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Um país terrível Um romance sobre a

Rússia 1st Edition Keith Gessen


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Um país terrível Um romance sobre a Rússia 1st Edition


Keith Gessen

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Um país terrível
tradução
Bernardo Ajzenberg
Maria Cecilia Brandi
A Rosalia Moiseevna Solodovnik (1920-2015)
Capa
Folha de Rosto

Parte 1
1. Me mudo para Moscou
2. Minha avó
3. Um passeio pelo bairro
4. Tento encontrar um jogo de hóquei
5. Tento fazer amigos
6. Vou à boate
7. Vamos ao banco
8. Minha avó pede chinelos novos (da Bielorrússia)
9. Dima vem a Moscou

Parte 2
1. Lá fora esfria
2. Amplio meu círculo social
3. Vou a um jantar
4. Revelação
5. Fico doente
6. Outubro
7. A festa de Serguei
8. Minha avó cai da escada
9. Tarefas domésticas
10. Chipalkin frustra meus planos
11. Para levantar o astral, vamos às compras
12. Me alisto

Parte 3
1. Iulia
2. Minha avó dá uma festa
3. Consigo uma entrevista
4. Decido confrontar Emma Abramovna
5. Promessas
6. Verão
7. Fim de uma linda era

Epílogo

Agradecimentos

Autor

Créditos
Parte 1
1.
Me mudo para Moscou

No final do verão de 2008, mudei para Moscou para cuidar de minha


avó. Ela estava prestes a completar noventa anos e fazia quase dez
que não a via. Sua família se resumia a mim e ao meu irmão Dima;
sua única filha, nossa mãe, morrera alguns anos antes. Baba Seva
agora morava sozinha em seu velho apartamento em Moscou.
Quando lhe telefonei para avisar que estava indo, ela pareceu
bastante contente de sabê-lo, mas também um pouco confusa.
Meus pais, meu irmão e eu deixamos a União Soviética em 1981.
Eu tinha seis anos, Dima, dezesseis — e isso fez toda a diferença.
Tornei-me americano, enquanto Dima continuou essencialmente
russo. Assim que ocorreu o colapso da União Soviética, ele retornou
a Moscou para fazer fortuna. Desde então, a construiu e perdeu
várias vezes; eu não tinha certeza de como as coisas estavam
agora. Mas, um dia, ele me escreveu no Gchat para perguntar se eu
não poderia ir a Moscou e ficar com Baba Seva enquanto ele
estivesse em Londres por um tempo.
“Por que você precisa ir a Londres?”
“Quando a gente se encontrar eu explico.”
“Você quer que eu largue tudo aqui e atravesse meio mundo e
não pode nem mesmo me dizer o porquê?”
Alguma coisa me irritava quando eu tinha de lidar com meu irmão
mais velho. Detestava isso, mas não conseguia evitar.
Dima disse: “Se você não quer vir, então diga. Mas não vou falar
sobre isso aqui pelo Gchat.”
“Tem formas de falar por aqui sem ser registrado, sabia?
Ninguém conseguiria ter acesso.”
“Deixe de ser idiota.”
Dima deu a entender que estava envolvido com algumas
pessoas muito importantes, que não desistiriam facilmente de tentar
invadir o Gchat dele. Talvez fosse verdade, talvez não. Ao se tratar
de Dima, a linha entre esses dois conceitos era sempre instável.
Quanto a mim, eu não era de fato um idiota. Mas também não
deixava de sê-lo. Tinha passado quatro longos anos na faculdade e
depois mais oito ainda mais longos na pós-graduação estudando
história e literatura russa, bebendo cerveja e sempre ganhando
(cinco vezes!) o torneio de hóquei da Copa dos Estudantes de Pós;
depois disso, lancei-me ao mercado em busca de emprego por três
anos ininterruptos sem qualquer êxito. Quando Dima me escreveu,
eu já tinha esgotado todas as possibilidades disponíveis de bolsas
de pós-graduação e fora contratado para ministrar aulas online no
novo programa PMOOC, sigla em inglês de Curso Livre Pago Online,
embora o “pago”, no caso, se referisse muito mais aos estudantes,
que de fato tinham de pagar, do que aos professores, que recebiam
muito pouco pelo trabalho. Com certeza não era suficiente para
continuar em Nova York, mesmo levando uma vida muito simples.
Em resumo, sobre a questão de eu ser ou não um idiota, havia
evidências tanto para um lado como para outro.
Se o fato de Dima ter-me escrito naquele momento foi, em parte,
providencial, cabe dizer que ele também tinha uma capacidade de
fazer as pessoas se envolverem em projetos que não eram
necessariamente do interesse delas. Certa vez, convenceu seu
agora ex-melhor amigo Tom a se mudar para Moscou e abrir ali uma
padaria. Infelizmente, Tom abriu sua padaria muito perto de outra
padaria, e teve a sorte de sair de Moscou apenas com o ombro
deslocado. De toda forma, agi com cautela e perguntei: “Posso ficar
na sua casa?”. Em 1999, depois do colapso da economia russa,
Dima comprou o apartamento que fica bem na frente, no mesmo
andar, do apartamento da minha avó, de modo que ficaria mais fácil
ajudá-la quando necessário.
“Vou sublocá-lo”, disse Dima. “Mas você poderá ficar no nosso
quarto na casa da vovó. É bem decente.”
“Tenho trinta e três anos”, eu disse, dando a entender que já
estava velho demais para morar com minha avó.
“Se você quiser alugar outro lugar, fique à vontade, mas tem de
ser bem perto do apartamento da vovó.”
Nossa avó morava bem no centro de Moscou. Os aluguéis ali
eram quase tão caros quanto em Manhattan. Com o que eu
ganhava no PMOOC, conseguiria alugar no máximo uma poltrona.
“Posso usar o seu carro?”
“Eu o vendi.”
“Cara, quanto tempo você vai ficar fora?”
“Eu não sei”, disse Dima. “E eu já saí.”
“Ah”, respondi. Ele, na verdade, já estava em Londres. Devia ter
viajado às pressas.
Eu também estava louco para sair de Nova York. O último dos
meus colegas do departamento de línguas eslavas tinha conseguido
um emprego e mudado para a Califórnia, e Sarah, com quem eu
namorara por seis meses, tinha me largado havia pouco tempo no
meio de um encontro num Starbucks. “Não consigo ver onde isso
vai dar”, dissera ela, referindo-se, suponho, ao nosso
relacionamento, mas sugerindo, na verdade, minha vida inteira. E
estava certa: até mesmo as coisas que eu sempre gostara de fazer
— ler, escrever e dar aulas sobre história e literatura russa — não
eram mais prazerosas. Meu futuro seria ficar avaliando sem vontade
trabalhos mal escritos de alunos desinteressados, sem luz no fim do
túnel.
Ao mesmo tempo, Moscou era um lugar especial para mim. Era a
cidade onde meus pais haviam crescido, onde tinham se conhecido;
era a cidade onde eu nascera. Era uma cidade grande, feia e
perigosa, mas também o berço da civilização russa. Até mesmo
depois que Pedro, o Grande, a trocou por São Petersburgo, em
1713, ou que Napoleão a saqueou, em 1812, Moscou continuou
sendo, como afirma Aleksandr Herzen, a capital do povo russo.
“Eles reconhecem os seus laços de sangue com Moscou quando
sentem a dor de perdê-la.” Sim. E fazia anos que eu não visitava.
Depois de passar algumas férias de verão da pós-graduação lá, fui
ficando cada vez mais cansado de sua pobreza e desesperança.
Dos bêbados violentos no metrô; dos bandidos vestindo agasalho
esportivo e jaqueta de couro, circulando de olho em todas as outras
pessoas; do cara que comia direto da lixeira ao lado do prédio da
minha avó todas as noites no verão que passei ali em 2000, e que
de vez em quando gritava “Filhos da puta! Sanguessugas!”, e
voltava a comer. Desde então, eu não tinha mais voltado.
Mesmo assim, não digitei nada para Dima. Precisava arrancar
pelo menos alguma concessão dele, nem que fosse por orgulho.
Perguntei: “Tem algum lugar lá para eu jogar hóquei?”. Com o
declínio da minha carreira acadêmica, eu passara a jogar cada vez
mais, e, até mesmo no verão, três vezes por semana estava em um
rinque.
“Você tá brincando?”, disse Dima. “Moscou é uma meca do
hóquei. A toda hora surgem novos rinques. Assim que você chegar
aqui eu te levo em uma partida.”
Guardei aquilo.
“Ah, e o sinal da internet do meu apartamento pega no andar
inteiro”, disse Dima. “Você terá wi-fi de graça!”
“OK!”, escrevi.
“OK?”
“Sim”, eu disse. “Por que não?”
Poucos dias depois fui ao consulado russo no Upper East Side,
fiquei uma hora na fila com meu formulário na mão e obtive o visto
de um ano. A partir daí, comecei a arrumar as coisas em Nova York:
subloquei meu quarto para um baterista de uma banda de rock de
Minnesota, devolvi meus livros para a biblioteca e fui ao rinque para
retirar meu equipamento de hóquei do armário. Foi bastante
trabalhoso, e nem um pouco barato, mas passei todo aquele tempo
imaginando a vida diferente que eu logo começaria a levar, e a
pessoa em que me transformaria então. Imaginei-me levando doces
para minha avó; acompanhando-a em passeios pela cidade,
incluindo idas ao cinema (ela sempre gostou de filmes); caminhando
de braços entrelaçados pelo nosso velho bairro e ouvindo suas
histórias a respeito da vida durante o socialismo. Havia muitas
coisas que eu não sabia sobre sua vida e sobre as quais jamais
havia perguntado; eu me mantinha indiferente e alheio àquilo tudo e
acreditava mais nos livros do que nas pessoas. Imaginei-me em
manifestações contra o regime de Pútin pelas manhãs, jogando
hóquei à tarde e fazendo companhia para minha avó de noite.
Talvez tivesse até mesmo um jeito de usar a vida da minha avó
como base para algum artigo de revista. Imaginei-me sentado
monasticamente em meu quarto com as histórias da minha avó na
cabeça, que acrescentariam toda uma nova dimensão ao meu
trabalho. Talvez eu pudesse distribuir os seus depoimentos em
itálico ao longo do texto, como em In Our Time.
Na última noite em Nova York, o pessoal que dividia a casa
comigo resolveu fazer uma pequena festa para mim. “A Moscou!”,
bradavam, erguendo suas latas de cerveja.
“A Moscou!”, eu repeti.
“E não vai morrer lá!”, exclamou um deles.
“Não vou morrer”, prometi. Estava agitado. E bêbado. Ocorreu-
me que havia certo glamour na ideia de passar algum tempo
naquela Rússia cada vez mais violenta e ditatorial, cujas forças
armadas tinham acabado de submeter a pequena Geórgia a uma
derrota humilhante. Às três da manhã enviei uma mensagem a
Sarah. “Parto amanhã”, dizia o texto, como se estivesse prestes a
me dirigir a um local muito perigoso. Sarah não respondeu. Acordei
três horas depois, ainda bêbado, enfiei as últimas coisas em minha
enorme mala vermelha, peguei o taco de hóquei e fui para o
aeroporto JFK. Embarquei no meu voo e imediatamente adormeci.
Quando dei por mim já estava na fila do controle de passaporte
no sinistro subsolo do Aeroporto Internacional de Sheremetevo-2.
Ele parecia nunca mudar. Como sempre acontecia, fizeram-me
descer a esse subsolo e aguardar na fila antes de poder pegar as
bagagens. Era como um purgatório do qual você suspeitava de que
sairia para algum outro lugar que não seria o paraíso.
Mas os russos pareciam diferentes das minhas lembranças.
Vestiam-se bem, com cortes de cabelo caprichados e falavam em
belos e novos celulares. Até os seguranças pareciam bem animados
em seus uniformes de camisa azul-clara de manga curta. Embora a
fila fosse longa, muitos deles se mantinham afastados conversando
e rindo. O barril de petróleo custava cento e catorze dólares, e eles
tinham arrasado os georgianos — será que era disso que riam?
A ideia de modernização tinha o seguinte princípio: riqueza e
