicionamos no sentido
de que as reflexões acerca desse continente precisam considerar a divisão do
continente entre as potências coloniais que desconstruíram inclusive reinos pela
força do colonialismo. O Reino do Congo foi um exemplo trágico de divisão com
consequências dramáticas em todos os sentido e chamamos a atenção para a
dimensão humanitária.

Sugerimos assistir ao filme Em um mundo melhor (2010), no


qual Anton, interpretado por Mikael Persbrandt, é um médico que
trabalha em um campo de refugiados na África e divide seu tempo
entre o trabalho e sua casa, na Dinamarca. Vencedor do Oscar de
melhor filme estrangeiro.

Os problemas da intervenção errônea europeia com ascensão de lideranças


despreparadas, sem qualquer experiência de gestão, complexificou as questões
religiosas e subjugação de grupos em relação a outros. Um dos fatores, como a

71
Fundamentos de Geopolítica

ingerência externa (que ainda é atual) e a ineficácia das políticas econômica e


sociais, são pontos relevantes para compreender as dinâmicas do continente.

Indicamos assistir ao filme Pantera Negra (2018), que nos traz


reflexões sobre o continente africano. São elementos relacionadas
às culturas, às potencialidades e às histórias dos povos africanos.

A responsabilidade dos africanos e de suas elites repousa no fato de que é


necessário rotineiramente contextualizar esse continente no tempo e no espaço.
A África atual foi inventada pelos povos extracontinentais para atender aos seus
interesses. Essa é uma das causas. A outra é a colonização que estrangulou as
elites locais e inviabilizou as competências e as iniciativas africanas. A elite que
dirige os países africanos são construções laboratoriais dos países europeus que
constituíram visões para conduzir a África como se fosse uma cópia do que se
espera das potências privilegiadas no cenário econômico mundial.

Recomendamos assistir ao filme Rainha de Katwe (2016), que


nos apresenta, em Uganda, a jovem Phiona Mutesi, a qual se esforça
para ser reconhecida como uma grande jogadora de xadrez em todo
o mundo.

O desafio é sobretudo no âmbito político, porque as forças externas têm con-


tribuído ainda hoje para frear o quadro de uma nova construção do futuro para
esse enorme continente. É possível descolar do passado para poder dar o destino
dos africanos para os próprios africanos. Entretanto, para isso é necessário que
os próprios africanos consigam construir seus próprios caminhos e vejam que o
mundo mudou e a inovação pode ser a grande alternativa para os modelos encai-
xotados que chegam à região. Faz todo sentido perceber que novas organizações
com valorização da geopolítica e capacidade de entender as distintas histórias e
distintos contextos econômicos e políticos que impulsionam pluralidades que pro-
piciam novas contradições e oportunidades de emancipação.

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GEOPOLÍTICA DOS CONFLITOS ÉTNICO-NACIONALISTAS E
Capítulo 2 SEPARATISTAS EM FACE AOS DESAFIOS MUNDIAIS NO SÉCULO XXI

Propomos que você assista ao documentário África sobre o


Sena (2004). Trata-se de um Documentário de Mamadou Sarr e
Paulin Vieyra, lançado em 1957, e mostra a rotina de estudantes
africanos que tentam construir uma vida na capital francesa,
levantando questões complexas sobre uma geração de artistas e
estudantes à procura de sua civilização, sua cultura e seu futuro.

A falta de visão geopolítica é o que tem imposto o fatalismo que paira no ho-
rizonte do pensamento africano e daqueles que leem suas realidades. Precisamos
de organizações regionais que projetem o futuro com valorização das potencialida-
des como ouro, diamante, biológica, petróleo etc. Questões como a fome e a sub-
nutrição são um problema que existe em toda a África, a educação desajustada e
elitista e a cidadania acovardada e medrosa são pontos em comum no continente e
que a academia, bem como as suas instituições, possam olhar para a África e para
os embates dos últimos anos no planeta para que possa obter lições interessantes
para refletir e construir novos horizontes em face de velhos problemas.

Hoje, a África deve ser partícipe de suas próprias transformações. Acreditamos


na reinvenção com base na tradição para chegar à modernidade, mas não se fechar
na modernidade para poder alcançar os problemas da contemporaneidade, sobretu-
do diante da pobreza acentuada que assola. O povo africano pode pensar na questão
agrícola, na preservação. No mercado global, o desempenho exige estratégias com
o olhar genuíno para as realidades concretas e objetivas dessas populações com o
propósito de realizar, de fato, independências com autonomia e soberania.

Sugerimos assistir ao filme Beast of No Nation (2015), o qual


se baseia no romance homônimo do autor nigeriano, Uzodinma
Iweala. O filme conta a história de um garoto africano separado
da família durante a guerra civil, que é obrigado a lutar ao lado de
mercenários e se tornar um menino-soldado de guerrilha. O drama
é uma produção estadunidense de 2015 e foi selecionado para ser
exibido na sessão Apresentações Especiais da quadragésima edição
do Festival Internacional de Cinema de Toronto.

73
Fundamentos de Geopolítica

Os vícios do passado têm sido questionados e os países sinalizam


alternativas para dirimir os conflitos e novos processos que constroem uma nova
postura política de gestão que viabilizam a criação de novas condições de vida.
É inegável que a África de hoje é muito melhor do que a de ontem e os conflitos
estão cada vez menos amplos se concentrando em locais mais específicos. Um
caminho deve ser criar as condições para que não haja mais tensões e sedimentar
o diálogo e a busca de soluções consensuais.

Indicamos assistir ao filme Lumumba (2000), o qual conta


a história da ascensão ao poder e do brutal assassinato do líder
da independência da República Democrática do Congo, Patrice
Lumumba. O filme é uma produção Belga, foi lançado em 2000 e
dirigido por Raoul Peck.

O futuro exige inovação. A inovação demanda talento natural e a formação


que colabore para a constituição de um pensamento que rompa com a estrutura
colonial, o domínio da exploração, o peso da herança, a lógica de direção
majoritária entre as elites, entre outros. A composição de uma visão africana
é uma ousadia que a África precisa se lançar. Um esforço para ultrapassar os
problemas que estão na pauta resultante de uma história complexa. Sobretudo
é entender o desafio de identificar os problemas e desenhar programas que
respondam de forma efetiva aos diagnósticos feitos. Cada país precisa assumir
suas responsabilidades parciais com o destino de sua nação e se unir para traçar
estratégias para ir a novos patamares sem se prender na ideia de que a culpa é
exclusivamente do outro.

Sugerimos assistir ao filme Kiriku e a Feiticeira (1998). É


uma belíssima animação francesa de 1998, ambientada na África
Ocidental. Conta a história de Kiriku, um menino minúsculo, cujo
tamanho não alcança nem o joelho de um adulto, e que tem como
desafio enfrentar a poderosa feiticeira Karabá, que secou a fonte
d’água de sua aldeia. Kiriku enfrenta perigos e passa por muitas
aventuras, provando que o seu tamanho, não só não é um problema,
como é a sua melhor arma para enfrentar a feiticeira.

74
GEOPOLÍTICA DOS CONFLITOS ÉTNICO-NACIONALISTAS E
Capítulo 2 SEPARATISTAS EM FACE AOS DESAFIOS MUNDIAIS NO SÉCULO XXI

A União Africana tem como base o debate entre governos, estados e países,
entretanto, olhar para o futuro pode ser dar atenção para novos atores, como é o
caso da união das sociedades políticas da África, movimentos sociopopulacionais,
Organizações não Governamentais, associações e grupos culturais afim de se
efetivar a união de povos de várias latitudes. Essas viradas da mesa podem ser
alternativas para uma melhor interação no continente que seja capaz de colaborar
para se romper com a centralização histórica e para dirimir conflitos futuros. A
sociedade em geral tem tido sua inovação suprimida em função das dificuldades
de inovar em seus governos que mantêm uma escola arcaica ainda nos marcos
tradicionais da Revolução Industrial. Alterar o modelo de educação para viabilizar
a tradução em novas competências que nos permita olhar para o futuro e para as
possibilidades em aberto em vez de se concentrar numa postura de vitimização
dos cidadãos e de fatalismo que engessa novas perspectivas.

Atividades de Estudo:

1) Disserte sobre a relevância da compreensão dos conflitos


geopolíticos africanos para o entendimento das dinâmicas do
continente africano e do mundo contemporâneo.

3 ABORDANDO OUTROS CONFLITOS


E QUESTÕES GEOPOLÍTICAS NO
MUNDO
Tendo em vista os ensinamentos de Sequeira (2014), assinalamos que a
União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) não se consolidou como
uma nação. Todavia, o nacionalismo foi utilizado para sustentar a emancipação
nacional dos povos colonizados no contexto das lutas contra o imperialismo
capitalista. Essa visão retrata que a ideia de nação constituída no pensamento
ocidental com maior ênfase após a Revolução Francesa é o que garante a
legitimidade e a validade das ações em nome da constituição de um Estado. No
entanto, sob a égide da URSS, os distintos nacionalismos tiveram os seus direitos
políticos reprimidos em nome da união das repúblicas: um processo forçado que,
com o fim da URSS, explicitou ainda mais as suas contradições.

75
Fundamentos de Geopolítica

FIGURA 11 – DISSOLUÇÃO DA URSS

FONTE: <https://bit.ly/2UOr891>. Acesso em: 13 dez. 2019.

A observação da Figura 11 suscita que a URSS foi instalada sob a inspiração


da proximidade geográfica, em um regime socialista que tinha como propósito
resolver problemas seculares de ordem socioeconômica em um modelo geopolí-
tico ideológico. A URSS era composta por 15 repúblicas sob a direção do partido
comunista centralizado em Moscou, o que totalizava 22 milhões de quilômetros
quadrados de área. Com os movimentos separatistas iniciados nas repúblicas
bálticas Lituânia, Estônia e Letônia se instaurou a desintegração em série das
repúblicas soviéticas. E o cimento para essa desintegração foram as questões
étnicas. As buscas por independência resultaram em conflitos que resultaram na
morte de muitas pessoas até que todas as repúblicas conquistaram suas indepen-
dências do poder central que era a Rússia (SANTOS, 2011; NOBRE, 2015).

Com base em Santos (2011), ressalta-se que antes da Revolução Russa, no


início do século passado, a Rússia era composta por um Estado Imperial e não
uma nação, então, essa marca histórica repercutiu no imaginário e no legado po-
lítico da URSS. E os movimentos nacionalistas, ao longo da existência da URSS,
fomentaram cisões ao nível interno do bloco socialista, ao ponto de ser possível
agregar aos fatores que culminaram no colapso soviético o fato de que houve um

76
GEOPOLÍTICA DOS CONFLITOS ÉTNICO-NACIONALISTAS E
Capítulo 2 SEPARATISTAS EM FACE AOS DESAFIOS MUNDIAIS NO SÉCULO XXI

crescimento do descontentamento da população e as suas manifestações se pau-


tavam em um discurso nacionalista.

Os soviéticos eram centralizadores e cometiam ingerências nos assuntos in-


ternos das suas repúblicas, com destaque para as orientações e escolhas das
lideranças políticas locais. Além disso, o uso da força por parte de Moscou já no fi-
nal da URSS demonstrou o seu crescente enfraquecimento político em termos de
influência do Partido Comunista. Agravou-se esse processo com o nacionalismo,
as crises crescentes e a resistência popular. Pontua-se que com a dissolução do
império soviético, em 1991, ampliou-se as tensões e se acirraram os conflitos no
Cáucaso em função da posição estratégica dessa região para a URSS.

De toda forma, os movimentos nacionalistas e os conflitos étnicos buscaram


demarcar e fazer valer suas posições e reivindicações diante de um celeiro cultu-
ral soviético que advogava pela noção de um povo soviético sustentado em raízes
históricas edificadas no elo articulador do comunismo. Acrescentamos que contri-
buíram para os embates a percepção que os russos passaram a construir no sen-
tido de que muitas repúblicas gozavam de melhores condições de vida do que os
russos e, por conseguinte, se alargou o descontentamento e isso comprometeu
os ânimos e as relações no ambiente geopolítico e as relações econômicas com
as regiões sobre o domínio russo. Assim, no Cáucaso, as posturas ficaram cada
vez mais rígidas e intensas em um cenário de defesa de interesses econômicos
em detrimento de eclosões com conotações étnicas.

FIGURA 12 – GRUPOS ÉTNICOS E RELIGIÕES NO CÁUCASO

FONTE: <https://bit.ly/34gx1P5>. Acesso em: 13 dez. 2019.

77
Fundamentos de Geopolítica

No Cáucaso, em 1988, na Armênia e Azerbaijão foram realizadas as primeiras


manifestações nacionalistas e antissoviéticas. O conflito do Alto Carabaque, entre
armênios e o Exército Vermelho, persistiu de 1989 a 1991, essa disputa se originou
pela busca do domínio de fronteiras que foram concedidas ao Azerbaijão durante
o poderio soviético. A Armênia encampou essa luta em nome do seu interesse
em consolidar uma unidade cultural com o Alto Carabaque. Ressalta-se que a
Armênia é de maioria cristã e no Azerbaijão predomina uma nação muçulmana.

FIGURA 13 – CONFLITO DO ALTO CARABAQUE

FONTE: <http://geografiaterceiroem.blogspot.com/2013/04/con-
flitos-na-caucaso.html>. Acesso em: 13 dez. 2019.

Tendo Silva (2012) como referência, é relevante assinalar que o Cáucaso é,


do ponto de vista da geopolítica, uma importante região para o cenário econômico
e político da Europa e da Ásia, dado que se localiza na divisão entre a Europa
Oriental e a Ásia Ocidental e entre o Mar Negro e o Mar Cáspio. As cordilheiras do
Cáucaso ao longo da história foram significativas para as estratégias de domina-
ção e proteção dos impérios.

Trata-se de uma área caracterizada por dobramentos modernos que envol-


vem as realidades de importantes países como a Rússia, Georgia, Azerbaijão e
Armênia. É uma área marcada por choques culturais, resultantes de aproxima-
damente 100 etnias, e religiosos, em função da presença de cristãos, islâmicos
e budistas (minoria). A Armênia é uma área montanhosa em que a população é
mais homogênea que a Georgia e o Azerbaijão.

