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T : Os Prisioneiros da Geografia
A : Tim Marshall
E : Luís Corte Real
Esta edição © 2020 Edições Saída de Emergência
Título original Prisioners of Geograp hy © 2015 Tim Marshall
Publicado originalmente em Inglaterra por Elliott and Thompson Limited, 2016
T : Sónia Maia
R : Idalina Morgado
D : Saída de Emergência
D E E-B : Abril, 2020
: 978-989-8892-62-1
D G S E
Taguspark - Rua Prof. Dr. Aníbal Cavaco Silva,
Edifício Qualidade - Bloco B3, Piso 0, Porta B
2740-296 Porto Salvo, Portugal
T F : 214 583 770
A
. .
PREFÁCIO

T
ornou-se um truísmo pensar, e dizer, que vivemos em tempos
excecionalmente instáveis. O mundo, segundo nos dizem, nunca foi
tão imprevisível. Este tipo de afirmações requer uma resposta
cautelosa, ou mesmo cética. Há bons motivos para se ser prudente. O mundo
foi sempre instável e o futuro, por definição, imprevisível. As nossas
preocupações atuais poderiam, certamente, ser muito mais graves. Quanto
mais não fosse, o centenário de 1914 deveria ter-nos relembrado desse
facto.
Dito isto, existem, sem dúvida, alterações fundamentais em curso, que irão
ter uma influência real no nosso futuro e no dos nossos filhos, onde quer que
vivamos. As alterações económicas, sociais e demográficas, combinadas
com uma rápida evolução tecnológica, têm implicações globais que poderão
diferenciar os tempos em que vivemos dos que os precederam. Talvez seja
por isso que falamos tanto de «incerteza excecional» e que o comentário
«geopolítico» se transformou numa indústria em crescimento.
Tim Marshall está invulgarmente bem preparado, tanto pessoal como
profissionalmente, para contribuir para este debate. Participou diretamente
em muitos dos desenvolvimentos mais dramáticos dos últimos 25 anos.
Como a sua Introdução nos recorda, esteve na linha da frente nos Balcãs, no
Afeganistão e na Síria. Testemunhou como as decisões e os acontecimentos,
os conflitos internacionais e as guerras civis, apenas podem ser
compreendidos tendo em conta as esperanças, os medos e os preconceitos
resultantes da História e como estes, por seu turno, são determinados pelo
ambiente físico — a geografia — em que os indivíduos, as sociedades e os
países se desenvolveram.
Em consequência, este livro está repleto de revelações judiciosas com
relevância imediata para a nossa segurança e bem-estar. O que influenciou a
ação da Rússia na Ucrânia? Teremos nós (o Ocidente) falhado a tarefa de a
prever? Se assim foi, porquê? Até onde irá, agora, Moscovo? Sentir-se-á a
China, finalmente, segura dentro do que vê como as suas fronteiras terrestres
naturais, e como afetará este facto a abordagem de Pequim ao poder
marítimo e aos EUA? O que significará isto para os outros países da região,
incluindo a Índia e o Japão? Durante mais de 200 anos, os EUA
beneficiaram de circunstâncias geográficas altamente favoráveis e da riqueza
de recursos naturais. Agora, têm petróleo e gás não convencionais. Isto
afetará a sua política global? Os EUA têm um poder e uma resiliência
extraordinários, logo, porque se fala tanto do seu declínio? As divisões e
emoções profundamente enraizadas em todo o Norte de África, Médio
Oriente e Sul da Ásia serão insuperáveis, ou poderemos ter esperança no
futuro? Por fim, e talvez com maior importância para o nosso país, o Reino
Unido, que é uma das economias mais vastas e mais globais: como está a
Europa a reagir às incertezas e conflitos na sua vizinhança, e para lá dessa
vizinhança? Como Tim refere, nos últimos 70 anos (e, em especial, desde
1991), a Europa tem vindo a habituar-se à paz e à prosperidade. Estaremos
agora em risco de tomar estas circunstâncias como garantidas? Ainda
compreenderemos o que se passa à nossa volta?
Se quer refletir sobre estas questões, leia este livro.

Sir John Scarlett KCMG OBE,


Diretor do Serviço de Informações Secretas (MI6), 2004-2009
INTRODUÇÃO

V
ladimir Putin diz-se um homem religioso, um grande apoiante da
Igreja Ortodoxa russa. Assim sendo, é bem possível que, todas as
noites, quando se deita, faça as suas orações e pergunte a Deus:
«Porque não puseste montanhas na Ucrânia?»
Se Deus tivesse posto montanhas na Ucrânia, a grande extensão de terreno
plano que forma a Planície do Norte Europeu não seria um território tão
ideal como ponto de partida de ataques repetidos à Rússia. Assim, Putin não
tem alternativa: precisa de, pelo menos, tentar controlar as planícies a oeste.
O mesmo acontece com todas as nações, grandes ou pequenas. A geografia
aprisiona os seus líderes, deixando-lhes poucas alternativas e uma margem
de manobra mais reduzida do que se possa pensar. Foi o caso do Império
Ateniense, dos Persas, dos Babilónios e de outros antes deles; foi o caso de
todos os líderes em busca de um terreno elevado de onde pudessem proteger
a sua tribo.
A terra em que vivemos sempre nos moldou. Moldou as guerras, o poder,
a política e o desenvolvimento social dos povos que, hoje, habitam quase
todo o planeta. A tecnologia pode parecer ultrapassar as distâncias, tanto no
espaço mental como no físico, mas é fácil esquecer que a terra onde
vivemos, trabalhamos e criamos os nossos filhos tem uma importância
crucial, e que as escolhas daqueles que lideram os sete mil milhões de
habitantes deste planeta serão, em certa medida, sempre influenciadas pelos
rios, montanhas, desertos, lagos e mares que nos rodeiam a todos — como
sempre o foram.
Em geral, não existe um fator geográfico mais importante do que os outros.
As montanhas não são mais importantes do que os desertos, nem os rios têm
mais relevância do que as selvas. Em diferentes zonas do planeta, as
diferentes características geográficas estão entre os fatores mais
determinantes do que as pessoas podem e não podem fazer.
Em termos gerais, a geopolítica estuda as formas como a política
internacional pode ser compreendida através dos fatores geográficos; não
apenas da paisagem física — por exemplo, das barreiras naturais formadas
pelas montanhas ou das ligações proporcionadas pelas redes fluviais —,
mas também do clima, da demografia, das regiões culturais e do acesso a
recursos naturais. Fatores como estes podem ter um impacto importante em
vários aspetos da nossa civilização, da estratégia política e militar ao
desenvolvimento social humano, incluindo a linguagem, o comércio e a
religião.
As realidades físicas que sustentam a política nacional e internacional
são, demasiadas vezes, menosprezadas, tanto em obras sobre História como
em relatos contemporâneos da política mundial. Não há dúvida de que a
geografia é uma parte fundamental, tanto do «porquê» como do «quê». Pode
não ser o fator determinante, mas é certamente o mais ignorado. Veja-se, por
exemplo, a China e a Índia: dois países colossais com populações
gigantescas que partilham uma fronteira muito extensa, mas não estão
alinhados política nem culturalmente. Não admiraria que estes dois gigantes
se tivessem defrontado em várias guerras, mas, na verdade, tirando uma
batalha que durou um mês em 1962, nunca o fizeram. Porquê? Porque, entre
eles, se ergue a cordilheira montanhosa mais alta do mundo, e é praticamente
impossível fazer avançar grandes colunas militares atravessando ou
transpondo os Himalaias. Claro que, à medida que a tecnologia se torna mais
sofisticada, vão surgindo formas de ultrapassar este obstáculo, mas a
barreira física continua a ser dissuasora e, por isso, ambos os países
concentram a sua política externa noutras regiões, embora não deixem de se
vigiar mutuamente.
Os líderes individuais, as ideias, a tecnologia e outros fatores
desempenham um papel na determinação dos acontecimentos, mas são
temporários. Cada nova geração continuará a enfrentar os obstáculos físicos
criados pelo Indocuche e pelos Himalaias; os desafios colocados pelas
estações das chuvas; e as desvantagens do acesso limitado a minerais
naturais ou a fontes de alimento.
Comecei por me interessar por este assunto quando cobria as guerras nos
Balcãs, nos anos 90. Vi, em primeira mão, os líderes de vários povos,
fossem eles sérvios, croatas ou bósnios, recordarem às suas «tribos» as
antigas divisões e, sim, as antigas desconfianças, numa região repleta de
diversidade. Depois de terem afastado as pessoas umas das outras, não foi
preciso muito para as atirarem umas contra as outras.
O Rio Ibar, no Kosovo, é um exemplo típico. O domínio otomano sobre a
Sérvia foi cimentado pela Batalha do Kosovo Polje, em 1389, travada perto
do local onde o Ibar atravessa a cidade de Mitrovica. Ao longo dos séculos
seguintes, a população sérvia começou a retirar-se para trás do Ibar, à
medida que os albaneses muçulmanos desciam gradualmente da região
montanhosa Malesija para o Kosovo, onde se tornaram maioritários por
volta de meados do século XVIII.
Avançando até ao século XX, encontra-se ainda uma clara divisão étnica e
religiosa grosseiramente demarcada pelo rio. Depois, em 1999, atacadas
pela NATO a partir do ar e pelo Exército de Libertação do Kosovo no solo,
as tropas jugoslavas (sérvias) recuaram para lá do Ibar, rapidamente
seguidas pela maior parte da população sérvia remanescente. O rio tornou-
se, na prática, a fronteira do que alguns países hoje reconhecem como o
estado independente do Kosovo.
Foi também em Mitrovica que as forças da NATO no solo pararam de
ganhar terreno e se detiveram. Durante a guerra, que durara três meses,
haviam sido feitas ameaças veladas de que a NATO pretendia invadir toda a
Sérvia. Na verdade, devido às condicionantes decorrentes tanto da geografia
como da política, os líderes da NATO nunca tiveram, realmente, essa opção.
A Hungria deixara claro que não permitiria uma invasão a partir do seu
território, pois temia represálias contra os 350.000 húngaros étnicos no
Norte da Sérvia. A alternativa era uma invasão a partir do Sul, o que os
levaria ao Ibar em metade do tempo; mas a NATO teria, então, de enfrentar
as montanhas que dominavam a região.
Nessa altura, eu estava a trabalhar com uma equipa de sérvios em
Belgrado e perguntei-lhes o que aconteceria se a NATO avançasse.
«Pousaremos as câmaras, Tim, e pegaremos em armas», foi a resposta. Eram
sérvios liberais, meus bons amigos e opunham-se ao seu governo, mas,
mesmo assim, puxaram dos mapas e mostraram-me onde os sérvios
defenderiam o seu território nas montanhas e onde a NATO teria de se deter.
Foi um alívio receber uma lição de geografia sobre os motivos por que as
opções da NATO eram mais limitadas do que era admitido pela máquina de
relações públicas de Bruxelas.
A compreensão da importância crucial da paisagem geográfica que obtive
enquanto repórter nos Balcãs foi-me muito útil nos anos seguintes. Por
exemplo, em 2001, poucas semanas depois do 11 de Setembro, presenciei
uma demonstração de como, mesmo com a moderna tecnologia atual, o clima
ainda dita as possibilidades militares, até dos exércitos mais poderosos do
mundo. Eu estava no Norte do Afeganistão, tendo atravessado o rio que
assinala a fronteira com o Tajiquistão numa balsa, para ir encontrar-me com
as tropas da Aliança do Norte (AN) que combatiam os talibãs.
Os caças e bombardeiros americanos já sobrevoavam a área, atacando as
posições dos talibãs e da Al Qaeda nas planícies e nas encostas frias e
poeirentas de Mazar-e-Sharif, abrindo caminho para um avanço sobre Cabul.
Passadas algumas semanas, era já evidente que a AN estava a preparar-se
para rumar a sul. Depois, o mundo mudou de cor.
A tempestade de areia mais intensa que alguma vez testemunhei abateu-se
sobre a zona, tingindo tudo de uma cor amarelo-mostarda. Até o ar à nossa
volta parecia ser daquele tom, de tal forma estava carregado de partículas de
areia. Durante 36 horas, nada se moveu, a não ser a areia. No auge da
tempestade, a visibilidade era de poucos metros, e a única coisa clara era
que o avanço teria de esperar que o tempo melhorasse.
A tecnologia de satélites dos americanos, na vanguarda da ciência, foi
impotente, tornada cega pelo clima daquela terra agreste. Todos, do
Presidente Bush e do Estado-Maior Conjunto dos EUA às tropas da AN no
solo, tiveram de se resignar à espera. Depois choveu, e a areia que se
depositara sobre tudo e todos transformou-se em lama. A chuva caiu com
tanta força que as cabanas de lama cozida em que estávamos alojados
pareciam estar a derreter. Mais uma vez, ficou claro que a deslocação para
sul estaria suspensa até que a geografia se dignasse permiti-la. As regras da
geografia, bem conhecidas de Hannibal, Sun Tzu e Alexandre o Grande,
ainda se aplicam aos líderes de hoje.
Mais recentemente, em 2012, recebi mais uma lição de geoestratégia:
quando a Síria entrou em guerra civil declarada, eu estava no topo de uma
colina síria, com vista sobre um vale a sul da cidade de Hama, e vi uma
aldeola a arder ao longe. Amigos sírios apontaram-me uma aldeia muito
maior, a cerca de 1600 metros de distância, de onde diziam que o ataque
tinha partido. Depois, explicaram-me que, se um dos lados conseguisse
expulsar do vale pessoas suficientes da outra fação, o vale poderia então ser
anexado a outra extensão de terreno que levava à única autoestrada do país,
criando-se, assim, um pedaço de território contíguo transitável onde, um dia,
poderia estabelecer-se um microestado, se a Síria não pudesse ser
reunificada. Onde, antes, eu só vira uma aldeola em chamas, vi então a sua
importância estratégica e compreendi como as realidades políticas são
moldadas pelas realidades físicas mais básicas.
A geopolítica afeta todos os países, quer estejam em guerra, como nos
exemplos acima, ou em paz. Em todas as regiões, existem casos que se
podem apontar. Nestas páginas, não me será possível explorar todas elas: o
Canadá, a Austrália ou a Indonésia, entre outras, serão apenas brevemente
mencionadas, embora se pudesse dedicar um livro inteiro só à Austrália e às
formas como a sua geografia determinou a sua ligação a outras partes do
mundo, tanto física como culturalmente. Em vez disso, concentrei-me nos
poderes e regiões que melhor ilustram os pontos-chave do livro, cobrindo os
legados geopolíticos do passado (formação das nações); as situações mais
prementes da atualidade (os problemas na Ucrânia, a influência crescente da
China); e olhando para o futuro (concorrência crescente no Ártico).
Na Rússia, observaremos a influência do Ártico, e como o seu clima
gelado limita a capacidade da Rússia de ser um verdadeiro poder global. Na
China, veremos as limitações de poder decorrentes da ausência de uma
marinha global e como, em 2016, a rapidez com que a China tem procurado
alterar este facto se tornou evidente. O capítulo sobre os EUA mostra como
decisões astutas no sentido da expansão do território em regiões-chave lhes
permitiram alcançar o seu estatuto moderno de superpotência em dois
oceanos. A Europa demonstra-nos o valor dos terrenos planos e dos rios
navegáveis na interligação de regiões e na produção de uma cultura capaz de
impulsionar o mundo moderno, enquanto a África é um bom exemplo dos
efeitos do isolamento.
O capítulo sobre o Médio Oriente mostra-nos porque traçar linhas em
mapas sem ter em atenção a topografia e, com igual importância, as culturas
geográficas de cada zona específica é a receita para o desastre.
Continuaremos a testemunhar esse desastre neste século. O mesmo tema
surge nos capítulos sobre África e a Índia / Paquistão. Os poderes coloniais
desenharam fronteiras artificiais no papel, ignorando completamente as
realidades físicas da região. Estão, agora, a ser feitas tentativas enérgicas
para as redesenhar; estas tentativas prolongar-se-ão por vários anos, após os
quais o mapa dos estados-nação será bem diferente do que é hoje.
Muito diferentes dos exemplos do Kosovo e da Síria são o Japão e a
Coreia, dado que estes são, em grande parte, etnicamente homogéneos. Mas
têm outros problemas: o Japão é uma nação contida numa ilha desprovida de
recursos naturais, enquanto a divisão das Coreias é um problema ainda à
espera de resolução. Entretanto, a América Latina é uma anomalia. O seu
extremo Sul está tão afastado do mundo exterior que o comércio global se
torna difícil, e a sua geografia interna constitui uma barreira à criação de um
bloco comercial tão bem-sucedido como a União Europeia (UE).
Finalmente, chegamos a um dos locais mais inabitáveis do planeta — o
Ártico. Durante a maior parte da História, a Humanidade ignorou-o, mas, no
século XX, encontrámos lá energia, e a diplomacia do século XXI
determinará a quem pertencerá — e quem venderá — esse recurso.
A tese da geografia como um fator decisivo no decurso da história humana
pode ser interpretada como uma visão pessimista do mundo e, por isso, é
malvista nalguns círculos intelectuais. Sugere que a Natureza é mais
poderosa do que o Homem e que só até certo ponto podemos determinar o
nosso destino. Contudo, existem outros fatores que, indubitavelmente,
influenciam também os acontecimentos. Qualquer pessoa sensata percebe
que a tecnologia moderna está já a dobrar as regras de ferro da geografia.
Encontrou formas de passar por cima, por baixo ou através de algumas
barreiras. Hoje, é possível aos americanos enviar um avião do Missuri a
Mossul numa missão de bombardeamento sem necessidade de uma superfície
de betão no caminho, sobre a qual possam reabastecer. Isso, juntamente com
os seus fantásticos e parcialmente autossuficientes Grupos de Batalha de
Porta-Aviões, significa que já não precisam absolutamente de ter um aliado
ou uma colónia para estenderem a sua influência global a todo o mundo.
Claro que, se tiverem uma base aérea na ilha de Diego Garcia, ou acesso
permanente ao porto do Bahrein, terão mais opções; mas isso já não é tão
essencial.
O poder aéreo mudou as regras, tal como, de modo diferente, a Internet o
fez. Mas a geografia, e a história de como as nações se estabeleceram no
seio dessa geografia, permanece crucial para a nossa compreensão do mundo
de hoje e do nosso futuro.
O conflito no Iraque e na Síria assenta em poderes coloniais que
ignoraram as regras da geografia, enquanto a ocupação chinesa do Tibete
assenta na obediência a essas regras; a política externa global da América é
ditada por elas, e mesmo o génio tecnológico e a projeção de poder da
última superpotência que resta não podem fazer mais do que mitigar as
regras que a Natureza, ou Deus, estabeleceram.
Quais são essas regras? O melhor local para começar é na terra onde o
poder é difícil de defender, pelo que, durante séculos, os seus líderes
compensaram esse facto tentando exercê-lo no exterior. É a terra sem
montanhas a oeste: a Rússia.
CAPÍTULO 1