tecnologia são mais poderosas do que cultura. Dê carros bacanas e
televisão em cores para o povo, assim como a possibilidade de
viajar pela Europa, que ele deixará de ser tão agressivo. Dois países
que tenham franquias do McDonald's jamais entrarão em guerra um
com o outro. Pessoas munidas de celulares são melhores do que as
que não os possuem.
Eu não tinha tanta certeza disso. Os georgianos tinham
McDonald's, mas os russos os bombardearam do mesmo jeito.
Quando já me aproximava do guichê do passaporte, um europeu,
que seria holandês ou alemão, alto, de óculos, perguntou em inglês
se ele poderia furar a fila na minha frente, pois tinha um voo de
conexão para pegar. Fiz que sim com a cabeça — de qualquer
maneira, ainda teríamos de esperar pela liberação das nossas
malas —, mas o sujeito que estava atrás de mim, mais ou menos da
mesma altura que o holandês embora bem mais encorpado,
vestindo um terno que apesar de meio quadrado não me parecia
nada barato, esbravejou em inglês com claro sotaque russo.
“Volte para o final da fila.”
“Estou quase perdendo meu voo”, disse o holandês.
“Volte para o final da fila.”
Virei-me para ele e disse em russo: “Que diferença faz?”.
“Há uma grande diferença”, respondeu.
“Por favor?”, pediu novamente o holandês, em inglês.
“Eu disse para voltar. Agora.” O russo se virou de modo a ficar
cara a cara com o holandês, que então, frustrado, deu um chute em
sua sacola para depois pegá-la e caminhar para o fim da fila.
“Ele tomou a decisão correta”, disse-me o russo, em russo,
sinalizando que, como um homem de princípios, estava totalmente
certo em ter repreendido o holandês por tentar furar a fila.
Não respondi nada. Depois de alguns minutos, cheguei ao guichê
de controle de passaporte. O jovem, loiro e taciturno guarda de
fronteira tinha seu uniforme todo iluminado, como um deus. De
repente lembrei que ali eu não tinha direito nenhum; ali não havia
esse negócio de direitos. Enquanto lhe estendia meu passaporte,
me perguntei se não tinha arriscado demais a minha sorte ao
retornar tantas vezes ao país que meus pais haviam deixado. Será
que acabariam finalmente me prendendo por causa das tantas
coisas negativas que eu havia pensado sobre a Rússia ao longo de
todos aqueles anos?
Mas o guarda apenas pegou meu passaporte azul amassado —
passaporte de alguém que vivia num país em que você não precisa
andar com um passaporte aonde quer que vá, em que, na verdade,
você pode até esquecer por meses ou anos onde guardou o seu
passaporte — com uma leve repugnância. Se ele tivesse um
passaporte como o meu, cuidaria bem melhor dele. Buscou pelo
meu nome na relação de terroristas e em seguida instou-me a
atravessar logo para o outro lado.
Pronto. Lá estava eu de volta à Rússia.
Minha avó Seva morava bem no centro da cidade, em um
apartamento com o qual fora premiada por Ióssif Stálin no fim dos
anos 1940. Meu irmão Dima às vezes trazia isso à tona quando
tentava provar um ponto, assim como minha avó em momentos de
autodepreciação. Ela o chamava de “meu apartamento do Stálin”,
como se fosse para lembrar a todos, e a si mesma, do compromisso
moral que ela havia assumido. Ainda assim, era algo subentendido
em nossa família que se você morasse em um quarto frio em um
apartamento compartilhado com sua irmã caçula, seus dois irmãos e
sua mãe, e alguém lhe oferecesse um apartamento, então você
deveria, sim, ficar com ele, não importa de quem viesse. E não foi
como se o próprio Stálin lhe tivesse entregado a chave ou lhe
pedido qualquer coisa em troca. Naquela época, ela era uma jovem
professora de história na Universidade Estatal de Moscou e tinha
prestado uma consultoria na realização de um filme sobre Ivan, o
Grande, o “unificador das terras da Rússia” no século XV e avô de
Ivan, o Terrível, filme do qual Stálin gostara tanto que determinou
que todas as pessoas envolvidas na produção fossem premiadas
com um apartamento. Assim, além de falar “meu apartamento do
Stálin”, minha avó também o chamava de “meu apartamento do
Ivan, o Grande”, e então, se estivesse sendo franca, dizia “meu
apartamento da Iolka”, referindo-se a sua filha, minha mãe, para
quem ela não parecia disposta a fazer nada.
Para ir até esse apartamento, troquei alguns dólares no guichê
do lado de fora do saguão onde se retiravam as bagagens —
naquela época, cada dólar valia cerca de vinte e quatro rublos — e
peguei o novíssimo trem expresso para a estação ferroviária de
Savelovski, passando por quilômetros de blocos deteriorados de
apartamentos soviéticos e o velho (também deteriorado) cinturão
industrial da virada do século já na periferia. Durante o percurso, o
rapaz grandalhão sentado perto de mim — mais ou menos da
mesma idade que eu, com uma camisa de manga curta — resolveu
puxar assunto.
“Que modelo é esse?”, perguntou, referindo-se ao meu celular.
Eu tinha comprado um chip no aeroporto e estava tentando colocá-
lo no telefone para ver se funcionava.
Lá vamos nós, pensei. Meu celular era um T-Mobile simples de
flip. Mas percebi que aquilo era apenas um prelúdio para o sujeito,
na verdade, roubar o aparelho de mim. Fiquei tenso. Meu taco de
hóquei estava no bagageiro acima de nós, e de todo modo seria
bem complicado usá-lo contra aquele sujeito naquele trem.
“É um celular normal”, eu disse. “Samsung.” Cresci falando russo,
e ainda falava nesse idioma com meu pai e meu irmão, mas tinha
um leve sotaque, difícil de identificar de onde era. Às vezes cometia
pequenos erros gramaticais ou acentuava sílabas erradas. E estava
enferrujado.
O sujeito notou isso, assim como o fato de que minha pele cor de
oliva me diferenciava bastante de todos os eslavos a bordo daquele
trem extravagante. “De onde você é?”, perguntou, usando o
pronome íntimo ty em vez do vy — o que poderia significar que
estava sendo simpático, já que tínhamos a mesma idade e
estávamos no mesmo trem, mas também poderia significar que
estava pedindo indiretamente uma espécie de autorização para
depois poder me perguntar o que bem entendesse. Não saberia
dizer ao certo. Ele começou, então, a especular de onde eu seria.
“Espanha?”, perguntou. “Ou Turquia?”
O que eu deveria responder? Se dissesse “Nova York”,
significaria que eu tinha dinheiro, ainda que estivesse vestindo um
jeans velho e um par de tênis que certamente já tinha conhecido
dias melhores, e não tivesse, na verdade, dinheiro algum. Nova-
iorquinos eram candidatos a ser roubados, fosse no trem ou ao
descer dele, em meio ao tumulto na plataforma de desembarque.
Mas se eu dissesse “daqui”, de Moscou, seria tecnicamente
verdadeiro, apesar de também ser uma mentira óbvia, que poderia
piorar a situação. E no fim das contas, eu estava em um trem
proveniente do aeroporto.
“Nova York”, respondi.
O sujeito fez um leve movimento com a cabeça. “Eles têm lá o
novo iPhone?”
“Com certeza”, respondi, sem ter certeza de onde ele queria
chegar.
“Quanto custa?”
Ah, os produtos ocidentais eram sempre muito mais caros em
Moscou do que no Ocidente, e os russos sempre gostavam de
saber a dimensão dessa diferença, assim podiam se sentir bastante
ressentidos com ela.
Tentei lembrar. Sarah tivera um iPhone. “Duzentos dólares”, eu
disse.
Os olhos do sujeito se abriram espantados. Ele sabia! Era um
terço do preço cobrado na Rússia.
“Mas”, apressei-me em dizer, “você precisa ter uma conta. E isso
custa cerca de cem dólares por mês. Por dois anos. Então, não é
nada barato.”
“Conta?” Ele nunca tinha ouvido falar em conta. Será que eu
sabia mesmo do que estava falando? Na Rússia você simplesmente
compra um chip e paga por minuto de uso.
“Sim, nos Estados Unidos você precisa ter uma conta.”
O sujeito ficou indignado. Na verdade, ele começava a se
perguntar se eu não estava inventando algo. “Deve haver uma
maneira de driblar isso”, disse ele.
“Acho que não.”
“Não”, disse ele novamente. “Deve haver uma maneira de ter um
celular sem precisar da conta.”
“Não sei”, eu disse. “Eles são muito rígidos com relação a esse
tipo de coisa.”
O sujeito encolheu os ombros, pegou um jornal — o
Kommersant, um jornal de economia — e não disse mais nada até o
fim da viagem. Para quê querer conhecer uma pessoa que não
consegue nem sequer imaginar um jeito de driblar a necessidade de
conta para ter um iPhone? Não havia nenhuma gangue de ladrões
aguardando por mim na estação de trem. Dali, sem nenhum outro
incidente, peguei o metrô e duas estações depois estava no bulevar
Tsvetnoi.
O centro de Moscou era um mundo à parte. Os blocos de
edifícios deteriorados e as fábricas da periferia tinham ficado para
trás. Em vez daquilo tudo, depois de descer pela longa escada
rolante e passar pela enorme e pesada porta giratória de madeira,
deparei com uma rua larga, com edifícios imponentes da época
stalinista, alguns restaurantes e uma dúzia de canteiros de obras
espalhados por todos os lados. O bulevar Tsvetnoi saía do
gigantesco complexo do Anel de Jardins, que circula em dez vias
pelo centro da cidade em um raio de aproximadamente dois
quilômetros e meio do Kremlin. Mas assim que comecei a avançar
pela rua Sretenka, onde morava minha avó, vi-me cruzando ruas
silenciosas e degradadas, com muitos prédios de dois ou três
andares do século XIX com fachadas sem nenhuma pintura e até
mesmo, em pleno agosto, parcialmente abandonados. Um bando de
vira-latas que tomava sol em um terreno baldio da avenida
Petchatnikov latiu para mim e para o meu taco de hóquei. E então,
poucos minutos depois, eu estava em casa.
O apartamento da minha avó ficava no segundo andar de um
edifício branco de cinco andares localizado em um pátio entre dois
prédios mais antigos e menores, um dos quais dava para a
Petchatnikov e o outro para o bulevar Rojdestvenski. No quarto lado
desse quadrilátero havia um muro alto de tijolos vermelhos do outro
lado do qual ficava uma velha igreja. Quando eu era criança, esse
pátio era repleto de árvores e sujo demais para que eu pudesse
brincar nele; no inverno, formava-se ali um pequenino rinque de
hóquei. Mas, depois do desmantelamento da União Soviética as
árvores foram derrubadas e o rinque foi desmanchado pela
vizinhança, que queria estacionar seus carros ali. Esse pátio
também fora, por certo período, um ponto frequentado pelas
prostitutas locais; os clientes entravam ali, lançavam a luz de seus
faróis sobre sua mercadoria e faziam a escolha sem nem precisar
sair do carro.
Entrei no velho pátio. Já não havia prostitutas, e embora aquilo
ainda fosse um estacionamento de carros, estes eram muito
melhores, e havia até mesmo um pouco mais de árvores do que da
última vez que eu estivera ali. Digitei a senha na porta — era a
mesma de dez anos atrás — e subi a escadaria com minha mala.
Minha avó apareceu na porta. Ela era minúscula — sempre fora
bem pequena, mas agora estava menor ainda, com os cabelos
grisalhos ainda mais finos —, e por um momento temi que ela não
estivesse me esperando. Mas então ela disse: “Andriuchik, você
chegou”. Ela parecia nutrir sentimentos ambíguos com relação a
isso.
Entrei.
2.
Minha avó