Acentuamos que o Partido Comunista Armênio teve uma atuação truculenta


na Armênia como forma de combater qualquer manifestação nacionalista durante

78
GEOPOLÍTICA DOS CONFLITOS ÉTNICO-NACIONALISTAS E
Capítulo 2 SEPARATISTAS EM FACE AOS DESAFIOS MUNDIAIS NO SÉCULO XXI

o comunismo soviético. A Armênia, durante o período soviético, desenvolveu um


setor industrial moderno e importante que atendia aos interesses da economia
planificada soviética, no entanto, o descontentamento ampliou porque os armê-
nios solicitaram o Alto Carabaque para a Rússia e o pedido foi negado, permane-
cendo sob o domínio do Azerbaijão. Salienta-se que se trata da maior diversidade
linguística do mundo e isso amplia a sua importância estratégica para os distintos
povos envolvidos nos conflitos.

FIGURA 14 – GRUPOS ETNO-LINGUÍSTICOS DO CÁUCASO

FONTE: <https://pt.wikipedia.org/wiki/L%C3%ADnguas_
caucasianas>. Acesso em: 13 dez. 2019.

79
Fundamentos de Geopolítica

E o fim da URSS estimulou a ocorrência de movimentos nacionalistas inter-


nos. A esse respeito, salienta-se os conflitos na Chechênia (área correspondente
a aproximadamente metade do estado brasileiro de Sergipe) que se localiza no
território russo e é de maioria islâmica com forte incidência de rebeldes que en-
frentam, em alguma medida, os interesses da Rússia em assegurar os dutos de
petróleo e gás natural que passam pela Chechênia, bem como em função da rele-
vância do solo Tchernozion (solo mineral de cor escura com argila de alta ativida-
de e alta saturação de bases) dessa região que é extremamente fértil em função
de sua origem vulcânica com grande potencial para a produção agrícola.

Historicamente, o conflito com os russos rendeu conflitos étnicos e muitas


mortes na região, sobretudo na década de 1990. A Rússia não aceitou essa perda
territorial, pois se isso ocorresse, os chechenos poderiam retirar valores de pedá-
gio para passagem de dutos de gás e petróleo que fazem conexão com a Europa
ocidental, além disso essa posição da Chechênia é estratégica em função da rede
de ferrovias da região (SANTOS, 2011).

Outra vertente de conflitos com conotações geopolíticas que merece nossa


atenção são os embates ocorridos nos Bálcãs. Guimarães (2007, p. 38) leciona que:

Os conflitos ocorrem na região dos Bálcãs, uma área extensa


situada na fronteira entre o Ocidente e o Oriente, cuja localiza-
ção geográfica representa, ao longo da história, um lócus onde
se estabeleceu e manteve intransponíveis as diferenças cultu-
rais entre povos e etnias da Europa: povos de origem sérvia,
macedônica, croata, eslava e albanesa coabitaram a região do
antigo Estado Iugoslavo. Entretanto, os Bálcãs podem ser es-
tendidos para mais adiante, compreendendo também outros
países do Leste Europeu e, por conseguinte, outras etnias. Es-
tes conflitos vão sendo desencadeados sem o menor controle
político sobre eles e vão configurando uma realidade muito am-
pla, digo até mesmo uma realidade de outra natureza, porque é
imaginal. Uma realidade imaginal deve ser conceptualizada de
modo oblíquo e transversal, e por metáforas e metonímias, o
que me permite supor que essa realidade formou uma espécie
de bacia semântica se comparada a outras realidades engen-
dradas em todo o continente europeu.

Como se percebe, pela lição de Guimarães (2007), trata-se de campos de


forças distintas que estão em disputas na constituição da geopolítica da região,
que envolve os fenômenos sociais, a formação histórica e política demarcada
por atuações de antigos impérios e repúblicas e as manifestações de identidades
relacionadas às distintas etnias, línguas e religiões.

80
GEOPOLÍTICA DOS CONFLITOS ÉTNICO-NACIONALISTAS E
Capítulo 2 SEPARATISTAS EM FACE AOS DESAFIOS MUNDIAIS NO SÉCULO XXI

Bela Aldeia, Bela Chama (Sérvia/Croácia, 1996, dirigido por Srd-


jan Dragojevic). Direção: Srdjan Dragojevic. Roteiro: Srdjan Dragoje-
vic/Vanja Bulic. Ano de produção: 1996. Duração: 115 min./cor. É um
filme que se desenvolve tendo como eixos a exploração de cenas
que envolvem dois amigos, um sérvio e outro muçulmano, a experi-
ência no hospital e as cenas de batalhas, sobretudo do grupo sérvio.

Vukovar (Iugoslávia, 1995, dirigido por Boro Drascovic). Dire-


ção: Boro Draskovic. Roteiro: Boro Draskovic/ Maja Draskovic. Ano
de produção: 1994. Duração: 96 min./cor. O filme investe na expe-
riência vivida por um casal em que o homem é de origem sérvia e
a mulher é de origem croata, em uma divergência com o momento
que viviam que era de manifestações em prol da separação entre a
Sérvia e a Croácia.

É uma disputa por espaço e emancipação e os conflitos nessa área do globo


se intensificaram em função dos seguintes aspectos: falência de projetos como o
comunista, ausência de apoio das potências ocidentais que veem vantagens nos
processos de desmoronamento que ocorreram na ex-Iugoslávia, atuação precária
e sem efetividade da ONU e da OTAN nesses territórios na década de 1990, den-
tre outros pontos relevantes para a compreensão da geopolítica desses conflitos.

Antes da Chuva (Macedônia, 1994, dirigido por Milcho Manche-


vski). Direção: Milcho Manchevski. Roteiro: Milcho Manchevski. Ano
de produção: 1994. Duração: 113 min./cor. É um filme que mergulha
no universo de três histórias, tendo como pano de fundo situações
vivenciadas sobretudo na Macedônia, e uma das histórias acontece
na Inglaterra.

81
Fundamentos de Geopolítica

Beautiful People (Reino Unido, 1999, dirigido por Jasmin Diz-


dar). Direção: Jasmin Dizdar. Roteiro: Jasmin Dizdar. Ano de produ-
ção: 1999. Duração: 107 min./cor. É um filme que retrata histórias,
dentre outras, a de sérvios e croatas vítimas da guerra da Bósnia, os
quais se encontram refugiados com marcas de entrecruzamentos de
dinâmicas simbólicas peculiares.

Terra de Ninguém (Bósnia, 2001, dirigido por Danis Tanovic).


Direção: Danis Tanovic. Roteiro: Danis Tanovic. Ano de produção:
2001. Duração: 98 min./cor. O filme lança luz nos conflitos entre bós-
nios e sérvios com o enfoque na discussão do real sentido da condi-
ção humana e uma reflexão acerca da irracionalidade dos conflitos. A
produção contextualiza-se com a relação entre a mídia e a participa-
ção da ONU nos conflitos da região.

Nessa nossa incursão nos conflitos com tensões geopolíticas, destacamos


o conflito árabe-israelense, cuja análise de Mendonça (2014, p. 95) afirma que
“Israel ocupou o território de outra sociedade, expulsando a população nativa, fun-
dando sobre suas terras um Estado. Para isso, contou preliminarmente com su-
porte britânico e, a partir de 1967, com o apoio americano”.

Persépolis. Direção e Roteiro: Marjane Satrapi e Vincent Paron-


naud. França: Studio d‟Animation Perseprod. 2007. (95 min.). Uma
possibilidade de acesso é o seguinte endereço eletrônico no YouTu-
be: https://www.youtube.com/watch?v=Osk_guNfNZI.

Os eventos relacionados ao conflito árabe-israelense possuem grande res-


ponsabilidade nas alterações geopolíticas do século XX no Oriente Médio, dado
que a presença de um Estado soberano (Israel) com grande capacidade de uso
da força para ocupar o território se constituiu como fundamental elemento para a
discussão da geopolítica dessa porção territorial. Acerca do significado histórico e
geográfico desse processo, Mendonça (2014, p. 95) assinala que:

82
GEOPOLÍTICA DOS CONFLITOS ÉTNICO-NACIONALISTAS E
Capítulo 2 SEPARATISTAS EM FACE AOS DESAFIOS MUNDIAIS NO SÉCULO XXI

[...] a criação do Estado de Israel num território esparsamente


ocupado até então por judeus foi um acontecimento de
magnitude única na época transcorrida ao longo do século
XX, embora encontre paralelo com fatos ocorridos no período
colonial – porquanto, no século XX, fato marcante foi a
transferência de grande contingente de população para terras
alheias com o propósito de fundar um Estado sobre áreas
pertencentes a outra sociedade.

Israel conduziu um projeto territorial na Palestina como forma de consolida-


ção da política imperialista europeia na região do Oriente Médio. Dado que, no
início do século XX, a Palestina foi alvo de ações europeias em busca de suas
matérias-primas, zonas de mercado e de influência. Isso é evidenciado pelo fato
de que o Oriente Médio estava na rota do imperialismo europeu que após a Pri-
meira Guerra Mundial distribuiu o controle dos antigos territórios árabes na se-
guinte configuração: “A França ficou com o controle do que hoje corresponde aos
territórios da Síria e do Líbano, enquanto a Grã-Bretanha ficou com o controle da
Palestina, ampliando sua influência à Transjordânia, ao Iraque e ao Irã” (MEN-
DONÇA, 2014, p. 96).

As consequências das ingerências internacionais no Oriente Médio resul-


taram em um processo avassalador de expatriação de palestinos, conforme se
pode verificar na Figura 15, que retrata a diáspora Palestina no mundo utilizando
esferas proporcionais ao número de palestinos expatriados.

FIGURA 15 – DIÁSPORA PALESTINA NO MUNDO

FONTE: <https://vestibular.uol.com.br/resumo-das-disciplinas/geopolitica/
entenda-a-questao-arabe-israelense.htm>. Acesso em: 28 dez. 2019.

83
Fundamentos de Geopolítica

Na Palestina, o domínio se deu pelo Mandato Britânico que se arrastou até


a criação do Estado de Israel, em 1948. Esse processo demonstrou nitidamente
que o sionismo e suas ações no território palestino se estabeleceu como uma
nova face do colonialismo europeu, tanto é que o principal contingente de ju-
deus que se instalou na Palestina foram os provindos da Europa, assim como a
política adotada, nas últimas décadas, foi de expropriação moderna com negati-
va dos direitos e tratamento dos palestinos como se fossem um grupo de seres
humanos inferiores.

Valsa com Bashir. Direção: Ari Folman. Israel: Les Films


D‟ici & Razor Film Produktion. 2008. (86min). Endereço eletrônico
disponível para acesso no YouTube https://www.youtube.com/
watch?v=5BHmANfNUYQ. Sinopse: O conflito no Oriente Médio
não é de agora. Há décadas, países lutam por questões territoriais
e religiosas, resultando em grandes destruições e aumentando ainda
mais o ódio étnico e a intolerância multicultural vizinha. A migração
de refugiados de guerra também é uma questão para se analisar
com bastante cautela. O filme-documentário-biográfico Valsa com
Bashir (em hebraico Vals im Bashir) aborda essa última questão. O
ex-combatente israelense e diretor do filme, Ari Folman, retrata um
dos períodos mais conturbados na história, marcados por intensos
conflitos durante a ocupação das forças Israelenses no Líbano até a
chegada à capital Beirute, em 1982, no intuito de derrubar as forças
palestinas. O assassinato do presidente cristão Bashir Gemayel
colaborou com o massacre de dois mil civis nas cidades de Sabra e
Chatila, cidades em destaque no filme. Diferente da linha comercial
cinematográfica, Ari Folman relata a sua angústia e intensa busca
às lembranças dos acontecimentos em formato de animação.
Aliás, Valsa com Bashir foi o primeiro documentário animado a ser
veiculado e indicado a cinco Oscars de melhor filme estrangeiro.

A Figura 16 apresenta em representação cartográfica a evolução do


agravamento da questão palestina e sua luta territorial ao longo das décadas do
século passado e na atualidade.

84
GEOPOLÍTICA DOS CONFLITOS ÉTNICO-NACIONALISTAS E
Capítulo 2 SEPARATISTAS EM FACE AOS DESAFIOS MUNDIAIS NO SÉCULO XXI

FIGURA 16 – PROGRESSÃO DA OCUPAÇÃO DOS TERRITÓRIOS


PALESTINOS PELAS FORÇAS DE ISRAEL

FONTE: <https://www.esquerda.net/dossier/que-futuro-para-
palestina-na-era-trump/47258>. Acesso em: 28 dez. 2019.

A partir da análise da Figura 16, notamos que o futuro da Palestina é algo


incerto, o que temos é a evidenciação de um movimento internacional das
grandes potências, sobretudo os Estados Unidos, em apoio à ocupação territorial
do Estado de Israel.

Outra questão que desafia a geopolítica global é a dos curdos que na luta
pela efetivação do Curdistão, propõem a mudança de limites territoriais de no
mínimo quatro Estados-nação (Turquia, Iraque, Irã e Síria) e talvez de outros dois,
da Armênia e do Azerbaijão. Atualmente, os curdos vivem uma diáspora porque
estão em países como Alemanha (cerca de 1 milhão de pessoas), Israel (mais
de 100 mil), França (mais de 100 mil), Suécia (mais de 100 mil), dentre outras
localidades pelo mundo.

A questão curda (Figura 17) tem sua localização na Península Anatólia e


tem ganhado destaque no século XXI com eventos como a Primavera Árabe,
no Oriente Médio, que estimularam o impulso de revolta contra os governos
autoritários. Pontuamos que os curdos, sobretudo a partir dos anos 1920, vêm
sofrendo supressão cultural por intermédio de mecanismos autoritários, dentre os
quais podemos citar como um dos mais expressivos a proibição da língua curda
em espaços públicos e na mídia (FARIAS, 2017). Um flagrante desrespeito às
especificidades linguísticas e socioculturais.

85
Fundamentos de Geopolítica

FIGURA 17 – CURDISTÃO

CURDISTÃO Mar Negro

AZERBAIJÃO

Mar Cásp
TURQUIA

io
IRÃ
iterrâneo

SÍRIA
Mar Med

LÍBANO

IRAQUE

ISRAEL

FONTE: <https://brasilescola.uol.com.br/geografia/
questao-curda.htm>. Acesso em: 1 jan. 2020.

Essa questão curda está inserida no Oriente Médio, o qual possui uma rede
de relações que posicionam a região como de influência internacional ao ponto
que merece importância em nossa análise geopolítica de conflitos. A ausência
de diretivas dos povos nas decisões são pontos cruciais para a ampliação das
tensões, pois os sistemas internacionais não permitem a criação de novas formas
de vida com autonomia de verdade em razão da defesa de interesses políticos e
econômicos que ultrapassam as realidades das etnias.

