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Full Download A Politica Do Enquadro 1St Edition Jessica Da Mata Online Full Chapter PDF
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Jéssica Da Mata
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16/05/2021 Thomson Reuters ProView - A Política do Enquadro - Ed. 2021
PRIMEIRAS PÁGINAS
PRIMEIRAS PÁGINAS
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A POLÍTICA DO ENQUADRO
Autor
Jéssica da Mata
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio
ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos,
fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem como a
inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas
proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos
direitos autorais é punível como crime (art. 184 e parágrafos, do Código Penal), com pena de prisão
e multa, conjuntamente com busca e apreensão e indenizações diversas (arts. 101 a 110 da Lei
9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).
A autora goza da mais ampla liberdade de opinião e de crítica, cabendo-lhe a responsabilidade
das ideias e dos conceitos emitidos em seu trabalho.
Central de Relacionamento Thomson Reuters Selo Revista dos Tribunais
(atendimento, em dias úteis, das 09h às 18h)
Tel. 0800.702.2433
e-mail de atendimento ao consumidor: sacrt@thomsonreuters.com
e-mail para submissão dos originais: aval.livro@thomsonreuters.com
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16/05/2021 Thomson Reuters ProView - A Política do Enquadro - Ed. 2021
ISBN 978-65-5614-534-1
https://proview.thomsonreuters.com/title.html?redirect=true&titleKey=rt%2Fmonografias%2F261001588%2Fv1.2&titleStage=F&titleAcct=i0ad6a6… 2/2
EXPEDIENTE
EXPEDIENTE
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Expediente
Gerente de Conteúdo
Editorial: Aline Marchesi da Silva, Diego Garcia Mendonça, Karolina de Albuquerque Araújo
Martino e Quenia Becker
Estagiárias: Ana Amalia Strojnowski, Bárbara Baraldi, Bruna Mestriner e Mirna Adel Nasser
Produção Editorial
Coordenação
Especialistas Editoriais: Gabriele Lais Sant’Anna dos Santos e Maria Angélica Leite
Analistas de Operações Editoriais: Alana Fagundes Valério, Caroline Vieira, Danielle Castro de
Morais, Mariana Plastino Andrade, Mayara Macioni Pinto, Patrícia Melhado Navarra e Vanessa
Mafra
Analistas de Qualidade Editorial: Ana Paula Cavalcanti, Fernanda Lessa, Thaís Pereira e
Victória Menezes Pereira
Estagiárias: Bianca Satie Abduch, Maria Carolina Ferreira, Sofia Mattos e Tainá Luz Carvalho
Visual Law: Camilla Sampaio, Carina Baptista, Thais Pereira e Vanessa Mafra.
Coordenação
Analistas: Gabriel George Martins, Jonatan Souza, Maria Cristina Lopes Araujo e Rodrigo
Araujo
Analistas de Produção Gráfica: Aline Ferrarezi Regis e Jéssica Maria Ferreira Bueno
Ficha catalográfica
Mata, Jéssica da
A política do enquadro [livro eletrônico] / Jéssica da Mata. -- 1. ed. -- São Paulo : Thomson
Reuters Brasil, 2021.
6 Mb ; ePub
Bibliografia.
ISBN 978-65-5614-534-1
21-61370 CDU-343
Dedicatória
AGRADECIMENTOS.......................................................................................... 7
APRESENTAÇÃO................................................................................................ 11
PREFÁCIO........................................................................................................... 15
LISTA DE MAPAS................................................................................................ 19
LISTA DE SIGLAS............................................................................................... 23
INTRODUÇÃO.................................................................................................... 29
A política do enquadro....................................................................................... 32
O método interpretativo..................................................................................... 36
O lugar da interpretação sociológica.................................................................. 37
Aspectos formais: uma tipologia da ação estatal......................................... 40
Aspectos substanciais: Estado, crime e política pública.............................. 41
Proposta teórico-metodológica.......................................................................... 44
Um olhar sobre a PMESP............................................................................ 46
Organização do texto.................................................................................. 49
PARTE 1
O ENQUADRO COMO SINTOMA
PARTE 2
O ENQUADRO COMO ESCOLHA POLÍTICA
CONCLUSÃO...................................................................................................... 283
REFERÊNCIAS.................................................................................................... 287
Produção teórica................................................................................................ 287
Edições da Revista a Força Policial..................................................................... 296
Documentos oficiais........................................................................................... 296
Matérias jornalísticas......................................................................................... 298
Músicas.............................................................................................................. 300
APÊNDICE.......................................................................................................... 301
Dados sobre enquadros....................................................................................... 301
Organização da PM e seleção de unidades para o estudo............................ 303
Noções básicas da execução do policiamento............................................. 306
Mapas................................................................................................................. 308
Coleta de dados e amostragem........................................................................... 308
Amostragem de BOPM............................................................................... 308
Amostragem de RCGP................................................................................ 311
Sistematização e análise de dados....................................................................... 311
Banco de dados de BOPM........................................................................... 311
Banco de dados de RSO............................................................................... 315
AGRADECIMENTOS
AGRADECIMENTOS
0
Agradecimentos
À minha família, Jesus e Fátima, Danilo e Natália, Íris e Augusto, pela compreensão e pelo
carinho inesgotável. Aos meus amigos pela paciência e pelo cuidado, especialmente: Mariana,
Marina, Eduardo e Gabriela, que ouviram minhas hipóteses e me encorajaram à exaustão; Thaís,
Thalita, Caroline, Fernanda, Bárbara, Natália, Letícia G., Érica, Letícia A., Renata e Felipe, que
estiveram sempre dispostos a perdoar atrasos, escutar lamentos e vibrar com meus avanços.
Ao amigo e orientador de mestrado, Maurício Dieter, pelas inúmeras lições, pela confiança e
pelo Prefácio terno e generoso que escreveu para este livro. À Alessandra Teixeira, Ana Lúcia
Pastore Schritzmeyer e Maíra Rocha Machado, que compuseram a banca examinadora da
dissertação que deu origem a este livro, por suas contribuições decisivas para o amadurecimento
das formulações aqui apresentadas.
Aos meus antigos companheiros do Serviço de Assessoria Jurídica Universitária (SAJU) pelas
trocas e inspiração fundamentais para as formulações desse trabalho. Ao amigo Thiago Araújo
pela leitura das primeiras versões e pelos encorajamentos, e aos demais companheiros do Centro
de Pesquisa e Extensão em Ciências Criminais da USP, Tatiana Gasparini, Marcelo Semer, Renato
Gomes, Caio Almeida e Fernando Alemany, pela cumplicidade.
Ao Ministro Rogério Schietti Cruz, pela honra que me concedeu ao aceitar escrever a
Apresentação desse livro. Ao Bruno Langeani, do Instituto Sou da Paz, e ao Bernardo Loureiro, do
MedidaSP, pelo apoio.
À Polícia Militar do Estado de São Paulo pelo republicanismo e cordialidade. Aos policiais
militares que me receberam em seus locais de trabalho pelo terno acolhimento e generosidade. E
ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico Tecnológico (CNPq) pelos recursos que
permitiram que a pesquisa fosse realizada.
EPÍGRAFE
EPÍGRAFE
0
Epígrafe
Poema da Necessidade
Apresentação
O livro não foge de atestar, com dados e gráficos, o caráter indisfarçavelmente seletivo e
estigmatizante da atuação dos órgãos de policiamento ostensivo, notoriamente dirigida a um
público marcado por sua topografia (periferia, comunidades e favelas), condição econômica
(pessoas hipossuficientes), idade (a maioria, jovens) e cor da pele (predominantemente negra).
É preciso dizer que os Tribunais Superiores têm, aqui e acolá, incorporado essa compreensão
transdisciplinar da realidade nacional, permitindo o ingresso de ingredientes outros, além do
universo normativo, para a construção de seus julgados, em temas que envolvam as relações
conflitivas entre o Estado e os cidadãos. Exemplifica essa assertiva o decidido na ADPF 635
(cognominada ADPF das favelas), em que se concederam algumas das medidas cautelares
postuladas, ao propósito de minimizar os efeitos do que se chamou de necropolítica praticada no
estado do Rio de Janeiro, mercê das rotineiras operações policiais nos morros cariocas, com
graves lesões a preceitos fundamentais da Constituição, notadamente pela excessiva e crescente
letalidade da atuação policial. Na mesma toada, vai o julgado da Sexta Turma do STJ, no HC
598.051, em que se estabeleceram critérios e requisitos para o ingresso de policiais em domicílios
de suspeitos de crimes, a partir da percepção de que em um país marcado por alta desigualdade
social e racial, o policiamento ostensivo tende a se concentrar em grupos marginalizados e
considerados potenciais criminosos ou usuais suspeitos.
Sem embargo, Jéssica da Mata bem pontua a tolerância do sistema de justiça criminal,
mormente nas situações em que abusos praticados na abordagem de suspeitos acabam sendo
desconsiderados quando, em seu poder, se encontram objetos ilícitos.
Esse comportamento remete a Sonia Sotomayor, juíza da Corte Suprema dos Estados Unidos
(Utah v. Strieff, 579 U.S., 136 S. Ct. 2056, 2016):
When courts admit only lawfully obtained evidence, they encourage “those who formulate law
enforcement polices, and the officers who implement them, to incorporate Fourth Amendment ideals into
their value system.” Stone v. Powell, 428 U. S. 465, 492 (1976). But when courts admit illegally obtained
evidence as well, they reward “manifest neglect if not an open defiance of the prohibitions of the
Constitution.” Weeks, 232 U. S., at 394.
A leitura do livro de Jéssica da Mata é, portanto, fundamental para quem deseja concretizar a
afirmação, quase sempre intuitiva e abstrata, de que há muito a avançar na tarefa de racionalizar e
humanizar a atuação das corporações que lidam com a manutenção da ordem pública e a
repressão de comportamentos contrários ao Direito.