Baba Seva — Seva Efraímovna Gekhtman, minha avó materna —


nasceu em uma pequena cidade da Ucrânia, em 1919. Seu pai era
contador em uma indústria têxtil; sua mãe, enfermeira. Tinha dois
irmãos, e a família toda se mudou para Moscou pouco depois da
Revolução.
Eu sabia que ela era uma excelente aluna e que conseguira
entrar na Universidade de Moscou, a melhor e mais antiga
universidade da Rússia, onde estudou história. Sabia que, na
Universidade de Moscou, pouco depois da invasão alemã, ela
conheceu um jovem estudante de direito, meu avô Boris (na
verdade Baruch) Lipkin, e os dois se apaixonaram e se casaram.
Então ele foi morto perto de Viazma no segundo ano da guerra,
apenas um mês depois do nascimento da minha mãe. Sabia que
depois da guerra minha avó começou a dar aulas na Universidade
de Moscou, deu a consultoria para a produção do filme sobre Ivan, o
Grande, ganhou o apartamento e morou ali com minha mãe e com
uma parente mais velha, tia Klava; que o apartamento causou um
tumulto na família, não por sua origem, mas porque minha avó se
recusava a deixar seu irmão e a esposa morarem com ela, pois a
esposa dele bebia e também porque ela não queria tirar a tia Klava
dali; que pouco depois de ganhar o apartamento ela foi demitida da
Universidade de Moscou durante a campanha “anticosmopolita”, isto
é, antijudaica, e que continuou a trabalhar como professora
particular e tradutora de línguas eslavas; e que se casou novamente
já na meia-idade com um geofísico doce e insosso que
chamávamos de tio Liev, e se mudou com ele para a cidade de
Dubna, onde havia um centro de estudos de física nuclear, liberando
assim o apartamento para os meus pais e depois, por fim, para meu
irmão, antes de voltar novamente para ele, poucos anos antes de eu
aparecer por lá, porque o tio Liev havia morrido enquanto dormia.
Mas havia muita coisa que eu não sabia. Eu não sabia o que
tinha acontecido com tia Klava; nem como tinha sido sua vida
depois da guerra; nem se, antes da guerra, durante os expurgos, ela
tinha algum conhecimento ou sensação com relação ao que
acontecia no país. E se não tinha, por quê? E se tinha, como
conseguiu viver com aquilo na cabeça? E como ela vivia nesse
apartamento depois de ter ficado sabendo de tudo?
Mas, por enquanto, minha avó se ocupava na cozinha, e eu tratei
de levar minha bagagem para o nosso velho quarto — que, ao
contrário do que Dima prometera, ainda estava cheio de tralhas dele
— e circulei para ver como estavam as coisas ali. O apartamento
não tinha mudado: era um museu de móveis soviéticos, organizados
em camadas dos mais novos para os mais antigos, como um sítio
arqueológico. Ali estava a velha escrivaninha de carvalho da minha
avó, no quarto dos fundos, dos anos 1940 ou 1950, assim como sua
estante de livros, do mesmo período; afora isso, a maior parte dos
móveis era da época em que meus pais ocupavam o apartamento: o
sofá-cama verde, as prateleiras de vidro suspensas e o grande
guarda-roupas laqueado. E, é claro, em nosso quarto, nossa cama-
beliche, que meu pai havia construído pouco tempo antes de
emigrarmos e que Dima manteve ali; quando ele morou no
apartamento, ocupou o quarto dos fundos e deixou o nosso para
hóspedes. Havia até mesmo alguns brinquedos de criança, em sua
maioria carrinhos agora acomodados entre os livros, com os quais
eu e Dima brincávamos. Depois vinha a era moderna: Dima havia
instalado um telão no quarto dos fundos, bem como uma bicicleta
ergométrica no nosso quarto, que ocupava bastante espaço. A
maior parte dos livros nas prateleiras eram clássicos russos em
suas edições completas soviéticas — catorze volumes de
Dostoiévski, onze de Tolstói, dezesseis (!) de Tchékhov —, embora
algumas prateleiras também estivessem cheias de livros em inglês
sobre negócios e administração, que Dima, aparentemente, tinha
importado. E ainda, na cozinha, havia uma mesa com tampo de
linóleo mais ou menos da época do meu nascimento, à qual minha
avó agora estava sentada à minha espera.
Mesmo sem um motivo claro para isso, eu era o favorito dela.
Nos verões, quando eu era pequeno, sempre ficava com ela e tio
Liev em sua datcha em Sheremetevo (perto do aeroporto), e os
visitava sempre que podia durante o ano de faculdade que fiz em
Moscou. No final dos anos 1990, quando ela ainda tinha condições
de viajar, Dima, eu e ela íamos uma vez por ano juntos à Europa.
Tudo isso reunido não soma mais do que alguns poucos meses,
mas eu era o caçula e o filho favorito da sua única filha, o que já era
suficiente. Para ela, eu ainda era aquele garotinho.
Ela queria me alimentar. Devagar e deliberadamente ela
esquentou uma sopa de batata, kotletí (almôndegas russas) e
batatas fritas em rodelas. Ela se movia em passos lentos e
instáveis, mas havia muitos pontos onde se apoiar naquela velha
cozinha, e ela sabia exatamente onde eles ficavam. Não conseguia
cozinhar e falar ao mesmo tempo, e sua audição tinha piorado
bastante, por isso esperei que terminasse e a ajudei a pôr a mesa.
Finalmente nos sentamos. Ela perguntou como era minha vida nos
Estados Unidos. “Onde você mora?” “Nova York.” “O quê?” “Nova
York.” “Num apartamento ou numa casa?” “Apartamento.” “O quê?”
“Apartamento.” “Você é dono dele?” “Não. Eu alugo. Com mais
algumas pessoas.” “O quê?” “Eu divido, como num apartamento
comunal.” “Você é casado?” “Não.” “Não?” “Não.” “Tem filhos?”
“Não.” “Não tem filhos?” “Não. Nos Estados Unidos”, disse uma
meia verdade, “as pessoas têm filhos mais tarde.” Satisfeita, ou
parcialmente satisfeita, ela então perguntou quanto tempo eu
pretendia ficar ali. “Até Dima voltar”, disse. “O quê?” “Até Dima
voltar”, repeti.
“Andriucha, você conhece minha amiga Mússia?”, perguntou.
“Sim”, respondi. Emma Abramovna, ou Mússia, era a mais antiga
e próxima de suas amigas.
“Ela é uma amiga muito próxima”, explicou minha avó. “E está
agora na datcha dela.” Emma Abramovna, professora de literatura
que conseguira continuar na Universidade de Moscou apesar da
campanha antijudaica, tinha uma datcha em Pieredélkino, uma
antiga colônia de escritores. Minha avó havia perdido a sua própria
datcha nos anos 1990, sob circunstâncias que nunca foram muito
claras para mim.
“Acho que ela vai me convidar para passar o próximo verão com
ela lá”, disse.
“É mesmo? Ela disse isso?”
“Não”, respondeu minha avó. “Mas espero que ela faça isso.”
“Parece muito bom”, eu disse. No mês de agosto, os moscovitas
partem para suas datchas; a impossibilidade da minha avó de ir
para sua própria datcha sem dúvida era um peso para ela.
Terminamos a refeição, tomamos o chá, e minha avó levou a
mão à boca e tirou sua dentadura, colocando-a dentro de uma
pequena xícara de chá sobre a mesa. “Minhas gengivas precisam
descansar”, disse ela, desdentada.
“Claro”, consenti. Sem os dentes para sustentá-los, os lábios da
minha avó se encolheram um pouco, e sem os dentes para conter
sua língua ela começou a falar com um certo ceceio.
“Me diga uma coisa”, começou ela, no mesmo tom especulativo
de antes. “Você conhece Dima?”
“Claro que sim”, respondi. “Ele é meu irmão.”
“Oh!”, suspirou, como se ela não pudesse confiar inteiramente
em alguém que conhecesse Dima. “Sabe onde ele está?”
“Está em Londres”, eu disse.
“Ele nunca vem me visitar”, disse minha avó.
“Isso não é verdade.”
“É sim. Depois que eu fiz a cessão do apartamento ele parou de
ligar para mim.”
“Vovó!”, retruquei. “Isso não é verdade mesmo.” Era verdade,
sim, que poucos anos antes Dima passara o apartamento para o
nome dele — com a gentrificação pós-soviética, velhas senhorinhas
proprietárias de imóveis de alto padrão em Moscou tendiam a
enfrentar vários infortúnios relacionados a eles. Em termos de
segurança, era o movimento correto a ser feito. Mas pude perceber,
agora, que, para a minha avó, aquilo parecia suspeito.
“O que não é verdade?”, perguntou.
“Não é verdade que ele não liga para você. Ele me fala de você o
tempo todo.”
“Humm”, disse minha avó, não convencida. Suspirou novamente
e se levantou para começar a tirar a mesa; no entanto, implorei para
que ficasse sentada, não tanto porque quisesse ajudá-la, mas
porque ela fazia tudo muito devagar. Tirei a mesa rápido e comecei
a lavar a louça. Quando já estava finalizando a tarefa, minha avó se
aproximou e fez uma pergunta que, posso afirmar, lhe parecia um
tanto quanto delicada.
“Andriucha”, disse ela. “Você é uma pessoa tão querida para
mim. Para toda a nossa família. Mas eu não consigo lembrar. Como
foi que nós conhecemos você?”
Fiquei momentaneamente sem palavras.
“Sou seu neto”, afirmei. Havia um certo tom suplicante em minha
voz.
“O quê?”
“Sou seu neto.”
“Meu neto”, repetiu.
“Você teve uma filha, não se lembra?”
“Sim”, disse ela sem convicção, para então se lembrar. “Sim.
Minha filhinha.” Ficou pensativa por algum tempo. “Ela foi para os
Estados Unidos e morreu.”
“Isso mesmo”, eu disse. Minha mãe morrera devido a um câncer
de mama em 1992; a primeira vez que minha avó a viu depois de
nossa emigração foi no seu enterro.
“E você…”, disse ela.
“Eu sou filho dela.”
Minha avó ouviu bem, e perguntou: “Então por que você veio
para cá?”.
Eu não entendi a pergunta.
“Este é um país terrível. Minha Iolka levou você para os Estados
Unidos. Por que resolveu voltar para cá?”, ela parecia irritada.
Mais uma vez me faltavam palavras. Por que eu estava ali?
Porque Dima me pedira que fosse. E porque queria ajudar minha
avó. E porque achava que aquilo me ajudaria a encontrar um tema
para um artigo, que me ajudaria, então, a obter um emprego. Esses
motivos se formavam em redemoinho dentro da minha cabeça como
numa discussão, e acabei escolhendo aquele que me pareceu mais
prático. “Vim a trabalho”, eu disse. “Preciso fazer algumas pesquisas
aqui.”
“Ah”, disse ela. “Tudo bem.” Ela também tivera de trabalhar neste
país terrível, então podia entender.
Momentaneamente satisfeita, minha avó pediu desculpas e se
retirou para descansar no quarto.

Continuei na cozinha, tomando mais uma xícara de chá. Fotografias


de nossa família, e especialmente da minha mãe, se espalhavam
pelo apartamento — nas paredes, nos aparadores e nas estantes de
livros. Nos Estados Unidos nossa família tinha se dispersado; em
Moscou ela era exatamente como sempre havia sido.
Que droga, pensei. Aquele não era bem o estado em que eu
esperava encontrar minha avó. Dima havia dito que ela estava
tomando remédios para a demência, mas eu não tinha entendido o
que isso de fato significava.
A primeira coisa que me ocorreu foi: não estou preparado para
isso. Não tenho qualificação para cuidar de uma mulher de oitenta e
nove anos que não consegue lembrar nem quem eu sou. Eu era
alguém que tinha tido uma quantidade impensável de escolaridade,
mas que fora incapaz de transformar isso tudo em um emprego de
verdade. “Não consigo ver onde isso vai dar”, dissera Sarah no
Starbucks.
“Por que isso tem de dar em algum lugar?”, eu perguntei, de
modo nada convincente.
Ela apenas balançou a cabeça e disse: “Posso me arrepender
disso, mas eu duvido”. E estava certa. Eu era um idiota, como Dima
tinha dito. E estava perdido. Esse primeiro dia, na cozinha, foi a
primeira de muitas outras vezes em que eu decidiria ir embora.
Comecei a esboçar mentalmente um e-mail. “Dima”, diria o texto,
“acho que você me enganou no que diz respeito ao real estado em
que nossa avó se encontra. Ou talvez eu o tenha entendido mal.
Não posso lidar com isso. Sinto muito. Vamos contratar alguém que
saiba o que fazer. Eu ajudarei a pagar.” E então eu voltaria para
Nova York. Não é vergonha nenhuma admitir suas limitações.
Embora eu não tivesse nenhuma ideia de como faria para ajudar a
pagar por aquilo. Depois de pagar pelo meu visto e pela passagem
aérea eu tinha menos de mil dólares na conta.
Minha avó saiu do quarto e atravessou a sala em direção ao
banheiro. Ela tinha se deitado, claramente, e depois se levantado:
seus cabelos estavam amassados e ela ainda estava sem a
dentadura. Ao me ver, deu um sorriso desdentado e fez um aceno.
Senti que ela sabia quem eu era naquele momento, e me acalmei
um pouco.
Continuaria ali para lhe fazer companhia. Talvez até um idiota
pudesse fazer isso. Qual é o problema se ela não consegue se
lembrar de certas coisas? Tivera uma vida tão maravilhosa,
tamanho desfile de alegrias, para ficar sentada recordando tudo?
Talvez ela não conseguisse me contar a história de sua vida para
alimentar o meu eventual artigo, mas eu encontraria outra coisa
sobre a qual escrever. E talvez ela ficasse o tempo todo sem saber
de fato quem eu era. Eu sabia quem eu era, e poderia lembrá-la
disso. Eu era o caçula de sua filha, de sua única filha, minha mãe,
que tinha partido para os Estados Unidos e morrido lá. Levantei-me,
lavei a xícara de chá e fui para o meu quarto.
Caixas de papelão se empilhavam em um dos cantos, e a grande
bicicleta ergométrica estava encostada ao lado da cama de baixo do
beliche. Para me deitar, eu tinha de passar por ela. Agora eu só
queria entrar na internet para gritar com meu irmão, mas ao pegar
meu laptop e tentar usar o sinal do apartamento vizinho, o sinal não
funcionou. Talvez não fosse culpa de Dima — meu computador era
antigo, tão velho que só funcionava se estivesse ligado à tomada, e
havia vários protocolos sem fio que ele era incapaz de reconhecer
— mas isso era mais uma coisa sobre a qual ele me enganara.
Pensei em ir até o apartamento vizinho ver se conseguia ajustar o
roteador, mas me parecia ser inadequado que o cobrador do aluguel
(sim, essa seria também uma de minhas tarefas) roubasse o sinal
de wi-fi do inquilino. Ele pagava um bom dinheiro por aquele wi-fi.
Fechei o computador e me deitei na cama, a bicicleta
ergométrica pairando sobre mim. Minha avó havia deixado ali uma
toalha velha e alguns lençóis ásperos, e sem sair da cama consegui
me cobrir com eles. Fiquei deitado ali, pensando: merda merda
merda merda merda merda merda. E depois: Tudo bem. Tudo bem.
Estava tudo bem. Minha avó não estava em bom estado, mas eu
poderia lidar com isso. Meus lençóis eram ásperos, mas eu poderia
comprar novos. E o quarto era uma bagunça só, mas isso
significava, apenas, que eu tinha algo para usar contra Dima. O que
era bom. Acredite. Se você não tem nada contra Dima, significa que
Dima tem alguma coisa contra você.
Eram oito horas da noite em Moscou, ainda estava claro, mas eu
me sentia cansado, incrivelmente cansado, e rapidamente, ainda de
roupa, adormeci.
3.
Um passeio pelo bairro