Destacamos na atualidade as ofensivas cometidas pelo Estado Islâmico (EI)


do Iraque e do Levante que buscam avançar sobre o território do Curdistão em
espaços da Síria, Iraque, Irã e Turquia, e que esses grupos radicais islâmicos
foram duramente combatidos pelas forças armadas curdas. O EI realizou suas
ações de ataque direto em busca de implementar a Sharia (jurisprudência
islâmica) no povo curdo e para dominar os seus territórios.

86
GEOPOLÍTICA DOS CONFLITOS ÉTNICO-NACIONALISTAS E
Capítulo 2 SEPARATISTAS EM FACE AOS DESAFIOS MUNDIAIS NO SÉCULO XXI

QUADRO 1 – GRUPOS ORGANIZADOS CURDOS


KDP (PDK em curdo) Partido Democrático do Curdistão no Iraque - movimento nacionalista.
PUK União Patrióta do Curdistão - ex integrante do KDP objetiva criar um
Estado independente no Iraque.
YPG Unidades de Proteção Popular - Oposição a Assad - Na Síria.
PYD Partido de União Democrática - grupo curto organizado na Síria.
PDKI Partido Democrático do Curdistão Iraniano.
PJAK Partido da Vida Livre do Curdistão no Irã.
PKK Partido dos Trabalhadores do Curdistão (na Turquia).
FONTE: Rosas (2018, p. 68)

Nos ancorando em Rosas (2018), manifestamos o nosso entendimento de que


a atuação desses grupos da Figura 18 e o apoio internacional na ofensiva contra
o Estado Islâmico foram fundamentais para as derrotas que o Estado Islâmico
tem sofrido na região. A luta principal dos curdos é em prol do reconhecimento
desse povo como grupo étnico, com influência caucasiana. A origem linguística
dos curdos é indo-iraniana, com identidade que preserva um legado persa que
impacta em determinados grupos religiosos que preservam rituais aos sete anjos,
com ênfase no Anjo Pavão (Melek Tawwus), como é o caso da religião Yazidi,
que possui elementos do islamismo, judaísmo e zoroastrismo: um deus único,
adotando o batismo e a circuncisão. No entanto, ressaltamos que a maioria dos
curdos são sunitas (islâmicos), por mais que se tenham também xiitas (islâmicos),
judeus e cristãos. Ressalta-se o fato de que cerca da metade dos curdos estão
em território da Turquia.

São cerca de 38 milhões de curdos que travam uma história contemporânea


de resistência em busca da criação de um Estado nacional (para um povo
sem país), que foi dissipado no Tratado de Lausanne (1923) para atender aos
interesses dos britânicos em detrimento de uma realidade de uma sociedade
que tem suas raízes nas primeiras civilizações do mundo – a mesopotâmia.
Registramos que as mulheres exercem um papel nevrálgico na resistência curda
que alcança o combate à face nefasta do patriarcalismo. Em síntese, os embates
geopolíticos para inviabilizar a existência do Curdistão se dão pelo fato de que os
países não querem perder áreas que compreendem pontos estratégicos do ponto
de vista do comércio, do minério de ferro, do petróleo, do gás natural e sobretudo
em função das reservas de água da região.

Em última análise neste subtópico, embora se tenha muitos outros conflitos


geopolíticos na nova ordem mundial, após termos consultado Albuquerque (2011),
lançamos luz à questão basca que diz respeito à luta separatista pela constituição
do país Basco na Europa, que teve seu início no final do século XV e início do

87
Fundamentos de Geopolítica

século XVI, durante o processo de unificação da Espanha e consolidação de um


só reino, momento em que se separou a região em uma porção ao sul para a
Espanha e outra ao norte para a França.

Essa luta sinaliza bem as divergências, as inconsistências entre a cultura


de um povo e a definição de um Estado nacional em detrimento a essa situação
sociocultural (Figura 18). Como podemos visualizar na figura, o país Basco é
composto dos seguintes territórios: Álava, Biscaia, Guipúscoa e Navarra,
pertencentes ao território de Hegoalde (Espanha) e Baixa Navarra, Lapurdi e Sola
do território de Iparralde (França).

FIGURA 18 – O PAÍS BASCO

FONTE: <https://www.culturamix.com/cultura/questao-
dos-bascos/>. Acesso em: 3 jan. 2020.

88
GEOPOLÍTICA DOS CONFLITOS ÉTNICO-NACIONALISTAS E
Capítulo 2 SEPARATISTAS EM FACE AOS DESAFIOS MUNDIAIS NO SÉCULO XXI

Esses enfrentamentos se dão no contexto da tentativa do reconhecimento


de um território próprio para o povo basco, que são considerados uma nação com
língua própria (a língua mais antiga falada na atualidade europeia), o basco, e cul-
tura específica. As maiores tensões ocorrem na parte espanhola em razão da his-
tória recente, de 1939 a 1975, marcada pelo governo do ditador Francisco Fran-
co que reprimiu duramente esse grupo. Na atualidade, os bascos conseguiram a
instituição da Região Autônoma do País Basco no território espanhol com sistema
legislativo próprio.

Assinalamos a criação em 1959 (durante a ditadura de Franco) do grupo ter-


rorista cujo nome é ETA – Euskadi Ta Azkatasuna – cujo significado na língua
basca é Pátria Basca e Liberdade. Lembramos que esse grupo, ao longo de sua
história, se apresenta grifado por contradições, dado que em muitos momentos o
povo basco se manifestou publicamente condenando os seus atentados violentos
como forma de pressionar o governo espanhol. Desde 2010, esse grupo não tem
se expressado com intensidade e, aparentemente, não se constitui mais como
uma ameaça com violência ao andamento das relações políticas na Espanha.

Entendemos ser pertinente destacarmos, ainda, nesse plano dos conflitos, um


aspecto geopolítico muito relevante, na hodiernidade, que é o Fundamentalismo Is-
lâmico. Iniciamos essa reflexão situando o sentido do termo fundamentalismo. Ao
observarmos a palavra, entendemos que possui em seu âmago a ideia de funda-
mento, que para Cuvillier (1961) pode ser entendido como o princípio em que se
estabelece uma ordem de fenômenos ou a base em que se ergue um edifício. Ao
fazermos um aprofundamento por meio da busca da concepção epistemológica da
palavra fundamentalismo, nos deparamos com o entendimento de Bunge (2002),
que nos esclarece que, conceitualmente, fundamentalismo tem o sentido de que
todo conhecimento de ordem fatual encontra-se sustentado em uma base que se
constitui como algo firme e bem estruturado denominado fundamento.

Destacamos que o termo fundamentalismo se caracterizou como uma auto-


denominação dos protestantes americanos, no início do século XX, como meio
de se distinguir dos protestantes liberais que, nas suas visões, se distanciavam
da fé cristã (LIMA, 2012). Então, nessa perspectiva teológica, o fundamentalismo
seria uma marca daqueles que buscam dar conta de seguir o sentido o mais literal
possível das escrituras sagradas. Com o tempo, o uso do termo fundamentalismo
recebeu muitas contribuições e usos em diversos campos do conhecimento e até
mesmo no cotidiano, passando a receber um uso secular.

Com base em Armstrong (2001), afirmamos que o fundamentalismo judaico


é baseado no Antigo Testamento e no Talmude como forma de garantir o cumpri-
mento das leis reveladas em face da tentativa de muitos tentarem romper com
os postulados da tradição. Já o fundamentalismo cristão se sustenta na Bíblia

89
Fundamentos de Geopolítica

como sustentação para a compreensão da ciência e da sociedade numa busca


por postulados exatos e definidores da realidade. E o fundamentalismo islâmico
(FI) é um movimento religioso muçulmano, do século XX, com defesa extremada
da obediência às leis do Corão, o qual é entendido como sendo a escritura sagra-
da do profeta Maomé. Embora não vamos abordar, mas assinalamos a existência
de outros fundamentalismos, como são os casos dos budistas, hinduístas e con-
fucionistas, os quais promovem uma rejeição sistemática de muitas conquistas da
cultura liberal.

Ressaltamos que o FI se diferencia do que está presente nas demais religi-


ões porque ganhou notoriedade como movimento político e ideológico de alcance
internacional com distintas marcas dos sunitas e dos xiitas. É uma luta em prol de
transformar a religião islâmica em ideologia política (LIMA, 2012). É esclarecedor
o quadro comparativo entre o Islã Tradicional e o Islã Fundamentalista (Quadro
2) presente na tese de doutorado de Asnis (2007, p. 88), a qual nos brinca com
a revelação de que da “[...] existência de uma intrigante forma de funcionamento
psíquico da mente fundamentalista, de difícil compreensão, na qual se busca a
morte para que a vida faça sentido”.

QUADRO 2 – ENTENDIMENTO DAS DUAS VERTENTES DO


ISLÃ ACERCA DO SUICÍDIO FUNDAMENTALISTA
Conceitos Islã Tradicional Islã Fundamentalista
Suicídio Severa condenação Estimulado através de homem-bomba
Pulsões de morte Coerção Livre expressão
Entendimento do Crime pior que um assassinato Ato heroico, sagrado digno de recom-
ato suicida pensas terrenas e celestiais
Homem-bomba Traidor do Islã Mártir
Destino Inferno Paraíso
Familiares Penalizados e marginalizados Homenageados e auxiliados financei-
ramente
Interpretação do Corão Só Deus pode tirar a vida que Deus condena o suicídio, mas premia
a ele pertence o martírio
Ato altruísta? Não, pois morrem civis e Sim, é considerado um ato de amor
tambémmuçulmanos
Leitura política Terrorismo Patriotismo
Leitura psicológica Doença mental Gesto altruísta
FONTE: Asnis (2007, p. 87)

O fundamentalismo islâmico representa um cenário de instabilidade em que os


limites internacionais são colocados em xeque e as potências ocidentais têm inves-

90
GEOPOLÍTICA DOS CONFLITOS ÉTNICO-NACIONALISTAS E
Capítulo 2 SEPARATISTAS EM FACE AOS DESAFIOS MUNDIAIS NO SÉCULO XXI

tido esforços para combatê-lo, com destaque para os Estados Unidos, Japão, Fran-
ça, Inglaterra, entre outras. O Ocidente não tem conseguido avançar nessa direção
porque tem tratado a situação como uma questão bélica, no entanto, a ausência de
investimentos em educação e informação, bem como com respeito à religião islâ-
mica, é para que se consiga constituir novos arranjos e socializações necessárias
para a boa relação política, sem a necessidade de uma disputa pelo poder através
das armas. A Figura 21 retrata o espraiamento da religião islâmica pelo planeta.

Indicamos assistir ao filme Timbuktu, um longa-metragem em


coprodução da França com a Mauritânia (dirigido por Abderrahmane
Sissako), o qual colabora com a compreensão do fundamentalismo
islâmico porque aborda diversas pequenas histórias, retratando o dia
a dia da cidade do Mali, intimidada e reprimida pelo fundamentalismo
do grupo Ansar Dine.

FIGURA 19 – MUNDO ISLÂMICO

FONTE: <https://www.slideshare.net/JorgeHernandez753/
fundamentalismo-islamico-81401844>. Acesso em: 27 dez. 2019.

91
Fundamentos de Geopolítica

A religião é vista como um pano de fundo utilizado pelos distintos grupos


fundamentalistas para convencer e alcançar seus objetivos, como são os casos
históricos ocorridos no Irã (Regime dos Aiatolás), Paquistão/Afeganistão (Al Qae-
da), Egito (Irmandade Muçulmana), Líbano (Hezbollah), Faixa de Gaza (Hamás),
dentre outros.

Em março de 1928, com a criação da Irmandade Muçulmana, no Egito, os


fundamentalistas puderam perceber as suas marcas e possibilidades de atuação.
Na nossa perspectiva, se constitui como um marco importante para o fundamen-
talismo islâmico (FI), na contemporaneidade, os acontecimentos da década de
1970, no Irã, que se militarizou e se modernizou com o apoio dos Estados Unidos
no período da Guerra Fria. O país era comandado pelo Xá Reza Pahlevi. E, em
1979, houve a deposição desse comandante realizada por um grupo de extrema
direita com sustentação religiosa cuja liderança era o Aiatolá Khomeini. Alegando
estar em plena sintonia com os postulados e fundamentos do Corão, foi implanta-
do um regime austero do ponto de vista político e social.

Então, nesse novo cenário, os Estados Unidos em vez de apoiadores passa-


ram a ser vistos como inimigos da nação iraniana. Na nova configuração funda-
mentalista, a autoridade religiosa figura como detentora do Estado e responsável
por assegurar o cumprimento dos preceitos islâmicos xiita em toda a sociedade.
Essa fusão entre Estado e religião costuma ser vista com bastante resistência
entre os principais líderes mundiais, pois costuma dar margem para a efetivação
de ações que atentam contra os direitos humanos, a justiça social e a democracia.

Além disso, o enfrentamento por parte das grandes potências aos países
fundamentalistas também se dá em função do receio de se conseguir apresen-
tar a via fundamentalista como uma alternativa para outras nações de orien-
tação islâmica. O crescimento do FI representa um perigo para os países que
ocupam posição privilegiada no contexto da economia mundial, dado que os FIs
expõem uma oposição radical aos valores e a influência econômica e cultural
dos países ocidentais.

Mesmo com todos os esforços que têm sido feitos em escala mundial, a reali-
dade demonstra que o FI conseguiu crescer em todo o mundo em que predomina
a religião islâmica. A título de exemplo desses países com fortes marcas desse
modo particular de ver o mundo, podemos citar a Argélia e a Líbia, na África, e o
Afeganistão e o Paquistão, na Ásia.

O processo de desenvolvimento do fundamentalismo islâmico se intensi-


ficou com a derrocada do nacionalismo pan-arábico, ou seja, a constituição de
novos Estados-nação no molde nacionalista que se basearam em modelos pró-
ximos à lógica dos Estados ocidentais com marcas da orientação com base na

92
GEOPOLÍTICA DOS CONFLITOS ÉTNICO-NACIONALISTAS E
Capítulo 2 SEPARATISTAS EM FACE AOS DESAFIOS MUNDIAIS NO SÉCULO XXI

perspectiva da democracia que dá margem para a rejeição da perspectiva oci-


dental de modo rígido com caráter antiocidental, e retomada da forma religiosa
de conduzir a política.