RÚSSIA

Vasto (adjetivo; mais vasto, o mais vasto): com uma área


ou extensão de grandes dimensões; imenso.
MAPA RÚSSIA

A
Rússia é vasta. É vastíssima. Imensa. Tem 15 milhões de
quilómetros quadrados de extensão e abrange 11 fusos horários; é
o maior país do mundo.
Os seus lagos, florestas, rios, tundras geladas, estepes, taigas e montanhas
são, todos eles, vastos. Há muito que esta extensão se infiltrou na nossa
consciência coletiva. Onde quer que estejamos, lá está a Rússia, talvez a
leste ou a oeste da nossa posição, ou a norte ou sul — mas o Urso Russo está
sempre lá.
Não é coincidência que o urso seja o símbolo desta nação imensa. Ali está
ele, por vezes em hibernação, outras vezes rugindo, majestoso, mas feroz.
Urso é uma palavra russa, mas os russos preferem não chamar este animal
pelo nome, receando convocar o seu lado mais negro. Chamam-lhe medved,
«aquele que gosta de mel».
Pelo menos 120.000 desses medveds vivem num país que faz parte da
Europa e da Ásia. A oeste dos Montes Urais fica a Rússia Europeia. A leste
fica a Sibéria, estendendo-se até ao Mar de Bering e ao Oceano Pacífico.
Mesmo no século XXI, atravessá-la de comboio leva seis dias. O olhar dos
líderes da Rússia tem de abarcar estas distâncias e diferenças e formular as
suas políticas de acordo com elas; há já vários séculos que esse olhar se
projeta em todas as direções, mas concentrando-se, essencialmente, no
Oeste.
Quando os escritores tentam chegar ao coração do urso, usam, muitas
vezes, a famosa observação de Winston Churchill sobre a Rússia, proferida
em 1939: «É um quebra-cabeças embrulhado num mistério dentro de um
enigma», mas poucos completam a frase, que termina assim: «mas talvez
exista uma chave. Essa chave é o interesse nacional russo.» Sete anos mais
tarde, ele usou essa chave para revelar a sua versão da resposta ao quebra-
cabeças, declarando: «Estou convencido de que não há nada que admirem
tanto como a força, e de que não há nada que respeitem menos do que a
fraqueza, especialmente a fraqueza militar.»
Churchill poderia bem estar a falar da atual liderança russa, que, apesar
de se encontrar agora embrulhada no manto da democracia, continua
autoritária na sua natureza, ainda com o interesse nacional no seu âmago.
Quando Vladimir Putin não está a pensar em Deus e em montanhas, está a
pensar em pizza. Em especial, no formato de uma fatia de pizza — um
triângulo.
A ponta dessa fatia é a Polónia. Aí, a vasta Planície do Norte Europeu,
que se estende da França aos Urais (os quais ocupam uma área de 1600km
de sul a norte, formando uma fronteira natural entre a Europa e a Ásia), tem
apenas 500km de largura. Vai do Mar Báltico, a norte, até aos Montes
Cárpatos, a sul. A Planície do Norte Europeu abarca toda a França Ocidental
e Setentrional, a Bélgica, a Holanda, a Alemanha do Norte e quase toda a
Polónia.
Da perspetiva russa, esta é uma espada de dois gumes. A Polónia
representa um corredor relativamente estreito para o qual a Rússia poderia
conduzir as suas forças armadas, se necessário, e assim impedir o avanço de
um inimigo sobre Moscovo. Mas, a partir deste ponto, a fatia começa a
alargar-se; quando se chega à fronteira russa, já tem mais de 3000km de
largura, e é plana até Moscovo e para lá da capital. Mesmo com um grande
exército, seria difícil defender esta linha em força. Porém, a Rússia nunca
foi conquistada a partir daqui, em especial devido à sua profundidade
estratégica. Quando um exército se aproxima de Moscovo, tem já linhas de
abastecimento insustentavelmente longas, um erro cometido por Napoleão
em 1812 e repetido por Hitler em 1941.
Da mesma forma, no Extremo Oriente Russo, é a geografia que protege a
Rússia. É difícil mover um exército da Ásia para a Rússia Asiática; não há
muito para atacar além de neve, e só se consegue avançar até aos Urais.
Depois, fica-se com o controlo de um pedaço gigantesco de território, em
condições difíceis, com longas linhas de abastecimento e o risco sempre
presente de um contra-ataque.
Poderá pensar-se que ninguém pretende invadir a Rússia, mas não é essa a
opinião dos russos, e com razão. Nos últimos 500 anos, foram invadidos
várias vezes a partir do Oeste. Em 1605, os polacos atravessaram a Planície
do Norte Europeu, seguidos pelos suecos liderados por Carlos XII em 1708,
pelos franceses sob a liderança de Napoleão em 1812 e pelos alemães duas
vezes, nas duas guerras mundiais, em 1914 e 1941. Sob outra perspetiva,
partindo da invasão napoleónica de 1812, mas desta vez incluindo a Guerra
da Crimeia de 1853-56 e as duas guerras mundiais até 1945, os russos
combateram, em média, na ou nas imediações da Planície do Norte Europeu,
uma vez em cada 33 anos.
No final da Segunda Guerra Mundial, em 1945, os russos ocuparam o
território conquistado à Alemanha na Europa Central e Oriental, algum do
qual se tornou, então, parte da URSS, que começou a parecer-se cada vez
mais com o antigo Império Russo. Em 1949, a Organização do Tratado do
Atlântico Norte (NATO) foi formada por uma associação de estados
europeus e norte-americanos, para defender a Europa e o Atlântico Norte do
perigo dos ataques soviéticos. Em resposta, a maioria dos estados
comunistas da Europa — sob a liderança russa — formaram o Pacto de
Varsóvia em 1955, um tratado de defesa militar e ajuda mútua. Em princípio,
o Pacto seria de ferro, mas, olhando para trás, no início dos anos 80 já
estava a enferrujar e, depois da queda do muro de Berlim, em 1989, desfez-
se em pó.
O Presidente Putin não é grande fã do último presidente soviético, Mikhail
Gorbachev. Culpa-o de ter minado a segurança russa e referiu-se ao
desmantelamento da antiga União Soviética, ocorrida nos anos 90, como «um
dos grandes desastres geopolíticos do século».
Desde então, os russos têm visto com preocupação a aproximação
constante da NATO, com a adesão de países que a Rússia afirma terem
assumido o compromisso de nunca se lhe juntarem: a República Checa, a
Hungria e a Polónia em 1999, a Bulgária, a Estónia, a Letónia, a Lituânia, a
Roménia e a Eslováquia em 2004 e a Albânia em 2009. A NATO diz que
nunca foram dadas tais garantias.
A Rússia, como todas as grandes potências, pensa em termos dos
próximos 100 anos e sabe que, nesse espaço de tempo, tudo pode acontecer.
Há um século, quem poderia ter adivinhado que as forças armadas
americanas estariam estacionadas a poucas centenas de quilómetros de
Moscovo, na Polónia e nos Estados Bálticos? Em 2004, apenas 15 anos
depois de 1989, todos os antigos estados do Pacto de Varsóvia, exceto a
Rússia, estavam na NATO ou na UE.
A administração de Moscovo tem estado concentrada nesse facto, e na
história russa.
A Rússia, como conceito, data do século IX, tendo tido origem numa
federação pouco unida de tribos eslavas do Leste conhecida como Kievan
Rus, baseada em Kiev e noutras cidades ao longo do Rio Dniepre, onde
agora se situa a Ucrânia. Os mongóis, expandindo o seu império, atacavam
continuamente a região a partir do Sul e do Leste, e acabaram por invadi-la
no século XIII. A jovem Rússia reinstalou-se então a nordeste, dentro e à
volta da cidade de Moscovo. Esta Rússia dos primeiros tempos, conhecida
como o Grande Principado de Moscovo, era indefensável. Não havia
montanhas nem desertos, e os rios eram poucos. O solo era plano em todas
as direções e, do outro lado da estepe, a sul e a leste, estavam os mongóis. O
invasor poderia avançar por onde quisesse, e havia poucas posições
defensivas naturais a ocupar.
Surge então Ivan, o Terrível, o primeiro Czar. Este pôs em prática o
conceito de ataque como defesa — i.e., iniciar a expansão consolidando a
sede e depois alargando-a. Isto levou à grandeza. Ali estava um homem que
confirmava a teoria de que os indivíduos podem mudar a História. Sem o seu
caráter, tanto de crueldade impiedosa como de visão, a história russa teria
sido muito diferente.
A jovem Rússia iniciara uma expansão moderada sob a liderança do avô
de Ivan, Ivan, o Grande, mas essa expansão acelerou-se depois de o Ivan
mais novo chegar ao poder, em 1533. Ganhou terreno para leste, sobre os
Urais, e para sul, até ao Mar Cáspio, e, mais tarde, até ao Mar Negro,
aproveitando assim as montanhas do Cáucaso como barreira parcial entre si
e os mongóis. Foi construída uma base militar na Chechénia para dissuadir
potenciais atacantes, fossem eles a Horda Dourada Mongol, o Império
Otomano ou os persas.
Houve contratempos, mas, no século seguinte, a Rússia avançaria para lá
dos Urais e entraria na Sibéria, acabando por anexar todo o território até à
costa do Pacífico, no extremo oriental.
Os russos adquiriram, assim, uma zona-tampão parcial e uma região
interior — profundidade estratégica — para onde poderiam fugir em caso de
invasão. Ninguém iria atacá-los em força a partir do Mar Ártico, nem
atravessar os Urais para chegar a eles. O seu território estava a transformar-
se no que conhecemos hoje como a Rússia e, para lá chegar a partir do Sul
ou Sudeste, seria necessário ter um enorme exército, uma longuíssima linha
de abastecimento e ultrapassar posições defensivas.
No século XVIII, a Rússia — sob o reinado de Pedro, o Grande, que
fundou o Império Russo em 1721 e, depois, da Imperatriz Catarina, a Grande
— lançou o seu olhar para oeste, expandindo o Império até se tornar uma das
potências da Europa, movida, essencialmente, pelo comércio e o
nacionalismo. Uma Rússia mais segura e poderosa tinha agora capacidade
para ocupar a Ucrânia e alcançar os Montes Cárpatos. Conquistou a maior
parte do que hoje conhecemos como os Estados Bálticos — a Lituânia, a
Letónia e a Estónia. Ficou, assim, protegida de qualquer incursão vinda
desse lado, por terra ou a partir do Mar Báltico.
Formou-se, pois, um largo anel à volta de Moscovo, que era o coração do
país. Começando no Ártico, descia através da região do Báltico, atravessava
a Ucrânia, depois os Cárpatos, o Mar Negro, o Cáucaso e o Mar Cáspio,
voltando a subir pelos Urais, que se estendiam até ao Círculo Polar Ártico.
No século XX, a Rússia comunista criou a União Soviética. Por trás da
retórica que proclamava «trabalhadores de todo o mundo, uni-vos», a URSS
era simplesmente o Império Russo na sua expressão mais vasta. Depois da
Segunda Guerra Mundial, estendeu-se do Pacífico a Berlim, do Ártico às
fronteiras do Afeganistão — uma superpotência económica, política e
militar, que só encontrava rival nos EUA.
A Rússia é o maior país do mundo, com duas vezes a extensão dos EUA
ou da China, cinco vezes a da Índia e 25 vezes a do Reino Unido. Todavia,
tem uma população relativamente pouco numerosa, de cerca de 144 milhões,
inferior à da Nigéria ou do Paquistão. A sua estação de crescimento agrícola
é curta e é-lhe difícil distribuir adequadamente as colheitas pelos 11 fusos
horários governados por Moscovo.
A Rússia, até aos Urais, é uma potência europeia na medida em que faz
fronteira com o território europeu, mas não é uma potência asiática apesar de
fazer fronteira com o Cazaquistão, a Mongólia, a China e a Coreia do Norte,
e de ter fronteiras marítimas com vários países, incluindo o Japão e os EUA.
A ex-candidata a vice-presidente dos EUA, Sarah Palin, foi ridicularizada
quando foi noticiado que dissera: «Conseguimos ver a Rússia aqui do
Alasca», uma frase que a cobertura noticiosa transformou em «Consigo ver a
Rússia da minha casa». O que ela realmente disse foi: «Conseguimos ver a
Rússia aqui do Alasca, de uma ilha no Alasca.» Tinha razão. Existe uma ilha
no Estreito de Bering que está situada a 4km de uma ilha americana no
mesmo estreito, a Ilha Diomedes Menor, e pode ser vista daí a olho nu. É,
efetivamente, possível ver a Rússia da América.
A grande altitude, nos Urais, existe uma cruz que marca o local onde a
Europa acaba e a Ásia começa. Quando o céu está limpo, é um lugar bonito,
com vistas que se alongam, através dos abetos, por quilómetros para leste.
No inverno, está coberto de neve, tal como a Planície Siberiana que se vê
mais abaixo, estendendo-se até à cidade de Yekaterimburgo. Os turistas
gostam de visitar este local para assentarem um pé na Europa e o outro na
Ásia. Se nos lembrarmos de que a cruz está colocada a apenas um quarto do
caminho para dentro do país, esta torna-se um lembrete da enorme dimensão
da Rússia. Podemos já ter percorrido 2500km desde São Petersburgo,
através da Rússia Ocidental, para chegar aos Urais, mas ainda nos faltam
mais 7250km para chegarmos ao Estreito de Bering, e para podermos avistar
a Sra. Palin no Alasca, nos EUA.
Pouco depois da queda da União Soviética, eu estava nos Urais, no ponto
onde a Europa se transforma em Ásia, acompanhado por uma equipa de
filmagem russa. O operador de câmara era um veterano das filmagens
taciturno, estoico e grisalho, filho do operador de câmara do Exército
Vermelho que filmara muitas imagens durante o cerco alemão a
Estalinegrado. Perguntei-lhe:
— Então, é europeu ou asiático?
Ele refletiu durante alguns segundos, e depois respondeu:
— Nem uma coisa nem outra. Sou russo.
Sejam quais forem as suas credenciais europeias, a Rússia não é uma
potência asiática por muitas razões. Apesar de 75 por cento do seu território
se situar na Ásia, apenas 22 por cento da sua população aí vive. A Sibéria
pode ser a «arca do tesouro» da Rússia, contendo a maior parte das suas
riquezas minerais, petróleo e gás, mas é uma terra inclemente, gelada durante
meses sem fim, com vastas florestas (taiga), um solo pobre para a agricultura
e grandes extensões de pântanos. Só duas redes ferroviárias a cruzam de
leste a oeste — a Transiberiana e a Linha Principal Baikal-Amur. Há poucas
rotas de transporte que vão de norte a sul e não será fácil à Rússia estender o
seu poder para sul, sobre a Mongólia moderna ou a China: faltam-lhe a mão
de obra e as linhas de abastecimento.
No futuro a longo prazo, a China poderá vir a controlar partes da Sibéria,
mas isso será uma consequência da taxa de natalidade decrescente da Rússia
e da imigração chinesa para norte. Já hoje, num local tão a oeste como a
pantanosa Planície Siberiana Ocidental, entre os Urais, a oeste, e o Rio
Ienissei, 1600km a leste, veem-se restaurantes chineses na maior parte das
cidades. Vêm aí muitos outros negócios. Os espaços vazios e despovoados
do Extremo Oriente Russo têm ainda mais probabilidades de cair sob o
controlo cultural e, mais tarde, político da China.
Fora do centro da Rússia, muita da população pertencente à Federação
Russa não é etnicamente russa e presta muito pouca vassalagem a Moscovo,
o que resulta num sistema de segurança agressivo, semelhante ao que existia
nos dias soviéticos. Durante esses tempos, a Rússia era, efetivamente, um
poder colonial que governava nações e pessoas que sentiam ter muito pouco
em comum com os seus amos; partes da Federação Russa — por exemplo, a
Chechénia e o Daguestão, no Cáucaso — ainda sentem o mesmo.
No final do século passado, a ultrapassagem dos limites, os gastos
superiores ao dinheiro disponível, a economia de loucos numa terra
impreparada para pessoas e a derrota nas montanhas do Afeganistão levaram
à queda da URSS. O Império Russo retraiu-se, voltando aproximadamente à
forma que tinha antes da era comunista, com as suas fronteiras europeias a
terminarem na Estónia, na Letónia, na Bielorrússia, na Ucrânia, na Geórgia e
no Azerbaijão. O objetivo da invasão soviética do Afeganistão em 1979,
apoiando o governo comunista afegão contra os guerrilheiros muçulmanos
anticomunistas, nunca foi levar as bênçãos do marxismo-leninismo ao povo
afegão. Foi sempre garantir que Moscovo controlava aquele espaço, de
forma a impedir que outros o fizessem.
Um fator crucial foi a invasão do Afeganistão ter fortalecido também o
grande sonho russo de que o seu exército pudesse «lavar as botas nas águas
quentes do Oceano Índico», nas palavras do político russo ultranacionalista
Vladimir Zhirinovsky, conseguindo, assim, aquilo que nunca estivera ao seu
alcance: um porto de águas quentes onde a água não congelasse no inverno,
com acesso livre às principais rotas comerciais do mundo. Os portos do
Ártico, como Murmansk, congelam durante vários meses por ano:
Vladivostok, o maior porto russo no Oceano Pacífico, fica bloqueado pelo
gelo durante cerca de quatro meses e está rodeado pelo Mar do Japão, que é
dominado pelos japoneses. Isto não interrompe apenas o fluxo do comércio;
impede também a frota russa de operar como uma potência global. Além
disso, o transporte marítimo é muito mais barato do que as rotas terrestres ou
aéreas.
No entanto, devido às planícies imponentes de Kandahar e às montanhas
do Indocuche, nunca houve uma invasão bem-sucedida no Afeganistão, o que
lhe valeu a alcunha de «Cemitério de Impérios». A experiência afegã é, por
vezes, chamada «o Vietname da Rússia»; desde então, o sonho de Moscovo
de rotas em mar aberto de águas quentes tem vindo a esfumar-se, e talvez
esteja mais distante agora do que alguma vez tenha estado nos últimos 200
anos.
Esta falta de um porto de águas quentes com acesso direto aos oceanos foi
sempre o calcanhar de Aquiles da Rússia, sendo, para ela, tão
estrategicamente importante como a Planície do Norte Europeu. A Rússia
está em desvantagem geográfica, e só não é uma potência muito mais fraca
graças ao seu petróleo e gás. Não admira que, no seu testamento de 1725,
Pedro, o Grande, tenha aconselhado os seus descendentes a «aproximarem-
se o mais possível de Constantinopla e da Índia. Quem quer que governe aí
será o verdadeiro soberano do mundo. Por este motivo, provoquem guerras
contínuas, não só na Turquia, mas também na Pérsia… penetrem até ao Golfo
Pérsico, avancem até à Índia.»
Quando a União Soviética se desmembrou, dividiu-se em 15 países. A
geografia prevaleceu sobre a ideologia dos soviéticos e reapareceu no mapa
um desenho mais lógico, no qual as montanhas, os rios, os lagos e os mares
delineiam os locais onde as pessoas vivem, onde se separam umas das
outras e, logo, a forma como desenvolvem diferentes línguas e costumes. As
exceções a esta regra são os «stãos», como o Tajiquistão, cujas fronteiras
foram deliberadamente desenhadas por Estaline de modo a enfraquecer cada
estado, garantindo que continha grandes minorias de povos de outros
estados.
Vendo a História numa perspetiva de futuro — como faz a maioria dos
diplomatas e dos estrategas militares —, ainda está tudo em aberto em
relação a cada um dos estados que faziam parte da URSS, e também a alguns
dos que estavam incluídos na aliança militar do Pacto de Varsóvia. Estes
podem dividir-se em três grupos: os neutrais, os pró-grupo ocidental e os
pró-russos.
Os países neutrais — o Uzbequistão, o Azerbaijão e o Turquemenistão —
são os que têm menos motivos para se aliarem com a Rússia ou com o
Ocidente. Isto porque todos eles produzem a sua própria energia e não
dependem de qualquer dos lados para segurança ou comércio.
No campo pró-russo estão o Cazaquistão, o Quirguistão, o Tajiquistão, a
Bielorrússia e a Arménia. As suas economias estão ligadas à Rússia da
mesma forma que muita da economia da Ucrânia Oriental o está (mais uma
razão para a rebelião que aí se verifica). O maior destes países, o
Cazaquistão, inclina-se para a Rússia em termos diplomáticos e a sua grande
minoria populacional russa está bem integrada. Dos cinco, todos menos o
Tajiquistão se juntaram à Rússia na nova União Económica Eurasiática (uma
espécie de UE dos pobres), que celebrou o seu primeiro aniversário em
janeiro de 2016. E os cinco fazem parte de uma aliança militar com a Rússia
chamada Organização do Tratado de Segurança Coletiva. A OTSC tem a
desvantagem de ter um nome que não forma uma palavra e de ser um Bloco
de Varsóvia mais diluído. A Rússia mantém uma presença militar no
Quirguistão, no Tajiquistão e na Arménia.
Depois, há os países pró-Ocidente, que pertenciam ao Pacto de Varsóvia
mas estão agora na NATO e/ou na UE: a Polónia, a Letónia, a Lituânia, a
Estónia, a República Checa, a Bulgária, a Hungria, a Eslováquia, a Albânia
e a Roménia. Não é coincidência que muitos destes estejam entre os estados
que mais sofreram sob a tirania soviética. A estes, acrescem a Geórgia, a
Ucrânia e a Moldávia, que gostariam de aderir às duas organizações mas são
mantidos à distância devido à sua proximidade geográfica com a Rússia e
porque os três têm tropas russas ou milícias pró-russas no seu território. A
entrada de qualquer um destes três países na NATO poderia despoletar uma
guerra.
O acima exposto explica porque, em 2013, quando a batalha política pelo
domínio da Ucrânia aqueceu, Moscovo se concentrou tanto nessa causa.
Enquanto houvesse um governo pró-russo em Kiev, os russos podiam ter a
certeza de que a sua zona-tampão permaneceria intacta e defenderia a
Planície do Norte Europeu. Mesmo uma Ucrânia estudadamente neutral, que
prometesse não aderir à UE nem à NATO e manter o arrendamento pela
Rússia do porto de águas quentes de Sevastópol, na Crimeia, seria aceitável.
O facto de a Ucrânia depender da Rússia para ter energia também tornava a
sua posição cada vez mais neutral aceitável, embora irritante. Mas uma
Ucrânia pró-ocidental, com ambições de aderir às duas grandes alianças do
Ocidente, e que poria em dúvida o acesso da Rússia ao seu porto no Mar
Negro? Uma Ucrânia que, um dia, poderia mesmo alojar uma base naval da
NATO? Isso não seria admissível.
O presidente da Ucrânia, Viktor Yanukovych, tentou jogar em ambos os
campos. Tentou agradar ao Ocidente, mas prestou homenagem a Moscovo —
por isso foi tolerado por Putin. Quando chegou perto de assinar um acordo
comercial gigantesco com a UE, o qual poderia levar à adesão, Putin
começou a reagir.
Para a elite russa da política internacional, a adesão à UE não é mais do
que o primeiro passo para a adesão à NATO e, para a Rússia, a adesão da
Ucrânia à NATO é uma linha vermelha. Putin pressionou Yanukovych, fez-
lhe uma proposta que ele optou por não recusar e o presidente ucraniano
retirou-se do acordo com a UE e fez um pacto com Moscovo, dando assim
origem aos protestos que acabariam por derrubá-lo.
Os alemães e os americanos tinham apoiado os partidos da oposição, com
Berlim, em especial, a ver no antigo campeão mundial de boxe e agora
político Vitaly Klitschko o seu homem. O Ocidente estava a puxar a Ucrânia
para si, tanto intelectual como economicamente, enquanto ajudava os
ucranianos pró-Ocidente a empurrar o país na mesma direção, dando
formação e financiamento a alguns dos grupos democráticos na oposição.
Os tumultos rebentaram nas ruas de Kiev e as manifestações cresceram em
todo o país. Na parte oriental, multidões saíram à rua para apoiar o
presidente, enquanto, na parte ocidental do país, em cidades como Lviv (que
já pertenceu à Polónia), tentavam livrar-se de qualquer influência pró-russa.
Em meados de fevereiro de 2014, Lviv e outras áreas urbanas já não eram
controladas pelo governo. Depois, a 22 de fevereiro, após dezenas de mortes
em Kiev, o presidente, temendo pela vida, fugiu. Fações antirrussas, algumas
das quais eram pró-ocidentais e outras pró-fascistas, assumiram o controlo
do governo. A partir desse momento, a sorte estava lançada. O Presidente
Putin não tinha grande alternativa — precisava de anexar a Crimeia, que
continha, não só muitos ucranianos de língua russa, mas, acima de tudo, o
porto de Sevastópol.
Este imperativo geográfico, assim como todo o movimento da NATO para
leste, era precisamente o que Putin tinha em mente quando, num discurso
sobre anexação, disse: «A Rússia viu-se numa posição da qual não podia
recuar. Se se comprimir a nascente até ao limite, ela brotará com grande
vigor. Devemos sempre lembrar-nos disto.»
Sevastópol é o único verdadeiro porto importante de águas quentes da
Rússia. Contudo, o acesso do Mar Negro para o Mediterrâneo está restrito
pela Convenção de Montreux de 1936, que concedeu à Turquia — agora
membro da NATO — o controlo sobre o Bósforo. A marinha naval russa
transita pelo estreito, mas em números limitados, e tal não seria permitido
em caso de conflito. Mesmo depois de atravessarem o Bósforo, os russos
precisam de passar pelo Mar Egeu para chegarem ao Mediterrâneo, e ainda
teriam de cruzar o Estreito de Gibraltar para terem acesso ao Oceano
Atlântico, ou de obter permissão para descer o Canal de Suez para
alcançarem o Oceano Índico.
Os russos têm uma pequena presença naval em Tartus, na costa
mediterrânica da Síria (o que explica parcialmente o seu apoio ao governo
sírio quando a guerra aí estalou, em 2011), mas trata-se de uma base limitada
de abastecimento e reabastecimento, e não de uma força importante.
Outro problema estratégico é que, em caso de guerra, a marinha russa
também não poderá sair do Mar Báltico, devido ao Estreito de Skagerrak,
que faz a ligação com o Mar do Norte. O apertado estreito é controlado pela
Dinamarca e pela Noruega, membros da NATO; e, mesmo que os navios
conseguissem atravessá-lo, a rota para o Atlântico passa pelo que é
conhecido como a falha GIUK (Gronelândia / Islândia / Reino Unido) no
Mar do Norte — da qual falaremos mais detalhadamente quando abordarmos
a Europa Ocidental.
Tendo anexado a Crimeia, os russos não perdem tempo. Estão a construir
a frota do Mar Negro em Sevastópol e um novo porto naval na cidade russa
de Novorossisk, que, embora não possua um porto natural profundo,
conferirá maior capacidade à Rússia. Estão a ser encomendados oitenta
novos navios, assim como vários submarinos. A frota continuará a não ser
suficiente para sair do Mar Negro em tempo de guerra, mas a sua capacidade
está a aumentar.
Para contrabalançar esta tendência, podemos esperar ver, na próxima
década, os EUA encorajarem a Roménia, seu parceiro na NATO, a ampliar a
sua frota no Mar Negro, enquanto confiam na Turquia para manter o Bósforo