Acordei às cinco da manhã. Da minha janela eu via uma ruela entre


o nosso prédio e o prédio que dava para o lado da Petchatnikov.
Como estávamos no segundo andar, era agosto e eu deixara a
janela aberta, e como os dois edifícios menores de tijolos criavam
uma pequena câmera acústica, eu escutava com clareza cada
tosse, cada palavrão em russo, batida de porta, a ignição dos carros
ou um rádio tocando uma porcaria de música pop russa vinda de
qualquer lado, perto ou longe da ruela. Todos esses ruídos
perturbaram o meu sono, e não apenas por serem ruídos. Dima não
teria deixado a cidade às pressas se não estivesse em perigo,
raciocinei, e se Dima estava em perigo, então era bem possível que
o seu representante, irmão e cobrador de aluguel também estivesse
em perigo. Mesmo que o mais provável fosse que não. Permaneci
na cama por algum tempo pensando, e então sentei pois tive uma
ideia.
E se minha avó não estivesse tomando os remédios dela? Fazia
um mês que Dima tinha viajado. E se a perda de memória que eu
testemunhara fosse resultado apenas do fato de ela ter esquecido
de tomar algumas pílulas? Fui até a cozinha. Moscou é uma cidade
do norte, e no verão os dias começam cedo; o sol já tinha nascido.
Eu a tinha visto tomar algumas pílulas depois do nosso jantar e em
seguida colocar os frascos numa prateleira. Peguei-os, então, para
ler os rótulos. Um dos frascos estava vazio. O nome do
medicamento não me era nada familiar, claro; não havia nenhuma
indicação de que fosse para demência, e nem de que não fosse.
Dima tinha me mandado uma lista dos remédios de Baba Seva,
juntamente com uma explicação a respeito de sua utilidade. Mas,
achando que haveria wi-fi no quarto, eu não a imprimi. Tentei mais
uma vez me conectar, porém não consegui nenhum sinal. Precisaria
encontrar algum lugar com wi-fi, e rápido. Voltei para o quarto,
peguei minha toalha puída e fui tomar um banho.
O banheiro da minha avó — separado do toalete, que ficava em
um espaço próprio, bem menor, no hall de entrada — era grande
para um banheiro soviético. É possível que em algum momento ele
tenha feito parte da cozinha. Ao longo da parede havia uma
saliência usada para colocar artigos de higiene pessoal. Pus os
meus ali.
Da primeira vez que voltei para a Rússia depois de nossa partida,
estava na faculdade. Tinha recebido uma pequena verba para viajar
e estudar a “situação pós-soviética”. A viagem foi um choque. Nunca
tinha visto tanta pobreza. Em Astrakhan, Rostov, Ialta, Odessa, Lviv,
mas também em Moscou e São Petersburgo, tudo o que se via
eram ruínas — prédios arruinados, ruas arruinadas, pessoas
arruinadas —, como se o país tivesse perdido uma guerra.
Viajava sozinho, e todas as noites, nos diversos albergues ou
pensões baratas onde ficava, eu usava meus próprios artigos de
higiene, e isso representava, em todas essas noites, um verdadeiro
alívio para mim. As cores dos meus objetos eram mais brilhantes e
mais atraentes do que tudo que eu via ao redor durante o dia: meu
belo barbeador Gillette Sensor cinza (com apenas três lâminas
naquela época, mas o melhor barbeador que a humanidade jamais
havia visto); meu grande creme de barbear Gillette azul; meu
desodorante Old Spice brilhante vermelho e branco (aquele troço
realmente funcionava, e dava para perceber, quando eu pegava um
ônibus lotado, que ninguém na Rússia tinha um igual); meu talco
Gold Bond com seu amarelo brilhante; minhas pequenas cápsulas
Advil laranja. Caminhava por muitos quilômetros diariamente,
entrevistando pessoas, observando tudo em volta, e no calor do
verão essa movimentação toda causava irritação nas minhas virilhas
e dores nos pés — mas o talco Gold Bond acabava com isso. E o
Advil! Os russos ainda tomavam aspirina. A única maneira que
conheciam de dar conta de uma ressaca na manhã seguinte era
bebendo novamente. Enquanto isso, para mim, bastava engolir
alguns comprimidos e estava novinho em folha. Sentia-me
praticamente um James Bond com meu pequeno kit de dispositivos
engenhosos. Agora essas maravilhas já tinham chegado à Rússia
também, embora minha avó não as usasse.
Foi aquela viagem de verão à Rússia que me colocou no
caminho que passei a seguir desde então. Acabara de concluir o
primeiro ano de faculdade. A faculdade tinha sido uma surpresa, e
uma surpresa ruim. Eu achava que seria quase a mesma coisa que
o colégio, só que mais legal. Em vez disso, foi completamente
diferente: um espaço imenso, nada amigável, altamente competitivo.
Sonhara em praticar hóquei ali, mas depois de poucos minutos no
rinque para o teste do time da universidade pude ver que isso nunca
aconteceria: o nível de jogo estava muito além do meu. Tampouco
me destacava nas aulas. Queria dominar todo o cânone ocidental,
mas toda vez que abria The Faerie Queene para ler, eu caía no
sono.
Sempre que havia aulas de russo na programação do curso eu
lia a descrição e deixava de lado; por que estudar na faculdade algo
que eu podia assimilar sem qualquer esforço dentro da minha
própria casa? Mas, no meio do primeiro ano, depois de finalmente
deixar o time de hóquei (eu tinha entrado na equipe, mas nunca fui
escalado para nenhum jogo), inseguro em relação ao que fazer
comigo mesmo e me perguntando se no final das contas algumas
aulas de russo não poderiam ser uma boa maneira de honrar minha
mãe, entrei no departamento de línguas eslavas. Ele ficava no
quarto andar do prédio velho e cinzento da faculdade de letras, que,
diferentemente do restante da universidade, era, de alguma forma,
familiar. Eles tinham conseguido russificar o ambiente. Havia um
grande samovar num dos cantos, canecas de chá por todos os
lados, velhos livros russos em edições soviéticas como os que
tínhamos em casa, e um pôster irônico de Lênin. Meus pais jamais
pendurariam em casa um pôster irônico de Lênin, mas Dima tinha
um desses em sua casa de Nova York. Foi como se tivesse
encontrado pela primeira vez um lugar onde podia me sentir em
casa naquela instituição enorme e intimidadora.
Seis meses depois consegui a bolsa e viajei para a Rússia, no
verão. Era a primeira vez que punha os pés ali desde a nossa
partida. Ali estavam as ruas por onde meus pais haviam caminhado;
aquelas eram as pessoas com as quais tinham convivido. Ali estava
o nosso velho apartamento (quase não me lembrava dele), onde
Dima morava. Muita coisa que não tinha sentido para mim começou
a ter naquele momento. Visitei minha avó e o tio Liev em Dubna;
minha avó estava com seus setenta e poucos anos, mas era
incrivelmente ativa, fazia traduções, lia, via filmes, fazia caminhadas
quilométricas pelo bosque (onde havia, inclusive, um grande
acelerador de partículas). Deixei Moscou para viajar pela região; as
pessoas de fora de Moscou eram mais honestas com relação aos
seus sonhos, mais diretas no que dizia respeito àquilo que não
conheciam e mais evidente e desesperadamente pobres. Lembro-
me de ter sentado para conversar com um cara em Astrakhan,
cidade industrial pesqueira localizada no mar Cáspio agora
arruinada pelo peso da concorrência global. Conheci esse cara no
trem partindo de Moscou. Era programador de computação, como
meu pai, mas até então não havia trabalho para programadores e
ele, para fazer algum dinheiro, tinha ido a Moscou comprar roupas
baratas da Turquia para vendê-las depois em uma feira ao ar livre
em Astrakhan. Bebemos cerveja no minúsculo terraço do pequeno
apartamento que ele dividia com sua jovem esposa e o bebê deles,
e a certa altura ele disse: “Escute, Andrei, me diga uma coisa. Como
são as coisas lá?”, referindo-se aos Estados Unidos. “No fim das
contas, é a mesma coisa que aqui?”
Eu não soube o que responder. Era a mesma coisa, sim, num
certo sentido — havia humanos nos Estados Unidos, que levavam
suas vidas, se apaixonavam, tinham filhos e tentavam sustentá-los.
Mas também não era a mesma coisa. A abundância; a vida mais
fácil, pelo menos para pessoas como eu; a quantidade, qualidade e
variedade de artigos de higiene pessoal: isso era diferente. Meu
dormitório na faculdade, que eu dividia com um colega, era maior,
melhor e mais confortável do que o apartamento daquele
programador, que ele ainda dividia com a mulher e o filho. Procurei
lhe explicar isso de forma gentil e honesta. “Bem”, disse meu amigo,
que eu jamais reveria mesmo tendo trocado com ele nossos
endereços e prometido manter contato, “quem sabe eu apareço por
lá um dia para ver tudo isso com meus próprios olhos.” E nesse
instante, pensei que, da minha parte, bem que gostaria de ficar. Na
Rússia, isso sim. Ao menos mentalmente, ao menos
intelectualmente — era como um lugar onde eu jamais havia estado,
embora, em outro sentido, fosse exatamente igual ao lugar onde eu
estava antes, ou seja, minha infância, minha casa.
Passada mais de uma década, uma década de livros russos,
aulas de russo, conferências acadêmicas sobre russo, uma
dissertação desconjuntada sobre a literatura russa e a
“modernidade” que nenhuma editora jamais quis publicar, eu saí do
banho — um chuveirinho solto sem ter onde prender e que era
preciso ficar segurando o tempo todo — e deparei com minha avó,
vestida com seu roupão de banho cor-de-rosa, sentada e bastante
concentrada bebericando um café. Percorri a cozinha com os olhos
para ver se encontrava uma prensa francesa ou pelo menos uma
máquina de coar café, mas havia apenas uma chaleira e uma lata
de Nescafé instantâneo. Foi decepcionante; nos últimos anos, em
que a revolução do café chegara ao Brooklin, eu tinha me
acostumado a beber um café forte para cacete. Resolvi — e minha
lista de resoluções crescia a cada minuto — comprar uma prensa
francesa e grãos de café normais na primeira loja especializada que
encontrasse.
Minha avó estava com o rádio sintonizado na Eco de Moscou, a
estação da oposição liberal, e tentava dar algum sentido para as
notícias que ouvia. O Exército russo estava deixando, não sem
relutância, a Geórgia; o Kremlin dizia que a Geórgia havia criado
uma crise de refugiados; críticos contrários ao Kremlin atacavam
Moscou por causa da guerra. O rádio da minha avó era pequeno,
portátil, e funcionava a pilha, e, embora estivesse ligado no volume
máximo e ela o segurasse colado ao ouvido, ainda assim parecia
insegura com relação ao que se dizia. Ao me ver, animou-se. “Ah,
você acordou! Vai tomar café da manhã?”
Eu disse que sim. Enquanto me vestia, ela fritou alguns ovos por
cima de uma panela cheia de kacha. Quando voltei à cozinha,
alguém na rádio Eco desmentia em tom bastante sarcástico as
afirmações russas de que a Geórgia tinha atacado primeiro. “É
como dizer ‘o mosquito me picou, preciso matá-lo, ele e todos os
seus familiares'. É claro que o mosquito picou você! Ele é um
mosquito.” Eu tinha esquecido desse tom que os oposicionistas
russos sempre adotavam. “Ressentido” não seria a palavra certa
para isso. Era sarcástico, pedante, cheio de descrédito em relação
aos idiotas que dirigiam o país e aos mais idiotas ainda que os
apoiavam no exterior. Havia uma ilha de decência, diziam essas
vozes, e você a tinha encontrado ali, no dial do seu rádio. Quer
dizer, estou afirmando isso agora. Na verdade, aquilo podia ser
inebriante. A Eco, única voz de oposição ao regime (naquele
momento todos os canais de televisão estavam sob controle estrito
do Estado): eles acordavam todos os dias para se engajar na
batalha do bem contra o mal. Mas é claro que você não podia dizer
diretamente no rádio que o regime representava o mal. Seria
demais. Então, eles diziam isso com ironia, sarcasmo, em tom
subversivo. Devia ser algo bem próximo daquilo que os dissidentes
soviéticos haviam feito nos anos 1970 — como se o regime não
fosse o único a sentir saudade daquele período.
Então a Rússia invadira a Geórgia. Ou a própria Geórgia invadira
uma região da Geórgia chamada Ossétia do Sul, e os russos
reagiram. E é claro, qualquer pessoa decente concordaria com
isso… Desliguei o rádio. Eu queria falar com minha avó sobre os
seus remédios, embora, antes de qualquer coisa, quisesse na
verdade saborear a kacha preparada por ela. Era uma kacha
perfeita. Não fazia muito tempo eu tentara preparar um prato desses
para mim, mas ele sempre ficava pastoso demais.
“Andriúch, diga-me”, disse minha avó me observando comer.
“Onde você mora?”
“Nova York.”
“Onde?”
“Nova York.”
“Ah, Nova York. Você mora em uma casa ou em um
apartamento?”
“Apartamento.”
“O quê?”
“Apartamento.”
No dia anterior ela usava um aparelho de audição, mas agora
não parecia escutar nem melhor nem pior.
“O apartamento é seu ou é alugado?”
“Alugado”, eu disse em voz alta.
“Não precisa gritar.”
“Tudo bem.”
“Você é casado?”
“Não.”
“Não?”
“Não.”
“Tem filhos?”
“Não.”
“Nenhum filho?”
“Nenhum.”
“Por que não?”
“Não sei”, respondi. “Não tenho ninguém com quem ter filhos.”
“Sim”, concordou minha avó. “É verdade. Você precisa se casar.”
“Vovó”, eu disse. “Posso lhe pedir uma coisa? Eu gostaria de
ajudar você a cuidar dos seus medicamentos. Você sabe para que
servem cada um deles?”
Minha avó não pareceu surpresa. “Na verdade, não sei muito
bem. Mas tenho tudo escrito em um caderno.”
Ela pegou um caderninho com uma dúzia de páginas, uma lista
corrida onde havia escrito os nomes dos remédios e, em alguns
casos, para o que serviam (“coração”, “tosse”). Sua caligrafia
sempre fora grande e arredondada, mas agora era ainda maior e
mais arredondada. Não havia nada ali referente à demência.
Ergui a cabeça do caderno e vi que minha avó tinha ido até a
geladeira, e voltava de lá com uma garrafa de vinho tinto. Estava
pela metade, tampada com um resto de rolha. Ela lutava contra a
rolha. “Vamos tomar um vinho para comemorar que você está
aqui?”, perguntou. “Não estou conseguindo abrir isso.”
Eram sete horas da manhã.
“Talvez mais tarde”, disse. “Agora preciso sair um pouquinho para
resolver um assunto. Volto em uma hora.”
Ela parecia decepcionada. “Precisa sair?”
Eu precisava. E minha avó, relutante, guardou o vinho de volta
na geladeira.
Fui ao meu quarto e peguei meu laptop e minha sacola de livros.
Quando estava quase saindo, o telefone tocou. Minha avó estava no
banheiro, então resolvi atender. Uma mulher bastante idosa
perguntou por minha avó; eu disse que ela não poderia atender
naquele momento, mas que eu poderia anotar um recado. A mulher
identificou-se como Alla Aaronovna. Minha avó continuava no
banheiro. Escrevi um bilhete dizendo que Alla Aaronovna tinha
telefonado, deixei-o sobre a mesa da cozinha e saí.
O apartamento da minha avó não podia ser mais central — ficava a
quinze minutos a pé do Kremlin —, mas levei quarenta minutos para
encontrar um lugar onde checar meus e-mails.
No dia anterior eu não havia visto nenhum café ou lan house no
trajeto do metrô. Por isso, o primeiro lugar para onde me dirigi foi a
outra estação de metrô, em Tchistie Prudí, bem no fim do bulevar
que saía do nosso prédio. Ali sempre havia sido o ponto de internet
mais movimentado da região, e atrás da agência de correio havia
um cybercafe lotado de russos suarentos viciados em video game. A
área ainda era bastante movimentada: ao lado da entrada do metrô
havia a grande agência do correio, um McDonald's e um amontoado
de quiosques que vendiam celulares, DVDS e espetinhos de kebab,
além de uma estátua do poeta Griboiédov. Atrás de Griboiédov, o
epônimo lago limpo.[1] Do lado diagonalmente oposto a toda essa
aglomeração ficava o edifício da gigante RussOil, sede da maior
empresa petrolífera do país, construída em mármore preto e que
parecia engolir toda luz à sua volta. Mas, o velho cybercafe fora
substituído por uma agência de um banco alemão. E lá não tinha wi-