Os grupos de fundamentalistas têm atuado em rede em uma tentativa de com-


bate à influência da cultura judaico-cristã, sobretudo com fortes manifestações de
antiamericanismo. Além disso, é notória a expressão do FI como um importante
polo geopolítico com reflexos globais, como foram os casos dos ataques terroristas
de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos, a guerra EUA-Iraque, a Primavera
Árabe etc. Esses eventos, dentre outros, elevaram as discussões sobre a crise dos
Estados muçulmanos e os fundamentalismos para uma pauta global, a qual ultra-
passou os limites do oeste asiático e o norte africano (LIMA, 2012).

Os discursos e práticas políticas desses movimentos vêm tendo


papel central na atualidade do mundo muçulmano, seja em sua
versão mais extremista (por exemplo, a al-Qaeda, o Hamas
e o Hizbollah), seja nas versões mais modernas, inseridas
em estruturas governamentais (como a atual Irmandade
Muçulmana egípcia e o AKP turco) (LIMA, 2012, p. 13).

Na visão de Prado (2009), a defesa da democracia e a sua relação como


o capitalismo são marcas que expressam um cenário em que se divide as
opiniões entre aqueles que se posicionam contente com as benesses lucrativas
e a acumulação do capitalismo democrático e os que estão insatisfeitos com a
exploração e a opressão resultante do uso da força por parte do governo em
defesa de seus interesses nada democráticos. Em síntese, as leis islâmicas
não comportam plenamente a democracia, embora se possa fazer ajustes para
uma condução pacífica com a jurisprudência islâmica que se posiciona acima de
qualquer determinação democrática.

O capitalismo, e tudo que ele representa, pressiona a ética


muçulmana e a faz adaptar à nova realidade, às novas
propostas vindas do ocidente. A reação a esta pressão pode
vir sob forma de empreendedorismo, crescimento comercial
internacional e nacional, acréscimos culturais ao cotidiano
do povo a partir das novas relações estabelecidas, de novos
elementos incluídos no cotidiano da população. Mas também
pode gerar reações agressivas e radicais por parte daqueles
que não aceitam este imbricamento capitalista e ocidental e as
deturpações das palavras do Profeta (PRADO, 2009, p. 235).

Com base em Wagner (2010), percebemos que a ideia de cultura assume


papel crucial nos problemas geopolíticos, com atenção especial aos modos pe-
culiares de vida das distintas culturas. Portanto, é preciso considerar as origens
de determinados comportamentos culturais e, assim, ser capaz de construir expli-
cações sobre as realidades com base nos elementos culturais constituintes. Por

93
Fundamentos de Geopolítica

conseguinte, olhar para o fundamentalismo islâmico e suas repercussões cultu-


rais nos permite entender que isso agrega para a análise geopolítica conclusões
mais gerais e abrangentes. É uma forma que a geografia pode se valer para com-
preender os conflitos por meio de um exame acurado de certas experiências, sem
desconsiderar suas influências.

Ao consultarmos o pensamento de Duncan (2010), deduzimos que o FI é


algo que não pode existir sem os corpos e a geografia que lhe dá vida. Ao mesmo
tempo é algo que ultrapassa essas pessoas e que constrói sentido para suas vi-
das. Assim, mesmo dependendo de eventos históricos e das condições socioeco-
nômicas se estabelece como uma entidade estruturada em processos e desejos
próprios que impulsionam as pessoas, mesmo que isso não esteja muito claro ou
evidenciado. Nesse tom, o FI é em si uma força cultural com capacidade de ação
que consegue alcançar pessoas em distintas comunidades, com recortes, confor-
me seu interesse, no nível socioeconômico e relações com regiões específicas
que apontam em direção a um conjunto de valores, fundamentos e princípios.

Destarte, é uma força controladora que pesa nas percepções dos sujeitos e
função da internalização dos postulados do FI de modo a revelar os mecanismos
que uma determinada configuração cultural consegue definir o comportamento.
Assim, faz com que a cultura seja capaz de produzir o comportamento. Na práti-
ca, isso ocorre por meio da mudança de personalidade construída a partir de um
determinado caráter cultural que pode ser um nacionalismo ou até mesmo uma
religião. No nosso entendimento, filiados com a compreensão de Duncan (2010),
precisamos nos atentar ao fato de que uma abordagem geográfica do FI pode
repercutir no desvio da atenção do ponto geral para aspectos secundários que
podem se configurar em estereótipos, os quais não colaboram para a construção
de explicações sobre a realidade concreta.

Atividades de Estudo:

1) Discuta o Fundamentalismo Islâmico apontando qual a sua


relação com algumas transformações geopolíticas recentes.

94
GEOPOLÍTICA DOS CONFLITOS ÉTNICO-NACIONALISTAS E
Capítulo 2 SEPARATISTAS EM FACE AOS DESAFIOS MUNDIAIS NO SÉCULO XXI

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Notamos, a partir da exposição deste capítulo, que a geopolítica utilizada
para pensar os conflitos no mundo se estabelece como um conhecimento prático
que suscita interpretações interescalares que viabilizam pensar a unidade do
fenômeno sob o ponto de vista espacial no contexto da pluralidade de interesses
e compreensões que envolvem fatores históricos, sociais, culturais, políticos
e econômicos. As disputas espaciais estão no cerne ou nos traços principais
dos conflitos e as suas consequências não se restringem ao plano local ou ao
regional. Na nova ordem mundial, os territórios estão cada vez mais integrados
e inter-relacionados. Então, não há mais que se falar em conflitos locais e sim
embates locais com efeitos globais.

Percebemos nas nossas análises que a geopolítica é, a rigor, também,


um campo de choques de recepções de discursos, em que o imperialismo, o
conservadorismo e o autoritarismo têm prevalecido em detrimento da democracia,
do pensamento progressista e da perspectiva pacifista. E o seu entendimento
evidencia as formas de condução de efetivações territoriais em distintos pontos
do globo; elucidando as estratégias de atuação e as divergências de concepções
com ressonância nas consolidações de fronteiras atreladas aos modos de
expansionismos e aos equilíbrios dinâmicos das fronteiras atuais.

A compreensão da geopolítica dos conflitos deve contribuir para a construção


de uma geografia que consiga colaborar para a efetivação de outros padrões
de relacionamento e de interpretação das realidades, de maneira a fomentar
a constituição de instrumentos capazes de beneficiar a política a serviço das
geografias dos povos. Trata-se de potencializar os usos das informações e
reflexões para a promoção de qualidade de vida para as populações e subsidiar
a resolução de seus conflitos, posicionando questões teóricas que possam dar
sustentação à abertura de horizontes ao ponto de edificar novos parâmetros para
as relações internacionais em nome da paz e do bem-estar.

Assim, entendemos que a relação entre geografia e política é crucial para


oferecer esse substrato com ênfase na dimensão espacial das relações entre
os povos, fato que possibilita assinalar referenciais para a valorização das
especificidades e peculiaridades socioculturais. O diálogo entre os diferentes
deve ser uma máxima na construção de relações mais saudáveis e humanamente
viáveis. Isso porque, no limite, estamos tratando de direitos humanos que são
distorcidos e desrespeitados em nome de interesses de determinados grupos que
querem impor suas óticas a qualquer custo como forma de ampliar seus lucros
e assegurar seus benefícios, mesmo que para isso se sacrifique contingentes
enormes de pessoas.

95
Fundamentos de Geopolítica

REFERÊNCIAS
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GEOPOLÍTICA DOS CONFLITOS ÉTNICO-NACIONALISTAS E
Capítulo 2 SEPARATISTAS EM FACE AOS DESAFIOS MUNDIAIS NO SÉCULO XXI

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98
C APÍTULO 3
A POSIÇÃO DO BRASIL NA
GEOPOLÍTICA MUNDIAL
A partir da perspectiva do saber-fazer, são apresentados os seguintes
objetivos de aprendizagem:

 dominar instrumentos interpretativos para a apresentação de um pensamento


acerca da geopolítica do Brasil no cenário mundial;
 compreender a importância do conhecimento acerca da geopolítica, conside-
rando a realidade brasileira; e
 identificar as novas tendências de definições da geopolítica mundial, contextu-
alizando o Brasil em tal cenário, com atenção especial para as consequências
no âmbito das relações entre espaço e poder.
Fundamentos de Geopolítica

100
Capítulo 3 A POSIÇÃO DO BRASIL NA GEOPOLÍTICA MUNDIAL

1 CONTEXTUALIZAÇÃO
Neste terceiro capítulo, estudaremos alguns dos principais pontos a respeito
do posicionamento brasileiro na geopolítica mundial. Considera-se, portanto, que
o Brasil possui um histórico de desenvolvimento de sua importância geopolítica
no sistema global de relações entre os estados nacionais, nos campos político,
econômico, social, cultural e também bélico.

Veremos que a questão territorial do Estado Nacional brasileiro é fundamen-


tal para que possamos debater sobre a questão do Brasil no sistema geopolítico
global. Por se tratar do quinto país em extensão territorial (depois da Rússia, Ca-
nadá, China e Estados Unidos), possuir grande quantidade de recursos naturais,
hídricos, ambientais e também demográficos faz com que nosso país assuma pro-
tagonismos em relações geopolíticas de diferentes dimensões e interesses, bila-
teralmente ou em blocos geopolíticos diversos.

FIGURA 1 – PAÍSES MAIS EXTENSOS DO MUNDO

FONTE: <https://cnae.ibge.gov.br/en/component/content/article/94-7a12/7a12-vamos-
conhecer-o-brasil/nosso-territorio/1461-o-brasil-no-mundo.html>. Acesso em: 26 dez. 2019.

101
Fundamentos de Geopolítica

Ao pensarmos na questão geopolítica nos dias atuais é preciso que faça-


mos um esforço de atualização dos seus principais temas de ocorrência e re-
corrência temática e, desta forma, o panorama brasileiro torna-se ainda mais
relevante, por possuir em seu ínterim geopolítico questões como as reservas de
água potável, combustíveis fósseis, diversidade geoambiental, ações relaciona-
das às agendas globais de conservação e preservação do meio ambiente, den-
tre outras situações de interesse global que permeiam as principais discussões
geopolíticas contemporâneas.

Nos dois subtópicos que formam o desenvolvimento deste último capítulo de


nossos estudos, veremos justamente essa questão de como, em um primeiro mo-
mento, a geopolítica brasileira traça e compõe seus principais pontos definidores
interna e externamente. E, num segundo momento, teremos, especificamente, a
questão da geopolítica nacional brasileira posicionada no jogo de poderes e inte-
resses das potências globais, especialmente a partir do final do século XX e início
do século XXI, bem como o papel do Brasil nesse contexto.

Diferentes autores foram consultados, junto a seus conceitos, teorias e fun-


damentações a respeito da geopolítica, para que pudéssemos aprofundar a temá-
tica do posicionamento brasileiro no sistema geopolítico global. Coloca-se essa
observação, no tocante ao comentário de Castro (1999), sobre a Geografia Políti-
ca e a Geopolítica, que transitaram na historiografia política, econômica e cultural
brasileira ao longo dos séculos de maturação de nossa identidade geopolítica:
“Para diferenciar uma da outra podemos dizer que a Geografia Política é como
a fotografia, portanto, estática; enquanto a Geopolítica é como o filme, tem movi-
mento, é dinâmica” (CASTRO, 1999, p. 23).

Nos próximos subtópicos teremos, então, este caminho a percorrer, de modo


a relevar os elementos constituintes da identidade geopolítica brasileira e, principal-
mente, o seu alinhamento aos interesses territoriais, políticos e econômicos globais,
encontrados e interligados aos aspectos territoriais do Estado nacional brasileiro.

102
Capítulo 3 A POSIÇÃO DO BRASIL NA GEOPOLÍTICA MUNDIAL

2 GEOPOLÍTICA BRASILEIRA
FIGURA 2 – O BRASIL E SUAS BASES GEOPOLÍTICAS

FONTE: <https://bit.ly/34uHNSh>. Acesso em: 15 dez. 2019.

Na Figura 2, observamos um conjunto de globos terrestres, na representação


do principal objeto de estudo da geopolítica, que são as relações de poder nos
territórios componentes dos diferentes estados nacionais e, eventualmente, na-
ções ou povos, no sistema global de forças estatais. Tais forças geopolíticas são
formadas por interesses, objetivos, estratégias de desenvolvimento e crescimento
econômicos, questões culturais e ambientais, situações pretéritas ou projeções de
futuros de médio ou longo prazo, alianças e distanciamentos, entre outros (AN-
DRADE, 2001; CASTRO; GOMES; CORRÊA, 1995; TOSTA, 1984).

Para que possamos compreender a geopolítica brasileira no cenário mundial


é preciso que façamos um breve resgate teórico-conceitual do próprio entendi-
mento da potência territorial como referência epistemológica nos estudos geo-
políticos, para que possamos avançar nos aspectos constituintes da geopolítica
brasileira (ARRIGH, 1996; CASTRO, 2005). Desse modo, de acordo com Santos
(2002, p. 9), na perspectiva geográfica das relações de poder e na própria geogra-
fia como ciência, o território:

[…] alcança neste fim de século a sua era de ouro, porque a


geograficidade se impõe como condição histórica, na medida
em que nada considerado essencial hoje se faz no mundo
que não seja a partir do conhecimento do que é Território.

103
Fundamentos de Geopolítica

O Território é o lugar em que desembocam todas as ações,


todas as paixões, todos os poderes, todas as forças, todas
as fraquezas, isto é onde a história do homem plenamente
se realiza a partir das manifestações da sua existência. A
Geografia passa a ser aquela disciplina mais capaz de mostrar
os dramas do mundo, da nação do lugar.

Na mesma linha de raciocínio de Santos (2002), dispomos do pensamento


do francês Raffestin (1993, p. 144), que nos faz o seguinte alerta teórico-concei-
tual: “[…] evidentemente o território se apoia no espaço, mas não é o espaço. É
uma produção, a partir do espaço”. O autor coloca a ressalva do território como
desmembramento metodológico e conceitual da própria noção de espaço geo-
gráfico, pelo fato de, no entendimento do que é território já estarem presentes,
de forma imbricada e inerente, questões de natureza histórica, cultural, política e
econômica, que fomentarão toda a base do entendimento e problematização da
geopolítica. Para tanto, recorremos à lição de Raffestin (1993, p. 143), a qual nos
ensina que:

É essencial compreender bem que o espaço é anterior


ao território. O território se forma a partir do espaço, é o
resultado de uma ação conduzida por um ator sintagmá-
tico (ator que realiza um programa) em qualquer nível.
Ao se apropriar de um espaço, concreta ou abstrata-
mente (por exemplo, pela representação), o ator “terri-
torializa” o espaço. [...] O território, nessa perspectiva, é
um espaço onde se projetou um trabalho, seja energia
e informação, e que, por consequência, revela relações
marcadas pelo poder.