Prefácio
Quando nasceu, um anjo torto, desses que vivem na sombra, disse-lhe: vai, Jéssica! ser gauche na
vida.1
Nossa parceria acadêmica, que coincide com meus primeiros anos no Largo São Francisco, foi
um sucesso. Primeiro, no Centro de Pesquisa e Extensão em Ciências Criminais, o nosso CPECC,
do qual ela é uma das “founding mothers”. Jornadas, Seminários, Encontros, Grupos de Estudo,
Pareceres, enfim, juntos realizamos um sem-número de atividades, que sacudiram algumas razões
acomodadas, atingiram no âmago certas vaidades e entusiasmaram muitos interessados no
campo criminológico crítico, Brasil afora. Segundo, e mais importante, na extraordinária tese de
mestrado que escreveu, agora transformada em livro, e que tenho o privilégio de prefaciar – a
principal diferença, claro, é que em relação ao texto que segue este introito, o mérito é
inteiramente dela. Mas volto a falar de sua extraordinária pesquisa em instantes.
Antes, quero rememorar um pouco mais os preciosos, e agora saudosos, anos nos quais pude
oficialmente contar com toda sua energia para o trabalho e seu senso de indignação e humor nas
causas e nos causos em comum.
Nesse grupo, que aglutinamos, incluem-se vários companheiros que, dentro ou fora da USP,
escreveram ou estão a escrever suas importantes contribuições criminológicas, fiéis às duas
qualidades que ela, pelo exemplo, transformou em expectativa padrão: obstinado rigor científico e
compromisso político-criminal com os direitos fundamentais. O que mais poderia querer um
orientador?
O resultado não poderia ser diferente. A pesquisa de Jéssica da Mata não é uma dissertação,
em sentido estrito. É muito mais do que isso. É, no limite das minhas leituras, a mais importante
investigação sobre as determinações da abordagem policial no Brasil, a partir da realidade
paulistana.
De fato, a centralidade dos enquadros no controle social dos grandes centros urbanos não
tinha recebido, até o extraordinário estudo que sucede este prefácio, uma análise de fôlego, capaz
de entrelaçar a historicidade, a racionalidade, a moralidade e a prática social concreta das
abordagens policiais em torno de um eixo teórico denso, conceitualmente adequado e crítico.
Espero poder acompanhar de perto os próximos capítulos de sua brilhante história acadêmica.
Talvez, como interlocutor, porque a bem da verdade ela já não precisa mais de orientador: é uma
pesquisadora formada e completa, e o trabalho a seguir é testemunho suficiente de seu admirável
talento.
. O texto contém apropriação indébita dos versos de ANDRADE, Carlos Drummond de. Poema
de sete faces. In: Nova reunião: 23 livros de poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p.
10.
LISTA DE MAPAS
LISTA DE MAPAS
0
Lista de mapas
Atlas 1 – Distribuição espacial dos enquadros por batalhão da PM da capital em 2016 e 2017
FIGURAS
GRÁFICOS
Gráfico 16 – Evolução histórica da taxa de PM por 100 mil habitantes em São Paulo
TABELAS
Lista de siglas
DP – Distrito Policial
PC – Polícia Civil
Introdução
Apenas em 2016, a Polícia Militar realizou, em média, 500 enquadros por hora na capital
paulista.1 Foram mais de 12 mil casos diários em que a polícia, sob a ameaça ulterior do uso da
força, parou alguém e revistou seu corpo.2 Embora o Brasil tenha um longo histórico de submissão
da cidadania às razões do Estado,3 um aumento significativo no uso dos enquadros e os diferentes
modos como se imiscuíram no cotidiano das pessoas em São Paulo são relevadores de uma
conjuntura particular em que a prática adquiriu grande importância e relativa autonomia em relação
ao repertório mais amplo de ações policiais.
Para ilustrar a magnitude do aumento do uso dos enquadros, segundo dados oficiais entre
1997 e 2017, o número de enquadros por habitante cresceu, de maneira praticamente contínua,
um total de 375% na cidade de São Paulo. Isso indica que a polícia vem interferindo mais
incisivamente no modo como diferentes pessoas vivem na cidade, delimitando lugares mais ou
menos policiados e controlando quem os acessa.
Meu objetivo principal nesse estudo foi o de compreender a transformação recente no uso dos
enquadros a partir do imbricamento de três diferentes camadas de complexidade: 1) o que mudou;
2) como mudou; e 3) por que mudou a maneira que o policiamento ostensivo lida com a prática em
São Paulo.
Por outro lado, apontarei também a existência de aspectos de continuidade porque ainda hoje
se mantém um elemento que já era característico das “abordagens policiais” desde muito: a
exaltação do seu caráter expressivo e disciplinar – evidenciado na maneira popular de se
denominar a prática: “enquadro”, “dura”, “baculejo” –, indicando se tratar de uma ação dirigida à
formatação do comportamento dos suspeitos da polícia.
Esse veio moralizante é um traço de continuidade de que o enquadro não foi capaz de se
desvencilhar, nem mesmo com o passar dos anos. Por outro lado, é certo que hoje as motivações
para a ânsia imposição de autoridade e de demonstração de força estatal que o enquadro segue
realizando estão ligadas à condições sociais novas, como a representação de um ator social que
ameaça e compete com a ordem estatal (a figura do ladrão e o espectro do Primeiro Comando da
Capital) e um senso mais agudo de repúdio aos modos de vida das camadas sociais mais baixas,
fundado em um acentuado processo diferenciação interno à classe trabalhadora urbana.
Quando passo a compreender por que o uso dos enquadros mudou, entro no estudo das
condições societárias que impulsionaram o recurso da polícia a essa prática. Nesse sentido, as
transformações na base das relações sociais criaram condições para as contemporâneas
estratégias de controle do crime e da desordem são tão importantes quanto compreender as
demandas sociais imediatas por segurança que os acionaram e fomentaram a sua assimilação por
meio de táticas específicas do policiamento ostensivo, bem como os arranjos institucionais que as
viabilizaram e que, de maneira mais direta, engatilharam um uso mais acentuado dos enquadros
no cotidiano policial.
A tese central sustentada é a de que a transformação do uso dos enquadros pela PMESP é
produto de um pacto político realizado ao fim dos anos 1990 com o intuito de recobrar a sua
legitimidade e garantir a sua sobrevivência institucional em um contexto de profunda crise. Além
disso, o aumento no uso dos enquadros é sintoma do fortalecimento de uma agenda político-
criminal antipopular e antidemocrática em que uso de táticas situacionais intrusivas (que fazem um
emprego intenso e proativo de enquadros) foi catalisado pela reabilitação do ideal de “lei e ordem”
que opera de maneira seletiva, produzindo e reproduzindo processos de hierarquização social
fundados em relações raciais e de classe histórica e espacialmente determinadas.
Para dar conta desse processo, argumentarei que a versatilidade dos enquadros permitiu que
fossem prescritos e acionados por dois tipos distintos de estratégias de controle do crime:
estratégias adaptativas e estratégias punitivas. As primeiras foram promovidas por diversas
reformas institucionais relativamente recentes preocupadas com a produtividade policial
(apreensões, número de abordagens realizadas etc.) e com a promoção da sensação de
segurança. Por sua vez, estratégias punitivas são as que exaltam a imposição de autoridade
estatal por intermédio de ações de alta carga simbólica em que a prática massiva de enquadros
tem como principal o efeito reforçar a imagem institucional, sem que necessariamente atinja
resultados materiais para o controle do crime, como apreensões de armas ou prisões de
“procurados da justiça”, tampouco importando seu efeito concreto sobre as experiências cotidianas
de vitimização.
Por meio da análise pormenorizada de dados da Polícia Militar do Estado de São Paulo, restou
demonstrado que esses dois tipos de estratégias foram combinadas, no cenário paulista, mediante
uma convergência entre diferentes setores sociais investidos nas disputas políticas no campo da
segurança, em torno de táticas situacionais de controle do crime, ora voltadas a um ofensor
específico (ladrões de carros, traficantes de drogas etc.), ora às populações inteiras que
habitassem “territórios do crime”, ou ainda como uma forma de mostrar serviço à população-
cliente.5
A maneira como esse pacto político que culminou na transformação do uso dos enquadros
acomodou interesses e visões de mundo de diferentes grupos e classes investidos nas disputas
políticas em torno da direção da segurança pública paulista foi explorada a partir do que chamei de
política do enquadro.
A política do enquadro
Uma breve pesquisa na internet pelo termo enquadro ou “abordagem” (que é o seu
correspondente no jargão policial e que está cada vez mais popularizado) traz como resultados
inúmeros artigos, normas e iniciativas de pesquisadores, organizações da sociedade civil e do
próprio comando da instituição policial militar para o controle do uso da força. Não raro, os
esforços para o controle do uso da força são associados aos investimentos em tecnologia que
visam otimizar a realização dos enquadros, concebendo-os como uma prática orientada à
prevenção criminal em uma sociedade com altas taxas de crime, uma ação policial a ser planejada
a partir de evidências criminológicas (em especial, sistemas de informação geográfica que as
direcionem para áreas com maior ocorrência de determinados crimes) e executada de maneira
padronizada e subordinada à legalidade.