sob controlo.
A Crimeia fez parte da Rússia durante dois séculos antes de ser
transferida para a República Soviética da Ucrânia, em 1954, pelo Presidente
Khrushchev, numa época em que se acreditava que o homem soviético
viveria para sempre e seria, pois, eternamente controlado por Moscovo.
Quando a Ucrânia deixou de ser soviética, ou mesmo pró-russa, Putin soube
que a situação tinha de mudar. Os diplomatas ocidentais perceberam isso?
Se não perceberam, desconheciam a Regra A, Lição 1 da «Diplomacia para
Principiantes»: quando confrontada com algo visto como uma ameaça
existencial, uma grande potência usará a força. Se perceberam, devem ter
considerado a anexação da Crimeia por Putin um preço razoável a pagar
pela aproximação da Ucrânia à Europa moderna e à esfera de influência do
Ocidente.
Uma visão generosa é a de que os EUA e os europeus estavam ansiosos
por receber a Ucrânia no mundo democrático como membro pleno das suas
instituições liberais e do Estado de direito, e que não havia muito que
Moscovo pudesse fazer em relação a isso. Esta visão não tem em conta o
facto de que a geopolítica ainda existe no século XXI, nem o de que a Rússia
não se rege pelo Estado de direito.
Radiante com a vitória, o novo governo interino da Ucrânia fez, de
imediato, algumas afirmações insensatas, uma das quais foi a intenção de
abolir o russo como segunda língua oficial em várias regiões. Como essas
regiões eram as que tinham mais falantes da língua russa e partidários pró-
russos, e incluíam a Crimeia, era inevitável que esta atitude desencadeasse
uma reação adversa. E forneceu, ainda, a Putin a propaganda de que este
precisava para argumentar que os russos étnicos residentes na Ucrânia
tinham de ser protegidos.
O Kremlin tem uma lei que obriga o governo a proteger os «russos
étnicos». A definição deste termo é, em si mesma, difícil de estabelecer,
porque o conceito foi definido conforme a vontade da Rússia em cada uma
das potenciais crises prestes a estalar na antiga União Soviética. Quando
convém ao Kremlin, os russos étnicos são simplesmente definidos como
pessoas que falam russo como primeira língua. Noutros momentos, é usada a
nova lei da nacionalidade, que dispõe que as pessoas cujos avós viveram na
Rússia e que têm o russo como língua materna podem adquirir a
nacionalidade russa. Assim, quando as crises eclodirem, as pessoas inclinar-
se-ão a aceitar passaportes russos para alargarem as suas possibilidades, o
que favorecerá a Rússia, ao entrar num qualquer conflito.
Aproximadamente 60 por cento da população da Crimeia é «etnicamente
russa», pelo que o Kremlin não teve dificuldade em fazer valer a sua
posição. Putin apoiou as manifestações anti-Kiev e incitou tantos tumultos
que acabou por «ter» de ir buscar as suas tropas aos confins da base naval e
de as mandar para a rua, para proteger as pessoas. As forças armadas
ucranianas na zona não estavam preparadas para enfrentar as pessoas e o
exército russo e apressaram-se a recuar. A Crimeia fazia, novamente, na
prática, parte da Rússia.
Pode argumentar-se que o Presidente Putin tinha uma alternativa: podia ter
respeitado a integridade territorial da Ucrânia. Mas, considerando que
estava a lidar com a geografia que Deus atribuiu à Rússia, isso nunca foi,
realmente, uma opção. Ele não seria o homem que «perdera a Crimeia» e,
com ela, o único porto de águas quentes a que o seu país tinha acesso.
Ninguém veio em defesa da Ucrânia quando esta perdeu um território de
dimensão equivalente à da Bélgica, ou do estado de Maryland, nos EUA. A
Ucrânia e os seus vizinhos estavam cientes de uma verdade geográfica: a de
que, a menos que estejam na NATO, Moscovo está perto e Washington D.C.
está longe. Para a Rússia, esta era uma questão existencial: a Rússia não
podia suportar a perda da Crimeia, mas o Ocidente podia.
A UE impôs sanções limitadas — limitadas porque vários países
europeus, entre os quais a Alemanha, dependem da energia russa para
aquecer as suas casas no inverno. As condutas estão orientadas de leste para
oeste, e o Kremlin pode abrir e fechar as torneiras quando lhe aprouver.
Várias vezes, nos anos vindouros, se recorrerá à energia como poder
político, e o conceito de «russos étnicos» será usado para justificar as
atitudes da Rússia, quaisquer que estas sejam.
Num discurso feito em 2014, o Presidente Putin referiu-se brevemente à
«Novorossiya», ou «Nova Rússia». Os observadores do Kremlin respiraram
fundo. Ele fora desenterrar o título geográfico dado ao que é hoje a Ucrânia
Meridional e Oriental, que a Rússia conquistara ao Império Otomano durante
o reinado de Catarina, a Grande, em finais do século XVIII. Catarina fixou
russos nessas regiões e exigiu que o russo fosse, aí, a primeira língua. A
«Novorossiya» só foi cedida à recém-formada República Socialista
Soviética da Ucrânia em 1922. «Porquê?», perguntou Putin, retoricamente.
«Deixemos que Deus os julgue.» Nesse discurso, enumerou as regiões
ucranianas de Carcóvia, Lugansk, Donetsk, Kherson, Mykolaiv e Odessa
antes de dizer: «A Rússia perdeu estes territórios por diversas razões, mas
as pessoas ficaram lá.»
Há vários milhões de russos étnicos que ainda permanecem dentro do que
foi a URSS, mas fora da Rússia.
Não admira que, depois de ter tomado posse da Crimeia, a Rússia tenha
encorajado os levantamentos de pró-russos no interior industrial da Ucrânia
Oriental, em Lugansk e Donetsk. A Rússia não teria dificuldade em levar as
suas tropas até à margem oriental do Rio Dniepre, em Kiev. Mas seria uma
dor de cabeça escusada. Foi muito mais fácil, e barato, encorajar tumultos
nas fronteiras orientais da Ucrânia e recordar a Kiev quem controla o
abastecimento de energia, garantindo assim que a paixoneta de Kiev pelo
sedutor Ocidente não se transformaria num casamento consumado nos
aposentos da UE ou da NATO.
O apoio encoberto aos levantamentos na Ucrânia Oriental foi também
logisticamente simples e teve a vantagem adicional de poder ser negado nos
palcos internacionais. Mentir descaradamente na grande câmara do Conselho
de Segurança das Nações Unidas é simples se os opositores não tiverem
provas concretas das nossas ações e, acima de tudo, se não quiserem obter
provas concretas, não lhes vá ser exigido que tomem uma atitude. Muitos
políticos ocidentais suspiraram de alívio e murmuraram: «Graças a Deus
que a Ucrânia não faz parte da NATO, ou seríamos obrigados a agir.»
A anexação da Crimeia mostrou como a Rússia está preparada para
defender militarmente o que vê como os seus interesses naquilo a que chama
o «exterior próximo». Fez uma aposta racional em como os poderes
exteriores não interviriam, e a Crimeia era um projeto «realizável». Fica
perto da Rússia, pode ser abastecida através do Mar Negro e do Mar de
Azov, e pode contar com o apoio interno de vastos setores da população da
península.
A Rússia ainda não encerrou o assunto da Ucrânia, nem de outros locais.
A menos que se sinta ameaçada, é pouco provável que a Rússia envie as
suas tropas para os Estados Bálticos, ou para qualquer ponto mais longínquo
do que aquele onde já estão, na Geórgia; mas demonstrará a sua força na
Geórgia, e, nestes tempos voláteis, a ação militar não pode ser excluída.
Contudo, assim como a atuação da Rússia na sua guerra com a Geórgia,
em 2008, foi um aviso à NATO para não se aproximar mais, a mensagem da
NATO à Rússia no verão de 2014 foi também: «Nem mais um passo para
oeste.» Uma mão-cheia de aviões de guerra da NATO sobrevoaram os
Estados Bálticos, foram anunciados exercícios militares na Polónia e os
americanos começaram a planear «pré-posicionar» material de guerra
suplementar o mais perto possível da Rússia. Ao mesmo tempo, houve uma
chuva de visitas diplomáticas de ministros da Defesa e dos Negócios
Estrangeiros aos Estados Bálticos, à Geórgia e à Moldávia, para lhes
assegurarem o seu apoio.
Alguns comentadores troçaram desta reação, afirmando que seis jatos
Eurofighter Typhoon da RAF a sobrevoar o espaço aéreo báltico
dificilmente desencorajariam as hordas russas. Mas tratou-se de um sinal
diplomático, e foi um sinal bem claro — a NATO está preparada para
combater. E teria mesmo de o fazer, pois, se deixasse de reagir a um ataque a
um estado-membro, tornar-se-ia instantaneamente obsoleta. Os americanos
— que já estão a aproximar-se de uma nova política externa, na qual se
sentem menos condicionados pelas estruturas existentes e estão preparados
para construir outras novas, à medida que se apercebam da necessidade de o
fazer — não concordam minimamente com o empenho dos países europeus
nos gastos com a defesa.
No caso dos três Estados Bálticos, a posição da NATO é clara. Como são
todos membros da aliança, uma agressão armada da Rússia contra qualquer
deles desencadearia a aplicação do artigo 5 dos estatutos da NATO, que
dispõe: «Um ataque armado contra um ou mais [estados-membros da
NATO], na Europa ou na América do Norte, será considerado um ataque
contra todos eles», e prossegue afirmando que a NATO irá em socorro do
estado atacado, se necessário. O artigo 5 foi invocado depois dos ataques
terroristas nos EUA, a 11 de setembro de 2001, preparando o caminho para
o envolvimento da NATO no Afeganistão.
O Presidente Putin é um estudioso de História. Parece ter aprendido as
lições dos anos soviéticos, em que a Rússia se expandiu demasiado, tendo
depois sido obrigada a retrair-se. Um ataque declarado aos Estados Bálticos
seria também uma expansão excessiva e é improvável, especialmente se a
NATO e os seus mandantes políticos se assegurarem de que Putin
compreendeu os seus sinais. Mas, no início de 2016, o presidente russo
mandou também um sinal. Alterou a redação do documento geral de
estratégia militar da Rússia e foi mais longe do que com o documento de
estratégia naval de 2015: pela primeira vez, os EUA foram designados uma
«ameaça externa» para a Rússia.
A Rússia não precisa de enviar uma divisão armada para a Letónia, a
Lituânia ou a Estónia para influenciar os acontecimentos nesses países, mas,
se algum dia o fizer, justificará essa atitude alegando que as vastas
comunidades russas aí existentes estão a ser discriminadas. Tanto na Estónia
como na Letónia, aproximadamente uma em cada quatro pessoas é
etnicamente russa e, na Lituânia, essa percentagem é de 5,8 por cento. Na
Estónia, os falantes da língua russa dizem-se sub-representados no governo e
milhares deles não têm qualquer tipo de nacionalidade. Isto não significa que
queiram fazer parte da Rússia, mas são uma das formas de pressão que a
Rússia pode usar para influenciar o curso dos acontecimentos.
As populações de língua russa no Báltico podem ser incitadas a dificultar
as coisas. Existem partidos políticos totalmente formados que já representam
muitas delas. A Rússia também controla o aquecimento central nas casas dos
povos bálticos. Pode fixar o preço que as pessoas pagam pelo aquecimento
todos os meses e, se assim o quiser, pode, simplesmente, desligá-lo.
A Rússia continuará a defender os seus interesses nos Estados Bálticos.
Estes são um dos elos mais fracos da sua defesa desde o colapso da URSS,
mais uma brecha no muro que a Rússia gostaria de ver formar um arco desde
o Mar Báltico, para sul e depois para sudeste, até se ir ligar aos Urais.
Isto leva-nos a mais uma falha no muro e a mais uma região que Moscovo
vê como um potencial estado-tampão. Sob o olhar firme do Kremlin
encontra-se a Moldávia.
A Moldávia coloca um problema diferente para todos os intervenientes.
Um ataque da Rússia a esse país implicaria atravessar a Ucrânia, cruzar o
Rio Dniepre e depois outra fronteira soberana, para entrar na Moldávia.
Poderia ser feito — com uma significativa perda de vidas e usando Odessa
como escala —, mas não seria possível negá-lo. Embora pudesse não levar a
uma guerra com a NATO (a Moldávia não é membro), conduziria a sanções
contra Moscovo a um nível até agora nunca visto, e confirmaria o que este
escritor acredita estar já a verificar-se — que o arrefecimento das relações
entre a Rússia e o Ocidente constitui já a Nova Guerra Fria.
Porque quereriam os russos conquistar a Moldávia? Porque, enquanto os
Montes Cárpatos se curvam para sudoeste, transformando-se nos Alpes
Transilvanos, a sudeste encontra-se uma planície que se estende até ao Mar
Negro. Essa planície pode também ser vista como um corredor plano de
acesso à Rússia; e, tal como os russos gostariam de controlar a Planície do
Norte Europeu no seu ponto mais estreito, na Polónia, também lhes agradaria
controlar a planície junto ao Mar Negro — também conhecida como
Moldávia —, na região anteriormente conhecida como Bessarábia.
Vários dos países que pertenceram à União Soviética aspiram a ter laços de maior proximidade
com a Europa, mas, dado que algumas regiões, como a Transnístria, na Moldávia, continuam
fortemente pró-russas, existe potencial para futuros conflitos.