fi.
Peguei então a Sretenka e avancei em direção ao norte,
percorrendo a rua comercial que a Sretenka tinha se tornado. Era
uma rua adorável, do tipo europeu, mais estreita do que a maioria
das ruas, com agências de viagem, restaurantes e bares, um teatro
experimental, uma loja da Hugo Boss e uma livraria de quinta
categoria com os últimos best-sellers na vitrine, e que parecia
abrigar um clube de striptease no segundo andar — na fachada
havia um neon apagado com a forma de um corpo feminino nu. Às
sete e meia da manhã, a rua estava acordando: reluzentes carros
pretos importados transitavam velozes para seus destinos fora do
centro, e de vez em quando descia de um deles um homem ou uma
mulher, elegantemente vestidos, falando em seus celulares
espetaculosos. Esta não era a Rússia de que eu me lembrava.
Deparei-me com vários cafés de estilo europeu, com mesas
pequenas e plaquinhas na vitrine que diziam WI-FI. Mas eram
incrivelmente caros. O item mais barato do cardápio, o chá, custava
duzentos rublos — quase nove dólares. Por um lado, eu precisava
me certificar se minha avó tinha parado de tomar algum remédio
para sua demência, por outro… nove dólares por uma xícara de
chá… Os cafés estavam repletos de russos muito bem vestidos que
bebericavam capuccinos absurdamente caros. Que merda é essa?
Voltei mais uma vez para o nosso cruzamento: minha avó
morava bem na esquina da Sretenka com o bulevar, embora do
outro lado a Sretenka virasse a Bolchaia Lubianka, que dava na
praça Lubianka, onde ficava a sede da KGB, agora FSB. Tomei essa
direção. Comparada à Sretenka, há poucos minutos dali, essa rua
era quase vazia, como se a instituição — em cujos porões foram
assassinadas milhares de pessoas durante o terror dos anos 1930
— tivesse espantado dali os pequenos negócios. Morar tão perto da
KGB sempre foi um fato esquisito na existência da minha avó em
Moscou — por um lado, o centro era onde ficavam os bons imóveis,
e ela tivera, portanto, muita sorte nesse aspecto; mas, por outro, ali
também ficavam aquelas salas de execução. Era como morar a uma
quadra de Auschwitz.
Porém eu precisava checar meus e-mails.
Avancei pela rua larga e silenciosa até chegar à KGB. Era um
edifício maciço, construído com granito escuro e pesado, que dava
para uma rotatória aberta em cujo centro estivera, em outros
tempos, uma estátua gigantesca do fundador da KGB, Félix
Dzerjínski. Mas Dzerjínski fora retirado em 1991, e a única coisa que
permaneceu no centro da rotatória foi o seu pedestal, transformado
em um enorme vaso de flores.
Para meu prazer e minha surpresa, porém, ao lado dessa praça
sem graça e ainda aterrorizante, havia um pequeno e confortável
café, o Café Grind, com mesinhas charmosas, wi-fi e uma lousa com
opções de menu das quais eu podia escolher pelo menos algo para
beber — seu cappuccino especial — por razoáveis setenta e cinco
rublos, ou três dólares. Talvez fosse subsidiado pela KGB. Bom, tudo
bem. Eles estavam em dívida conosco. Aproximei-me do balcão.
“Olá”, disse a bela barista, como se estivesse contente por me ver
ali. Pedi o capuccino e me sentei.
Se quisesse mesmo estar de volta ao apartamento depois de
uma hora na rua, eu tinha apenas quinze minutos para checar meus
e-mails. Localizei a mensagem de Dima com as instruções sobre os
medicamentos e as copiei rapidamente em um caderno; depois
disso, enviei-lhe uma mensagem curta perguntando por que havia
no meu quarto uma bicicleta ergométrica e se ele sabia se o wi-fi do
apartamento dele estava funcionando. Em seguida, busquei por
“demência” no Google. Era um termo abrangente, que incluía a
palavra Alzheimer. Será que minha avó tinha Alzheimer? Não tinha
mais tempo. Dei a mim mesmo exatos sessenta segundos para dar
uma espiada no site de empregos em língua eslava. Era um site
anônimo em que as pessoas publicavam dicas sobre novos
empregos e queixas sobre suas buscas por emprego. (“Tenho
certeza que esse emprego já está reservado para alguém lá de
dentro.” “Um dos professores mais velhos da comissão de pesquisa
é um verdadeiro canalha. Passou a entrevista inteira olhando para
os meus peitos.”) Aquele não era o único jeito de obter informações
sobre novas vagas, mas era o mais divertido. Nesse dia não havia
nada para mim. Dei-me então trinta segundos para espiar o
Facebook. Meus antigos colegas de classe assumiam cargos como
professores de faculdade. Havia fotografias de novas salas, pedidos
de dicas de planos de ensino (como uma forma de lembrar a todos:
Eu sou um professor de faculdade!), e outras coisas que pensei que
já não me incomodariam estando eu do outro lado do mundo. Mas
continuavam me incomodando. Alex Fishman, minha nêmesis do
departamento de línguas eslavas, havia postado uma bela foto de
Princeton, onde estava começando um pós-doutorado. Que imbecil!
Fechei o computador, enfiei-o na bolsa e voltei para a rua.
Eram oito horas da manhã, e até mesmo a sonolenta e
assustadora rua Bolchaia Lubianka começava a dar sinais de vida.
Carros alemães caríssimos passavam pela rotatória para pegar a
Sretenka; outros entravam em um enorme estacionamento a céu
aberto que deveria servir à FSB. Alguns veículos subiam na calçada
e estacionavam ali mesmo; homens e mulheres elegantemente
vestidos, a caminho do trabalho, passavam entre eles como se
fosse absolutamente normal alguém estacionar em cima da calçada.
Não pude deixar de reparar que as mulheres eram
excepcionalmente atraentes. Ao longo dos quatro quarteirões que
ligavam o Café Grind ao nosso apartamento, devo ter cruzado com
uma dúzia de mulheres muito bonitas. E havia uma uniformidade
entre elas. Eram todas magras, loiras, em torno dos trinta anos,
vestiam saia lápis preta, blusa branca e salto alto. Não sei por que,
mas eu gostei do fato de que todas elas eram parecidas.
Os homens também seguiam um mesmo padrão. Grandes,
alimentados com kacha, mais de um metro e oitenta de altura,
paletós caros, equilibrando-se sobre sapatos pontudos e reluzentes,
sem jamais sorrir. Dez anos atrás, ao andar por qualquer rua de
Moscou você topava com uma porção de marginais vestindo jaqueta
de couro barata. Esses caras tinham desaparecido, foram
substituídos por esses outros. Ou seriam, talvez, os mesmos caras?
Eles tomavam conta das calçadas; avançavam sem olhar o que
havia no caminho; mantinham as mãos nas laterais do corpo com
seus punhos cerrados, como se estivessem prontos para usá-los.
Eu tinha acabado de chegar da terra onde os rapazes deixavam a
barba crescer, usavam shorts, sempre sorriam ouvindo alguma
música com seus fones e bebericavam seus cafés ao mesmo tempo
em que avançavam lentamente em suas bicicletas pela avenida
Bedford. Ali era exatamente o oposto disso.
Outra coisa que observei: eram todos brancos. Alguns loiros de
olhos azuis, outros de cabelo castanho e olhos cor de avelã, e
alguns eram um pouco mais escuros, armênios ou judeus, mas
sempre brancos. Os canteiros de obras, no entanto, eram ocupados
por asiáticos, baixos e magros, enquanto mulheres asiáticas,
vestidas de cor laranja, cuidavam da limpeza dos pátios.
Antes de voltar para casa, entrei em uma pequena mercearia na
esquina da Bolchaia Lubianka com o bulevar. Cheirava mal, e as
duas mulheres que estavam atrás do balcão pareciam incomodadas
por terem um cliente. A maior parte do pequeno espaço era
ocupada por cerveja, mas elas também vendiam frios — que deviam
ser a fonte daquele cheiro — e, mais importante, aquilo que eu
estava procurando: sushki. Pães redondos, crocantes e levemente
adocicados em formato de rosquinha. Por serem um pouco doce,
você podia comê-los com chá, mas justamente por não serem doces
demais, também podia degustá-los com cerveja. Comprei dois
pacotes, um com sementes de papoula e um sem. Diferentemente
de quase tudo na nova Rússia, o sushki ainda estava barato.
Quando cheguei em casa, minha avó estava sentada à mesa da
cozinha com quatro pequenas agendas telefônicas abertas à sua
frente. Ela não ouviu quando entrei, por isso pude observá-la lendo
uma delas e repetindo para si “Alla Aaronovna”, procurando pelo
nome.
“Andriuch”, disse ela quando finalmente me viu, “foi você quem
me deixou esse bilhete?”
Fiz que sim com a cabeça.
“Não consigo achar uma Alla Aaronovna em lugar nenhum. Tem
certeza de que era ela mesmo?”
Eu tinha certeza. Deveria ter pedido o número do telefone! Mas
ela falara de uma forma que parecia evidente que minha avó sabia
muito bem de quem se tratava.
Minha avó baixou o olhar, desolada, para as suas agendas.
“Andriúchenka”, disse, ao estender uma delas em minha direção.
“Veja se consegue encontrar aí.”
Sentei-me ao lado dela e comecei a folhear as agendas. Haviam
sido escritas com sua letra grande e arredondada. Muitos dos
nomes estavam com um traço por cima. Depois de ler alguns deles,
perguntei-lhe a respeito. “Ela morreu.” “Emigraram.” “Não sei.” Parei
de perguntar. Dispúnhamos apenas do nome e patronímico de Alla
Aaronovna, não do sobrenome. Por isso, tive de folhear página por
página de cada uma das agendas. Havia duas Allas rabiscadas,
mas ambas tinham morrido (havia datas registradas ali) e nenhuma
delas era Aaronovna.
“Tem certeza de que era esse o nome dela?”
Agora eu já não tinha tanta certeza, mas ainda assim estava
certo. Eu tinha escrito o nome logo depois de desligar o telefone.
Minha avó continuou procurando nas agendas. Por fim, disse:
“Tem uma Ella Petrovna. Talvez tenha sido ela.”.
“Não foi ela.”
“Vou ligar para ela. Talvez tenha sido.”
Ela discou o número. A pessoa que atendeu não conhecia
nenhuma Ella Petrovna, tampouco Alla Aaronovna. Minha avó pediu
desculpas. Depois, muito cuidadosamente, como alguém que sabe
estar lidando com a morte, rabiscou o nome e o telefone em sua
agenda.
“Está vendo?”, disse minha avó. “Todos os meus amigos
morreram. Todas as pessoas próximas de mim se foram. Não
sobrou ninguém.”
“Tenho certeza de que ela vai ligar de novo”, eu disse,
esperançoso.
Mas isso nunca aconteceu.
Depois disso, tirei meu caderno da mochila e passei a confrontar
a lista de remédios que Dima havia mandado com aqueles que
estavam na prateleira. Percebi que o frasco vazio era de um
suplemento de vitamina D. O do medicamento para a demência
estava pela metade. Portanto, o problema não era a ausência de
remédio. Ela era assim.
Abri o pacote de sushki com semente de papoula e o devorei
inteiro, sentado ali mesmo na cozinha.
Na semana seguinte, não desgrudei os olhos da minha avó. Fui com
ela à mercearia e lhe fiz companhia enquanto cozinhava. Dava uma
escapadinha até a KGB para trabalhar um pouco enquanto ela fazia
sua pequena sesta matinal, mas logo voltava. Eu estava com
dificuldade para superar meu jet lag, o que me fazia sentir sono no
final da tarde, mas fiz o que pude para acompanhá-la em suas
caminhadas. Jantávamos no começo da noite, com muito chá e
doces, para depois assistir ao noticiário.
Fisicamente, para uma mulher de oitenta e nove anos, minha avó
estava em boa forma. Ela e o tio Liev passaram anos a fio fazendo
caminhadas intermináveis em torno do acelerador de partículas de
Dubna e trilhas pelas montanhas da União Soviética. Era moda
entre os cientistas, e, além disso, ele tinha de viajar a trabalho pelo
vasto império para descobrir se havia petróleo debaixo da terra.
Ainda hoje minha avó fazia caminhadas dentro do próprio
apartamento, indo de um canto para o outro, como uma prisioneira
numa cela. Mas sua mente falhava. Depois de trocar alguns e-mails
com Dima e de passar algumas horas pesquisando no WebMD,
concluí que ela sofria de uma demência comum à idade. (Poucas
semanas depois, Dima marcou para nós uma consulta com um
neurologista, e ele confirmou isso.) Suas falhas de memória eram
profundas. Sua personalidade desaparecia aos poucos, enquanto o
coração batia como um motorzinho perfeito. O corpo sobrevivia à
mente.
Seu cotidiano era estritamente regulado. Acordava diariamente
às sete, raspava uma maçã (para a digestão), tomava os remédios,
arrumava a cama e se vestia. Como todas as pessoas soviéticas,
passara a vida dentro de espaços muito pequenos, e agora, todas
as manhãs, ela retirava a roupa de cama e a guardava dentro de
gavetas sob o colchão, transformando a cama em algo semelhante
a um sofá. Ainda cuidava de sua aparência, alternando duas calças
cáqui pregueadas verde-claras com várias camisas de gola em tons
pastéis. Tinha um chapéu de algodão azul que usava para se
proteger do sol. Esses toques femininos eram os que, tempos atrás,
a impediram de ficar sozinha até mesmo no período do pós-guerra,
quando a maior parte dos homens não retornava da guerra e os que
o faziam podiam escolher praticamente qualquer garota de que
gostassem. Era um contexto complicado para as mulheres, e
mesmo assim minha avó se saiu bem.
Ela ainda fazia suas compras, circulando por lojas (e pelo
“mercado”, que era como ela chamava um conjunto de seis
quiosques de plástico alocados em um terreno vazio) no raio de dois
quarteirões do apartamento. A maior parte do bairro passara por um
processo radical de gentrificação, e restaurantes, lojas de roupas e
agências bancárias agora ocupavam o lugar das mercearias
deprimentes da era soviética, mas algumas tinham sobrevivido, e
ela as percorria uma a uma. Os ovos eram mais baratos em
determinado lugar, o queijo em outro, a salada de beterraba com
muita maionese, como ela gostava, em um terceiro. Para itens
especiais íamos um pouco além. “Quer frango para o almoço?”,
perguntou minha avó certa manhã. Respondi que sim. Ela então
caminhou dez minutos pela Sretenka até a estação de metrô
Súkharevskaia, onde havia uma vendinha de frango assado mantida
por uns azerbaijanos. Minha avó pediu meio frango. Eles
entregaram dentro de um pequeno saco de papel.
Nem sempre essa maratona das compras era tranquila — flagrei,
ou acredito que flagrei, uma vendedora enganando minha avó com
oitenta rublos a menos na hora do troco —, e, como a maior parte
das mercearias eram de estilo soviético, ou seja, você tinha de pedir
as coisas em um balcão, depois pagá-las no caixa e aí voltar com o
recibo para retirá-las, e dado que minha avó passava por diferentes
lugares para obter os melhores preços, e que fazia isso bem
devagar, tudo levava muito tempo, muito mais tempo do que seria
necessário. Ao final, ela precisava de ajuda para subir as escadas
até o segundo andar. De todo modo, o fato de ela conseguir fazer
tudo aquilo sozinha já era uma vitória e tanto.
Além de Emma Abramovna, que ainda vivia escondida em sua
invejável datcha, minha avó não tinha, segundo me afirmou
reiteradamente, mais nenhum amigo: ou perdera o contato, ou eles
tinham se mudado para Israel com os filhos ou tinham morrido.
Havia um pequeno grupo de idosas que se reunia em um pátio
contíguo ao nosso — eram um pouco mais novas que minha avó,
bem mais em forma, mais fortes, mais simples e trajavam roupas
esportivas baratas, enquanto minha avó ainda se vestia com roupas
baratas, porém mais formais —, mas quando lhe perguntei a
respeito delas, como uma maneira de sugerir a possibilidade de
uma amizade entre elas, ela me puxou um pouco mais para perto
(estávamos passando ao lado delas) e disse: “Eu ficava aí com elas.
Mas depois parei. São antissemitas”. Então só sobrou eu.
As noites eram muito simples: assistíamos ao noticiário e
jogávamos anagrama, em que você pega uma palavra longa de um
livro, escreve-a em uma folha de papel e tenta formar o maior
número possível de outras palavras com aquelas mesmas letras.
Ganha-se um ponto por uma palavra com quatro letras, dois pontos
por uma palavra de cinco letras, e assim por diante. Minha avó