Por outro lado, a mesma pesquisa pode conduzir a representações muito diferentes que
enfatizam o aspecto performático e punitivo dos enquadros, a exemplo das filmagens de
perseguições policiais e de revistas corporais a suspeitos acompanhadas de declarações
moralizantes das policiais direcionadas aos suspeitos.6 Esse é um tipo de vídeo cada vez mais
fácil de encontrar em programas policiais da televisão, canais no Youtube e, mais recentemente,
divulgações institucionais da PMESP nas mídias sociais. Da mesma forma, ascensão do
subgênero musical do “rap policial” também vem tornando mais conhecidas concepções
moralizantes do enquadro e do cotidiano da atividade policial como um todo.7
A partir de meados dos anos 1980 os enquadros passam por um processo de autonomização
em relação às demais práticas policiais. A década de 1980 foi um período em que o aumento da
“criminalidade violenta” e as sucessivas críticas à ineficiência policial passaram a ser respondidos
com investimentos nas atividades policiais de esquadrinhamento territorial. Estes, somados ao
advento da prisão temporária em 1989, contribuíram para que a prática passasse a ser reputada
como uma medida avulsa (não necessariamente acompanhada de detenção) direcionada à
identificação de suspeitos e detecção de objetos ilícitos. Desvencilhando-os, paulatinamente, de
sua pecha autoritária, os enquadros tomaram distância da ilegalidade das “prisões para
averiguação” e foram legitimados juridicamente como uma prerrogativa policial necessária ao
combate da violência urbana.9
Apolítica do enquadro não se expressa apenas pelo registro (até então inédito) e nem só pelo
aumento do recurso ao enquadro, mas também pelas transformações que visaram compatibilizar
esta antiga prática à demanda emergente pelo controle da “criminalidade violenta” sob os
auspícios de uma política de governo com manifesto viés gerencialista. Logo, à “nova polícia” de
Covas não bastava fazer mais “abordagens”, era preciso abordar melhor, o que se traduziria em
mais apreensões e mais prisões com transtornos mínimos para a “população-cliente”.
A demanda pelo resgate da autoridade da polícia junto à população, que sempre teve algum
espaço entre os setores policiais mais refratários ao poder civil sobre a organização, vem
ganhando grande espaço nas narrativas e nas práticas policiais. Tal discurso se fortaleceu a partir
de meados dos anos 2000 em razão da representação de que haveria uma ameaça à soberania
estatal pelo “crime organizado”, projetado no Primeiro Comando da Capital.
O método interpretativo
Na interpretação desse estudo, o aumento no uso dos enquadros não é apenas fruto das
medidas institucionais, nem pode ser atribuído somente aos conflitos entre grupos e classes
sociais com interesses, modos de vida e visões de mundo distintos. O que ocorre é que o conflito
social atravessa a instituição policial repercutindo as disputas societárias a partir de dispositivos
próprios que podem intensificar, desviar ou neutralizar determinados aspectos das relações sociais
ao seu próprio modo.
Não é sem importância, portanto, que em anos mais recentes, os agentes policiais se viram
confrontados com a percepção de haver um poder “paralelo” que estaria sendo exercido pelo PCC
nas periferias urbanas. Tampouco seria possível desconsiderar que entre 2013 e 2014, as
camadas médias urbanas (de que os policiais fazem parte) viram ameaçada a sua posição social,
o que configura uma situação propícia à projeção de ódio contra as camadas sociais inferiores
como expressão do medo da própria decadência.14 Isto é, a maneira como estratégias distintas de
reprodução da ordem social vêm sendo combinadas não depende apenas de interesses materiais
de determinadas classes ou frações de classe mas também de grupos profissionais e das
associações civis.
Dessa maneira, em pleno acordo com David Greenberg, o método interpretativo utilizado nesse
estudo busca captar o caráter dinâmico e contraditório do controle do crime em São Paulo, o que
significa ir além das intenções conscientes dos atores envolvidos no pacto político responsável
pelo processo da reforma policial que originou política do enquadro, já que o sucesso de
determinadas estratégias e táticas empregadas depende da sua capacidade de compor
concepções de desvio e estratégias de controle que combinem com os interesses subjetivos e
visões de mundo que as concretizem, considerando o campo mais amplo da disputa por
hegemonia.15
É por isso que as diferentes ordens de questionamentos abordadas (o quê, como e por quê os
enquadros se transformaram) serão estudadas a partir de duas dinâmicas principais: a primeira é a
dinâmica das demandas socioinstitucionais colocadas ao policiamento ostensivo que, de maneira
simplificada, significaria dizer a dinâmica social “externa” à instituição policial militar; e a segunda é
a dinâmica das demandas internas à prática profissional dos policiais militares, os principais
responsáveis pela realização de enquadros em São Paulo. A investigação dessas dinâmicas
distintas e profundamente imbricadas permitiu desenvolver uma interpretação explanatória para a
transformação do uso dos enquadros em São Paulo.
Também é preciso pontuar que, embora o trabalho esteja focado na instituição policial, em
alguns momentos há de se considerar outras agências do sistema de justiça criminal e, quando da
análise de condições sociais externas, outras tantas instituições contíguas ao campo de controle
do crime a fim de tecer uma interpretação mais sólida sobre as dinâmicas da criminalização nos
últimos anos. Com isso quero dizer que, mesmo sabendo não ser possível oferecer senão uma
reconstrução parcial e fragmentária da realidade, a presente pesquisa tem a preocupação de tratar
de diferentes aspectos da vida societária que se mostraram relevantes para explicar o que, como e
porque os enquadros se transformaram nos últimos anos.
Desse modo, enquanto a adaptação costuma ocorrer por meio do emparceiramento com
entidades da sociedade civil e medidas para o aumento da eficiência da política de segurança, a
negação costuma se materializar por intermédio de respostas imediatistas e ostensivamente
violentas que exploram dos sentimentos populares de medo e insegurança – potencializados
quando associados à deterioração das condições de vida da população – mas cujo impacto sobre
a vitimização criminal é, no mínimo, questionável.17
Nesse trabalho, aposto na pertinência de conceitos de David Garland e muitos outros conceitos
sociológicos formulados por autores estadunidenses e europeus que, na formulação de suas
categorias, não pensaram o Brasil em particular, mas que, de maneira mais ou menos deliberada,
trataram de processualidades históricas dotadas de generalidade por conta da natureza de sua
relação com o sistema-mundo capitalista. Por isso, penso que o emprego de determinados
conceitos não implica a desconsideração de pertinentes críticas dos estudos pós-coloniais ou
decoloniais. Pelo contrário, meu intento é precisamente apropriar-me das categorias na medida em
que fazem sentido para a compreensão da realidade brasileira e, mais especificamente, paulista.19
A particularidade do caso de São Paulo merece muita atenção porque, no que diz respeito à
adaptação do Estado à ação de outros atores para a gestão da ordem urbana, o que se verifica em
São Paulo é que hoje a principal estratégia adaptativa sobre o controle social é o pacto de
coexistência entre Estado e o PCC, que reconhece e tolera a existência do PCC mas também
alimenta o acirramento da estratégia negacionista que busca impor a autoridade estatal via
segregação punitiva, isto é, por meio de soluções altamente performativas e violentas que apelam
à ansiedade popular e ao medo da vitimização criminal.
Embora tenham sido desenvolvidos para explicar uma realidade muito diferente da brasileira, a
tese da “nova cultura do controle do crime” de Garland se apoia em um fenômeno de ampla
abrangência em que as relações Estado e sociedade civil são consideravelmente transformadas,
com a particularidade de que, nos Estados Unidos e no Reino Unido, isso se deu a partir da
desagregação do Estado de Bem-Estar Social. Na mesma esteira, as categorias “estratégias
adaptativas” e “estratégias de segregação punitiva” nada mais são que uma tipologia da ação
estatal frente ao que Garland denominou o “dilema da política pública”. O dilema consiste na
necessidade de responder às altas taxas de crimes e o interesse em diminuir a participação estatal
na provisão de serviços públicos. O autor propõe que o Estado poderia “aceitar” as dificuldades
colocadas pelo tal dilema, adotando estratégias de tipo adaptativo; ou negar a existência do dilema
por meio de estratégias de tipo punitivo.
Uma vez configurada uma conjuntura que coloque à política pública o dilema referido por
Garland, é perfeitamente possível compreender a ação estatal a partir da escolha por se adaptar
às suas limitações no controle de altas taxas de crimes ou por se negar a reconhecê-las.
Consideradas as particularidades do caso paulista, acredito que foi com esse dilema que São
Paulo se deparou nos anos 1980 e 1990, quando estiveram presentes, de maneira muito clara, a
alta dos índices criminais e também a combinação entre a chamada “crise fiscal” e governança em
prol da reforma do Estado que pressionavam pela maior participação do setor privado na condução
de políticas públicas, o que nos leva ao exame dos aspectos substanciais da importação de
construtos de Garland.
Nesse ponto, cabe abordar os dois principais vetores de configuração do referido “dilema da
política pública”: de um lado, as altas taxas de crimes, de outro, a transformação do papel do
Estado na provisão de serviços públicos.
No que se refere às altas taxas de crimes, é possível notar similitudes, em áreas urbanizadas
do Brasil, em relação a pontos-chave da configuração societária estadunidense apontados por
Garland na formulação de seu argumento: o aumento da participação feminina no mercado de
trabalho, a modificação da ecologia social das cidades com periferização e concentração de
pobreza, a pervasividade da mídia de massas no cotidiano das pessoas e a relativa
democratização da vida social e cultural. Seguindo a tese de Garland, essas transformações
tiveram três efeitos importantes 1) criaram demais oportunidades para o crime; 2) dirimiram os
seus controles situacionais; e 3) intensificaram a vulnerabilidade de alguns setores populacionais
ao engajamento com atividades criminosas. Essa conjunção de fatores teria provocado uma
elevação das taxas criminais. Como será possível apreender por intermédio da segunda parte
desse trabalho, algo similar ocorre no Brasil e no bojo dessas mudanças é que emerge a noção de
violência urbana.
A despeito da fragilidade da seguridade social brasileira, fato é que, os anos 1990 foram palco
de uma contrarreforma do Estado que visou diminuir ao máximo o chamado “custo Brasil”. Foi
quando se implantou uma série de medidas que visaram aumentar o controle sobre os gastos
públicos (em razão da “crise fiscal”) e ampliar as possibilidades de condução dos processos de
tomada de decisão política pelo setor privado. Nas palavras de um de seus principais
formuladores, tratava-se de abandonar o modelo de “administração burocrática”, que
compreenderia desde os anos de chumbo até o início dos anos 1990, em direção a um modelo de
“administração gerencial”.22
Essa questão é trabalhada em detalhe na segunda parte do trabalho, em que enfatizo que a
maneira como ocorreu a transformação da relação entre Estado e sociedade civil na condução de
políticas de segurança em São Paulo. Essa transformação se expressa, por exemplo, em uma
busca inédita pelo controle sobre os gastos com policiamento e o emparceiramento com entidades
privadas para a condução de programas de prevenção criminal.