E o território, nesses termos colocado pelo autor, será tanto o protagonis-


ta como o ponto centrípeto ao qual todas as questões geopolíticas se voltarão
em alguma medida, já que a geopolítica passa a ser a consciência geográfica e
territorial do Estado, sua materialização e incorporação das estratégias de po-
der, controle e desenvolvimento nacional, como nos evidencia as contribuições de
Castro (1999, p. 25), a saber: “Convertida na consciência geográfica do Estado,
a Geopolítica pode prestar serviços às causas da guerra como também às da
paz, desde que adequadamente formalizada”. Ainda de acordo com a visão dessa
pesquisadora, a geopolítica “Poderá, assim, traçar metas para um bom governo
fundamentando suas diretrizes no setor da integração, no aproveitamento siste-
mático de seu espaço e posição” (CASTRO, 1999, p. 25).

104
Capítulo 3 A POSIÇÃO DO BRASIL NA GEOPOLÍTICA MUNDIAL

A Geografia Política trata de questões das ações do Estado, em


diferentes níveis de poder, local, regional, nacional ou global (blocos
regionais), especialmente no que tange ao planejamento e interven-
ções de natureza econômica. Já a Geopolítica diferencia-se da Ge-
ografia Política por possuir como principal foco a questão do territó-
rio como fonte de poder para os Estados nacionais, desde o início de
desenvolvimento deste campo de estudos, ou seja, das fronteiras e
limites do espaço geográfico e sua relação com os interesses estatais.

As dimensões espaciais dos fatos do poder foram negligen-


ciadas. A geografia política voltou-se prematuramente para a
análise do Estado e não soube dissecar as engrenagens dos
governos e sua articulação sobre a sociedade civil. A parte de
influência, autoridade e poder que existe na sociedade civil à
margem das estruturas propriamente políticas foi esquecida
pela maioria dos sociólogos e economistas e exagerada pelos
marxistas que, em certa medida, negaram a importância do
Estado, elemento da superestrutura, tratado com um desprezo
um pouco altaneiro. Uma visão justa dos problemas implica
que a extensão e a distância sejam levadas em conta em toda
interpretação dos elementos sociais, e que seja concedido
um lugar às assimetrias das arquiteturas sociais (BURDEAU,
2005, p. 215).

Os conflitos de interesses entre os Estados nacionais, portanto, definem,


estruturam e direcionam os estudos e desenvolvimento das temáticas geopolíticas.
Em cada caso específico, a depender do ponto de referência geográfico em que
se esteja localizada a análise, observaremos nichos de discussões geopolíticos,
como ocorre, por exemplo, em situações energéticas, ambientais ou de recursos
naturais no Brasil, por exemplo. Essa definição dos temas geopolíticos pode ser
observada nas colocações de Castro (2005, p. 41):

[...] é possível afirmar que as questões e os conflitos de in-


teresses, surgem das relações e se territorializam, ou seja,
materializam-se em disputas entre esses grupos e classes so-
ciais para organizar o território da maneira mais adequada aos
objetivos de cada um, ou seja, do modo mais adequado aos
seus interesses. Essas disputas no interior da sociedade criam
tensões e formas de organização do espaço que definem um
campo importante da análise geográfica. Neste sentido, pode-
mos indicar que é na relação entre política – expressão e modo
de controle dos conflitos sociais – e o território – base material
e simbólica da sociedade – que se encontram os temas e ques-
tões do campo da geografia política.

105
Fundamentos de Geopolítica

Não é por acaso, por conseguinte, que na situação brasileira, observamos


sempre um direcionamento das temáticas geopolíticas para tons mais ufanistas
em relação ao território nacional, especialmente na questão de sua extensão e
riqueza de recursos como fonte de poder do Estado brasileiro. Essa retórica geo-
política possui origem ainda no período colonial e foi se reinventando nas fases de
políticas e de governos centrais no Brasil.

Demarcamos que no período histórico do final do século XIX e início do sécu-


lo XX, o Brasil estava em uma fase de afirmação e materialização de suas princi-
pais, e algumas atuais, fronteiras. O movimento geopolítico desse período era vol-
tado a uma visão de organização interna desses limites territoriais, para posterior
fase de abertura internacional e parcerias econômicas na fase industrial brasileira,
nas primeiras décadas do século XX. Na Figura 3, podemos constatar esses limi-
tes territoriais da jovem república brasileira.

FIGURA 3 – O TERRITÓRIO BRASILEIRO NO FINAL DO SÉCULO XIX

FONTE: <https://bit.ly/2wnoRrL>. Acesso em: 16 dez. 2019.

106
Capítulo 3 A POSIÇÃO DO BRASIL NA GEOPOLÍTICA MUNDIAL

Já no final do século XVIII, muitas transformações foram conduzidas por


inquietações políticas e disputas de poder no território brasileiro. O inconformismo
com a política de Portugal marcou significativamente esse tempo de revoltas em
prol da separação com a metrópole portuguesa. A título de exemplos expressivos,
podemos citar, dentre outros, as conjurações de Minas Gerais (1789), Rio de
Janeiro (1794), Bahia (1798) e Pernambuco (1801). A Figura 4 ilustra a localização
e a distribuição desses eventos da história brasileira no nosso território.

FIGURA 4 – CONFLITOS NO PERÍODO COLONIAL

FONTE: <http://historiaempartes.blogspot.com/2008/10/conflitos-no-
-brasil-perodo-colonial.html>. Acesso em: 26 dez. 2019.

Como consequência dessas forças separatistas e conflitos de interesses


das elites locais e suas relações com Portugal, a independência política do Brasil
aconteceu em 1822, porém sua independência não afetou a constituição do ter-
ritório brasileiro. Destacamos que, durante o período imperial, de 1822 a 1889, o
principal desafio imposto foi a manutenção e consolidação da unidade territorial
em face das revoltas locais.

É preciso que tenhamos claro que os interesses do Estado estão voltados


para a potência do território como fonte, referência e foco do poder das institui-
ções estatais. Assinalamos, ainda, que no período imperial e ainda no início da

107
Fundamentos de Geopolítica

fase republicana brasileira houve um movimento de fortalecimento interno das


fronteiras nacionais, que podem ser observadas em seu processo de maturação
configurado na Figura 3.

Esse interesse e centralização dos recursos naturais, assim como, de modo


especial, os interesses de grupos hegemônicos na estabilização territorial é ins-
tituído como foco dos pensadores geopolíticos, os quais eram compostos sobre-
tudo por militares, até o início do século XX. Compartilhamos que, em relação ao
território brasileiro:

A preocupação central dos geopolíticos brasileiros e dos tec-


noburocratas, em relação às políticas territoriais, passava pela
construção de vias de circulação e pela exploração, à exaus-
tão, dos recursos naturais, desde a mineração até o uso do
solo. Ora, em todos esses aspectos está presente a questão
da técnica. O próprio conceito de recurso natural, como fator
de uso que uma riqueza natural adquire perante as necessida-
des de certo grupo social, já traria à baila o conceito de circu-
lação, pois a produção – exatamente para adquirir significado
econômico – exigiria movimento, contato, deslocamento e tro-
ca social (BOMFIM, 2007, p. 31).

A respeito da visão ufanista do território brasileiro, podemos


destacar dois autores do final do século XIX e início do século XX,
que representam bem essa forma de refletir sobre os aspectos
naturais do Brasil, principalmente Graça Aranha, em obras como
Canaã (1902) e Viagem Maravilhosa (1929) e Afonso Celso em sua
obra Porque me ufano do meu país, de 1900. Muito da literatura
parnasianista brasileira e, também, de autores e obras do conhecido
movimento modernista se amparavam nos argumentos ufanistas,
edenistas e futuristas sobre o Estado nacional brasileiro, que refletia
muito da visão geopolítica da época.

Sugerimos assistir ao vídeo O que é o Ufanismo?, publicado no


Canal Parabólica. O vídeo pode ser acessado no seguinte endere-
ço eletrônico: https://www.youtube.com/watch?v=MOKhNW_H2RY.
Esse vídeo traz uma reflexão acerca do ufanismo que foi muito utili-
zado na história do Brasil e está ligado à ideia de nação e ao exagero
do apreço à pátria. Pontuamos que a vanglória da pátria está presen-

108
Capítulo 3 A POSIÇÃO DO BRASIL NA GEOPOLÍTICA MUNDIAL

te no nosso hino nacional como forma de mascarar as nossas ma-


zelas sociais. Por exemplo, no ano de 1969, os militares avançaram
ainda mais com o ufanismo como forma de promover o amor ao Bra-
sil acima de qualquer coisa. Inclusive, nos anos 1970, a seleção bra-
sileira foi utilizada como fonte para gerar o sentimento de ufanismo
que proporcione o orgulho e se esqueça ou desconsidere um pouco
dos problemas sociais.

Sugerimos assistir ao vídeo Pré-Calouro Aula 11 Literatura:


Parnasianismo (2016), publicado no Canal Pré-Calouro UEA. O vídeo
pode ser acessado no seguinte endereço eletrônico: https://www.
youtube.com/watch?v=IhEj3oH9Jec. Nesse vídeo é assinalado que
esse movimento literário tem como característica central defender a
arte pela arte, sem se comprometer com as dificuldades de reverter
o quadro social ou expor as mazelas sociais. Em síntese, o prazer do
poeta era escrever dentro do que se pregava como perfeição formal
(rimas ricas sobre as rimas pobres e o rigor métrico levado ao limite
da capacidade do uso da língua).

Sugerimos assistir ao vídeo Modernismo no Brasil | Enem,


publicado no Canal Bitinices. O vídeo pode ser acessado no seguinte
endereço eletrônico: https://www.youtube.com/watch?v=fTcXj4IAviw.
Nesse vídeo, tal movimento tem como marcas, em diferentes fases,
o antiacademicismo, a aproximação com as vanguardas europeias,
a busca da brasilidade, o cubismo, o dadaísmo, o expressionismo,
o surrealismo, o futurismo, a denúncia da realidade social do país,
dentre outros aspectos.

A partir da leitura das figuras apresentadas até agora, podemos observar o


movimento de estabilização das questões de fronteira internas do Estado nacional
brasileiro, para posterior ação geopolítica no campo externo, em parcerias
bilaterais ou em blocos econômicos específicos.

109
Fundamentos de Geopolítica

FIGURA 5 – FRONTEIRAS BRASILEIRAS ATUAIS DO TERRITÓRIO

FONTE: <https://www.guiageo.com/pictures/brasil-politico.jpg>. Acesso em: 15 dez. 2019.

Na Figura 5, observamos as atuais fronteiras do Brasil, após todo o período


de afirmação territorial perpassado ao longo do século XIX, principalmente. No
Quadro 1, podemos nos aprofundar nas principais fases geopolíticas brasileiras,
muitas vezes mais voltadas ao planejamento territorial propriamente dito, para
posterior foco geopolítico nacional.

QUADRO 1 – FASES DA GEOPOLÍTICA BRASILEIRA


Fase Período Características
Neste período, o Brasil vivia o seus grandes ciclos econô-
micos do início da exploração portuguesa, especialmente
Séculos XVI,
em produtos como pau-brasil (de forma seminal nas primei-
Colonial XVII, XVIII e iní-
ras décadas do século XVI), e principalmente cana-de-açú-
cio do século XIX
car e ouro, este último fortalecendo em grande medida o
papel do Estado no controle do território brasileiro.

110
Capítulo 3 A POSIÇÃO DO BRASIL NA GEOPOLÍTICA MUNDIAL

A fase imperial da geopolítica nacional brasileira esteve


voltada, principalmente, para dois pontos principais, o esta-
belecimento das fronteiras internas, em conflitos regionais,
Imperial Século XIX
nacionalistas ou separatistas, e a afirmação do Brasil como
referência de poder territorial na América do Sul, em ações
tanto de D. Pedro I como D. Pedro II.
Nesta fase geopolítica, a retórica militar já estava presente
na elaboração das estratégias estatais para o território bra-
sileiro, especialmente do ponto de vista econômico, com a
Republicana
De 1889 até 1930 centralização das decisões geopolítica partindo de estados
(Café com Leite)
como São Paulo (fazendeiros de café) e Minas Gerais (pro-
dução de leite e derivados), e numa visão não industrial de
fortalecimento do território brasileiro.
Este período da geopolítica nacional foi marcado, principal-
mente, pelo fortalecimento das empresas estatais de extra-
Republicana ção dos recursos naturais como ferro, petróleo e, também,
De 1930 a 1945
(Estadonovista) em campanhas tanto de fortalecimento industrial como de
exploração do interior do Brasil, uma das bandeiras de go-
verno de Getúlio Vargas e sua Marcha para o Oeste.
Período marcado pelo crescimento da indústria automobi-
lística, a construção de Brasília e afirmação do Brasil como
nova referência industrial no cenário mundial, por meio das
Desenvolvi-
De 1945 a 1963 ações estatais de desenvolvimento territorial promovidas
mentista
por Juscelino Kubitschek, por exemplo, por meio das supe-
rintendências regionais nesta fase das questões políticas e
territoriais brasileiras.
A retórica militar brasileira faz um movimento de evolução
da geografia política, mais forte anteriormente em relação
ao território nacional, para uma visão mais geopolítica, ou
seja, de alinhamento do território como fonte de poder na-
cional. A visão integralista possui sua fonte nas principais
Integralista De 1964 a 1985 teorias geopolíticas do início do século XX, de união, cen-
tralização e desenvolvimento econômico do país, em refe-
rência aos cenários bélicos da defesa nacional observado
do início da primeira guerra mundial até o auge da Guerra
Fria, com início das preocupações ambientais nas ques-
tões geopolíticas brasileiras.
Na redemocratização brasileira, no final do século XX, o prin-
cipal aspecto geopolítico do estado brasileiro foi a aproxima-
ção de seus parceiros regionais, como foi o caso do Merco-
sul e, também, na adoção da agenda neoliberal como fonte
de desenvolvimento de novas parcerias globais, com blocos
Republicana (Re- De 1985 aos
como União Europeia, países asiáticos e Estados Unidos
democratização) dias atuais
e, também, o fortalecimento comercial brasileiro no cenário
geopolítico global, havendo diferenciações destes direciona-
mentos, a depender das posições político-ideológicas em vi-
gência no governo federal, e forte crescimento do papel das
questões ambientais na geopolítica brasileira.
FONTE: O autor

111
Fundamentos de Geopolítica

O amadurecimento geopolítico brasileiro, como observado no Quadro 1,


ocorreu principalmente a partir da República Velha, e as fases do Estado Novo
e governos desenvolvimentistas e militares. Na Figura 6, temos os comandos
militares brasileiros, que apresentam as divisões internas das decisões
geopolíticas brasileiras, resultantes deste percurso histórico, conceitual e prático
da Geopolítica nacional do Brasil.