Depois da Guerra da Crimeia (travada entre a Rússia e os aliados do


Ocidente Europeu para proteger a Turquia Otomana da Rússia), o Tratado de
Paris de 1856 devolveu algumas partes da Bessarábia à Moldávia, cortando
assim o acesso da Rússia ao Rio Danúbio. A Rússia demorou quase um
século a recuperar esse acesso, mas, com o colapso da URSS, teve de
retroceder, uma vez mais, para leste.
Porém, na realidade, os russos já controlam uma parte da Moldávia —
uma região chamada Transnístria, a zona da Moldávia a leste do Rio
Dniestre que faz fronteira com a Ucrânia. Estaline, na sua sabedoria, instalou
aí numerosos russos, tal como fizera na Crimeia depois de ter deportado
grande parte da população tártara.
A Transnístria moderna é agora, pelo menos, 50 por cento de língua russa
ou ucraniana, e essa parte da população é pró-russa. Quando a Moldávia se
tornou independente, em 1991, a população de língua russa rebelou-se e,
depois de um breve período de luta, declarou a secessão da República da
Transnístria. O facto de a Rússia ter tropas aí estacionadas ajudou, e ainda
hoje aí mantém uma força de 2000 soldados.
É improvável que haja um avanço militar russo sobre a Moldávia, mas o
Kremlin pode usar e usa efetivamente o seu poder económico e a situação
volátil na Transnístria para tentar convencer o governo moldavo a não aderir
à UE ou à NATO.
A Moldávia depende da Rússia para satisfazer as suas necessidades
energéticas, as suas colheitas são exportadas para leste e as importações
pela Rússia do excelente vinho moldavo tendem a aumentar ou diminuir
conforme o estado das relações entre os dois países.
Do outro lado do Mar Negro, em frente da Moldávia, fica outra nação
produtora de vinho: a Geórgia. Controlá-la não é uma das prioridades da
Rússia, por duas razões. Em primeiro lugar, a guerra russo-georgiana de
2008 deixou partes do país ocupadas por tropas russas, que agora controlam
totalmente as regiões da Abecásia e da Ossétia do Sul. Em segundo lugar,
fica a sul das montanhas do Cáucaso e a Rússia também tem tropas
estacionadas na vizinha Arménia. Moscovo gostaria de acrescentar mais uma
camada à sua zona-tampão, mas pode viver sem ocupar o resto da Geórgia.
Esta situação poderia, eventualmente, mudar se a Geórgia parecesse estar
prestes a tornar-se membro da NATO. É precisamente por isso que tem sido,
até agora, rejeitada pelos governos da NATO, desejosos de evitar o conflito
que se seguiria com a Rússia.
A maioria da população da Geórgia gostaria de ter laços de maior
proximidade com os países da UE, mas o choque da guerra de 2008, em que
o Presidente Mikheil Saakashvili pensou, ingenuamente, que os americanos
viriam em seu auxílio depois de ter provocado os russos, levou muitos a
concluir que será melhor jogar pelo seguro. Em 2013, elegeram um governo
e um presidente, Giorgi Margvelashvili, muito mais conciliadores com
Moscovo. Tal como na Ucrânia, as pessoas interiorizam instintivamente o
truísmo unanimemente reconhecido naquela parte do mundo: que Washington
está longe e Moscovo está perto.
Neste momento, as armas mais poderosas da Rússia, excetuando os
mísseis nucleares, não são o exército e a força aérea russos, mas o seu gás e
petróleo. A Rússia só fica atrás dos EUA enquanto maior fornecedor de gás
natural do mundo, e claro que usa esse poder em seu proveito. Quanto
melhores forem as relações de um país com a Rússia, menos esse país paga
pela energia; por exemplo, a Finlândia obtém melhores preços do que os
Estados Bálticos. Esta política tem sido usada com tanta agressividade, e a
Rússia domina de tal forma as necessidades energéticas da Europa, que se
preparam diligências para atenuar o seu impacto. Muitos países na Europa
estão a tentar libertar-se da sua dependência da energia russa, não através de
condutas alternativas a partir de países menos agressivos, mas construindo
portos.
Em média, mais de 25 por cento do gás e do petróleo europeus vêm da
Rússia; mas, muitas vezes, quanto mais perto um país está de Moscovo,
maior é a sua dependência. Isto, por seu turno, reduz as opções de política
externa desse país. A Letónia, a Eslováquia, a Finlândia e a Estónia são 100
por cento dependentes do gás russo, a República Checa, a Bulgária e a
Lituânia são 80 por cento dependentes e a Grécia, a Áustria e a Hungria têm
uma dependência de 60 por cento. Cerca de metade do gás consumido na
Alemanha vem da Rússia, o que, juntamente com acordos comerciais
abrangentes, é, em parte, a razão por que os políticos alemães tendem a ser
mais lentos nas críticas ao Kremlin pelos seus comportamentos agressivos
do que países como a Grã-Bretanha, que não só tem 13 por cento de
dependência, como possui, também, a sua própria indústria de produção de
gás, incluindo reservas capazes de garantir até nove meses de abastecimento.
Existem várias rotas principais de condutas orientadas de leste para oeste,
a partir da Rússia, umas para petróleo e outras para gás. As mais
importantes são os gasodutos.
A norte, através do Mar Báltico, situa-se a rota do Nord Stream, que
desemboca diretamente na Alemanha. Abaixo dela, atravessando a
Bielorrússia, fica o gasoduto Yamal, que alimenta a Polónia e a Alemanha. A
sul, encontra-se o Blue Stream, que leva gás à Turquia através do Mar
Negro. Até ao início de 2015, existia um projeto designado South Stream,
que deveria usar a mesma rota mas bifurcar-se para alcançar a Hungria, a
Áustria, a Sérvia, a Bulgária e a Itália. O South Stream era a tentativa da
Rússia de se assegurar de que, mesmo durante os conflitos com a Ucrânia,
teria uma rota importante para os grandes mercados da Europa Ocidental e
dos Balcãs. Vários países da UE fizeram pressão sobre os vizinhos para que
rejeitassem o projeto, e a Bulgária inviabilizou-o efetivamente ao declarar
que os gasodutos não passariam pelo seu território. O Presidente Putin
reagiu apresentando uma nova proposta à Turquia, por vezes conhecida
como o Turk Stream.
Os projetos russos do South Stream e do Turk Stream para contornar a
Ucrânia seguiram-se às disputas de preços entre os dois estados em 2005-
10, que, em vários momentos, cortaram o abastecimento de gás a 18 países.
As nações europeias que viriam a beneficiar do South Stream foram bastante
mais contidas nas suas críticas à Rússia durante a crise da Crimeia de 2014.
Surgem então os americanos, com uma estratégia vantajosa para os EUA e
a Europa. Apercebendo-se de que a Europa precisa de gás, e não querendo
dar parte de fracos perante a política externa russa, os americanos creem ter
a solução. O enorme crescimento súbito na produção de gás de xisto nos
EUA permite-lhes, não só serem autossuficientes em termos de energia, mas
também vender o excedente a um dos maiores consumidores de energia
mundiais — a Europa.
Para tanto, o gás tem de ser liquefeito e expedido por via marítima,
através do Atlântico. Isto, por seu turno, requer a construção de terminais de
gás natural liquefeito (GNL) e portos ao longo das linhas costeiras
europeias, para receberem a carga e voltarem a transformá-la em gás.
Washington já está a aprovar licenças para instalações de exportação, e a
Europa está a iniciar um projeto de longo prazo para a construção de mais
terminais de GNL; a Polónia e a Lituânia estão a construir terminais de GNL;
outros países, como a República Checa, querem construir gasodutos com
ligação a esses terminais, sabendo que poderão, então, beneficiar, não só do
gás liquefeito americano, mas também de fornecimentos do Norte de África e
do Médio Oriente. O Kremlin deixaria, assim, de poder fechar as torneiras.
Os russos, vendo o perigo a longo prazo, fazem notar que o gás canalizado
é mais barato do que o GNL e o Presidente Putin, com uma expressão de
«onde é que eu errei?» no rosto, diz que a Europa já tem, no seu país, uma
fonte fiável e mais barata de gás. É pouco provável que o GNL venha a
substituir totalmente o gás russo, mas fortalecerá a débil posição da Europa,
tanto na negociação dos preços como na política externa. Com vista a
preparar-se para uma possível redução de receitas, a Rússia está a planear
gasodutos dirigidos para sudeste e espera aumentar as vendas à China.
Esta é uma batalha económica baseada na geografia, e um dos exemplos
modernos de utilização da tecnologia para tentar ultrapassar as limitações
geográficas do passado.
Muito se falou dos prejuízos económicos sofridos pela Rússia em 2014,
quando o preço do petróleo caiu abaixo dos 50 dólares por barril, tendo
descido para valores ainda mais baixos em 2015. O orçamento de Moscovo
para 2016 e a previsão de despesas para 2017 basearam-se em preços de 50
dólares e, embora a Rússia tenha começado a extrair quantidades recorde de
petróleo, sabe que não conseguirá equilibrar as contas. A Rússia perde cerca
de 2 mil milhões de dólares em receitas por cada descida de um dólar no
preço do petróleo, e a economia russa foi, previsivelmente, atingida,
causando grandes dificuldades a muitos cidadãos comuns; ainda assim, as
previsões do colapso do estado foram muito exageradas. A Rússia terá
dificuldades em financiar o enorme aumento nas suas despesas militares,
mas, apesar dessas dificuldades, o Banco Mundial prevê que, na segunda
metade desta década, a sua economia cresça ligeiramente. Se as grandes
quantidades de petróleo recentemente descobertas no Mar de Kara, no
Ártico, puderem ser trazidas para terra, esse crescimento será mais
saudável.
Fora da sua zona central, a Rússia exerce uma influência política global e
usa essa influência, nomeadamente na América Latina, onde se alia a
qualquer país da América do Sul que tenha uma relação pouco amigável com
os EUA, por exemplo com a Venezuela. Tenta controlar os movimentos da
América no Médio Oriente, ou, pelo menos, garantir que tem uma palavra a
dizer, está a investir fortemente nas suas forças militares no Ártico e tem
revelado um interesse permanente na Gronelândia, mantendo aí as suas
reivindicações territoriais. Desde a queda do comunismo, tem-se
concentrado menos em África, mas conserva aí a influência possível, embora
tenha vindo a perdê-la para a China.
Os dois gigantes podem ser concorrentes, mas também cooperam em
vários níveis. Moscovo, sabendo que os europeus têm a ambição de, a longo
prazo, se libertarem da dependência da energia russa, vê a China como um
cliente alternativo. A China está em vantagem naquilo que é um mercado
dominado pela procura, mas as linhas de comunicação são cordiais e bem
usadas. A partir de 2018, a Rússia fornecerá à China 38 mil milhões de
metros cúbicos de gás por ano, num contrato de 400 mil milhões de dólares a
30 anos.
Os tempos em que a Rússia era considerada uma ameaça militar para a
China já lá vão, e a ideia das tropas russas a ocuparem a Manchúria, como
fizeram em 1945, é hoje inconcebível, embora estes países se mantenham
sob vigilância mútua em locais onde os dois gostariam de ser o poder
dominante, como o Cazaquistão. Porém, já não estão a competir pela
liderança ideológica do comunismo global, o que libertou ambos os lados
para cooperarem a nível militar, sempre que os seus interesses coincidem.
Um estranho exemplo parece ser o que sucedeu em maio de 2015, quando
realizaram em conjunto exercícios militares de fogo vivo no Mediterrâneo.
A incursão de Pequim num mar a 14.500km de casa fazia parte da sua
tentativa de estender o seu alcance naval a todo o globo, enquanto Moscovo
tem interesse nos campos de gás descobertos no Mediterrâneo, está a tentar
aproximar-se da Grécia e quer proteger o seu pequeno porto naval na costa
síria. Além disso, os dois lados têm todo o gosto em incomodar os poderes
da NATO na região, incluindo a 6ª Frota americana baseada em Nápoles.
No plano interno, a Rússia está a enfrentar vários desafios, de entre os
quais o demográfico não pode ser menosprezado. O acentuado declínio no
crescimento populacional pode ter sido contido, mas ainda constitui um
problema. A esperança de vida média para um homem russo está abaixo dos
65 anos, o que coloca a Rússia na metade inferior dos 193 estados-membros
das Nações Unidas a nível mundial, e existem agora apenas 144 milhões de
russos (excluindo a Crimeia).
Desde o Grande Principado de Moscovo, passando por Pedro, o Grande,
Estaline e, agora, Putin, cada líder russo tem sido confrontado com os
mesmos problemas. Não importa se a ideologia de quem detém o poder é
czarista, comunista ou aproximada do capitalismo — os portos continuam a
gelar e a Planície do Norte Europeu continua plana.
Se lhe retirarmos as linhas que delimitam os estados-nação, o mapa que
Ivan, o Terrível, teve perante si é o mesmo com que Vladimir Putin é, hoje,
confrontado.
CAPÍTULO 2

CHINA

«A China é uma civilização a fazer de conta que é uma nação.»