Por sua vez, o impacto dessas transformações só pode ser compreendido se forem
devidamente examinadas as forças sociais implicadas nesse processo. Nesse sentido, a fim de
explorar adequadamente as particularidades da reformulação da política de segurança paulista,
proponho que seu desenvolvimento histórico seja compreendido a partir de dois períodos distintos:
o primeiro entre meados de 1970 até início dos anos 2000 que abrange a emergência e a
consolidação da violência urbana como nova forma hegemônica de representação da ordem em
São Paulo, quando o crime se tornou um fato social “normal” na cidade; o segundo período se
estende de meados dos anos 2000 até hoje, contexto em que passou a ser representada
hegemonicamente a existência de uma ordem do crime que se contrapõe a ordem estatal, um
desdobramento particularíssimo do caso paulista que se conecta com o fenômeno mais geral de
crescimento do prestígio de estratégias punitivas no policiamento.
Ao fim dos anos 1990, a prática de enquadros foi institucionalizada e estimulada a partir de
uma combinação de estratégias adaptativas e punitivas norteadas por uma concepção
hegemônica de ordem fundada na representação da violência urbana.
A partir de meados dos anos 2000, com o fortalecimento de uma representação de uma ordem
urbana cindida pela oposição absoluta e irrestrita entre ordem estatal e ordem do crime, as
estratégias punitivas vêm ganhando força e contribuindo para a disseminação de formas cada vez
mais violentas e arbitrárias de se realizar “abordagens policiais”, muito distantes das normas e
procedimentos oficialmente adotados pela instituição.
Isso significa que, hoje, enquanto muitos atores dentro e fora da polícia concebem os pedidos
de identificação e as revistas corporais realizados pela polícia como medidas de prevenção
criminal a serem mobilizadas a partir de critérios objetivos e de maneira padronizada, têm ganhado
força também os atores que celebram o enquadro como um ato de reprovação moral do policial em
relação ao “elemento suspeito” e que pode ser usada para impor uma correção capaz de dissipar o
crime e a desordem do cotidiano da cidade. Para os primeiros, os enquadros são, assim como o
crime, situações sociais normais que podem se direcionar a qualquer pessoa; para os últimos, são
práticas moralizantes de reordenação social que devem ser dirigidas aos ladrões. A explicação do
porquê os enquadros mudaram compreende saber de que maneira foram combinadas essas
representações aparentemente antagônicas sobre os enquadros, evidenciando os seus pontos de
tensão mas também de compatibilização operados por meio do que eu denomino a política do
enquadro.
Proposta teórico-metodológica
Isso foi possível por meio da análise de diferentes corpos empíricos: registros da oficiais que
apresentam a soma das “abordagens” realizadas pela PMESP desde 1997 até hoje; os registros
que apresentam esses mesmos dados decompostos por batalhões (unidades territoriais) da PM
para os anos de 2016 e 2017; registros detalhados sobre a realização de enquadros em batalhões
PM selecionados no ano de 2016.
Para que a coleta e a análise desses dados se tornasse factível foi necessário realizar algumas
escolhas metodológicas, entre as quais se destacam duas: 1) identifiquei que os processos de
reforma da PM no sentido de desenvolvimento de uma nova cultura do controle do crime se
relacionam com um tipo de conflituosidade tipicamente urbana e por isso deveriam ser estudados
a partir da realidade urbana; e 2) considerando o caráter desigual do processo de reprodução do
espaço urbano, as análises detalhadas da realização dos enquadros deveriam focar em unidades
com diferente composição sociodemográfica pertinentes a uma mesma dinâmica espacial.
O recorte das áreas urbanas é fundamental porque a PMESP atua em todo o estado de São
Paulo, abrangendo desde a maior região metropolitana do país até áreas francamente rurais. Uma
vez há uma especificidade urbana a ser considerada, deveriam ser estudadas as unidades PM
situadas em áreas urbanas. Em razão da disponibilidade de dados, a área urbana selecionada
para o estudo foi a capital do estado.25
O estudo pormenorizado das diferentes formas de realização dos enquadros em cada batalhão
selecionado foi feito por meio de dois tipos formulários: os “Relatórios de Comando de Grupos de
Patrulha” (RCGP) e os Boletins de Ocorrência da Polícia Militar (BOPM). Os primeiros apresentam
todas as atividades realizadas pelas equipes policiais durante um turno de serviço, inclusive a
somatória das pessoas e veículos “abordados”; enquanto os segundos apresentam casos
específicos em que a interação entre policial e público gerou o registro de ocorrência, em que o
policial registra informações pessoais (nome, endereço, idade, cor, profissão) de solicitantes,
vítimas e suspeitos abordados.
Por ainda não haverem sido informatizados em 2016, os RCGP e os BOPM foram
selecionados, coletados e registrados por mim nas dependências da PMESP, o que me deu a
oportunidade de conviver com policiais militares enquanto realizava a amostragem de documentos,
experiência que também influenciou fortemente para as formulações da pesquisa e, por isso, vale
a pena tratar em maior detalhe.
Já a segunda parte, intitulada “O enquadro como escolha política” eu trato de indicar como os
enquadros e os seus efeitos, além de sintomas sociais, são também frutos de escolhas políticas,
conferindo uma contextualização social e histórica para o fenômeno. Quanto a essa parte cabe
enfatizar dois pontos. O primeiro é que o recorte temporal da análise se refere, precisamente, ao
processamento de condições societárias específicas que marcam o surgimento de uma “nova
cultura do controle do crime” a partir da transformação do crime em fato social “normal” e cujo
desenrolar culminou em uma conformação particular de um “dilema da política de segurança” em
São Paulo. Assim, a reconstrução histórica do uso dos enquadros pela polícia militar paulista se
inicia em meados de 1970, não porque os enquadros tenham surgido aí, mas porque é quando
emerge a noção de violência urbana, isto é, tomada como um marco temporal de transformação da
representação da ordem, com repercussões importantes para a operacionalização do controle
social e para o debate político.
O segundo ponto é que, ao tratar o enquadro como uma escolha política, o meu objetivo é
enfatizar a racionalidade formal imanente ao seu processo de transformação. Dessa maneira,
muito longe de presumir a consciência dos atores políticos envolvidos sobre os desdobramentos
das medidas tomadas, o objetivo é enfatizar que a transformação dos enquadros é, em parte,
produto dessas escolhas. Isso significa que, na segunda parte, buscarei demonstrar como
determinadas tendências político-criminais e estratégias de preservação da ordem se combinaram
de maneira a incentivar a explosão do número dos enquadros em São Paulo, o que também
produziu uma representação extremamente ambígua acerca da sua significação político-social, ora
como medida de produtividade e ora como moralização de suspeitos.
Ainda como tarefa preliminar à exposição do estudo, cabe endereçar duas questões teórico-
metodológicas de especial relevância ética no que diz respeito à minha forma de acessar e olhar
para a Polícia Militar do Estado de São Paulo. A primeira diz respeito ao meu campo de visão.
Parece relevante pontuar o que observei para chegar até a posição que assumo nesse livro em
relação à instituição PMESP, ao significado do trabalho policial e ao seu próprio sentido desse
estudo enquanto esforço de interpretação sociológica. A segunda questão trata da minha escolha
quanto à forma de apresentação daquilo que observei e interpretei, a partir da extensa gama de
informações a que tive acesso.
Rapidamente, percebi que frequentar os quartéis seria uma oportunidade única para me
aproximar da realidade do trabalho policial. E foi. Aproximei-me de muitos policiais militares,
conheci o cotidiano do seu trabalho e, em alguns casos, pude conhecer também as suas
aspirações profissionais, as suas inclinações políticas, as suas críticas ao trabalho policial e à
instituição, bem como seus gostos, passatempos etc.
Minha primeira visita a um quartel da PMESP ocorreu em junho 2017 e a última, um pouco
mais de um ano depois disso. Cheguei a visitar cinco batalhões da capital paulista: o 1º em Santo
Amaro, 8º no Tatuapé, 13º nos Campos Elíseos, 23º em Pinheiros e o 48º na Vila Curuçá, mas
decidi consolidar informações de apenas quatro deles para tornar factível a análise da quantidade
massiva de dados que coletei. Assim, todos os batalhões visitados, exceto o 8º, compõem as
bases de dados construídas para esse estudo.27
Passei, em média, um mês frequentando cada batalhão, cerca de uma semana em cada
companhia (unidade territorial em que se dividem os batalhões e que costumam a corresponder à
divisão em distritos policiais da Polícia Civil). Por vezes, eu tive que conhecer a sede do batalhão e
conversar com seu comandante antes de dar início à coleta documental nas companhias. Outras,
fui diretamente às companhias, sempre a critério do comandante de cada batalhão.28
Minhas visitas para coleta documental seguiam um roteiro típico. Eu marcava com alguma
antecedência e quando chegava à companhia já havia algum policial do administrativo esperando
por mim. Eu informava os documentos de que necessitava e o policial responsável por me auxiliar
apontava uma mesa em que eu poderia realizar os procedimentos de amostragem.
Era comum que eu passasse o turno completo do expediente do setor administrativo (das 9:00
às 18:00) no quartel. Na maioria das vezes, eu era convidada para almoçar nas dependências da
PM. Esses almoços eram oportunidades de conhecer os policiais e o cotidiano do policiamento.
Naturalmente, nessas conversas eu também era requisitada a explicar a pesquisa, meus objetivos
teóricos e também políticos.
Essa convivência me permitiu superar a rigidez que marcou as interações iniciais. Havia
lugares em que a conversa com os policiais engrenava e, por causa disso, o ritmo da coleta
documental se tornava mais lento. Mas também houve lugares em que minha mesa era afastada
dos postos de trabalho dos policiais e as oportunidades para troca eram mais raras. Nesses casos,
a coleta de dados acelerava às custas das conversas que eram muito ricas, a despeito de
trazerem informações que eu não tinha pretensão de coletar e revelar situações que eu sequer
conhecia.