gostava desse jogo, era muito boa nele, e costumava ganhar de
mim por sessenta a oito. Então era bom. Mas, antes de partir para o
noticiário e os anagramas, tínhamos de passar pelo fim de tarde —
a hora das bruxas. Era o período que minha avó tinha mais
dificuldade de preencher. Já não conseguia ler por muito tempo,
como fazia antes: ficar sentada muito tempo olhando para baixo
doía-lhe as costas e o pescoço, e ler na cama segurando o livro
para cima era também muito cansativo. Acabou optando por rasgar
e tirar capítulos dos livros para que ficasse mais fácil segurá-los
diante dos olhos quando lia deitada, mas sua memória estava tão
ruim que tinha dificuldade para usufruir qualquer coisa,
independentemente do tamanho do texto. Ao longo daquelas
primeiras semanas eu a vi ler o mesmo conto de Tchékhov —
retirado de uma brochura de contos — várias vezes. Além de ler,
não havia muito mais que minha avó soubesse fazer para se
entreter em casa. Tivera uma vida difícil e não aprendera o que
fazer com seus momentos de ócio. Sempre havia tido muita coisa
para fazer. Agora não havia nada, e nessas longas tardes ela se
sentia entediada e até mesmo desesperada sem ter para onde ir.
Mas não era nada fácil ir a algum lugar.
Moscou era enorme. Sempre fora enorme. Stálin ampliou as
avenidas a tal ponto que para atravessá-las você precisa passar por
passagens subterrâneas do metrô. Minha avozinha precisava
descer um lance de escadaria, caminhar pela passagem, depois
subir escadas de novo, tudo isso apenas para atravessar a rua. E se
quisesse voltar, tinha de fazer tudo isso de novo.
O metrô de Moscou, também construído por Stálin, era famoso —
e fazia jus a isso. No centro da cidade, as estações eram
maravilhosas, cobertas de mármore, decoradas com mosaicos
coloridos que narravam as realizações heroicas da classe
trabalhadora. Alguns ainda reproduziam estátuas gigantescas de
Lênin, Marx ou dos soldados do Exército Vermelho derrotando os
nazistas. As estações eram impecáveis, e se mantinham frescas até
mesmo nos dias abafados do fim de agosto. Os trens eram rápidos
e eficientes, e um relógio digital na entrada de cada plataforma
mostrava quanto tempo tinha passado desde a saída do último trem.
Se o relógio registrava dois minutos e trinta segundos, um novo trem
já estava para chegar.
Entretanto, ao frequentar esse famoso metrô com minha avó,
logo percebi suas limitações. Estava sempre incrivelmente lotado:
como todas as linhas (com exceção de uma) eram radiais, ou seja,
iam do centro do círculo formado por Moscou para seus arredores,
não havia como fazer baldeação de uma linha para outra sem
passar pelo centro, isto é, basicamente todos os usuários tinham de
passar pelas poucas estações perto do Kremlin, onde morávamos.
Toda vez que pegávamos um trem, estava lotado. E lotado, ali, não
é a mesma coisa que lotado em Nova York. Em Nova York, na hora
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immediately; what reason had he for supposing Nouna had any
unconfessed motive in sending him away? There was nothing now
but to make the best of it, to join the party, and even to hear Captain
Pascoe repeat the invitation up the river as Nouna had hoped, and
reluctantly to add his own acceptance of it to his wife’s.
The train in which the husband and wife returned to town was not
crowded, and they had a compartment to themselves. The
excitement of entertaining being over, Nouna took off her bonnet and
leaned back in a corner with her eyes closed, tired out.
“Where are your salts, dear?” asked George, putting his hand
tenderly on her wavy hair.
She opened her eyes languidly.
“Salts! Oh, I don’t know. I never use them!”
George was knocked over by this appalling confession.
“Never use them! Then you did not want them when you sent me
out for them?” he said, almost stammering.
She half raised her heavy eyelids again with a malicious little
smile, and patted his hand re-assuringly, with some pride in her own
ingenuity, and quite as much in his.
“Clever boy!” she whispered languidly. “You see I wanted to go up
the river again, and I knew you wouldn’t introduce him so that he
could invite me.”
And clasping her little hands, which she had relieved of her gloves,
with a beatific smile of perfect satisfaction, she curled her head into
her left shoulder like a bird and prepared to doze.
“How did you know it was Captain Pascoe?” asked George in a
hard, dry voice.
“Heard the little red man call him so,” murmured Nouna sleepily.
George drew back, shocked, wounded, and perplexed. To correct
her for petty deceits was like demonstrating to a baby the iniquity of
swallowing its toys; she could not understand how it was wrong to
obtain by any means in her power anything she wanted. There was
no great harm done after all, when the deed was followed by such
quick and innocent confession. But none the less, the habit showed
a moral obliquity which could not fail to be a distressing sign that the
ennobling influences of matrimony, literature, the arts and religion
had not yet had any great and enduring effect. He withdrew into the
corner furthest from her, bewildering himself with conjectures as to
what the right way to treat her might really be, not at all willing as yet
to own that the wives who fascinate men most are not the docile
creatures who like clay can be moulded to any shape their lord and
master may please to give them, but retain much of the resistance of
marble, which requires a far higher degree of skill and patience in
the working, and had best be left alone altogether except by fully
qualified artists of much experience in that medium. Even in the
midst of his disturbed musings a consolation, if not a light, came to
him. He heard Nouna move. He was staring out at the darkening
landscape through one of the side-windows, and did not look round:
before he knew she was near him she had climbed into his lap.
“Put your arms round me; I want to go to sleep,” cooed she.
And, alas, for philosophy and high morality! at the touch of her
arms all his fears and his misgivings melted into passionate,
throbbing tenderness, and he drew the head of the perhaps not
wholly undesigning Nouna down on to his shoulder with the sudden
feeling that his doubts of her entire perfection had burst like bubbles
in the air.
Nevertheless, it became clear again that evening that young Mrs.
Lauriston contemplated a revolution in the tenor of her quiet life.
“I wonder,” she said pensively at supper, resting from the labour of
eating grapes, with a face of concentrated earnestness, “that
mamma has taken no notice of the letter I sent her the very day after
I was married. I told her of a very particular wish I had, and you know
mamma always has let me have every wish I have ever made; I can’t
understand it.”
“What wish was that?” asked George, feeling it useless to
complain of the want of confidence which had prevented her from
communicating it before.
“I want to have a large house that I can furnish as I please, and
where I can receive my friends,” said Nouna with rather a haughty,
regal air.
George began to see that it was of no use to oppose the sociable
bent of her mind, and he occupied himself therefore in wondering
whether this wish of Nouna’s, expressed in a letter which passed
through the lawyers’ hands before his last visit to them, had had any
relation to their unexpected announcement of a possible accession
of his wife to fortune.
A few days later the conjecture acquired still more force through a
letter from Mr. Angelo, informing him that the will case of which he
had spoken had been decided out of court, and that Mrs. Lauriston
was entitled to an income of four thousand a year, and a house in
Queen’s Gate which she could let or occupy at her discretion. The
property was, by the late Captain Weston’s bequest, to be hers on
her majority or on her marriage, whichever event should take place
first; therefore if Mr. and Mrs. Lauriston would call at their office at an
early date, Messrs. Smith and Angelo would put them in possession
of all further details, and be able to complete certain necessary
formalities. These formalities, however, turned out to be very few and
very simple, and George was surprised at the ease with which such
a young woman as Nouna could enter into possession of so
considerable an income. As for her, she was crazy with delight, and
on learning that she could have an advance to furnish her house and
make in it what alterations she liked, she awoke into a new life of
joyful activity which seemed almost to suggest some superhuman
agency in enabling her to be in half a dozen places at once.
When at last, after having shown in the arrangement of her
handsome home some of the skill of an artist, and herself
superintended the work of the most intelligent artisans a
distinguished firm in Bond Street could furnish, Nouna introduced her
husband in triumph to the little palace on the south of the park, poor
George was overwhelmed by a crowd of bitter and sorrowful feelings
to which Nouna’s half-childish, half-queenly delight in the change
from the home of his creating to the home of hers gave scarcely
anything more than an added pang. What could he hope to be to her
now but a modest consort half ignored amidst the pretty state with
which she evidently meant to surround herself? What sense of
authority over her, of liberty for himself, could he hope to have,
when, instead of her sharing his prospects, he was simply sharing
hers? Since she could so lightly part, with no sensation stronger than
relief, from those associations with their first days of wedded love
which he held so dear, what hold could he really have on her heart at
all? And suddenly, in the midst of his grave reflections, Nouna
herself, to-day clothed in a whirlwind, shattering or fluttering every
object and every creature she came near, would fly at him down
some corridor, or through some curtain, like an incarnate spirit of
joyous triumph, and force him, with or without his will, to rejoice with
her in her work. But with a laugh, and a rush of light words and a
tempestuous caress, she would leave him again, it being out of the
question that a man’s sober feet could carry him from attic to cellar
with as much swiftness as she felt the occasion required of her, the
new mistress. So George made his tour of inspection for the most
part by himself, civilly declining the offer of the housekeeper as a
guide. This he felt as a new grievance, this staff of servants, whom
he and even Nouna had had no hand in choosing, Mr. Angelo, with
his customary strange officiousness, having undertaken that and
many other details of the new household. On this point, however,
George could console himself; as soon as he and his wife were
installed, he should make a bold demonstration of the fact that,
however weak he might be in the dainty little hands of his wife, he
was not to be ruled by anybody else, and intended, with that one
important exception perhaps, to be master in his own house.
Even while he made these reflections, he was the unseen witness
to a little scene which, in his irritable frame of mind, filled him with
anger and suspicions. He was standing on the ground floor, at a
bend in the hall, screened from view by a mass of the tall tropical
plants with which it was a canon of taste with Nouna to fill every
available nook, when his attention was attracted by a peculiar soft
treble knock on the panels of the door of an apartment which he had
not seen, but which he had been told was the housekeeper’s room.
Looking through the great leaves, which he separated with his hand,
he saw Mrs. Benfield, the housekeeper, standing at the door. The
next moment a key was turned and the door opened from inside,
another woman let her in, and immediately the door was re-locked.
George, already not in the best of humours, would not stand these
mysteries in a place which, as long as he chose to live in it, he was
determined should be his own house. He crossed the hall, and
knocked sharply on the panels.
“Who is it?” asked Mrs. Benfield’s voice.
“It is I, your master.”
There was a pause of a few seconds, and George could hear the
rustling of women’s gowns. Then the door was unlocked and thrown
wide with much appearance of deferential haste by Mrs. Benfield.
“I am sorry to have kept you so long, sir; but the locks are new and
a little stiff just at first, and I——”
George did not hear the rest of her explanation. He was looking at
the woman whom the housekeeper introduced as a friend of hers,
avowing that she had been afraid it would be considered a liberty to
have a visitor so soon; but she was so anxious to have a sight of the
young master and mistress that——
George interrupted. “Of my wife? Pray come with me then, she will
be quite pleased to find herself an object of so much interest.”
He spoke courteously and with suppressed excitement, making a
step forward to where Mrs. Benfield’s visitor sat close against the
window and with her back to the light. For he had a strong suspicion
of the identity of this stranger, who shrank into herself at the
suggestion, and said she thanked Mr. Lauriston, she would rather
not be seen; she felt rather uncomfortable at having come.
“You need not, indeed,” said George in a vibrating voice, gazing
intently at the black silhouette, of which he could make out
exasperatingly little but the shape of a close bonnet. “I am sure my
wife will have particular pleasure in seeing you. I beg you to let me
fetch her.”
The lady—there was no mistaking a certain refinement in the
voice, even in that hurried whisper—was evidently agitated; but she
said nothing as Lauriston retreated towards the door. He crossed the
hall to call his wife, scarcely leaving the door of the housekeeper’s
room out of sight as he did so. But in that moment when his eyes
were not upon it, the mysterious stranger found means to escape; for
when Nouna flew down and rushed into the small apartment at her
husband’s bidding, there was no one for her to see but Mrs. Benfield,
who, much perturbed and grey about the face, explained that her
friend, being a nervous woman, had not dared to face the ordeal of a
personal introduction to the young lady.
George said nothing, and let his wife wander away again without
further explanation, thinking that after all the one small bit of
knowledge he had gained he had better at present keep to himself.
He knew by the unmistakable evidence of the voice that he had
just seen and spoken with Nouna’s mother.
CHAPTER XVII.
George Lauriston was not allowed to make much of his small
discovery that Nouna’s mother was not so far off as she wished it to
be believed. The very morning after his meeting with the strange
lady in the housekeeper’s room he received a private communication
to the effect that Madame di Valdestillas had run over to England
from Paris on purpose to see in the flesh the man upon whom her
daughter’s happiness depended; she had not dared to show herself
to Nouna lest her darling should be overwhelmed at the shortness of
her visit, and ply her with prayers which it would be impossible to
resist and cruel to her invalid husband to grant. She had seen, so
she declared, generosity and all noble qualities imprinted in her son-
in-law’s face, and she begged him to open his heart to receive her as
his mother as well as Nouna’s, when, at two or three months’ time at
farthest, she would induce her husband to settle permanently in
England, so that she might be near her children.