Lucian Pye, cientista político
MAPA CHINA

E
m outubro de 2006, um grupo naval de superporta-aviões dos
Estados Unidos, liderado pelo USS Kitty Hawk, de 300 metros,
navegava confiantemente no Mar da China Oriental, entre o Sul do
Japão e Taiwan, zelando pelos interesses de todos, quando, sem aviso, um
submarino da marinha chinesa emergiu no meio do grupo.
Um porta-aviões americano daquela dimensão circula rodeado por cerca
de 12 outros navios de guerra, com cobertura aérea e de submarinos. A
embarcação chinesa, um submarino de ataque de classe Song, pode ser muito
silencioso quando alimentado a energia elétrica, mas, ainda assim, foi como
se a administração da Pepsi-Cola aparecesse, de repente, numa reunião da
direção da Coca-Cola, depois de ter estado à escuta, debaixo da mesa,
durante meia hora.
Os americanos ficaram espantados e zangados em igual medida.
Espantados porque não faziam ideia de que um submarino chinês pudesse
aproximar-se tanto sem ser notado e zangados porque não se tinham
apercebido da sua chegada e porque viram aquela atitude como
provocadora, especialmente considerando que o submarino tinha o próprio
Kitty Hawk ao alcance de torpedo. Protestaram, talvez demasiado, e os
chineses disseram: «Oh! Que coincidência, termos emergido no meio do
vosso grupo de combate, que estava ao largo da nossa costa, não fazíamos
ideia.»
Isto é a diplomacia de marinha de guerra invertida do século XXI;
enquanto os ingleses costumavam colocar um navio de guerra ao largo da
costa de uma qualquer potência menor para marcar posição, os chineses
colocaram-se à vista, ao largo da sua própria costa, mostrando uma
mensagem clara: «Agora, somos uma potência marítima, este é o nosso
tempo, e este é o nosso mar.» Demorou 4000 anos, mas os chineses estão a
chegar a um porto — e a uma rota de navegação — perto de si.
Até agora, a China nunca fora uma potência naval — com a sua enorme
massa territorial, múltiplas fronteiras e curtas rotas marítimas a ligá-la aos
parceiros comerciais, não tinha necessidade de o ser, e raramente mostrava
uma vocação de expansão ideológica. Há muito que os seus mercadores
cruzam os mares para comercializar produtos, mas a sua marinha não
procurava territórios para lá da sua região, e as dificuldades de patrulha das
grandes rotas marítimas dos Oceanos Pacífico, Atlântico e Índico faziam
com que o esforço não compensasse. Foi sempre uma potência terrestre, com
um vasto território e uma população numerosa — hoje, cerca de 1,4 mil
milhões.
O conceito da China como entidade habitada teve origem há quase 4000
anos. A terra natal da civilização chinesa foi a região conhecida como
Planície do Norte da China, a que os chineses se referem como Planície
Central. Trata-se de uma vasta extensão de terreno de baixa altitude com
cerca de 400.000km2, situada abaixo da Mongólia Interior, a sul da
Manchúria, sobre e à volta da Bacia do Rio Amarelo e para lá do Rio
Yangtsé, ambos os quais correm de leste para oeste. Hoje, é uma das áreas
mais densamente populadas do mundo.
A bacia do Rio Amarelo está sujeita a cheias frequentes e devastadoras, o
que valeu a esse rio a alcunha pouco invejável de «Flagelo dos Filhos de
Han». A industrialização da região começou a sério nos anos 50, e tem vindo
a intensificar-se rapidamente nas últimas três décadas. O rio, terrivelmente
poluído, está agora tão atulhado de lixo tóxico que, por vezes, tem
dificuldade até em chegar ao mar. Ainda assim, o Rio Amarelo é, para a
China, o que o Nilo é para o Egito — o berço da sua civilização, onde o seu
povo aprendeu as artes do cultivo, do fabrico de papel e de pólvora.
A norte desta proto-China, estão as terras inclementes do Deserto de
Gobi, no que é hoje a Mongólia. A oeste, a terra ganha gradualmente altitude
até se transformar no Planalto Tibetano, que se estende até aos Himalaias. A
sudeste e a sul fica o mar.
O coração da terra, como a Planície do Norte da China é conhecida, era e
é uma planície vasta e fértil com dois rios principais e um clima que permite
a colheita de arroz e de rebentos de soja duas vezes por estação (dupla
colheita), o que impulsionou um rápido crescimento da população. Em 1500
a.C., neste coração da terra, as centenas de pequenas cidades-estado, muitas
em guerra entre si, deram origem à primeira versão de um estado chinês — a
dinastia Shang. Foi aqui que emergiu o que ficou conhecido como o povo
Han, protegendo o coração da terra e criando uma zona-tampão à sua volta.
Os Han constituem agora 90 por cento da população da China e dominam
a política e os negócios chineses. Diferenciam-se através do mandarim, do
cantonês e de muitas outras línguas regionais, mas estão unidos pela etnia e,
a nível político, pelo impulso geopolítico de proteção do coração da terra. O
mandarim, que teve origem na parte setentrional da região, é, de longe, a
língua dominante e o meio de expressão do governo, da televisão estatal e da
educação. O mandarim é semelhante ao cantonês e a muitas outras línguas
quando escrito, mas diferente quando falado.
O coração da terra é o centro de gravidade político, cultural, demográfico
e — acima de tudo — agrícola. Cerca de mil milhões de pessoas vivem
nesta parte da China, apesar de a mesma ter apenas metade da dimensão dos
Estados Unidos, cuja população é de 322 milhões. Como o terreno do
coração da terra se prestou ao povoamento e a um estilo de vida agrícola, as
primeiras dinastias sentiram-se ameaçadas pelas regiões não Han que as
rodeavam, especialmente pela Mongólia, com os seus bandos nómadas de
guerreiros violentos.
A China escolheu a mesma estratégia da Rússia: o ataque como defesa,
conducente à conquista do poder. Como veremos, existiam barreiras naturais
que — se os Han conseguissem alcançá-las e controlá-las — os protegeriam.
Foi uma luta que durou milénios, e que só foi totalmente vencida com a
anexação do Tibete, em 1951.
No tempo do famoso filósofo chinês Confúcio (551-479 a.C.), havia um
forte sentimento de identidade chinesa e de divisão entre a China civilizada
e as regiões «bárbaras» que a rodeavam. Este sentimento de identidade era
partilhado por cerca de 60 milhões de pessoas.
Em 200 a.C., a China expandira-se para sudoeste, na direção do Tibete,
embora sem o ter alcançado, para norte, até às pradarias da Ásia Central, e
para sul, chegando ao Mar da China Meridional. A construção da Grande
Muralha (conhecida, na China, como a Longa Muralha) fora iniciada pela
dinastia Qin (221-207 a.C.) e, no mapa, a China começava a adquirir o que
hoje reconhecemos como a sua forma moderna. No entanto, passariam mais
de 2000 anos até que as atuais fronteiras fossem fixadas.
Entre 605 e 609 d.C., o Grande Canal, que levou séculos a ser concluído e
é hoje a mais longa via navegável construída pelo Homem, foi prolongado e,
finalmente, ligou o Rio Amarelo ao Yangtsé. A dinastia Sui (581-618 d.C.)
tinha rentabilizado o grande número de trabalhadores sob o seu controlo,
usando-os para ligar afluentes naturais já existentes, formando uma via
navegável entre os dois grandes rios. Isto criou uma ligação mais estreita do
que alguma vez houvera entre os Han do Norte e do Sul. Foram precisos
vários milhões de escravos e cinco anos para completar a obra, mas o antigo
problema de como mover provisões de sul para norte foi resolvido —
embora não tenha sido encontrada uma solução para o problema que subsiste
até hoje, o das cheias.
Os Han continuaram em guerra entre si, mas cada vez menos, e, no início
do século XI d.C. foram obrigados a concentrar a sua atenção nas vagas de
mongóis que desciam do Norte. Os mongóis derrotavam qualquer dinastia
com que se deparassem, fosse do Norte ou do Sul, e, em 1279, o seu líder,
Kublai Khan, tornou-se o primeiro estrangeiro a governar todo o país como
Imperador da dinastia mongol (Yuan). Passariam quase 90 anos até que os
Han assumissem o controlo dos seus interesses, com o estabelecimento da
dinastia Ming.
Nesse momento, existiam cada vez mais contactos com comerciantes e
emissários dos estados-nação emergentes da Europa, como Espanha e
Portugal. Os líderes chineses eram contra qualquer tipo de presença
europeia permanente, mas abriram gradualmente as regiões costeiras ao
comércio. Ainda hoje, uma das características da China é que, quando o país
se abre, as regiões costeiras prosperam, mas o interior é negligenciado. A
prosperidade resultante do comércio enriqueceu as cidades costeiras, como
Xangai, mas essa riqueza não chegou às regiões rurais. Isto, em combinação
com o enorme afluxo de pessoas para as zonas urbanas, veio acentuar as
diferenças regionais.
No século XVIII, a China atingiu partes da Birmânia e da Indochina, a sul,
e conquistou Xinjiang, a noroeste, que se tornou a maior província do país.
Sendo uma zona de montanhas escarpadas e de vastas bacias de deserto,
Xinjiang tem 1.644.896 quilómetros quadrados, duas vezes o tamanho do
Texas — ou, pondo as coisas de outra forma, seria possível encaixar lá
dentro o Reino Unido, a França, a Alemanha, a Áustria, a Suíça, a Holanda e
a Bélgica e ainda ficar com espaço para o Luxemburgo. E para o
Liechtenstein.
Mas, aumentando a sua dimensão, a China aumentou também os seus
problemas. Xinjiang, uma região povoada por muçulmanos, era uma fonte
permanente de instabilidade, até mesmo de insurreição, tal como outras
regiões; mas, para os Han, a zona-tampão valia o incómodo, e mais ainda
depois do destino que se abateu sobre o país nos séculos XIX e XX, com a
chegada dos europeus.
Os poderes imperiais chegaram, entre eles os britânicos, e retalharam o
país em esferas de influência. Foi, e ainda é, a maior humilhação sofrida
pelos chineses desde as invasões mongóis. Esta é uma narrativa
frequentemente usada pelo Partido Comunista; em parte, é verdadeira, mas
também é útil para tapar os fracassos e as políticas repressivas do partido.
Mais tarde, os japoneses — alargando o seu território enquanto potência
mundial emergente — invadiram a China, atacando primeiro em 1932 e
depois, novamente, em 1937, após o que ocuparam a maior parte do coração
da terra, assim como a Manchúria e a Mongólia Interior. A rendição
incondicional dos japoneses aos americanos no fim da Segunda Guerra
Mundial, em 1945, levou à retirada das tropas japonesas, embora, na
Manchúria, tenham sido substituídas pelo avanço do exército soviético, que
se retirou mais tarde, em 1946.
Alguns observadores externos pensaram que os anos do pós-guerra
poderiam trazer a democracia liberal à China. Foi uma esperança ilusória,
semelhante aos disparates ingénuos que os ocidentais escreveram durante os
primeiros anos da recente «Primavera Árabe», a qual, tal como sucedera na
China, se baseava na incompreensão da dinâmica interna do povo, da
política e da geografia da região.
Em vez disso, as forças nacionalistas sob Chiang Kai-shek e os exércitos
comunistas sob Mao Tsé-Tung lutaram pela supremacia até 1949, data em
que os comunistas emergiram vitoriosos e os nacionalistas se retiraram para
Taiwan. Nesse mesmo ano, a Rádio Pequim anunciou: «O Exército de
Libertação Popular deve libertar todos os territórios chineses, incluindo o
Tibete, Xinjiang, Hainan e Taiwan.»
Mao centralizou o poder numa medida nunca vista nas dinastias que o
precederam. Bloqueou a influência russa na Mongólia Interior e estendeu a
influência de Pequim à Mongólia. Em 1951, a China concluiu a anexação do
Tibete (outro vasto território não Han) e, nessa altura, os mapas dos manuais
escolares chineses começavam a representar a China como abrangendo até
as repúblicas da Ásia Central. O país fora novamente unido; Mao passaria o
resto da sua vida a zelar para que assim continuasse e a consolidar o
controlo do Partido Comunista sobre todos os aspetos da vida, mas virando
as costas a grande parte do mundo exterior. O país continuava
desesperadamente pobre, em especial nas zonas afastadas da costa, mas
unificado.
Os sucessores de Mao tentaram transformar a sua Longa Marcha para a
vitória numa marcha económica para a prosperidade. No início dos anos 80,
o líder chinês Deng Xiaoping cunhou a expressão «Socialismo com
Características Chinesas», que parece traduzir-se em «Controlo Total do
Partido Comunista numa Economia Capitalista». A China estava a tornar-se
uma potência comercial importante e um gigante militar em ascensão. No fim
da década de 90, já recuperara do choque do massacre na Praça de
Tiananmen de 1989, recuperara Hong Kong e Macau das mãos dos ingleses e
dos portugueses, respetivamente, e estava em condições de olhar para as
suas fronteiras, avaliar a sua segurança e planear com antecedência a sua
entrada em grande no mundo.
Se olharmos para as fronteiras modernas da China, vemos uma grande
potência, agora confiante na proteção conferida pelas suas características
naturais, que se dedica a uma defesa eficaz e ao comércio. Na China, os
pontos cardeais são sempre enumerados na ordem este – sul – oeste – norte,
mas comecemos pelo norte e avancemos no sentido dos ponteiros do relógio.
A norte, vemos a fronteira de 4676km com a Mongólia. Dos dois lados
desta fronteira, está o Deserto de Gobi. Os guerreiros nómadas dos tempos
antigos podem ter conseguido atacar para sul, atravessando o deserto, mas
um exército moderno seria detetado reunindo-se aí, semanas antes de estar
pronto para avançar, e precisaria de linhas de abastecimento incrivelmente
longas, percorrendo terreno inóspito, antes de alcançar a Mongólia Interior
(que faz parte da China) e de se aproximar do coração da terra. Existem
poucas estradas adequadas para o transporte de artilharia pesada, e poucas
zonas habitadas. O Deserto de Gobi é uma superfície colossal que funciona
como sistema de aviso precoce e linha de defesa. Qualquer expansão chinesa
para norte ocorrerá, não através das forças armadas, mas por força de
acordos comerciais, à medida que a China for tentando absorver os recursos
naturais da Mongólia, especialmente minerais. Isto causará um aumento das
migrações dos Han para a Mongólia.
A leste, encontra-se a fronteira da China com a Rússia, que se estende até
ao Oceano Pacífico — ou, pelo menos, até à subdivisão deste constituída
pelo Mar do Japão. Acima desta, está o montanhoso Extremo Oriente Russo,
um território imenso e inóspito com uma população escassa. Abaixo,
encontra-se a Manchúria, que os russos teriam de atravessar se quisessem
alcançar o coração da terra chinesa. A população da Manchúria é de 100
milhões e está a crescer; ao contrário, o Extremo Oriente Russo tem menos
de sete milhões de pessoas e nenhum indicador de crescimento populacional.
Pode esperar-se uma migração de larga escala, de norte para sul, a qual, por
seu turno, fortalecerá a posição da China nas suas relações com a Rússia. Da
perspetiva militar, o melhor ponto de transposição da fronteira seria perto do
porto russo de Vladivostok, mas existem poucos motivos para o fazer, e
nenhuma intenção de o tentar. Na verdade, as recentes sanções ocidentais
contra a Rússia, motivadas pela crise na Ucrânia, levaram a Rússia a
celebrar acordos comerciais muito abrangentes com a China, cujos termos,
embora possam ajudar a Rússia a manter-se à tona, favorecem os chineses.
A Rússia é a parte menos influente nesta relação.
Abaixo do Extremo Oriente Russo, ao longo da costa, ficam os Mares
chineses Amarelo, da China Oriental e da China Meridional, que levam aos
Oceanos Pacífico e Índico; possuem vários bons portos e sempre foram
usados para o comércio. Mas, do outro lado das águas, encontram-se vários
problemas em forma de ilha — sendo um deles o Japão, do qual falaremos
em breve.
Continuando no sentido dos ponteiros do relógio, chegamos às fronteiras
terrestres seguintes: Vietname, Laos e Birmânia. O Vietname é uma irritação
para a China. Durante séculos, os dois disputaram território e, infelizmente
para ambos, esta é a única área a sul com uma fronteira suscetível de ser
atravessada, sem grande dificuldade, por um exército — o que explica
parcialmente o domínio e a ocupação do Vietname pela China durante mil
anos, de 111 a.C. até 938 d.C., assim como a breve guerra fronteiriça que os
opôs em 1979. Contudo, à medida que o poderio militar da China cresce, o
Vietname estará cada vez menos disposto a deixar-se arrastar para um
concurso de tiro ao alvo e irá abrigar-se ainda mais sob a asa protetora dos
americanos ou começar, discretamente, a mudar de direção diplomática, de
forma a tornar-se amigo de Pequim. O facto de os dois países adotarem,
nominalmente, a ideologia comunista tem pouco a ver com o estado das suas
relações: estas são definidas pela geografia que partilham. Visto de Pequim,
o Vietname não passa de uma ameaça menor e de um problema que pode ser
gerido.
A fronteira com Laos é um terreno de selva acidentada, difícil de
atravessar pelos comerciantes — e ainda mais complicada para os militares.
À medida que se aproximam da Birmânia, no sentido dos ponteiros do
relógio, as colinas cobertas de selva transformam-se em montanhas até que,
no extremo ocidental, chegam perto dos 6000 metros de altitude, começando
a fundir-se com os Himalaias.
Isto leva-nos ao Tibete e à sua importância para a China. Os Himalaias
ocupam toda a extensão da fronteira entre a China e a Índia, antes de
diminuírem de altitude, transformando-se na Cordilheira Caracórum, que faz
fronteira com o Paquistão, o Afeganistão e o Tajiquistão. Esta é a versão
natural da Grande Muralha da China, ou — vista do lado de Nova Deli — da
Grande Muralha da Índia. Cria uma separação entre os dois países mais
populosos do mundo, tanto a nível militar como económico.
Estes países têm as suas disputas: a China reivindica a província indiana
de Arunachal Pradesh e a Índia diz que a China está a ocupar Aksai Chin;
mas, apesar de apontarem a artilharia um ao outro, do alto desta muralha
natural, ambos os lados têm mais que fazer do que reacender o conflito que
estalou em 1962, quando uma série de violentas disputas fronteiriças
culminou numa feroz batalha de montanha em larga escala. Ainda assim, a
tensão está sempre presente e cada um dos lados tem de lidar com a situação
com cautela.