Em algumas ocasiões, fui confiada com relatos carregados de dilemas éticos sobre desvios de
conduta e violência. Assuntos tabu como corrupção, uso do policiamento velado, divergências
quanto ao uso da força dentro de uma mesma equipe, relações entre praças e oficiais etc. estão
entre coisas que ouvi e, quando requisitada, opinei.
É inevitável que tudo isso tenha passado a compor meu campo de visão. Todavia, escolhi não
usar as narrativas detalhadas ou interações específicas coletadas durante observação participante,
apenas considerações genéricas e não passíveis de individualização. Meu intuito é garantir o
anonimato dos meus interlocutores, uma vez que escolhi identificar os batalhões estudados para
conseguir apontar as suas localizações e interpretar os dados à luz da noção de reprodução social
do espaço urbano.
Nesse sentido, pode-se dizer que prevaleceu a escolha por trabalhar com os dados oficiais,
porque foi trabalhando com esses dados que consegui explicar a distribuição desigual de
estratégicas e táticas policiais, com concentração de táticas punitivas na periferia, bem como o seu
efeito real na seletividade dos processos de criminalização.
De todo modo, acredito que meus objetivos principais foram cumpridos, quais sejam,
compreender as escolhas políticas que levaram à constituição da política do enquadro na
segurança pública paulista e a maneira como os enquadros se inserem na produção complexa e
seletiva da criminalização.
Organização do texto
A primeira parte desse estudo, “O enquadro como sintoma”, buscarei identificar as formas
acionamento e realização dos enquadros a partir de três aspectos que ao longo da pesquisa se
provaram essenciais para explicar o seu sentido30: 1) a da circulação de pessoas e mercadorias
sujeitas ao controle policial em uma dada localidade; 2) as configurações do espaço urbano que
permitem o desenvolvimento de noções normalizadoras pautadas na comparação entre diferentes
lugares; e 3) a maneira como se organiza a unidade policial responsável pelo policiamento da
localidade estabelecendo estratégias e táticas específicas formuladas em perspectiva de 1) e 2).
No capítulo seguinte, chego ao ponto que tem recebido a maior atenção das pesquisas
acadêmicas sobre prática dos enquadros, a interação face a face entre policiais e suspeitos. Eu
parto de uma tipologia de enquadros e formas de socialização dos policiais militares para traçar
conexões entre os arranjos tático-estratégicos do policiamento e os seus rebatimentos sobre a
realização cotidiana dos enquadros, suas principais formas de legitimação legal e alvos
preferenciais. Usei primordialmente os dados contidos nos boletins de ocorrência da PM contendo
as motivações para a prática de enquadros e informações pessoais (como sexo, cor, idade,
profissão, local da abordagem e endereço de residência) de 3.427 pessoas abordadas pela Polícia
Militar de São Paulo no ano de 2016 nos quatro batalhões selecionados.
A segunda parte, “Enquadro como escolha política”, tem como objetivo demonstrar como
disputas e escolhas políticas tomadas no bojo de uma nova forma de representar a ordem urbana
e a própria noção de prevenção criminal culminaram na política do enquadro. Nessa parte, minha
maior preocupação foi articular a prática real dos enquadros estudada na primeira parte com as
disputas e escolhas políticas que concorreram para produzir as suas feições atuais.
Trocando em miúdos, a segunda parte inicia com o Capítulo 3, em que eu trato da dinâmica
das demandas sociais externas à PM colocadas ao policiamento ostensivo. Fiz isso por meio de
uma síntese das disputas em torno da política criminal em São Paulo e seu efeito sobre a
constituição e sobre a hegemonização de determinadas representações da ordem urbana. Em
seguida, no Capítulo 4, apresento a dinâmica das demandas internas à prática profissional dos
PMs; quando foi possível identificar como a política do enquadro foi incorporada e impulsionada
por transformações importantes das concepções internas sobre o papel da polícia militar, sobre as
estratégias de preservação da ordem a serem incorporadas e também sobre as maneiras como
grupos profissionais distintos convergiram e divergiram frente a essas mudanças.
.Dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo disponíveis no site oficial na seção “Estatísticas
trimestrais”.
.Enquadro é o nome popular usado em São Paulo para fazer referência às ações policiais de solicitação de
identificação pessoal e/ou revista corporal em suspeitos. Também se usa “geral” e “dura” (termos mais comuns no Rio
de Janeiro) e “baculejo” (mais popular no Ceará e Pernambuco). Nos registros oficiais da Secretaria de Segurança
Pública de São Paulo os enquadros são denominados de maneira mais descritiva como pedidos de identificação
(quando o policial solicita a identidade de alguém) e buscas pessoais (quando ele revista o seu corpo). Cabe dizer
também que sempre que eu utilizar um termo em itálico significa que eu o estou utilizando como uma categoria de
análise. Quando se tratar da reprodução de falas ou nomes de programas institucionais utilizarei “aspas”. Nesse
trabalho, adoto o termo enquadro por ser mais interessante de um ponto de vista teórico-metodológico que preza a
unidade entre prática (abordagem) e representação (seleção de sujeitos considerados suspeitos). Conferir a
discussão proposta no Capítulo 3.
.A obra de Wanderley Guilherme dos Santos confirma de maneira inequívoca esse aspecto de continuidade a partir
das noções de “cidadania regulada”, “cidadania em recesso” se referindo às políticas sociais do Estado brasileiro,
respectivamente, na Era Vargas e na Ditadura Militar de 1964. Para a contextualização das noções ver,
respectivamente: SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Cidadania e justiça: a política social da ordem brasileira,
p. 71-121.
.Gerencialismo é, no sentido aqui empregado, uma tendência político-criminal de adoção de táticas de gestão
empresarial uma determinada agência do sistema de justiça criminal por meio da alocação racional de riscos político-
operacionais. Ao longo do estudo, apontarei que essa tendência ganhou muita força durante o governo de Mário
Covas em São Paulo (entre 1995 e 2001), quando a PMESP desenvolveu novos indicadores de performance e um
inédito controle de processos por intermédio de novas formas de monitoramento, investimento em tecnologia da
informação e constantes auditorias financeiras. No entanto, é preciso deixar claro que mesmo sendo esta a principal
tendência das reformas policiais de Covas, não foi a única. A tendência que vem sendo denominada por muitos
estudiosos como populismo punitivo – caracterizada pela exploração da sensação de insegurança popular para o
atendimento de interesses corporativos ou eleitoreiros mediante o oferecimento de respostas imediatistas com alta
carga simbólica mas com repercussões irrelevantes para a diminuição da vitimização criminal – também tinha
considerável espaço na política criminal paulista no período Covas e se fortaleceu partir de meados dos anos 2000. O
mais importante a ser retido aqui é que essas categorias de análise de tendências políticocriminais enfatizam os
aspectos lógicos e teleológicos da transformação dos enquadros de que se ocupa a primeira parte deste estudo, mas
outros aspectos devem ser explorados na segunda parte a fim de construir uma análise mais consistente do uso
enquadros em São Paulo. Em sua tese acerca da formação de uma nova cultura do controle do crime, David Garland
menciona como um de seus aspectos a bifurcação político-criminal em que se combinam gerencialismo e populismo
punitivo ver em: GARLAND, David. The culture of control: crime and social order in contemporary society. p. 18-
26 e 188-192.
.Cabe ressaltar desde já que a cisão proposta por Garland e incorporada por mim nesta pesquisa entre estratégias
preventivas e de segregação punitiva de caráter especialmente afetivo não correspondem à uma divisão estática. Há
racionalidade (no sentido de uso da razão para otimizar a adequação entre meios e fins) nas estratégias afetivo-
punitivas; do mesmo modo que há uma dimensão afetiva nas estratégias racional-preventivas, já que é impensável
uma atividade humana que possa se desvencilhar completamente dos afetos. A distinção proposta por Garland, no
entanto, me parece interessante no sentido em que aponta haver uma resposta de adaptação das demandas por
controle do crime à realidade da dinâmica criminal contemporânea (caracterizada por altos índices criminais) que se
materializa na adoção de políticas preventivas. A sua atitude adaptativa é particularmente racional por lidar com a
realidade contemporânea do crime buscando otimizar tanto o controle objetivo sobre as taxas de delito quanto
fornecer respostas satisfatórias que promovam uma “sensação de segurança”, sua dimensão subjetiva. Por outro
lado, o caráter mais acentuadamente performático das estratégias punitivas está em que opera em uma lógica
e afirmação da soberania estatal como reação negacionista à crise de legitimidade do Estado, voltando-se,
prioritariamente, à dimensão subjetiva de promoção da sensação de segurança e de combate ao crime via
intimidação. Para uma explicação das dimensões objetiva e subjetiva da segurança urbana ver: SOZZO, Máximo.
Securidad Urbana y tácticas de prevención del delito. p. 103-136.
.Os policiais costumam indagar por que o suspeito está naquele local (geralmente está implícito que se trata de um
“ponto da venda de drogas” ou de um “sujeito conhecido dos policiais pela prática de crimes”), ou por que não está
em casa ou trabalhando no horário da abordagem ou ainda porque não obedeceu ao primeiro sinal de parada feito
pelos policiais.
7
.Como exemplos se pode citar o programa polícia Programa Operação de Risco na REDETV. Um trecho do programa
publicado pelo perfil oficial da PMESP exibe policiais da ROTA enquadrando um rapaz numa rua do Jardim São Luis
(zona sul de São Paulo) e afirmando que se o rapaz correu é porque ele tem “envolvimento com o tráfico”. O vídeo é
intitulado “Correu da ROTA e se deu mal”. No que diz respeito ao “rap policial” alguns trechos de músicas trazidos no
Capítulo 4 exemplificam meu argumento, desconheço trabalhos acadêmicos que tenham explorado a sua emergência
e pervasividade entre os profissionais de segurança pública, outros grupos ou classes sociais.