“You must have seen, my dear Mr. Lauriston,” she went on,
“that at sight of you I was almost too much overcome to
speak. Think what it is to be face to face, for the first time,
with the person to whose care you have blindly confided the
being you love best in the world, to be for the first time in
seven years under the same roof with the creature for whose
sake alone the world seems bright to you, and the chill air of
this earth worth the breathing. I lead a brilliant life as the wife
of a rich man, a man of rank; but it is empty and dreary to me
without the child whom for her own sake I may not now see.
Be kind to her, cherish her, be to her the tender guardian my
other ties prevented me from being, for what I have entrusted
to your care is the idol of my prayers.

“Ever your affectionate mother,


“Lakshmi di Valdestillas.
“P.S.—Any money you may require for setting up your
establishment in a manner befitting the position in the world I
wish my son and daughter to take I will willingly advance at
once through Messrs. Smith and Angelo. An officer of such a
regiment as yours wants no passport to the best set in
London; but if you propose to come to France, or Spain, or
Germany, during the autumn, let me know, and I will take care
to furnish you with the very best introductions.”

This communication was the same curious combination as before


of passionate letter and prosaic postscript, and again the rather
flowery language and gleams of practical sense reminded him of
Nouna. The romantic, hybrid signature, Lakshmi di Valdestillas, had
an undoubtedly strong effect in explaining the eccentricity of the
writer, who, with her Eastern descent and Spanish surroundings,
could not fairly be judged by rules which govern the ordinary
Englishwoman.
The Countess did not fail to impress the purport of her postscript
on her daughter’s mind also, and Nouna was not slow to profit by the
injunction. She loved luxury and splendour, had a strong sense of
the picturesque, and would have surrounded herself, if that had been
possible, with the half-barbarous state of an Oriental potentate. That
being out of the question, she snatched readily at the best substitute
that offered itself, and found her husband’s fellow-officers, who made
no delay in calling upon her, more interesting, if less picturesque,
than the turbaned slaves with whom she would have filled her
fancifully-decorated apartments.
George was much astonished by the unexacting rapidity with
which his wife was “taken up” by people to whom her mother’s
foreign title meant nothing. For those officers who were married
brought their wives, and no vagary either in Nouna’s dress or
manner, no peculiarity in the arrangement of her rooms prevented
them from making “a lion” of the fascinating little Indian, from
imploring her to come to their receptions, enshrining her photograph
—in an impromptu costume rigged up hastily with pins, out of a
table-cloth and two antimacassars, and universally pronounced “so
deliciously Oriental”—on their cabinets, and begging her scrawling
signature for their birthday-books. It was not until some days after
the stream of calls and invitations had begun to pour in upon the
delighted Nouna that it occurred to George to remember that the
pioneer of this invasion was Lord Florencecourt’s sister, the
Countess of Crediton, a lady who combined her brother’s hardness
of feature with a corresponding rigidity of mind which made her a
pillar of strength to all the uncompromising virtues. When he did
recall this circumstance, George felt more surprise than ever. No one
but the Colonel himself, who had an enormous influence over his
sister, could have induced her to take this step; and yet his attitude
towards Nouna, on that awkward introduction which he had made no
attempt to follow up by a call, had apparently been one of dislike but
faintly tempered with the scantest possible courtesy. Why, his very
endeavour to get Lauriston to exchange and put the Irish Channel
between himself and his old friend was clearly born of the wish to get
rid, not of the promising young lieutenant, but of the dark-
complexioned wife!
An incident which happened when the Colonel did at last make his
tardy call only increased the mystery of his conduct.
It was a hot August afternoon. The wide, tiled hall had in the
centre a marble basin holding a pyramid of great blocks of ice, which
melted and dripped slowly; large-leaved tropical plants filled all the
corners; the walls, which were stencilled in Indian designs, were
hung with huge engraved brass trays, and trophies of Asiatic armour.
A low, broad seat covered with thin printed cotton stuff, so
harmoniously coloured as to suggest some dainty and rare fabric,
ran the length of one side. An Indian carpet covered the staircase,
the side of which was draped with the richest tapestry. The simplicity,
beauty, and coolness of the whole effect was unusual and pleasing
to most unimaginative British eyes, but George, who came out into
the hall on hearing the Colonel’s voice, saw him glance round at
plants and trophies with an expression of shuddering disgust.
“You don’t admire my wife’s freaks of decoration, I see, Lord
Florencecourt,” said George, smiling. Then, a new idea crossing his
mind, he asked quickly: “Have you been to India?”
Lord Florencecourt shot a rapid, piercing look at him.
“Yes, it’s a d—d hole,” he answered briefly.
This was so summary and to the point, that Lauriston’s questions,
if not his interest, were checked, and he led the way up stairs without
pursuing the subject.
If the eccentricity of the hall were not to the Colonel’s taste, it was
easy to predict that the drawing-rooms would have no charms for
him. Here Nouna had let her own conceptions of comfort run riot. No
modern spindle-legged furniture, no bric-a-brac. The floor of both
rooms was covered with matting, strewn with the well-mounted skins
of wild beasts. There the resemblance between the two apartments
ended. For the walls of the first were painted black and lined from
floor to ceiling with queer little shelves, and brackets, and cupboards,
like a Japanese cabinet. The shelves and brackets were filled with
vases of cut flowers, cups and saucers of egg-shell china, dainty
baskets filled with fruit, brass candlesticks, bright blue plates, cut
glass bottles of perfume, hand mirrors from the Palais Royal with
frames of porcelain flowers, screens, fans, a hundred dainty and
beautiful trifles, each one of which, however, had its use and was not
“only for show.” The panels of some of the numerous and oddly-
shaped cupboards were inlaid with Japanese work in ivory, pearl,
and gold, while others were hung with bright-coloured curtains of
Indian silk, fastened back with gold tassels. The ceiling was entirely
covered with gold-coloured silk, drawn together in folds in the centre,
where the ends were gathered into a huge rosette, tied round with a
thick gold cord, finished by tassels which hung downwards a couple
of feet. Under this was a large low ottoman, covered with tapestry
squares that seemed to have been stitched on carelessly according
to the fancy of the worker. From the middle of the seat rose a small
pedestal supporting an Indian female figure in coloured bronze, who
held high in her hands two tinted lamps, which gave the only light
used in the room. The curtains to the windows and doors were gold-
coloured silk, edged with gold fringe. Little Turkish tables inlaid with
pearl, and immense cushions thrown about the floor in twos and
threes, formed all the rest of the furniture.
The second room was as full of flowers and plants as a
conservatory. Between the groups of foliage and blossom were low
black wicker seats, with crimson and gold cushions, and in one
corner, hidden by azaleas and large ferns, was a grand piano, which,
whenever Nouna was at home, a young girl, a professional pianist,
was engaged to play. The walls of this room were bright with
unframed sheets of looking-glass, divided only by long curtains of
gold-coloured silk, which reflected both plants and flowers in never-
ending vistas of foliage and bloom. The ceiling of this room was
painted like a pale summer-sky with little clouds, and the only lighting
was by tiny globes of electric light suspended from it.
When George entered the first of these rooms, ushering in the
Colonel, Nouna was as usual lying indolently on a pile of cushions,
an attitude which she varied for few of her visitors, certainly not for
this old gentleman whom she did not like. She held up to him a
condescending hand, however, which he did not detain long in his.
The whole atmosphere of the place was evidently disagreeable to
him; every object on which his glance rested, from Nouna’s fantastic
white costume with red velvet girdle, cap, and slippers, to the tigers
on the floor, whose glassy eyes and gleaming fangs reminded him of
many a fierce jungle-encounter, seemed to excite in him a new
disgust, until Nouna, to make a diversion in a conversation which her
antipathy and the vagueness of his answers rendered irksome to
her, told her husband to show Lord Florencecourt her new palms,
and lazily touching a little bell on a table by her side, fell back quietly
on her cushions as a gentle intimation that she was not going to
throw away her efforts at entertainment any more. The two
gentlemen walked obediently into the adjoining room, which was
divided from the first only by gold-coloured silk curtains which were
never closed.
As they did so, the outer door of the first room was softly opened,
and the swarthy white-robed Sundran, walking with noiseless flat-
footed tread, crossed the room and laid a little brass tray with
porcelain cups and teapot down by her mistress’s side.
The Colonel, who was speaking to George, stopped suddenly, as
if the thought that moved his words had been suddenly frozen in his
brain, while his furrowed face turned at once to that dead greenish
grey which, on sallow faces, is the ghastly sign of some strong and
horrible emotion. Following the direction of his eyes with a swift
glance, George saw that it was the Indian woman who had excited
this feeling, and that this time the Colonel’s disgust was more than a
reminder—it was a recognition. Lauriston’s first impulse was to call
to Sundran, to make her turn, to confront the one with the other, and
tear down at one rough blow the mystery which was beginning to
wind itself about one side of his life. But the expression on his old
friend’s face was too horrible; it was an agony, a terror; for the
Colonel’s sake George dared not interfere. Lord Florencecourt, after
the first moment, recovered enough self-possession to make a step
further back among the plants, as if to admire one of them. But it was
plain to his companion that he was merely seeking a stand-point
from which he could observe the woman without being seen by her.
And as George watched his face under cover of idle remarks about
the flowers, he saw that further scrutiny was bringing about in the
Colonel’s mind not relief, but certainty.
As soon as Sundran had withdrawn, Lord Florencecourt advanced
to take his leave: but as he did so the door opened, and Lady
Millard, accompanied by two of her daughters, was ushered in, and
he was detained with or without his will by pretty chattering
Charlotte. It was not their first visit; but they were so charmed with
the picturesque little bride that they could not keep long away from
her; Ella in particular finding a fascination in George’s wife, which
was perhaps less extraordinary than the interest Nouna took in the
plain abrupt-mannered girl. To Lord Florencecourt, who, in spite of
his forced semi-civility, succeeded very ill in masking his intense
dislike to young Mrs. Lauriston, the fuss his nieces made with the girl
was nothing short of disgusting. Thus when he said, noticing an
unmistakable fragrance prevailing over the perfumes of sandalwood
and attar of roses:
“I observe that you let your husband smoke, Mrs. Lauriston.”
Nouna waved her hand towards a little engraved gold cigarette
case, beside which a tiny lamp was burning, and answered with a
bubbling laugh:
“How can I stop him when I set the example?”
The ladies were enraptured; they begged her to smoke to show
them how she did it, and Nouna, with a sly, mock-frightened glance
from under her eyelashes at Lord Florencecourt, whose expression
of rigid disapproval did not escape her, said, addressing him in the
half-aggrieved, half-deferential air of the man invaded by an elderly
female in a smoking-carriage:
“I hope you don’t object to smoking, sir!”
He did: every line of his face said so. But he could do nothing but
smile galvanically, assure her he thought it charming, and hand her
the cigarette-case with all the easy grace with which a man travelling
first-class produces a third-class ticket.
“You will have to lock up Henry’s cigars from Charlotte and Cicely
before long, Effie,” said he to his sister-in-law in a dry aside.
“Oh, I don’t think so, Horace,” she replied easily.
Being the daughter of an American millionaire who had gathered
together a priceless collection of paintings and then placed them in a
gallery with a magnificent roof of elaborately coloured glass, she was
used to eccentricity, and to allowing a wide latitude to individual
taste. She had not time to say more, for at that moment Nouna
herself crossed the room to her, and joined hands before her in a
humbly suppliant attitude.
“If you please, Lady Millard, I want to ask a great favour. It’s such
a very great favour that George says I ought not to dream of asking it
of any one I haven’t known much longer than I have known you. Now