Muito pouco comércio foi trocado entre a China e a Índia ao longo dos
séculos, e é pouco provável que isso mude em breve. Claro que a fronteira é,
na verdade, a fronteira entre o Tibete e a Índia — e foi precisamente por
isso que a China sempre quis controlá-lo.
Esta é a geopolítica do medo. Se a China não controlasse o Tibete, seria
sempre possível que a Índia tentasse fazê-lo. A Índia ficaria, assim, senhora
das alturas dominantes do Planalto Tibetano, e teria uma base de onde
avançar sobre o coração da terra chinesa; além disso, passaria a controlar as
nascentes tibetanas de três dos maiores rios da China, o Amarelo, o Yangtsé
e o Mekong, que são o motivo por que o Tibete é conhecido como a «Torre
de Água da China». A China, um país com, aproximadamente, o mesmo
volume de utilização de água dos EUA, mas com uma população cinco vezes
maior, não irá, certamente, permitir tal coisa.
Não importa saber se a Índia quereria realmente cortar o abastecimento
aos rios da China; o importante é que poderia fazê-lo. Durante séculos, a
China tentou assegurar-se de que tal nunca poderia acontecer. O ator Richard
Gere e o movimento Tibete Livre continuarão a denunciar as injustiças da
ocupação, hoje colonização, do Tibete pelos chineses Han; mas, numa
batalha entre o Dalai Lama, o movimento para a independência do Tibete,
estrelas de Hollywood e o Partido Comunista chinês — que governa a
segunda maior economia do mundo —, haverá apenas um vencedor.
Quando os ocidentais, sejam eles Gere ou Obama, falam do Tibete, os
chineses acham essa atitude profundamente irritante. Não perigosa, nem
subversiva — apenas irritante. Não veem o assunto pelo prisma dos direitos
humanos, mas pelo da segurança geopolítica, e só lhes ocorre que os
ocidentais estejam a tentar minar a sua segurança. Porém, a segurança
chinesa não foi nem será minada, mesmo que se verifiquem mais
levantamentos contra os Han. A demografia e a geopolítica opõem-se à
independência do Tibete.
Os chineses estão a criar «factos consumados» no «teto do mundo». Nos
anos 50, o Exército do Povo Comunista Chinês começou a construir estradas
para o Tibete e, desde então, têm ajudado a trazer o mundo moderno a esse
antigo reino; mas as estradas, e atualmente as ferrovias, trazem também os
Han.
Há muito que se dizia ser impossível construir uma ferrovia através do
pergelissolo, das montanhas e dos vales do Tibete. Os melhores engenheiros
europeus, que tinham cortado caminho através dos Alpes, diziam que um tal
projeto não podia ser realizado. Ainda em 1998, o escritor de viagens Paul
Theroux escreveu, no seu livro Riding the Iron Rooster: «A Cordilheira
Kunlun é uma garantia de que os caminhos de ferro nunca chegarão a Lassa.»
A Kunlun separava a província de Xinjiang do Tibete, pelo que Theroux deu
graças: «O que é, provavelmente, uma coisa boa. Eu pensava que gostava de
vias-férreas até ter visto o Tibete; então, percebi que gosto muito mais da
natureza em estado selvagem.» Mas os chineses construíram-na. Talvez só
eles pudessem tê-lo feito. A linha que entra na capital tibetana, Lassa, foi
aberta em 2006 pelo então presidente chinês Hu Jintao. Agora, comboios de
passageiros e de mercadorias chegam aí vindos de lugares tão longínquos
como Xangai e Pequim, quatro vezes por dia, todos os dias.
Trazem muitas coisas consigo, como bens de consumo de toda a China,
computadores, televisões a cores e telemóveis. Trazem turistas que
sustentam a economia local, trazem modernidade a uma terra antiga e
empobrecida, grandes melhoramentos ao nível de vida e aos cuidados de
saúde, e trazem ainda a possibilidade de levar os produtos tibetanos ao
mundo lá fora. Mas também trouxeram vários milhões de colonos chineses
Han.
É difícil determinar os números exatos: o movimento Tibete Livre afirma
que, na região cultural alargada do Tibete, os tibetanos são, hoje, uma
minoria, mas o governo chinês garante que, na Região Autónoma do Tibete
oficial, mais de 90 por cento das pessoas são tibetanas. Os dois lados estão
a exagerar, mas os indícios sugerem que o governo é o que exagera mais. Os
seus números não incluem os migrantes Han, que não estão registados como
residentes, mas o observador casual pode verificar que, atualmente, os
bairros Han dominam as áreas urbanas do Tibete.
Em tempos, a maioria da população da Manchúria, da Mongólia Interior e
de Xinjiang era etnicamente manchu, mongol e uigur; hoje, esses três locais
são, ou são quase, de maioria chinesa Han. O mesmo se passará no Tibete.
Isto significa que o ressentimento contra os Han continuará a manifestar-se
em motins como o de 2008, em que manifestantes tibetanos antichineses em
Lassa queimaram e saquearam propriedades dos Han, tendo causado 21
mortos e centenas de feridos. A repressão das autoridades continuará, o
movimento Tibete Livre continuará, os monges continuarão a imolar-se para
levar a luta dos tibetanos aos olhos do mundo — e os Han continuarão a
chegar.
A numerosa população da China, na sua maioria concentrada no coração
da terra, procura formas de expansão. Tal como os americanos olharam para
oeste, o mesmo fazem os chineses, e, tal como os caminhos de ferro levaram
os colonos europeus às terras dos Comanches e dos Navajos, também as
modernas vias-férreas estão a levar os Han ao Tibete.
Finalmente, o ponteiro do relógio move-se para lá das fronteiras com o
Paquistão, o Tajiquistão e o Quirguistão (todas montanhosas) e chega à
fronteira com o Cazaquistão, que nos leva de volta à Mongólia. Esta é a
antiga Rota da Seda, a ponte comercial terrestre do Reino do Meio para o
mundo. Teoricamente, é um ponto fraco na defesa da China, uma falha entre
as montanhas e o deserto; mas fica longe do coração da terra, os cazaques
não estão em condições de ameaçar a China e a Rússia está a várias centenas
de quilómetros de distância.
A sudeste desta fronteira com o Cazaquistão encontra-se a irrequieta
província «semiautónoma» chinesa de Xinjiang e a sua população
muçulmana nativa formada pelo povo uigur, que fala uma língua aproximada
do turco. Xinjiang faz fronteira com oito países: Rússia, Mongólia,
Cazaquistão, Quirguistão, Tajiquistão, Afeganistão, Paquistão e Índia.
Houve, há e haverá sempre problemas em Xinjiang. Os uigures já
declararam duas vezes a independência do estado do «Turquestão Oriental»,
nas décadas de 30 e 40. Viram o colapso do Império Russo resultar na
transformação dos seus antigos vizinhos soviéticos em «stãos», tornando-se
estados soberanos, inspiraram-se no movimento para a independência do
Tibete e muitos estão, mais uma vez, ansiosos por se autonomizar da China.
Os motins interétnicos estalaram em 2009, levando a mais de 200 mortes.
Pequim respondeu de três formas: suprimiu implacavelmente os dissidentes,
injetou dinheiro na região e continuou a fazer desaguar lá trabalhadores
chineses Han. Para a China, Xinjiang é demasiado importante do ponto de
vista estratégico para que aí se permita o descolar de um movimento
independentista: não só faz fronteira com oito países, protegendo assim o
coração da terra, mas também tem petróleo, e alberga os campos de testes
das armas nucleares chinesas. É também um território-chave para a
estratégia económica chinesa de «Uma Faixa, Uma Estrada». A estrada é,
por estranho que possa parecer, uma rota marítima — a criação de uma
autoestrada oceânica para mercadorias; a faixa é a «Faixa Económica da
Rota da Seda» — uma rota terrestre formada a partir da antiga Rota da Seda,
que atravessa Xinjiang e irá, por seu turno, fazer a ligação, a sul, ao
impressionante porto de águas profundas que a China está a construir em
Gwadar, no Paquistão. No final de 2015, a China assinou um arrendamento
do porto por 40 anos. Isto faz parte da forma como «a faixa e a estrada»
serão ligadas.
A maior parte das novas cidades que têm surgido por toda a Xinjiang
estão esmagadoramente populadas por chineses Han atraídos pelo trabalho
nas novas fábricas em que o governo central investe. Um exemplo clássico é
a cidade de Shihezi, 136km a noroeste da capital, Ürümqi. Da sua população
de 650.000 pessoas, pensa-se que, pelo menos, 620.000 sejam Han. Em
geral, uma estimativa conservadora calcula que Xinjiang seja 40 por cento
Han — e mesmo Ürümqi poderá, neste momento, ter uma maioria Han,
embora os números oficiais sejam difíceis de obter e nem sempre fiáveis,
por serem politicamente delicados.
Existe um «Congresso Mundial Uigur» com base na Alemanha e o
«Movimento de Libertação do Turquestão Oriental», criado na Turquia; mas
falta aos separatistas uigures uma figura como o Dalai Lama, na qual os
meios de comunicação se possam fixar, e a sua causa é quase desconhecida
em todo o mundo. A China faz o possível para que essa situação não se
modifique, assegurando a manutenção das boas relações com o maior
número possível de países fronteiriços, de forma a impedir que qualquer
movimento independentista organizado estabeleça linhas de abastecimento
ou um local para onde possa recuar. Pequim também pinta os separatistas
como terroristas islâmicos. É verdade que a Al Qaeda e outros grupos, que
têm pontos de apoio em países como o Tajiquistão, estão a tentar estabelecer
ligações com os separatistas uigures, mas o movimento é, antes de mais,
nacionalista, e só depois islâmico. Contudo, parece provável que os ataques
com armas de fogo, bombas e facas verificados na região nos últimos anos,
contra alvos estatais e/ou Han, venham a continuar, e poderão mesmo
intensificar-se, transformando-se numa verdadeira sublevação.
No início de 2016, os funcionários governamentais locais disseram que o
esforço de desradicalização tinha «enfraquecido consideravelmente» o
nascente movimento islamita. Todavia, dado que o exército turco afirmou ter
prendido 324 presumíveis jihadistas de Xinjiang a caminho da Síria em
2015, essa declaração parece pouco realista.
A China não cederá o seu território e, tal como no Tibete, a janela para a
independência está a fechar-se. Ambas são zonas-tampão, uma delas uma
importante rota comercial terrestre, e — acima de tudo — as duas
constituem mercados (embora com rendimentos limitados) para uma
economia que precisa de continuar a produzir e a vender produtos, se quiser
manter o seu crescimento e evitar o desemprego em massa. Não o fazer
levaria, provavelmente, a desordens civis generalizadas, que ameaçariam o
controlo do Partido Comunista e a unidade da China.
Existem motivos semelhantes para a resistência do partido à democracia e
aos direitos individuais. Se fosse dado voto livre à população, a unidade dos
Han poderia começar a abrir brechas, ou, mais provavelmente, as zonas
rurais e urbanas entrariam em conflito. Por sua vez, isso estimularia as
pessoas das zonas-tampão, enfraquecendo ainda mais a China. Passou
apenas um século desde a mais recente humilhação causada pela violação da
China por potências estrangeiras; para Pequim, a unidade e o progresso
económico são muito mais prioritários do que os princípios democráticos.
Os chineses têm uma visão da sociedade muito diferente da do Ocidente.
O pensamento ocidental está imbuído dos direitos do indivíduo; o
pensamento chinês premeia o coletivo acima do individual. O que o
Ocidente vê como direitos do Homem, a liderança chinesa vê como teorias
perigosas que põem em risco a maioria, e muita da população aceita que,
pelo menos, a família alargada está antes do indivíduo.
Um dia, levei um embaixador chinês em Londres a um restaurante francês
de luxo, na esperança de ouvir a repetição da tão citada resposta do
Primeiro-Ministro Zhou Enlai à pergunta de Richard Nixon de «Qual foi o
impacto da Revolução Francesa?», à qual o primeiro-ministro replicou que
«É demasiado cedo para se saber». Infelizmente, isto não aconteceu, mas, em
vez disso, tive direito a uma palestra austera sobre como a imposição em
pleno «daquilo a que vocês chamam direitos humanos» na China conduziria
a violência e mortes generalizadas, após o que me foi perguntado: «O que
vos faz pensar que os vossos valores funcionariam numa cultura que não
compreendem?»
O acordo entre os líderes do partido e o povo tem sido, na última geração,
o seguinte: «Nós melhoramos a vossa vida — vocês seguem as nossas
ordens.» Desde que a economia continue a crescer, esse contrato geral
poderá durar. Se o crescimento parar, ou regredir, o acordo terminará. O
atual nível de manifestações e de fúria contra a corrupção e a ineficácia são
um indicador do que aconteceria se o acordo se desfizesse.
Outro problema crescente para o partido é a sua capacidade de alimentar
a população. Segundo o ministro da Agricultura, mais de 40 por cento dos
terrenos aráveis estão poluídos ou sofrem um adelgaçamento progressivo do
solo cultivável.
A China está presa num beco sem saída. Precisa de manter a
industrialização para continuar a modernizar-se e a aumentar o nível de vida,
mas esse mesmo processo ameaça a produção de alimentos. Se não
conseguir resolver este problema, enfrentará revoltas.
Neste momento, ocorrem cerca de 500 protestos por dia em toda a China,
na sua maioria pacíficos, acerca de diversos assuntos. Se, a isto, se
acrescentar desemprego em massa ou fome em massa, a situação explodirá
tanto em números como no grau de força usado por cada um dos lados.
Assim, no plano económico, a China tem agora um excelente acordo com
o mundo — «Nós produzimos produtos baratos — vocês compram-nos
baratos.»
Deixemos de lado o facto de que os custos laborais estão já a aumentar na
China e de que esta está já a sofrer a rivalidade da Tailândia e da Indonésia,
pelo menos no que se refere aos preços, se não também ao volume. O que
aconteceria se os recursos necessários para produzir os produtos se
esgotassem, se alguém os obtivesse primeiro, ou se houvesse um bloqueio
naval a esses produtos — tanto à sua entrada como à sua saída? Bem, num
caso desses, é precisa uma marinha.
Os chineses já foram grandes marinheiros, especialmente no século XV,
quando cruzavam o Oceano Índico; a expedição do Almirante Zheng He
aventurou-se até ao Quénia. Mas esses eram exercícios em busca de lucro e
não projeções de poder, e não se destinavam a criar bases avançadas que
pudessem ser usadas para apoiar operações militares.
Tendo passado 4000 turbulentos anos a consolidar o seu território, a
China está agora a construir uma marinha oceânica. Enquanto a marinha
litoral patrulha as fronteiras marítimas, a marinha oceânica patrulhará os
oceanos. A China levará mais 30 anos (presumindo uma progressão
económica constante) a adquirir uma capacidade naval que lhe permita
desafiar seriamente a força marítima mais poderosa que o mundo jamais viu
— a marinha dos EUA. Mas, no curto a médio prazo, durante a fase de
construção, treino e aprendizagem, a marinha chinesa cruzar-se-á com os
seus rivais no mar; e a forma como esses encontros forem geridos —
especialmente os sino-americanos — definirá a política das grandes
potências neste século.
Os jovens marinheiros que agora estão a ser treinados no porta-aviões em
segunda mão que a China aproveitou de uma sucata ucraniana serão aqueles
que, se chegarem à patente de almirante, poderão ter aprendido o suficiente
para saberem como conduzir um grupo de porta-aviões com doze barcos à
volta do mundo — e, se necessário, como travar uma guerra pelo caminho.
Como algumas das nações árabes mais ricas acabaram por perceber, não é
possível comprar forças armadas eficientes no supermercado. Um porta-
aviões de fabrico chinês está agora quase concluído, e, no início de 2016, a
China anunciou planos para terminar um terceiro no final de 2021. Ainda há
dúvidas sobre se será movido a energia nuclear, e não terá as capacidades
dos porta-aviões dos EUA; contudo, conferirá à China maior alcance e mais
opções.
Gradualmente, os chineses colocarão cada vez mais embarcações nos
mares ao largo da sua costa, e também no Pacífico. De cada vez que uma
delas for lançada, restará menos espaço para os americanos nos mares da
China. Os americanos sabem-no, e sabem também que os chineses estão a
trabalhar na criação de um sistema de mísseis antinavio baseado em terra
para duplicar os motivos que poderão, um dia, fazer a marinha dos EUA, ou
qualquer um dos seus aliados, pensar duas vezes antes de navegar no Mar da
China Meridional. Ou, na verdade, em qualquer outro mar da China. O
alcance crescente da artilharia de longa distância da China baseada em terra
permitirá à sua marinha em expansão aventurar-se mais longe da linha de
costa, visto que a marinha se tornará menos vital para a defesa. Em setembro
de 2015, houve um indício disto quando os chineses colocaram
(legitimamente) cinco embarcações a navegar em águas territoriais
americanas, ao largo da costa do Alasca. O facto de esta atitude ter tido
lugar precisamente antes da visita do Presidente Xi aos Estados Unidos não
foi coincidência. O Estreito de Bering é a via mais rápida para fazer chegar
as embarcações chinesas ao Oceano Ártico, e vê-las-emos mais vezes ao
largo da costa do Alasca nos próximos anos. E, entretanto, o projeto espacial
chinês em desenvolvimento observará cada movimento dos americanos e dos
seus aliados.
Estivemos, pois, a analisar as fronteiras terrestres no sentido dos
ponteiros do relógio; vamos, agora, olhar para leste, sul e sudoeste, na
direção do mar.
Entre a China e o Pacífico encontra-se o arquipélago a que Pequim chama
a «Primeira Cadeia de Ilhas». Há também a «Linha de Nove Traços», mais
recentemente transformada em dez traços, em 2013, para incluir Taiwan, que
a China afirma marcar o seu território. Esta disputa pela posse de mais de
200 pequenas ilhas e recifes está a envenenar as relações da China com os
vizinhos. O orgulho nacional leva a China a querer controlar as passagens
por entre a Cadeia; a geopolítica diz-lhe que tem de o fazer. Estas passagens
dão acesso às rotas de navegação mais importantes do mundo no Mar da
China Meridional. Em tempos de paz, as rotas estão abertas em diversos
locais, mas, em tempo de guerra, poderão facilmente ser bloqueadas,
impedindo assim o acesso da China. Todas as grandes nações se preparam,
em tempos de paz, para o dia em que rebentar a guerra.