.Os termos entre aspas reproduzem falas comumente usadas pela polícia para descrever a violência urbana na
década de 1970 e podem ser encontradas nos excertos de jornais coletados principalmente por dois trabalhos muito
usados nesta pesquisa: “O crime pelo avesso” de Alessandra Teixeira e “Rondas na cidade” de Heloisa Fernandes.
As referências com paginações exaltadas foram reservadas para menções diretas a esses trabalhos e poderão ser
encontradas nos capítulos adiante.
.A lei permitiu que a recusa à autoidentificação por parte de um suspeito ensejasse a sua condução ao distrito policial.
Como será discutido adiante, a mudança legislativa foi considerada uma espécie de legalização da prisão para
averiguação e causou grandes embates mesmo entre os atores políticos engajados no processo de
redemocratização do país. O fato mais importante a ser retido aqui é que a lei conferiu a prerrogativa à polícia de
solicitar a identificação de pessoas sob a ameaça de detenção, algo que até então encontrava fundamentação muito
mais frágil na disposição ampla de “poder de polícia” contida no art. 78 do Código Tributário Nacional de 1966.
10
.Palavras do comandante-geral da PMESP em 1998, o coronel Alberto Camargo que assumiu a direção da
corporação em um dos momentos ais delicados de sua história e que apresentou a “verdadeira prevenção” como
uma indicação de compromisso com a eficiência e com o respeito aos direitos humanos. Uma versão integral do
discurso pode ser encontrada na edição de nº 20 da revista A força policial, p, 5-10. O assunto será discutido em
detalhe no segundo capítulo do estudo.
11
.Em uma reportagem de Bruno Paes Manso, representantes da polícia militar paulista falam sobre a importância das
abordagens e afirmam que a meta da instituição é realizar de 11 milhões de “abordagens” em todo o estado naquele
ano. Ver em: MANSO, Bruno Paes. PM quer fechar ano com 11 milhões de revistas e faz campanha contra
abusos. O Estado de São Paulo. Data: 10 nov. 2010.
12
.Ao longo dos anos de 2003, 2008 e 2013 diminuiu o número de pessoas que abordadas pela polícia em São Paulo.
Embora o número de enquadros tenha aumentado muito. Um mesmo estudo realizado na capital paulista nesses
anos através do método de levantamento identificou que a proporção de pessoas que tiveram suas identidades
requisitadas pela PM nesses anos foi, respectivamente, pouco mais de 20%, 23% e 15,6%. Já a proporção de
pessoas revistadas pela polícia esteve acima dos 15% entre 2003 e 2008 e caiu para 10,7% em 2013. Ver em: Centro
de Políticas Públicas. Instituto de Pesquisa e Ensino (Insper). Relatório da Pesquisa de Vitimização – 2003-2013.
13
.Refiro-me ao fato à controversa despenalização do uso de drogas no Brasil, fazendo com o poder policial
(concentrado no policiamento ostensivo que tem o primeiro contato com o investigado) se tornasse muito mais
decisivo para o futuro do suspeito. Isso porque, a partir da Lei 11.343/2006, a prerrogativa policial de determinar
se um caso concreto seria incriminado pela classificação “uso” ou “tráfico” passou a ter a consequência de gerar ou
não gerar prisão, permitindo maior espaço de disputa e até mesmo barganha, no momento da incriminação. Tratarei
do assunto com maior profundidade adiante.
14
.Ainda que sejam caracterizadas por uma profunda fragmentariedade quanto à sua consciência de classe e
inclinações políticas, as camadas médias urbanas (especialmente aquelas que exercem trabalho improdutivo e não-
manual, como é o caso do oficialato e grande parte das praças da polícia militar responsáveis por planejar e
coordenar a execução do policiamento) tendem a se afastar ética e politicamente da classe trabalhadora e, em
momentos de crise, tendem a rejeitar ferozmente o modo de vida das camadas mais pobres como tentativa
desesperada pela manutenção do próprio status social. Considero que o período que se inicia na a partir de 2013,
quando houve um aumento sensível da desigualdade no país, tenha aberto a possibilidade para acirrar medos e
tensões entre polícia e policiados, uma relação já muito tensa em razão da própria situação de trabalho dos policiais.
Essas questões serão mais bem discutidas no Capítulo 5. As categorias camada média urbana e situação de trabalho
estão fundadas no trabalho de SAES, Décio. Classe média e sistema político no Brasil. p. 1-26. Para observar
como a desigualdade volta a crescer no país em meados dos anos 2000 ver: SOUZA, Pedro Ferreira. A
desigualdade vista do topo: a concentração de renda entre os ricos no Brasil, 1926-2013. p. 306-322.
15
16
.O autor identifica que mudanças ocorridas a partir da década de 1970 no estilo de governança, na capacidade para o
controle social, no contexto econômico e na percepção de validade e eficiência da justiça penal estatal que compõem
o que ele denomina modernidade tardia estariam na base da explicação da emergência dessas novas estratégias de
controle do crime. GARLAND, David. The culture of control: crime and social order in contemporary society,
p. 75-138.
17
.Mais oportunidades para o crime em razão do aumento da circulação de objetos portáteis de alto valor como
televisores leves, celulares, tablets e etc. Diminuição dos controles situacionais porque com as mulheres
empregadas, a periferização e a concentração de pobreza em determinados bairros, as casas e os bairros passam
mais tempo sozinhos e os vizinhos têm menos contato. O risco do engajamento com os mercados criminais está no
aumento do desemprego e do subemprego que transformam o trabalho em economias ilícitas como uma alternativa à
complementação da renda. Para mais detalhes, ver: GARLAND, David. The culture of control: crime and social
order in contemporary society. p. 75-92.
18
.A importação de conceitos formulados para interpretar cenários distintos, em especial, países desenvolvidos com
formação social muito diferente da brasileira, é uma das preocupações centrais dos setores mais críticos da teoria
social brasileira desde os anos 1950. Hoje, o mais conhecido debate acerca da questão é aquele que se deu a partir
da publicação e das críticas ao ensaio de Roberto Schwarz “As ideias fora do lugar” de 1973, que inspirou o nome
deste subitem. Em linhas gerais, Schwarz argumentou que a ideologia liberal no século XIX – que em países
capitalistas europeus esteve associada à emergência e justificação da dominação impessoal via trabalho
assalariado – assumia certo “sentimento de despropósito” no Brasil onde persistia o emprego massivo do trabalho
escravo e onde as relações entre trabalhadores livres e empregadores era mediada pelo favor, levando-o a afirmar
que aqui as ideias liberais estariam “fora” do lugar, e que isso explicaria, ao menos em parte, as peculiaridades da
assimilação do ideário liberal em terras brasileiras. Preocupação similar já havia sido proposta, de maneira um tanto
diferente, por Guerreiro Ramos em “A redução sociológica”, ensaio de 1958 em que o autor critica ferozmente a
“servidão intelectual” de muitos sociólogos brasileiros. Penso que a crítica de Jacob Gorender ao ensaio de Guerreiro
Ramos intitulada “Correntes sociológicas no Brasil”, também publicada em 1958, seja ainda hoje a principal referência
para enfrentar as preocupações de ordem epistemológica invocadas por Schwarz, Ramos e todos os autores anti,
pós ou decoloniais que os sucederam. No que diz respeito à dimensão ontológica da discussão, a solução mais
adequada me parece ser aquela que rejeite a possibilidade de se estabelecer uma relação se exterioridade entre
ideias e realidade social, mas que reconheça haver uma especificidade da inserção brasileira na divisão internacional
do trabalho que dá azo a formações sociais, teóricas e ideológicas distintas, porém, combinadas às existentes na
Europa. Isto implica a possibilidade de diferentes liberalismos originados a partir de um sistema-mundo capitalista
articulado em que há diferentes arranjos produtivos e político-sociais. Essa foi a solução apresentada pela teoria
marxista da dependência, que abarca, com diferentes abordagens, autores como Ruy Mauro Marini e Aníbal Quijano.
Para ler o ensaio original de Schwarz: SCHWARZ, Roberto. As ideias fora do lugar. Para uma síntese da discussão
ver: RICUPERO, Bernardo. Da formação à forma: ainda as ideias fora do lugar. p. 59-69. Para ver a formulação
de Guerreiro Ramos e a resposta de Jacob Gorender, e que veio a ser anexada ao próprio livro que critica, ver:
RAMOS, alberto Guerreiro. A redução sociológica. p. 45-155 e GORENDER, Jacob. Correntes sociológicas no
Brasil. p. 203-225. Sobre a questão da dependência tal como formulada por Marini ver MARINI, Ruy Mauro.
Dependência e subdesenvolvimento na América Latina. Ou ainda a contextualização do debate dependentista
feita por BIANCHI, Álvaro. O marxismo fora do lugar. p. 177-203. Finalmente, sobre a formulação da dependência
sob o signo da “colonialidade” ver CAHEN. Michael. O que pode ser e o que não pode ser a colonialidade: para
uma aproximação “pós-colonial” da subalternidade. p. 31-74.
19
.Há diferentes perspectivas internas ao que se compreende como estudos pós-coloniais. Quando remeto às críticas
pertinentes falo da rejeição à linearidade histórica e à unilateralidade imanente em certos conceitos de modernidade.
No entanto, o endosso não se estende às críticas antimaterialistas que rejeitam caracterizações precisas da realidade
sob o pretexto de reduzi-las a meras disposições epistemológicas “colonizadas”. O suposto “binarismo” do conceito
de “dominação” é um exemplo marcante de crítica pós-colonial de que discordo, trata-se do tipo de posição
pretensamente crítica que tende a ser imagem espelhada das ideias falsas que ataca. Para uma crítica precisa e
cuidadosa dos estudos pós-coloniais ver: CAHEN, Michael e BRAGA, Ruy. O anticolonial, o pós-colonial,
decolonial: e depois? p. 9-30. Para uma síntese dos pressupostos teóricos, éticos e políticos a que esse trabalho se
vincula: YOUNG, Jock. Working-class criminology, p. 238-245.
20
.SALLA, Fernando; GAUTO, Maitê; ALVAREZ, Marcos César. A contribuição de David Garland: a sociologia da
punição, p. 329-350.