—may I ask it?”
“With the reservation that if it’s anything penal I may refuse.”
“Certainly. Well, Lady Millard, I want you to help me to cure a poor
man who is suffering for want of change of air.”
“Why, of course I will, with pleasure—”
“Oh, but do you understand? I want you to invite him down to
Norfolk—and while I’m there!”
Every one began to laugh except Lord Florencecourt, and the
suppliant turned to glance round gravely at the mockers.
“Ah, but I’m not in fun,” she continued undeterred. “I am interested
in this poor fellow—” Again Ella was obliged to give vent to an
irrepressible little titter. “And I know that he ought to go out of town,
and he won’t unless he gets an invitation where he feels sure that he
will enjoy himself.” Unmindful of renewed signs of amusement, she
ended: “His own people are clergymen and great-aunts and other
things like that, so of course he will not go to them.”
Lady Millard drew her down on to the ottoman beside her,
repressing her own inclination to laugh.
“And what is the name of the interesting young invalid?”
“Dicky Wood.”
“Dicky Wood!” and the three ladies echoed it in much
astonishment. “Why, he is quite well!” “We saw him only the other
day!” they cried.
Nouna nodded sagaciously.
“Of course,” she said, glancing round with a patronising sweep of
the eyes at the two younger ladies, both of whom were considerably
older than she, “your daughters cannot know so well as I do; I am a
married woman, the boys come and talk to me; but I know that he is
not well at all, and if he does not go away soon he will go into a
decline, I believe.” She ended with such tragic solemnity that all the
girls’ inclination to laugh at her ingenuousness died suddenly away.
Lady Millard took off Nouna’s cap, smoothed her hair, and kissed
her as if she had been one of her own daughters. She felt a strong
sympathy for this little creature who dared to be impulsive and
unconventional and natural in a country which to her had been full of
iron bonds of strait-laced custom.
“I will see if it can be managed, dear,” she said kindly. “Of course I
can’t promise till I’ve seen Sir Henry.”
Lord Florencecourt’s harsh voice rasped their ears just as the
younger lady was heartily returning the kiss of the elder.
“And pray what does Mrs. Lauriston’s husband say?”
Nouna’s head sprang back with great spirit.
“Mrs. Lauriston’s husband has only to say yes to whatever Mrs.
Lauriston wishes, or he would be no husband for me,” she said
decidedly.
At this neither George nor any one else could help laughing.
“Oh, Nouna, you don’t know what a reputation you’re giving us
both!” he said, as soon as he could command his voice. “They’ll say
I’m henpecked.”
She looked for a moment rather dismayed, as if not quite
measuring the force of the accusation. Then with a sudden turn
towards him, her whole face aglow with affection, she said in a low,
impulsive voice:
“Does it matter what they say as long as we’re both so happy?”
“No, child, it doesn’t!” cried Lady Millard, carried away by the
young wife’s frank simplicity.
But on Lord Florencecourt’s prejudiced mind the little scene was
only another display of the most brazen coquetry. He and the ladies
left together, and they were not out of the house before George, in a
transport of passion, snatched into his arms the wife who was
always discovering new charms for him. Presently she said:
“George, that wooden-faced Lord Florencecourt hates me!”
“When you’ve seen Lady Florencecourt, you’ll understand that a
taste for the one type of woman is incompatible with a taste for the
other.”
“But why then did he make his sister call upon me? For she said it
was her brother made her call, and everybody thinks a visit from
Lady Crediton a great thing!”
“Well, I suppose it must have been to please me, Nouna,” said her
husband.
But in truth he did not feel sure of it, Lord Florencecourt’s conduct
lately having been in more ways than one a mystery to him.
Two days later, however, he had a conversation with his chief, the
end of which supplied, as he thought, a clue to it. Lord Florencecourt
began by reproaching him for a falling off in the quality of his
ambition.
“I can see it,” said he, “I can see the fire slackening every day,
aims getting lower, if not more sordid. I am an old fool, I suppose, to
begin ‘the service is going to the dogs’ cry; but I, for one, believe in
enthusiasm; a soldier without it is not worth the cost of his uniform;
and I’d sooner see a young officer’s body shot down with a bullet
than his soul gnawed away by a woman.”
“Colonel, you are going too far—”
“No, I’m not. What will you remember of the hardest words an old
man can speak when you are once again in the arms of that—”
“You forget you are speaking of my wife,” interrupted George
hastily in a low hoarse voice.
“Your wife! How many of the duties of a wife will that little thing in
the red cap perform? Will she look after your household, bring up
your children well, keep you up to your work, advance your interests
by her tact, nurse you when you’re laid up? No; she’ll ruin you by her
extravagance, disgrace you by her freaks, and if you ever should be
ill or ordered off and unable to keep your eye on her, ten to one
she’d bolt with some other man.”
“With all respect, Colonel, I think I have chosen my wife as well as
some of my superiors,” said George, at a white heat, scarcely
opening his lips.
Now every one knew that Lady Florencecourt was the soul of
“aggravation,” but Lauriston had no idea that his retort would bowl
the Colonel over so completely. Instead of indignation at the
lieutenant’s turning the tables upon him, his face expressed nothing
but blank horror, and an agony as acute as that which he had
suffered two days before at sight of the Indian woman Sundran.
Again the look was momentary; and in his usual voice, with his eyes
fixed upon George, without any irritation, he said slowly:
“Lady Florencecourt—” He paused. George remained silently
facing him, rather ashamed of himself. The Colonel continued more
glibly—“Lady Florencecourt may be surpassed in amiability, I admit
that. But she is at least above reproach, infirmity of temper in a wife
counting rather on the right side of the balance, as the due of
uncompromising virtue.”
“But, Colonel,” hazarded George apologetically, being moved to
some compassion by these outlines of a gloomy domestic picture,
“you would not expect my wife to be yet as uncompromising as Lady
Florencecourt?”
“Isn’t it going rather far when she cannot pass a week’s visit to a
country-house without providing herself with a retinue of young
men?”
“Oh, Dicky Wood!” said George cheerfully. “That’s all right; it is the
purest good-nature her wanting to get poor Wood out of town now.
He’s got into—”
He stopped. Lord Florencecourt was his friend, but he was also his
commanding officer, and Dicky’s. He hesitated, grew red, and
muttered something about retrenchment and pulling up. But he had
said too much, and under promise of his communication being
treated confidentially, he had to finish it.
“I’m as sorry about it as I can be, and so’s my wife; for we both like
Wood, as everybody does. But some wretched woman has got hold
of him—you know, sir, he is well off, and as generous as sun in the
tropics, and so we want to get him away, if we can persuade him to
go. And he hasn’t had any leave for ever so long.”
The Colonel listened gravely, and when the account was over he
spoke in a rather less hard tone.
“H’m, if the young fool has once begun on that tack, you may as
well let him be squeezed dry by one as by another,” he said grimly.
“And a young gentleman fond of that kind of society will be a nice
sort of companion for your wife.” His tone still implied also that the
wife would be “a nice sort of companion for him.”
“But, sir, Wood isn’t like an ordinary fellow; he’s such a gentle,
open-hearted creature, it quite knocks one over to see him made a
meal of—and by a woman like Chloris White!”
Lauriston’s first impression, on noting the sudden contraction of
his hearer’s face into greater rigidity than ever, at this contemptuous
mention by name of one of the most notorious persons in London,
was that he had “put his foot in it.” The Colonel’s austerity might not
be so thorough-going as he had imagined. The next moment he was
undeceived as Lord Florencecourt’s eyes moved slowly round, as if
by an effort, till they rested on his face.
“God help the lad! Do your best for him, Lauriston, if you will;
pulling a man out of the hug of a boa-constrictor’s d——d easy work
compared to it!”
Lord Florencecourt shivered, and looked at the windows as he got
up and walked away, so little himself that he began trying to smoke a
cigar he had not lighted.
It was then that by an inspiration an explanation of his late
extraordinary conduct occurred to Lauriston.
“Wonder if he’s going off his head!” he thought with sorrowful
concern. “And it’s taking the form of antipathy to women. First
Nouna; then Sundran; last of all this Chloris White! Poor old chap!
Poor dear old chap! that comes of marrying Lady Florencecourt; or
perhaps his marriage was the first sign of it.”
And George, trying in vain to account in any other way for the
strange behaviour of his friend, went home to renewed raptures over
his own happier choice.
CHAPTER XVIII.
George Lauriston’s gloomy forebodings at the entire change in
their manner of life brought about by Nouna’s becoming a
comparatively rich woman, were not, in the first few weeks at least,
fulfilled. The new way of living pleased the volatile child-woman
much better than the old; and as she was never happy or miserable
by halves, her joy in her good fortune was so strong as to be
infectious; it was impossible to live in the neighbourhood of her full
sensuous delight in existence without catching some of its radiance;
and George, while ashamed of the weakness which made him take
the colour of his life from hers, when he had meant in the most
orthodox way to make her tastes and feelings accord with his own,
found a fierce and ever-strengthening pleasure in the intoxicating
love-draughts his passion afforded him, until his ambition, which
perhaps had been none of the highest, began to sleep, and thought
and principle to grow languid under the enervating influence of the
question: What good in heaven or earth is worth the striving for,
when this, the most absorbing soul or sense can imagine, is close to
my hand, at my lips? And so, as in all encounters of the affections,
the greater love was at the mercy of the less; and George, telling
himself that time and experience would develop in her all those other
qualities which his own efforts had failed to draw out, but which,
being part of his conception of the ideal woman, must lie dormant
somewhere in the queen of his heart, gave himself up to adoration of
those excellences in her which had been already demonstrated; and
they lived through those hot summer weeks in happiness, which
caused the one first awake in the morning to touch the other softly,
doubtingly, to make sure that their life of dream-like joy was a reality
still.
George had had, of course, to indulge the cravings of Nouna’s
sociability, and to submit to the entertaining of visitors, and to the
establishment of an institution which in its beginnings rather shocked
him. Nouna, finding that the social day began late, readily
understood that this necessitated “stealing a few hours from the
night,” and she accordingly encouraged such of her husband’s
friends as met with her approval, to “come and smoke a cigar with
George after dinner.” As this invitation was invariably accepted, and
as the entertainment always included a perfectly served little supper,
under the famous golden silk ceiling, Mrs. Lauriston’s “midnight
parties” soon began to be talked about, and to afford a nice little
scandal to be worried by all the women who were jealous of the little
lady’s rapid and surprising success. Even when with August the
dead season sets in, there are always men detained in town by
business or caprice, and Nouna found no falling off in attendance at
these receptions, so consonant with masculine tastes and habits,
and there was a general outcry of aggrieved bachelordom—
bachelordom in its wide sense, including those who had attained a
more complete form of existence, but still wallowed in the unworthy
habits of the less honourable state—when the time came for Mr. and
Mrs. Lauriston to start for Norfolk.
Lord Florencecourt, who was already at Willingham, had asked
George, with an assumed carelessness which the latter was too
well-informed to misinterpret, whether they intended to take “that
hideous black woman,” whose ugliness, he declared, had nearly
made the rest of his hair turn white the only time he saw her, with
them to Norfolk. George said no, but he was not sorry when, later,
Nouna insisted upon Sundran’s accompanying them, as he had a
lurking wish to see what the effect would be if the woman were to
confront the Colonel. Nouna had scoffed at the notion of his being
insane, and on learning that his marriage might possibly have had an
effect on his mind, she expressed great curiosity to see this
formidable wife.
George laughed rather mischievously.
“I’m afraid you’ll have to forego that pleasure, Nouna,” he said,
shaking his head. “I heard from Ella Millard the other day that Lady
Florencecourt is so much shocked by what she has heard about you
and your wicked heathen ways, that she has quarrelled with her
brother, Sir Henry, about their invitation to you, and has refused to
visit them while you are at the Lodge!”

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