FIGURA 6 – OS COMANDOS MILITARES DO TERRITÓRIO BRASILEIRO

FONTE: <https://www.politize.com.br/exercito-brasileiro-
estrutura-e-funcoes/>. Acesso em: 15 dez. 2019.

A estabilidade geopolítica interna permitiu que o Brasil, especialmente ao lon-


go da segunda metade do século XX, voltasse sua atenção para o seu papel de
referência territorial no âmbito da América do Sul: “A preocupação dos primeiros
geopolíticos brasileiros com a unidade política do território não desaparece, mas
ganha um novo significado, traduzido na preocupação de acompanhar as transfor-
mações recentes verificadas no Brasil: é o desenvolvimento econômico, integran-
do verdadeiramente o território nacional” (VLACH, 2003, p. 9). A geoestratégia

112
Capítulo 3 A POSIÇÃO DO BRASIL NA GEOPOLÍTICA MUNDIAL

militar já demonstrava esse percurso de desenvolvimento como pode-se constatar


nas figuras 7 e 8:

FIGURA 7 – A SEGURANÇA NACIONAL

FONTE: Couto e Silva (1981, p. 26)

Percebe-se, tanto na Figura 7 como na Figura 8, o esforço teórico e meto-


dológico por uma definição da geopolítica brasileira, muitas vezes promovida por
militares e teóricos ligados, por exemplo, à Escola Superior de Guerra ou a órgãos
de comando e planejamento geoestratégico nacionais do governo, como reitera
Vlach (2003, p. 7): “[...] o princípio número um da ESG explicita que a segurança
nacional é função, antes de mais nada, “do potencial geral da nação”, não se
limitando ao seu potencial militar”. E reforça a autora que: “Ao longo dos anos, es-
sas reflexões levaram ao aparecimento de uma doutrina brasileira de segurança
nacional. E o objetivo da ESG é o de formar as elites dirigentes civis e militares,
preparando-as para a implantação dessa doutrina” (VLACH, 2003, p. 7).

“O Brasil com o Uruguai e Argentina, integrados na Região Natural Atlântica, se


beneficiam do melhor posicionamento nesse oceano. Mas o Brasil, que alia o seu
posicionamento à presença, é o único país do continente sul-americano a contatar
com as demais Regiões Naturais, como múltiplo vetor” (CASTRO, 2012, p. 30).

113
Fundamentos de Geopolítica

Na dissertação de mestrado de Izan Reis de Araújo, intitulada


A Projeção Geopolítica do Brasil na América Latina e os Desafios da
Integração Sul-Americana é possível encontrarmos tanto um histó-
rico como um tratamento epistemológico do caminho de construção
dos principais aspectos constituintes da Geopolítica brasileira, espe-
cialmente no ínterim de sua região global de influência e relações
estatais com demais Estados nacionais, ou seja, na América do Sul
especificamente e América Latina num âmbito maior de alcance do
trabalho do autor. Esse trabalho pode ser acessado no seguinte en-
dereço eletrônico: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8136/tde-
23052018-134306/publico/2018_IzanReisDeAraujo_VCorr.pdf.

Atualmente, o Mercosul, originalmente idealizado em 1991 por meio do Tra-


tado de Assunção, e oficialmente fundado em 1994, tem como prerrogativa o ali-
nhamento de relações comerciais unificadas entre os países que compõem o cha-
mado Cone Sul da América Latina. Seus atuais membros são: Brasil, Argentina,
Paraguai e Uruguai. Há também membros associados compostos por Chile, Bolí-
via, Peru, Colômbia e Equador e, atualmente, a Venezuela encontra-se suspensa
em suas relações comerciais e diplomáticas no bloco.

A agenda política do MERCOSUL abrange um amplo espectro


de políticas governamentais tratadas por diversas instâncias do
Bloco, que incluem reuniões de ministros, reuniões especializa-
das, foros e grupos de trabalho. Os Estados Partes e Estados
Associados promovem cooperação, consultas ou coordenação
em virtualmente todos os âmbitos governamentais, o que permi-
tiu a construção de um patrimônio de entendimento e integração
de valor inestimável para a região (MRE, 2020, s.p.).

Autores como Andrade (2001), Tosta (1984) e Castro (2010) observam em


seus trabalhos como o papel de protagonismo regional da geopolítica brasileira
possui especial atenção dos teóricos da geoestratégia, na esteira do desenvolvi-
mento do bloco regional formado pelos países do Mercosul. Em um dos seus tra-
balhos, Castro (1976) aponta o poderio de força geopolítica do Brasil não apenas
no Cone Sul, mas também no território antártico objeto de disputa de interesses
econômicos e territoriais, conforme disposto na Figura 8.

114
Capítulo 3 A POSIÇÃO DO BRASIL NA GEOPOLÍTICA MUNDIAL

FIGURA 8 – O BRASIL NO CONE SUL

FONTE: Castro (1976, p. 72)

A Figura 8, de Therezinha de Castro (1976), uma das teóricas da Escola


Superior de Guerra, evidencia esse amadurecimento conceitual de uma base

115
Fundamentos de Geopolítica

geopolítica nacional brasileira, que vai ao encontro da charge da Figura 9, que diz
respeito à localização geopolítica brasileira no jogo de interesses globais.

A autora defendia tanto o fortalecimento da importância e protagonismo do


Brasil na América do Sul, como também teorizou e defendeu o papel do Estado
nacional brasileiro na defesa de seus interesses econômicos e políticos em rela-
ção ao território antártico.

A busca pela referência de poder estatal, econômico, cultural, histórico e tam-


bém bélico no âmbito da América do Sul, no caso brasileiro, é uma forma de esta-
belecer e afirmar essa identidade geopolítica brasileira na região.

FIGURA 9 – A IDENTIDADE GEOPOLÍTICA

FONTE: <https://geografiaegeopolitica.blogspot.com/p/geopolitica-
em-quadrinhos.html>. Acesso em: 15 dez. 2019.

116
Capítulo 3 A POSIÇÃO DO BRASIL NA GEOPOLÍTICA MUNDIAL

A fundação do BRICS, em 2006, bloco econômico formado por Brasil, Rús-


sia, Índia, China e África do Sul obedece a esta curva de desenvolvimento da
identidade geopolítica brasileira, ou seja, inicia-se desde a estabilização de suas
fronteira internas, até o início do século XX, passa por um cenário de expansão e
protagonismo regional na América do Sul ao longo da segunda metade do século
XX, e acaba por expandir-se em uma agenda global do pensamento geopolítico
contemporâneo de formação de blocos de países economicamente semelhantes
por meio do BRICS, conforme Figura 10:

O BRICS é o agrupamento formado por cinco grandes países


emergentes - Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul - que,
juntos, representam cerca de 42% da população, 23% do PIB,
30% do território e 18% do comércio mundial. O acrônimo BRIC
foi cunhado em 2001 pelo banco de investimentos Goldman
Sachs, para indicar as potências emergentes que formariam,
com os Estados Unidos, as cinco maiores economias do mun-
do no século XXI. Em 2006, os países do BRIC deram início
ao diálogo que, desde 2009, tem lugar nos encontros anuais
de chefes de Estado e de Governo. Em 2011, com o ingresso
da África do Sul, o BRICS alcançou sua composição definitiva,
incorporando um país do continente africano. Desde o início de
seu diálogo, os países do agrupamento buscaram estabelecer
governança internacional mais condigna com seus interesses
nacionais, por meio, por exemplo, da reforma de cotas do Fun-
do Monetário Internacional, que passou a incluir, pela primei-
ra vez, Brasil, Rússia, Índia e China entre os maiores cotistas
(BRICS BRASIL, 2019, s.p.).

Seguindo as periodizações de Castro (1999), observamos que nos dois


casos da identidade regional e global da geopolítica brasileira, representada,
respectivamente, pelo Mercosul e BRICS, nos traz elementos tanto da ação do
Estado no território, campo dos estudos de Geografia Política, como também do
território como fonte de poder do Estado nacional, nesse caso o escopo principal
dos estudos geopolíticos. De acordo com Therezinha de Castro (1999, p. 23),
temos, portanto, o seguinte panorama teórico-conceitual que vai ao encontro do
que vimos até aqui:

Ciência da vinculação geográfica dos acontecimentos políti-


cos, a Geopolítica tem por objetivo principal o aproveitamento
racional de todos os ramos da Geografia no planejamento das
atividades do Estado, visando a resultados imediatos ou remo-
tos. Em razão disto, a Geopolítica pode ser considerada como
um estudo dos precedentes históricos em função dos ambien-
tes geográficos.

Veremos, no terceiro subtópico deste capítulo, que este princípio do aprovei-


tamento racional dos recursos e poderio territorial, no caso brasileiro em sua re-
lação à geopolítica global, encontra-se atualmente correlacionado, principalmente
às agendas energética e ambiental do sistema geopolítico mundial.

117
Fundamentos de Geopolítica

FIGURA 10 – OS PAÍSES DO BRICS

FONTE: <https://bit.ly/2UQguOL>. Acesso em: 15 dez. 2019.

O BRICS, portanto, demonstra uma das últimas fases de desenvolvimento da


geopolítica nacional brasileira, iniciada ainda em seu período colonial, e perme-
ada de fases, movimentos, ações e decisões do Estado brasileiro em relação ao
seu território como fonte de poder e interesses geopolíticos nacionais.

Os países que compõem o BRICS representam a inserção, de fato, do Brasil


em um bloco econômico regional, de alcance global, no jogo de forças geopolí-
ticas mundiais. Por se tratar de países com potencial similar ou equivalente ao
brasileiro, com exceção da Índia e China, o Brasil possui, junto a estes Estados
nacionais, um bloco robusto na geopolítica mundial, formado pela relação de inte-
resses e poderios territoriais na contemporaneidade.

Atividades de Estudo:

1) Observe a figura e responda aos dois questionamentos apresenta-


dos, na sequência, sobre os BRICS.

118
Capítulo 3 A POSIÇÃO DO BRASIL NA GEOPOLÍTICA MUNDIAL

FIGURA – OS BRICS E SEUS REPRESENTANTES

FONTE: <https://bit.ly/2yLyfqd>. Acesso em: 15 dez. 2019.

a) Por que a presença do Brasil no BRICS representa a inserção do


país na atual conjuntura geopolítica global de blocos econômicos
regionais?

b) A questão social, além da econômica, é um dos fatores que faz


com que haja similaridades entre os países dos BRICS. Quais se-
riam alguns desses aspectos sociais encontrados nestes países?

3 BRASIL E GEOPOLÍTICA MUNDIAL


FIGURA 11 – O XADREZ GEOPOLÍTICO GLOBAL E SEUS INTERESSES

FONTE: <https://bit.ly/2xbmHfh>. Acesso em: 15 dez. 2019.

119
Fundamentos de Geopolítica

Ao final do subtópico anterior, vimos como o BRICS é o passo mais atual da


configuração geopolítica brasileira, ou seja, é nessa perspectiva de projeção glo-
bal que devemos voltar nossos estudos, neste momento. Vimos, também, que a
primeira inserção da geopolítica brasileira fortemente no cenário global se deu por
meio do Mercosul, fundado em 1994, num período de fortalecimento da democra-
cia brasileira, após os eventos da ditadura militar, por duas décadas de controle
do Governo Federal.

Nas figuras 12 e 13, expomos como ponto de partida o avanço conceitual ini-
ciado na primeira parte deste capítulo, ou seja, a importância da questão geoestra-
tégica na conformação geopolítica brasileira. Na Figura 12, fruímos a organização
das estratégias geopolíticas nacionais, a partir do ponto de vista, ainda integralista,
dos militares na década de 1970 e, posteriormente, na Figura 13, Becker (1974) nos
apresenta uma visão da mesma visão geoestratégica nacional, tendo como referên-
cia principal as questões dos recursos naturais brasileiros, que viriam a se tornar o
principal foco de nossa agenda geopolítica global no século XXI.

FIGURA 12 – ESTRATÉGIA, GEOPOLÍTICA E GEOESTRATÉGIA

FONTE: Couto e Silva (1981, p. 103)

120
Capítulo 3 A POSIÇÃO DO BRASIL NA GEOPOLÍTICA MUNDIAL

Essa figura de Couto e Silva (1981) vai ao encontro da Figura 11, de abertura
deste subtópico, ou seja, é preciso que pensemos o posicionamento do Brasil,
geopoliticamente, no xadrez dos poderes e interesses dos Estados nacionais ao
redor do globo.

Veremos, posteriormente, alguns dos principais pontos-chave deste cenário


geopolítico mundial e papel do Brasil em algumas de suas principais questões.
Essas questões, da abertura do planejamento geopolítico e geoestratégico tam-
bém foram tratados, anteriormente aos tempos atuais, por Becker (1974), como
visto na figura seguir:

FIGURA 13 – PROPOSTA DE EQUILÍBRIO REGIONAL

FONTE: Becker (1974, p. 5)

Do resgate do referencial epistemológico e conceitual presente em Becker


(1974) e Couto e Silva (1981), bem como nos demais autores trazidos até este
momento, podemos avançar no debate dos temas geopolíticos que conectam o
Brasil ao jogo de poderes, interesses e forças políticas, ideológicas e econômicas,
entre os diferentes territórios globais.

121
Fundamentos de Geopolítica

Veremos, portanto, temas envolvendo a questão da água, as riquezas naturais


e geoambientais brasileiras, a agenda climática e nuclear, e as parcerias econômi-
cas contemporâneas que moldam e influenciam boa parte das decisões geopolí-
ticas brasileiras, especialmente no que tange ao papel protagonista brasileiro em
questões de impacto global envolvendo interesses ambientais, principalmente.

No site IBGE Educa, disponível do seguinte endereço eletrô-


nico: https://educa.ibge.gov.br/, é possível encontrarmos diferentes
propostas didático-pedagógicas de desenvolvimento de temáticas
geopolíticas contemporâneas por professores da Educação Básica.
É importante ressaltar que todo o material está relacionado às habili-
dades e competências da BNCC, ou seja, permite que da elaboração
do conteúdo às avaliações dos professores haja um percurso de dia-
logia com os temas geopolíticos contemporâneos propostos no site.