21
.Muito se fala sobre os saltos qualitativos de desenvolvimento experienciados na década de 1970 na região
metropolitana de São Paulo, mas há consenso teórico e político quanto à impossibilidade de identificar essa
experiência com o que se processou em lugares como o Reino Unido ou os Estados Unidos. Ver em KOWARICK,
Lúcio. Viver em risco: sobre vulnerabilidade socioeconômica e civil, p. 75-91.
22
.Esses são os próprios termos de Luis Carlos Bresser-Pereira, que dirigiu o plano de reforma da administração
federal de Fernando Henrique Cardoso. Ver em: BRESSER-PEREIRA, Luis Carlos. Uma reforma gerencial da
administração pública no Brasil. p. 6-42.
23
.Sobre a reestruturação do Estado e também sobre os impactos sociais do “ajuste fiscal” a partir de dinâmicas
internas e externas cujo equacionamento econômico-político se realizou por meio do Plano Real ver BEHRING,
Elaine Rossetti. O Brasil em contra-reforma. Desestruturação do Estado e perda de direitos. p. 130-155 e p. 155-
167.
24
.Esse fenômeno de rearranjo político-institucional com dimensões globais é comumente identificado com o
neoliberalismo, um conceito altamente questionado e disputado na teoria social brasileira e estrangeira. De minha
parte, desde seja compreendido como uma ampla e variada gama de modificações das formas de regulação estatal
emergidas no contexto da reestruturação produtiva que se processa de maneira desde os anos 1970, penso ser
possível identificar o caráter geral da transformação das relações Estado-sociedade civil por meio do conceito de
neoliberalismo alinhado à noção de restauração do capital, para usar termos de Ruy Braga. Acerca da questão ver:
BRAGA, Ruy. A restauração do capital: um estudo sobre a crise contemporânea. sobretudo as páginas 213 e
seguintes.
25
.Mesmo sabendo que esse recorte prejudica a captação da dinâmica metropolitana em sua integralidade. Essa
questão também é endereçada no Apêndice.
26
27
28
.Os documentos RSO, RCGP e BOPM das companhias territoriais ficam estocados no prédio de cada companhia. Os
da força tática geralmente ficam na sede do batalhão, com a exceção das forças táticas que possuem sede própria.
Esse tipo de distribuição dos documentos garantia que eu conhecesse todos os prédios e tivesse algum contato com
a dinâmica cotidiana de cada unidade pesquisada.
29
.Evidentemente seria possível pensar um arranjo menos transparente e mais seguro aos meus interlocutores, a
exemplo da inserção de relatos de policiais de outros batalhões que não os pesquisados. No entanto, com o material
que me foi possível coletar nessa pesquisa e com as limitações do modelo que desenvolvi, essa incompatibilidade
era palpável e a escolha foi por dados quantitativos.
30
.Por sentido se deve compreender 1) o sentido subjetivamente representado pelos policiais que enquadram; 2) o
sentido objetivado em táticas e estratégias do planejamento policial.
31
.Lembrando que, uma vez que a correlação de forças sociais incidentes sobre diferentes localizações se provou
importante para compreender a dinâmica dos enquadros em São Paulo, escolhi privilegiar o uso de dados
documentais obtidos junto aos batalhões pesquisados, identificando a sua origem territorial para a formulação de
comparações.
SEÇÃO INTERATIVA
SEÇÃO INTERATIVA
0
Seção Interativa
Renato Sergio de Lima - Diretor Presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Professor
P 1-OE S
Em 2017, o jornal O Estado de São Paulo publicou uma entrevista polêmica sobre a prática de enquadros na capital
paulista. O entrevistado era o então Comandante da ROTA, Ricardo Augusto Araújo, que descreveu as periferias de São Paulo
como locais habitados por “pessoas diferentes” daquelas que vivem nos bairros nobres, o que demandaria uma “abordagem”
adequadamente distinta para garantir que o policial fosse “respeitado” pela população periférica e para que não fosse
considerado “grosseiro” pela população dos bairros nobres.
Foram solicitados a comentar Tânia Pinc e José Vicente da Silva Filho, ambos ex-policiais militares e pesquisadores
reconhecidos pela sua dedicação aos temas de controle do uso da força e profissionalização da atuação policial na PMESP.1
Silva Filho ressaltou que o “padrão” do comportamento policial deve ser o mesmo independentemente de quem seja o
abordado, mas asseverou que em bairros violentos é preciso maior “cautela” e “alerta”. Pinc frisou que só se pode abordar
quando houver suspeita da prática de crimes concretos e que abordagens policiais violentas podem incitar respostas violentas
contra os policiais.2
As diferentes posições suscitadas na polêmica são sintomáticas de uma conjuntura em que os enquadros assumiram uma
representação cheia de ambiguidades entre os próprios policiais e que, observadas com cuidado, revelam aspectos de
continuidade e ruptura quanto ao seu uso na cidade de São Paulo.
Continuidade porque, desde a sua formação, as periferias urbanas receberam tratamento diferenciado e foram alvos
prioritários de enquadros ciosos de “respeito” à autoridade policial. A ruptura está na peculiar e relativamente recente
articulação entre território, população e legitimidade policial desenvolvida por meio de diferentes estratégias de preservação da
ordem que buscam aplicar as táticas de policiamento de maneira diferenciada, em adequação às percepções policiais de risco.
Os “bairros violentos” são assim considerados em comparação a outros bairros. A maior “cautela” é calculada a partir da
comparação do risco envolvido em diferentes situações que, por sua vez, é estimado por intermédio de uma referência do que
deve ser considerado o “padrão”. Enfim, a legitimidade da ação policial dependerá da sua habilidade em adequar a ação
“padrão” às diferentes situações reais que se apresentem.
Ainda que hoje isso pareça trivial, essa perspectiva de comparação, fundada em uma noção de distribuição normal de
potenciais crimes, potenciais criminosos e potenciais vítimas no espaço urbano é uma construção recente e que foi incorporada
de maneira incisiva ao planejamento da ação policial paulista apenas nos anos 1990.
Como ficará claro adiante, reformas policiais visando aprimorar o esquadrinhamento territorial em São Paulo, que vinham
ocorrendo desde os anos 1980, atingiram seu ápice no governo de Mário Covas, cujos programas de aumento de eficiência e
registro de produtividade conduziram ao uso mais frequente e autonomizado dos enquadros na metrópole.
Ao endereçarem o funcionamento da Polícia Militar do Estado de São Paulo, todos os policiais entrevistados na matéria
remeteram a essa racionalidade comum assumida pela PMESP em meados de 1990 e que foi tornada possível por reformas
recentes conduzidas no marco eficientista do funcionalismo público paulista. Por outro lado, ao enfatizarem a importância da
técnica e de uma atuação padrão, Pinc e Silva Filho se distanciaram do comandante da ROTA, este mais preocupado em
justificar a atribuição de diferentes níveis de risco para a atuação policial periferia e bairros nobres, genericamente
considerados, a partir de uma generalização despreocupada com evidências empíricas.
As tensões geradas pelas divergências entre os entusiastas de uma perspectiva mais calcada em técnica, pesquisa e
procedimentalização na PM paulista e os setores que relativizam a sua importância (ou mesmo afirmam a sua inaplicabilidade
por completo) remetem ao caráter híbrido de uma organização em que concorrem diferentes concepções sobre quais são os
seus fundamentos ético-políticos e qual é a melhor forma de concretizá-los.
A existência de uma tensão interna à organização é, geralmente, um obstáculo a convergências de qualquer tipo. No
entanto, como ficará claro nesse estudo, o uso dos enquadros vem funcionando na PMESP como uma espécie de válvula de
escape, que reproduz essas tensões internas ao mesmo tempo em que viabiliza a sua reprodução.
Os enquadros são hoje práticas amplamente difundidas no meio policial paulista e altamente estimulados por diferentes
setores da organização, frise-se mesmo por setores antagônicos que apresentam visões de mundo distintas e conflitantes.
O caráter convergente dos enquadros se explica por uma série de questões. Uma delas é a regulação deliberadamente
fragmentária que a prática recebe. De um lado, há diretrizes estritas para a realização de diferentes tipos de “abordagem” que
conferem maior segurança física e jurídica ao policial que aborda. De outro, existe uma ampla discricionariedade conferida ao
policial na seleção de suspeitos, o que permite que os enquadros sejam cheques em branco cujo preenchimento fica ao critério
de quem executa.
É possível realizar um enquadro desde uma concepção legalista e técnica do trabalho policial, do mesmo modo que é
possível fazê-lo por uma orientação moralista que concebe o momento da abordagem como oportunidade de admoestação de
suspeitos e reestabelecimento da ordem.
Ainda que a discricionariedade possa remeter, a princípio, ao subjetivismo do agente que realiza o enquadro, é importante
frisar que, em uma organização policial militar como a PMESP, a questão é um tanto mais complexa. Os agentes da ponta
contam com ampla discricionariedade no que se refere à seleção de suspeitos, mas essa prática se insere em um conjunto de
outras atividades policiais cotidianas dirigidas por uma organização fortemente hierarquizada e cuja ação é orientada por
estratégias e táticas de policiamento determinadas.
A maneira como a discricionariedade, presente de modo explícito na seleção de suspeitos, molda a atuação concreta da
polícia merece atenção. Porém, é igualmente importante identificar o papel da discricionariedade em toda a cadeia de
reprodução das práticas policias cotidianas. Na PMESP, há um grande espaço de escolha discricionária para alocação de
efetivo, determinação de postos fixos de policiamento e do itinerário das viaturas, bem como para a escolha de alvos
preferenciais dos enquadros e dos lugares mais apropriados para a sua realização.