FIGURA 14 – OS INTERESSES COMERCIAIS GEOPOLÍTICOS

FONTE: <https://bit.ly/3aNlFER>. Acesso em: 15 dez. 2019.

122
Capítulo 3 A POSIÇÃO DO BRASIL NA GEOPOLÍTICA MUNDIAL

Como visto na Figura 13, a relação geopolítica e geoestratégica entre os


países centrais e periféricos do sistema global de poderes territoriais envolve
a busca pelo equilíbrio espacial dos interesses geopolíticos. Na Figura 14,
observamos dois grandes promotores geopolíticos de interesse econômicos,
comerciais, bélicos e de influência nos rumos da geopolítica global contemporânea:
China e Estados Unidos.

FIGURA 15 – PAÍSES DA UNIÃO EUROPEIA

FONTE: <https://pixabay.com/pt/images/search/uni%C3%A3o%20
europeia/>. Acesso em: 15 dez. 2019.

Ressalta-se, portanto, que o Brasil possui relações geopolíticas com ambas


potências, e os temas trazidos como aprofundamento do papel geopolítico bra-
sileiro em nível global alinha-se, em grande parte, aos interesses desses gran-
des representantes dos Estados nacionais ou, como visto na Figura 15, de blocos
econômicos de grande porte, como a União Europeia.

Muitos dos interesses envolvendo os países da União Europeia em relação


ao Brasil se dão na posição central do país no debate ambiental da atualidade.
Geopoliticamente, portanto, o Estado nacional brasileiro assume um papel de pro-
tagonismo em ações que sejam voltadas ao comprometimento e referência em
relação a recursos naturais, fontes energéticas, biodiversidade, e uso consciente
das reservas geoambientais do planeta.

123
Fundamentos de Geopolítica

Na Figura 16, temos um dos pontos cruciais da geopolítica global contempo-


rânea, que são os combustíveis fósseis. Neste contexto, o Brasil e seu papel no
sistema geopolítico atual possui um importante papel de protagonismo nas rela-
ções comerciais envolvendo tais recursos. Apesar de não possuir o melhor óleo
de consumo e comercialização global, o Brasil vem desenvolvendo importantes
tecnologias de extração de petróleo em campos marítimos, de modo a aprimorar
e exportar tais tecnologias para grandes potências do setor.

FIGURA 16 – OS COMBUSTÍVEIS FÓSSEIS

FONTE: <https://bit.ly/2wnChUF>. Acesso em: 15 dez. 2019.

Indicamos ler o texto de:

BETIM, Felipe. Contaminação por óleo no Nordeste deixará


sequelas no ecossistema marinho, na saúde e economia local.

124
Capítulo 3 A POSIÇÃO DO BRASIL NA GEOPOLÍTICA MUNDIAL

EL PAÍS, Edição Brasil, 27 de out. 2019. Disponível em: https://brasil.


elpais.com/brasil/2019/10/25/politica/1571959904_104809.html.
Acesso em: 16 mar. 2020.

Nesta reportagem do jornal El Pais, evidencia-se como a falta


de ação imediata do Brasil na questão dos vazamentos de óleo no
nordeste impacta negativamente, tanto do ponto de vista geopolítico
como também econômico, em relação aos interesses brasileiros de
papel protagonista nas questões ambientais contemporâneas, por
se tratar de uma figuração nas manchetes muito mais pelo o que
não fez do que as ações esperadas por um país tão rico no quesito
ambiental, como é o caso do território brasileiro.

No pensamento geopolítico brasileiro, como ressaltado no presente, em


autores como Couto e Silva (1981), Castro (1999; 2005), Arrighi (1996) e Tosta
(1984) encontramos o âmbito estratégico do território como foco principal.
A geoestratégia, nesse caso, molda-se, a depender do papel ou panorama de
recursos presentes no território de determinado Estado nacional, como ressalta
Couto e Silva (1981, p. 102):

O âmbito estratégico, por mais amplo que venha a ser nas


épocas de intranquilidade geral e ameaças onipresentes, é,
pois, bem mais restrito sempre que o político. Igual a este é, no
entanto, o campo da Geopolítica, a qual não se distingue, por
conseguinte, pela amplitude de seus fins, antes pela natureza
de seu método, concentrado, com ênfase especial, na análise
e interpretação dos fatores geográficos de base. E como a
Estratégia se inscreve na Política, a Geoestratégia integra, por
sua vez, a Geopolítica.

Como vultoso exemplo dessa importância do aprendizado geoestratégico, no


caso brasileiro, voltado para os recursos energéticos e naturais de nosso território
pode ser encontrado no já referido site do IBGE Educa (educa.ibge.gov.br) em
que é possível encontrar temáticas didático-pedagógicas que se entrelaçam com
as agendas ambientais que o Brasil faz parte no panorama geopolítico global.
Sobre a Cobertura e o uso da terra no Brasil, por exemplo, o site propõe a pro-
fessores de Geografia que trabalhem no âmbito geopolítico de tais temas com
os seguintes objetivos (https://educa.ibge.gov.br/professores/educa-atividades/
20816-atividade-cobertura-e-uso-da-terra-no-brasil-6-ao-9-ano.html):

• compreender o conceito de Cobertura da terra;


• estudar as classes de Cobertura e uso da terra;

125
Fundamentos de Geopolítica

• observar, através de mapa interativo, as mudanças da Cobertura da terra


no Brasil ocorridas entre o ano de 2000 e o de 2016; e
• realizar pesquisa sobre recuperação Campestre e Florestal.

E, em relação aos conteúdos que estão ligados a esses temas centrais da


questão do uso da terra no Brasil, o mesmo site também sugere elementos-chave
a serem discutidos na temática geopolítica com estudantes da Educação Básica,
conforme disposto a seguir:

• Cobertura e uso da terra.


• Leitura e interpretação de Mapas.
• Leitura e interpretação de gráficos.
• Desflorestamento.
• Expansão agrícola.
• Recuperação campestre e florestal.

Podemos, dessa maneira, fazer uma ponte desses conteúdos diretamente


com outro recurso ambiental amplamente presente na esteira do posicionamento
geopolítico brasileiro no âmbito mundial: a floresta Amazônica.

FIGURA 17 – FLORESTA AMAZÔNICA

FONTE: <https://bit.ly/2JMrrux>. Acesso em: 15 dez. 2019.

Na figura temos a floresta Amazônica brasileira, foco de algumas das princi-


pais agendas ambientais da geopolítica global contemporânea. Lembremos que
60% da totalidade do bioma amazônico se encontra em território brasileiro, fo-

126
Capítulo 3 A POSIÇÃO DO BRASIL NA GEOPOLÍTICA MUNDIAL

mentando o papel de protagonismo geoambiental do Brasil nas principais tratati-


vas internacionais que possuem a Amazônia como foco de seus interesses.

Conforme nos problematiza Myamoto (1981), ainda no final do século XX,


e também Becker (1974), o direcionamento geoestratégico da região amazônica
no sistema geopolítico global, o que observamos é o papel central dos recursos
naturais da região nas mesas de negociações globais a respeito da valorização e
potencial de exploração desses recursos não apenas pelo Brasil, mas por outras
potências globais e conglomerados internacionais, representados por essas po-
tências geopolíticas: “A região amazônica assumiu importância: a partir de então
inúmeras foram as análises realçando o seu valor econômico, político e estratégi-
co” (MYAMOTO, 1981, p. 81).

A Amazônia Legal corresponde à área de atuação da Supe-


rintendência de Desenvolvimento da Amazônia - SUDAM deli-
mitada no Art. 2º da Lei Complementar n. 124, de 03.01.2007.
A região é composta pelos Estados do Acre, Amapá, Amazo-
nas, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e Mato Grosso, bem
como pelos Municípios do Estado do Maranhão situados ao
oeste do Meridiano 44º. Possui uma superfície aproximada de
5.217.423 km², correspondente a cerca de 61% do território
brasileiro (IBGE, 2014, s.p.).

FIGURA 18 – O DESMATAMENTO NA AMAZÔNIA BRASILEIRA

FONTE: <https://bit.ly/2Xp8hTH>. Acesso em: 15 dez. 2019.

127
Fundamentos de Geopolítica

A questão do desmatamento da Amazônia brasileira se torna, dessa maneira,


um ponto central no debate geopolítico regional em se tratando de América do Sul
e global, se observamos os movimentos e ações de países centrais da geopolítica
global em relação à agenda de conservação da riqueza da biodiversidade na re-
gião, conforme observamos na Figura 17, que trata da extensão do desmatamen-
to nessa região do país.

Se resgatarmos as orientações epistemológicas da primeira seção deste ca-


pítulo, lembraremos da questão de como a elaboração de geoestratégias para o
território nacional são fundamentais na conformação geopolítica de um Estado na-
cional. No caso da floresta Amazônica, o que temos é um foco em seu papel de
centralização do foco de ações em uma possível hinterlândia regional na América
do Sul (BECKER, 1974; MYAMOTO, 1981; COUTO E SILVA, 1981; TOSTA, 1984).

Parte dos distúrbios e desencontros geopolíticos entre Brasil e blocos econô-


micos como União Europeia sobre a Amazônia ocorrem justamente por questões
envolvendo as ações do Estado brasileiro perante tais problemas, que gerariam
um impacto negativo não apenas para o território global, e não apenas na exten-
são nacional das fronteiras brasileiras.

Assim conceitua Becker (1974), a visibilidade, preocupação e interesse econô-


mico na região amazônica possui, especialmente, esse protagonismo geopolítico glo-
bal como referência de sua elevação a esse panorama de importância entre as forças
das potências locais e regionais do poder territorial no mundo contemporâneo:

Porção mais setentrional, mais larga e interiorizada do território


brasileiro, participando amplamente da massa continental sul-
americana - o Heartland - é a área mais distante da costa, fato
desfavorável num país que se forjou orientado para o mar. Tais
dimensões e posição situam-na igualmente a maiores distâncias
dos focos de comando da expansão econômica: a metrópole
e suas pontas de lança representadas por Salvador e Rio de
Janeiro, no passado, e hoje por São Paulo, Rio de Janeiro e
Brasília. A posição equatorial, resultando em fantástica massa
florestal, aliada à impossibilidade de navegação no alto curso
encachoeirado dos tributários da margem direita, por sua vez,
não favoreceram as ligações terrestres. Tem a Amazônia,
portanto, uma posição extrínseca em relação ao bloco uno
constituído pelo Planalto Brasileiro, aproximando-se dos
domínios do Caribe e dos Andes. Em contrapartida, a fabulosa
massa de água do Amazonas, com sua disposição transversal,
permite a penetração do mundo marítimo até o âmago do
heartland sul-americano, assegurando a sua vinculação com o
Atlântico (BECKER, 1974, p. 6).

A esta reflexão de Becker (1974) soma-se os importantes argumentos de


Moreira (2011) sobre como a agenda ambiental, e as grandes reservas de recursos

128
Capítulo 3 A POSIÇÃO DO BRASIL NA GEOPOLÍTICA MUNDIAL

naturais brasileiros impactam, diretamente, a construção de um papel central e de


protagonismo do Estado nacional brasileiro em relação a esses recursos:

Brasil está prestes a entrar em guerra? O Brasil tem algum


inimigo declarado? Com certeza, a resposta será negativa. Em
um cenário de curto e médio prazo, repetem-se as perguntas
anteriores. E num cenário de longo prazo? Acredita-se que
as respostas continuarão negativas. Então, para que se
preocupar com mobilização nacional, se há outras medidas
bem mais importantes e necessárias a serem providenciadas?
O Brasil é um país de dimensões continentais que ocupa uma
área de 8.514.876,599 km² (47% da América do Sul) e possui
inúmeras riquezas. Pode-se destacar a Amazônia, com sua
fauna, flora, biodiversidade, recursos minerais, além de possuir
o maior banco genético do planeta. O Brasil é banhado pelo
oceano Atlântico, também denominado Amazônia Azul, com
suas riquezas incomensuráveis, sendo que o chamado pré-sal
está hoje em evidência. Cerca de 95% das trocas comerciais
brasileiras são realizadas pelo oceano Atlântico. Existe muita
água doce no país. Há inúmeros rios, além dos aquíferos
Alter do Chão e Guarani. Dizem alguns analistas que a água
doce será causa de guerras no futuro. A população mundial
está crescendo e, com isso, necessita-se cada vez mais de
alimentos. O Brasil possui bastante área agricultável, em
condições de atender às demandas, a cada vez que os países
vão se desenvolvendo e necessitando, consequentemente, de
mais alimentos para seus habitantes. E também muita energia
considerada limpa: muita água, muito sol, muitos ventos.
Acredita-se que esses motivos já justificam essa necessidade
de se preocupar com mobilização, uma vez que o país está
em pleno desenvolvimento, com objetivos claros de chegar ao
patamar do Primeiro Mundo (MOREIRA, 2011, p. 99).

O Brasil possui 12% da reserva hídrica superficial potável do planeta, ou


seja, nossas bacias hidrográficas representam ao menos uma a cada dez fontes
de água consumível pela população mundial. As reservas hídricas também estão
distribuídas na extensa rede hídrica brasileira, em bacias hidrográficas de grande
porte como a amazônica, do rio Paraná e Rio São Francisco, fortalecendo ainda
mais o papel de destaque ao território brasileiro em relação a este recurso natural
tão caro no consumo demográfico global.

Ressalta-se, no entanto, conforme vimos na primeira seção deste capítulo,


que o fato de possuirmos grandes reservas de tais recursos, como florestas e
água doce, o ufanismo territorialista ainda se torna um grande obstáculo para que
a agenda ambiental brasileira se conecte com as demandas de conservação e
preservação globais.

Situações de impacto ambientais também no âmbito hidrográfico são recor-


rentes, como os casos de Brumadinho e Mariana, em Minas Gerais, ou então os

129
Fundamentos de Geopolítica

grandes rios urbanos, como o Tietê, na grande São Paulo, que por décadas são
assolados por mal uso, consumo e poluição. Especialmente no que se refere aos
grandes rios brasileiros, é preciso que lembremos, também, da forte especulação
e pressão econômica de conglomerados econômicos de produção de energia por
meio de barragens, construídas, muitas vezes, sem um estudo preciso dos im-
pactos ambientais e riscos destas para as populações e comunidades próximas
as suas instalações, apesar dos esforços governamentais na promoção do uso
consciente da água potável em nosso território.