O planejamento dessas atividades está sujeito a determinações prévias dos membros do oficialato que dirigem as unidades
territoriais de atuação policial, quais sejam, os batalhões e as companhias. Cotidianamente, a execução dessas atividades fica
sob a supervisão direta de um policial encarregado, designado como responsável imediato das atividades operacionais de uma
determinada equipe policial. Todas as equipes são coordenadas por um oficial responsável pela supervisão do conjunto das
equipes, denominado grupo de patrulha.3
O agente encarregado de uma equipe, escolhido discricionariamente pelo oficialato, pode ser um oficial ou uma praça
experiente que tenha boa relação com o oficial no comando. O encarregado pode exercer um controle mais ou menos rígido
sobre cada uma das tarefas na ordem do dia, observando também as disposições hierárquicas superiores (diretrizes do
Comando da Companhia, ou do Comando do Batalhão ou do Comando-Geral e etc.) e fatores locais como taxas de crimes, o
bom relacionamento e competência das tropas, demandas da população e percepções coletivamente compartilhadas de ordem.
Desse modo, quando os enquadros efetivamente são realizados, eles nunca são mero fruto da disposição individual de um
agente. A determinação para a sua ocorrência sempre envolve: escolhas estratégicas da PMESP, que estipula diferentes
quantidades de policiais e formas de atuação em um território; escolhas táticas do comando de policiamento quanto aos
objetivos imediatos a serem atingidos e às práticas policiais empregadas num determinado local; e também as escolhas
individuais, que, por sua vez, são formuladas a partir da experiência do sujeito policial cuja visão de mundo, interesses e
valores são forjados no convívio social.
Ao longo desse capítulo, argumentarei que, por meio da indeterminação dos critérios de burocratização estrutural da
PMESP, é garantido, institucionalmente, um espaço para a convivência entre formas muito diferentes de se conceber e de se
praticar as atribuições da polícia militar, isto é, “o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública”, nos termos da
Constituição de 1988. Um espaço que congrega Pincs, Silva Filhos e Araújos.
Da mesma forma, apontarei que os critérios frouxos de burocratização organizacional – em que se permite a constituição de
equipes baseada em critérios como convergência ideológica e apadrinhamento – também foram fundamentais acomodar o
avanço de uma racionalidade gerencialista e os “bolsões de resistência” à racionalização da PMESP que caracterizaram
apolítica do enquadro.4
Essas diferentes formas de concepção do policiamento remetem a divergências internas entre determinados grupos e
sujeitos. Essas divergências são, por sua vez, especialmente tensas em razão do caráter híbrido (policial e militar) da PMESP,
ou melhor, da existência de forças sociais distintas cuja disputa sobre o sentido da ação organizada da polícia acirra as
antinomias imanentes ao seu hibridismo (a combinação entre atividades tipicamente policiais e as tipicamente militares).
Além disso, a forma peculiar como se normatiza e se divide a estrutura funcional da PMESP é de suma importância.
Predomina uma forma discricionária e hierarquizada de aplicação da disciplina que interfere em questões organizacionais
impactando todo o funcionamento da organização. Ao fim e ao cabo, a estrutura militar garante a direção ao oficialato: as
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koiria karkaa minun kimppuuni. Silloin sain minä aseen käteeni, ja
kolme koiraa käpertyi kuolleena minun viereeni; kuitenkin, kun minun
surkeasti raadeltuna täytyi väistyä, kuuluu pillin ääni: Koirat
kartanolle, portti kiinni ja salpa eteen! Ja tunnottomana vaivuin minä
tielle.
Mutta tämä matka oli kaikista niistä toimista, mihin hän asiansa
vuoksi oli ryhtynyt, kaikkein onnettomin. Jo muutamain päiväin
perästä palasi Sternbald takaisin, ajaen jalka jalalta kartanolle, ja
vaunuissa makasi Kohlhas'in vaimo pitkänään, rinta pahoin
loukattuna. Kohlhas, joka kalpeana lähestyi vaunuja, ei voinut saada
selkoa, mikä tämän onnettomuuden oli matkaan saattanut.
Linnanhoitaja ei ollut, kuten renki kertoi, ollut kotona; heidän oli
niinmuodoin täytynyt ottaa asunto eräässä majatalossa lähellä
linnaa. Tästä majatalosta oli Lisbeth lähtenyt seuraavana aamuna,
käskettyänsä rengin jäämään hevosia hoitamaan, ja vasta illalla oli
hän palannut tässä tilassa. Näytti siltä, että hän olisi liian uskaliaasti
tunkeutunut maaherran luokse ja ilman hänen tietämättänsä, sekä
häntä ympäröiväin vartiain raa'asta intoilusta saanut tölmäyksen
rintaansa keihään varresta. Niin kertoivat kumminkin ne henkilöt,
jotka illan puoleen olivat hänet tainnoksissa majataloon saattaneet.
Itse ei hän voinut tuskin mitään sanoa, sillä veri tulvasi suusta.
Rukouskirjan oli sitten muuan ritari häneltä ottanut. Sternbald sanoi
tahtoneensa heti nousta hevosen selkään ja tuoda ilmoituksen tästä
onnettomasta tapauksesta, mutta vaimo oli, vastoin kaikkien avuksi
hankittujen lääkärien esitystä, pysynyt päätöksessään, että hänet piti
vietämän Kohlhasenbrück'iin ilman sanan saattoa hänen
miehellensä.
Kohlhas vei nyt vaimonsa, matkasta riutuneena kun tämä oli,
vuoteelle, ja niin eli hän vielä muutamia päiviä, saaden ainoastaan
suurella vaikeudella hengitetyksi. Turhaan koetettiin saada häntä
tointumaan, jotta päästäisiin selville siitä, mitä oli tapahtunut; hän
makasi tuossa, silmät ummessa ja liikkumattomina, mitään
vastaamatta. Vasta vähää ennen kuolemaansa tuli hän vielä kerran
selvälle järjellensä. Sillä kun muuan Lutherinuskoinen pappi (vaimo
oli, näet, miehensä esimerkkiä noudattaen mennyt tähän uskontoon,
jota siihen aikaan oli leviämässä) seisoi hänen vuoteensa ääressä ja
selvällä, juhlallisella äänellä luki kappaleen raamatusta, katsahti hän
äkisti tähän, silmissään synkkä mielenilmaus, otti raamatun hänen
kädestään, ikäänkuin olisi tahtonut, ett'ei hänelle mitään luettaisi,
käänteli sen lehtiä sinne tänne ja näytti jotakin paikkaa hakevan.
Vihdoin osoitti hän Kohlhas'ille, joka istui vuoteen ääressä,
sormellansa tätä värssyä: "Rakastakaat vihollisianne ja tehkäät niille
hyvää, jotka teitä vihaavat". Sitten puristi hän miehensä kättä, loi
häneen toivottoman tunteellisen katseen ja kuoli.
Kun aamu tuli, oli koko linna poroksi palanut, paitsi muuria, jotka
vielä seisoa törröttivät, eikä siellä ollut ketään muita, kuin Kohlhas ja
hänen seitsemän renkiänsä. Hän hyppäsi hevosensa selästä ja
urkkieli vielä auringon kirkkaassa valossa kertaalleen koko alueen,
jossa ei enään yhtään pimeätä solaa eikä sopukkaa löytynyt. Kuinka
katkeralta se tuntuikin hänen silloiselle mielialallensa, joka karkoitti
kaikki paremmat tunteet, täytyi hänen varmasti uskoa, että kostoretki
oli niin huonosti onnistunut, jotta junkkeri Wenzel oli päässyt pakoon.
Hän lähetti sentähden Hersen muutamien toisten renkien keralla
hakemaan tietoja, mihin päin junkkeri oli paennut. Erittäinkin oli hän
levoton erään rikkaan, Erlabrunn nimisen nunnaluostarin tähden,
joka oli Mulda-joen rannalla, ja jonka abbedissa (päänunna), Antonia
von Tronka, oli seuduilla tunnettu hurskaaksi, avuliaaksi ja
jumaliseksi naiseksi; sillä liian selvänä piti tuo onneton Kohlhas sen,
että junkkeri, niin tyysten tarkoin kuin häneltä kaikki
tarpeellisimmatkin oli ryöstetty, oli ottanut pakonsa tähän luostariin,
varsinkin kun sen päänunna oli hänen oikea tätinsä, joka oli
kasvattanut häntä hänen ensimäisessä nuoruudessaan. Saatuansa
tätä seikkaa koskevia ilmoituksia, nousi hän vouti-torniin, jossa vielä
oli huone asuttavassa kunnossa, ja kirjoitti siellä tuon niin sanotun
"Kohlhas'in kuulutuksen", jossa hän kielsi kaikkia maan asukkaita
millään tavalla auttamasta junkkeri Wenzel von Tronkaa, jonka
kanssa hän kävi laillista sotaa ja sen ohessa velvoitti hän kaikkia
yleiseen, siitä vapauttamatta junkkerin ystäviä ja sukulaisiakaan,
jättämään junkkerin hänen käsiinsä; jolleivät niin tekisi, rankaisisi
hän heidät kuolemalla, ja kaikki, mitä heillä omaa olisi, poltettaisiin
tuhaksi. Tätä kuulutusta antoi hän vieraitten ja matkustavaisten
levitellä seudulle, antoipa hän vielä rengillensäkin, Waldmann'ille,
kopian siitä, käskien hänen viemään sen neiti Antonialle
Erlabrunn'iin. Sitten puhutteli hän muutamia nuoria miehiä,
Tronkenburg-perheen alustalaisia, jotka olivat tyytymättömät
junkkeriin ja jotka saaliin himosta lupasivat astua hänen
palvelukseensa. Hän varusti ne jalkaväeksi, miekoilla, keihäillä ja
tikareilla, sekä asetti ne istumaan ratsasmiesten taakse. Kun hän
sitten oli muuttanut kaikki, mitä hänen väkensä oli muassaan tuonut,
rahaksi ja jakanut summan heidän keskensä, lepäsi hän muutaman
tunnin linnan portilla surullisen työnsä jälkeen.
— Hän on Wittenberg'issä.
— Milloin?
— Niin totta Jumala minua auttakoon, sain minä sen kaksi tuntia
senjälkeen kun veljeni poika oli täältä lähtenyt.