FIGURA 19 – BACIAS HIDROGRÁFICAS BRASILEIRAS

FONTE: <https://www.educabras.com/enem/materia/geografia/geografia_
fisica/aulas/hidrografia_do_brasil>. Acesso em: 15 dez. 2019.

O ambiental, político, econômico, cultural e social somam-se em uma mesma


agenda de proporção global, no que tange à temática da reserva mundial de água
potável, como visto na Figura 20, que ilustra tal situação:

No que diz respeito à proteção e manejo sustentável de áreas


úmidas, o Brasil é parte, desde 1993, da Convenção Ramsar
sobre Zonas Úmidas – que, embora originariamente voltada

130
Capítulo 3 A POSIÇÃO DO BRASIL NA GEOPOLÍTICA MUNDIAL

à preservação dos habitats das espécies migratórias de aves


aquáticas, ganhou, ao longo do tempo, novas prioridades
relacionadas ao uso sustentável da biodiversidade e à gestão
dos recursos hídricos (BRASIL, 2020, s.p.).

FIGURA 20 – O FUTURO DA ÁGUA

FONTE: <https://observatorioconflitosaguarmcuritiba.wordpress.
com/2015/12/10/charges/>. Acesso em: 18 dez. 2019.

A médio prazo, o acesso, o uso e o desperdício dessa grande fonte de


recursos hídricos ficará em posição crítica não apenas no Brasil, mas despertará
o interesse e, eventualmente, o poder de intervenção, especialmente econômico,
de grandes empresas globais, blocos comerciais ou potências geopolíticas sobre
a importância dos recursos hídricos brasileiros no cenário global.

No documentário da Embrapa intitulado Caminho das Águas é


possível nos aprofundarmos na temática dos recursos hídricos bra-
sileiros, especialmente no que tange ao uso dessa reserva hídrica
potável, e sua participação, por exemplo, do uso doméstico ao alcan-
ce do potencial de consumo desse recurso na indústria e produção
agrícola nacional, se tornando um dos balizadores da organização
econômica do Estado nacional brasileiro. Acesse: https://www.youtu-
be.com/watch?v=bMeM9TByxxo.

131
Fundamentos de Geopolítica

Além das reservas de consumo de água potável no território brasileiro, ainda


temos toda uma questão geopolítica específica do Estado nacional brasileiro
envolvendo o tema da Amazônia Azul, ou as águas oceânicas brasileiras,
sua biodiversidade, potencial econômico e, também, as reservas de petróleo
encontradas nos limites territoriais do além-mar nacional, em toda a costa
brasileira, conforme visto na figura a seguir:

FIGURA 21 – A AMAZÔNIA AZUL

FONTE: <https://www.mar.mil.br/hotsites/amazonia_azul/>. Acesso em: 18 dez. 2019.

O Estado nacional brasileiro histórica, geográfica e geopoliticamente possui


seu desenvolvimento atrelado ao seu poderio territorial marítimo. Isso posto, a
questão da Amazônia Azul destaca-se, amplamente, como um panorama de força
geopolítica ambiental ainda maior do Brasil frente aos interesses mundiais em
relação a esses recursos na composição do sistema geopolítico global.

132
Capítulo 3 A POSIÇÃO DO BRASIL NA GEOPOLÍTICA MUNDIAL

MAR TERRITORIAL (MT) – estende-se das linhas de base


adotadas pelo Estado costeiro até a extensão máxima de 12
M (22 km).
ZONA CONTÍGUA – a convenção das Nações Unidas para o
Direito do Mar permite que o Estado costeiro mantenha sob
seu controle uma área de até 12 milhas náuticas.
ZONA ECONÔMICA EXCLUSIVA (ZEE) – estende-se até a
distância máxima de 200 M (370 km) medida a partir das linhas
de base adotadas pelo Estado costeiro.
PLATAFORMA CONTINENTAL (PC) – a ser estabelecida con-
forme os critérios técnicos e condicionantes do Artigo 76 da Lei
do Mar (MARINHA DO BRASIL, 2020, s.p.).

FIGURA 22 – OS VAZAMENTOS DE ÓLEO NO NORDESTE

FONTE: <http://clicfolha.com.br/charge/1114/nordeste-pesquisadores-encontram-
-oleo-dentro-de-peixes-e-mariscos---cazo-2019>. Acesso em: 18 dez. 2019.

Recentemente, a Amazônia Azul recebeu especial atenção dos meios de


comunicação devido aos grandes vazamentos de óleo que atingiram a costa
atlântica que banha o Brasil. A demora do Governo Federal em agir, conjunta-
mente, com entidades municipais e estaduais, bem como o impacto econômi-
co e também da imagem de comprometimento nacional com a questão em si,
fomentaram um grande debate internacional sobre a importância das reservas
de biodiversidade brasileira nesta região de nosso território, especificamente,

133
Fundamentos de Geopolítica

como observado na figura. A Amazônia Azul, bem como toda a floresta equato-
rial homônima no território brasileiro, compõe este cenário global da geopolítica
ambiental contemporânea.

A questão ambiental encontra sua dimensão geopolítica em [...]


respeito à escassez de recursos cruciais para a sobrevivência
humana. Quando tais recursos começarem a faltar para as
populações dos países desenvolvidos do norte, os vácuos de
poder localizados na América Latina, África e Ásia são (e serão)
alvos da ocupação econômica ou mesmo de intervenções
militares. Esta é uma situação potencial que não deve ser
ignorada, em primeiro lugar por que o mundo já testemunhou
experiências como estas: em 1967, Israel tomou da Síria as
colinas de Golan para assumir controle de nascentes de água
potável; em 1963 Brasil e França mobilizaram suas marinhas
para guerrear pelo pescado de lagosta nas costas brasileiras;
a escassez de alimentos estimulou o ódio entre Hutus e
Tutsis em Ruanda, levando o massacre dos segundos pelos
primeiros. Na realidade, a escassez de recursos é um dos
pontos centrais da questão ambiental moderna (MARTINS E
PIANOVSKI, 2013, p. 34).

Em continuidade aos grandes temas geopolíticos que o Brasil se posiciona,


globalmente, direta ou indiretamente, chegamos à agenda global nuclear. No caso
do Brasil, nossa utilização direta da energia nuclear ainda é baixa, mas nosso
papel central se estabelece de outra maneira, no fornecimento da matéria-prima,
o urânio, para o uso em usinas nucleares, como podemos observar na Figura 23.

O Brasil possui a sexta maior reserva global de urânio, que pode ser
enriquecido, para posterior utilização como fonte de energia em usinas nucleares.
O fato de o território brasileiro possuir tanto deste importante recurso energético
global faz com que tenhamos posição central em debates envolvendo tal temática
nas questões geopolíticas mundiais.

Segundo a WNA (Associação Nuclear Mundial, da sigla em


Inglês), hoje, 14% da energia elétrica no mundo é gerada
através de fonte nuclear e este percentual tende a crescer com
a construção de novas usinas, principalmente nos países em
desenvolvimento (China, Índia, etc.). Os Estados Unidos, que
possuem o maior parque nuclear do planeta, com 104 usinas
em operação, estão ampliando a capacidade de geração e
aumentando a vida útil de várias de suas centrais. França, com
58 reatores, e Japão, com 50, também são grandes produtores
de energia nuclear, seguidos por Rússia (33) e Coreia do Sul
(21) (ELETROBRAS, 2020, s.p.).

134
Capítulo 3 A POSIÇÃO DO BRASIL NA GEOPOLÍTICA MUNDIAL

FIGURA 23 – O USO DA ENERGIA NUCLEAR

FONTE: <https://www.eletronuclear.gov.br/Sociedade-e-Meio-Ambiente/Espaco-
do-Conhecimento/Paginas/Energia-Nuclear.aspx>. Acesso em: 18 dez. 2019.

E para o encerramento do posicionamento geopolítico global brasileiro na


contemporaneidade, em sua maioria voltados a questões ambientais, como
observamos até aqui, temos toda a agenda de temas, objetivos e ações dos
estados nacionais para essa agenda ambiental global, conforme destacado nos
objetivos de desenvolvimento sustentável, os ODS, dispostos na figura a seguir:

135
Fundamentos de Geopolítica

FIGURA 24 – OBJETIVOS DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

FONTE: <https://nacoesunidas.org/pos2015/agenda2030/>. Acesso em: 18 dez. 2019.

Muito do que entendemos como agenda ambiental global está pautado


nesses objetivos de desenvolvimento sustentável. Esses objetivos abrangem
desde questões sobre consumo consciente de bens duráveis e não duráveis até
situações envolvendo direitos políticos, civis e sociais nos Estados nacionais,
povos e territórios ao redor do globo, em uma perspectiva de uma nova construção
social, cultural e política.

A seguir, elencamos alguns dos principais órgãos, organizações e ações


globais voltadas para as duas grandes questões mais contemporâneas da
geopolítica mundial, presentes no posicionamento brasileiro nesse contexto, que
são as agendas ambiental e energética:

• ODS: são os 17 objetivos e 169 metas, que formam o conjunto de ações


ambientais, energéticas, sociais, econômicas e culturais para a popula-
ção mundial, a partir de 2015, como um avanço aos antigos objetivos
do milênio. Os ODS compõem também a estrutura da chamada Agenda
2030, assinada por 193 países, e que possui como foco uma redefinição

136
Capítulo 3 A POSIÇÃO DO BRASIL NA GEOPOLÍTICA MUNDIAL

dos caminhos e organização dos esforços transnacionais, regionais e lo-


cais, conjuntos, traçados na direção do desenvolvimento sustentável.
• IPCC: Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas foi criada
em 1988 com o intuito de observar, avaliar e elaborar ações e soluções
com vistas a diminuir ou erradicar os impactos antrópicos causadores
das transformações climáticas de nosso planeta. O fomento científico do
IPCC é o principal foco de suas ações, fornecendo informações precisas
e atualizadas sobre as alterações climáticas nas últimas décadas.
• Agenda 21: pensada como um instrumento de planejamento conjunto e
organizado de ações ambientais e energéticas, foi pensada pela Comis-
são de Políticas de Desenvolvimento Sustentável e Agenda 21 (CPDS)
na constituição de objetivos ambientais para a população mundial em
2002. Também faz parte tanto do movimento ambiental da Rio Eco 92
como também da Rio +20 que buscam atualizar, rediscutir e buscar no-
vas soluções para os grandes problemas ambientais globais, entrelaça-
dos, sempre, em situações geopolíticas e geoestratégicas das grandes
forças econômicas e políticas mundiais.

Muitos outros tratados, acordos, conferências, dispositivos legais e ações


regionais ou bilaterais são traçados e firmados entre Estados nacionais, de
forma a se alinhar, afastar-se ou criar agendas locais próprias frente às grandes
questões energética e ambiental na contemporaneidade, que retém a maior parte
das decisões, ações e situações geopolíticas mundiais.

A Agenda 21 Local é o processo de planejamento participativo


de um determinado território que envolve a implantação, ali, de
um Fórum de Agenda 21. Composto por governo e sociedade
civil, o Fórum é responsável pela construção de um Plano Lo-
cal de Desenvolvimento Sustentável, que estrutura as priorida-
des locais por meio de projetos e ações de curto, médio e longo
prazos. No Fórum são também definidos os meios de imple-
mentação e as responsabilidades do governo e dos demais se-
tores da sociedade local na implementação, acompanhamento
e revisão desses projetos e ações (MMA, 2020, s.p.).

Atividades de Estudo:

1) Observe a figura que representa as duas principais potências


geopolíticas globais contemporâneas (China e Estados Unidos) e
responda ao questionamento apresentado na sequência.

137
Fundamentos de Geopolítica

FIGURA – AS POTÊNCIAS DO XADREZ GEOPOLÍTICO GLOBAL

FONTE: <https://bit.ly/2xXEBlI>. Acesso em: 18 dez. 2019.

a) Estados Unidos e China são dois dos países que mais emitem poluentes
na atmosfera e que possuem posturas de não adesão ou ressalvas às agendas
ambientais globais, então, quais os impactos desses posicionamentos dessas
potências em suas relações geopolíticas com o Brasil?

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Todo o percurso de estudo que efetuamos até aqui possuiu como objetivo
duas temáticas centrais. Na primeira delas foram trabalhados alguns dos princi-
pais elementos históricos, geográficos, conceituais e estratégicos da contribuição
e formação de uma identidade geopolítica brasileira, passando inicialmente de um
período de afirmação e fortalecimento das fronteiras internas do país para poste-
rior avanço em cenários regionais na América do Sul e Latina e em países como
os BRICS, sempre assumindo papéis de protagonistas em tais situações.

Observamos, também, que a tendência de uma valorização do território como


fonte de poder, no caso brasileiro, sempre esteve presente em nosso desenvolvi-
mento geopolítico, da época colonial aos dias atuais, perpassando ora sobre um
ufanismo territorial ora por uma visão mais estratégica do potencial geopolítico
das fronteiras nacionais.

Na segunda seção deste capítulo, o foco se voltou para a posição do Brasil


no jogo geopolítico global e, nesse sentido, observamos que o fator ambiental e

138
Capítulo 3 A POSIÇÃO DO BRASIL NA GEOPOLÍTICA MUNDIAL

energético, já presente desde o início da formação territorial brasileira, potencia-


lizou-se fortemente devido à chegada, especialmente no decorrer do século XX,
de grandes agendas ambientais, de desenvolvimento sustentável, utilização de
recursos naturais e fontes energéticas em todo o globo.

Ressalta-se que, em detrimento desses fatores territoriais de riquezas na-


turais e energéticas, o Brasil possuiu e ainda possui posição central no debate
geopolítico envolvendo tais temáticas. Da energia nuclear aos recursos hídricos,
da exploração do petróleo à poluição atmosférica e desmatamento, a toada am-
biental avançou de forma irreversível, necessária e inegável na agenda de ações,
interesses, situações e intervenções da geopolítica global.

O papel do país regional e nacionalmente, para chegarmos em um panora-


ma de importância, relevância e poderio geopolítico ambiental e energético global,
como ocorre no século XXI, em renovações de agendas dessas questões como
os objetivos do desenvolvimento sustentável, o IPCC, a agenda 21 e tantas outras
questões geopolíticas, pautadas nos recursos naturais que fazem com que o Bra-
sil obtenha especial atenção neste jogo geoestratégico contemporâneo, que nos
acompanhará nas próximas décadas em papel geopolítico central no cenário global.

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