O Mar da China Meridional é uma área vigorosamente disputada entre a China e os seus
vizinhos, o que leva a contendas sobre a posse de ilhas e recursos naturais e o controlo dos
mares e das rotas de navegação.
O livre acesso ao Pacífico é, em primeiro lugar, dificultado pelo Japão.
As embarcações chinesas vindas do Mar Amarelo e rodeando a Península
Coreana teriam de atravessar o Mar do Japão e o Estreito de La Pérouse,
acima de Hokkaido, para chegarem ao Pacífico. Grande parte desta zona é
constituída por águas territoriais japonesas ou russas e, em tempos de grande
tensão, ou mesmo de hostilidade, seria inacessível à China. Mesmo que
conseguissem passar, teriam ainda de navegar por entre as Ilhas Curilas, a
nordeste de Hokkaido, que são controladas pela Rússia mas reivindicadas
pelo Japão.
O Japão também disputa com a China a cadeia de ilhas a que chama
Senkaku, e que os chineses conhecem como Diaoyu, a nordeste de Taiwan.
Esta é a mais contenciosa de todas as reivindicações territoriais entre os
dois países. Se, em vez disso, os navios chineses atravessassem, ou, melhor
dizendo, partissem do Mar da China Oriental, saindo de Xangai, e
avançassem numa linha reta em direção ao Pacífico, teriam de passar pelas
Ilhas Ryukyu, que incluem Okinawa — onde existe não só uma enorme base
militar americana, mas toda a quantidade de mísseis terra-navio que o Japão
consegue juntar na extremidade da ilha. A mensagem de Tóquio é: «Sabemos
que vão passar por aqui, mas não se metam connosco no caminho.»
Outro potencial desentendimento com o Japão centra-se nos depósitos de
gás situados no Mar da China Oriental. Pequim declarou uma «Zona de
Identificação de Defesa Aérea» sobre a maior parte desse mar, exigindo
aviso prévio antes de qualquer terceiro a sobrevoar. Os americanos e os
japoneses estão a tentar ignorá-la, mas este assunto tornar-se-á explosivo
quando desejarem que assim seja ou quando houver um acidente que seja
mal gerido.
Abaixo de Okinawa fica Taiwan, que se encontra ao largo da costa
chinesa e separa o Mar da China Oriental do Mar da China Meridional. A
China reivindica Taiwan como a sua vigésima terceira província, mas,
atualmente, Taiwan é aliada dos americanos, e tem uma marinha e força
aérea armadas até aos dentes por Washington. Caiu sob o controlo chinês no
século XVII, mas, no século passado, só foi governada pela China durante
cinco anos (de 1945 a 1949).
A designação oficial de Taiwan é República da China (RDC), para se
diferenciar da República Popular da China, embora ambos os lados
acreditem que deveriam ter jurisdição sobre os dois territórios. Pequim pode
viver com este nome, já que o mesmo não apresenta Taiwan como um estado
autónomo. Os americanos comprometeram-se a defender Taiwan em caso de
invasão da China, ao abrigo da Lei de Relações com Taiwan de 1979.
Todavia, se Taiwan declarasse a independência total da China, o que a
China consideraria um ato de guerra, os EUA não estariam obrigados a vir
em seu auxílio, visto que uma tal declaração seria considerada provocadora.
Os dois governos competem pelo seu próprio reconhecimento e pelo não
reconhecimento do outro em todos os países do mundo e, na maior parte dos
casos, Pequim ganha a contenda. Quando se pode oferecer um mercado
potencial de 1,4 mil milhões de pessoas contra um de 23 milhões, a maioria
dos países não precisa de pensar muito. No entanto, existem 22 países
(essencialmente países em vias de desenvolvimento, como a Suazilândia, o
Burquina Faso e as Ilhas de São Tomé e Príncipe) que optam por Taiwan, e
que são, geralmente, muito bem recompensados.
Os chineses estão determinados a tomar posse de Taiwan, mas estão muito
longe de poder desafiá-la militarmente. Em vez disso, usam o poder de
persuasão, aumentando o comércio e o turismo entre os dois estados. A
China quer atrair Taiwan de volta aos seus braços. Durante os protestos
estudantis de 2014 em Hong Kong, um dos motivos por que as autoridades
não os varreram rapidamente das ruas — como teriam feito, por exemplo,
em Ürümqi — foi que as câmaras de todo o mundo estavam presentes e
teriam registado a violência. Na China, a maior parte dessas imagens seriam
ocultadas, mas, em Taiwan, as pessoas veriam o mesmo que o resto do
mundo e perguntar-se-iam até que ponto queriam uma relação estreita com
uma potência com um tal comportamento. Pequim hesitou; está a jogar a
longo prazo.
A abordagem do poder de persuasão consiste em convencer o povo de
Taiwan de que nada tem a recear se voltar a juntar-se à «terra-mãe». A Zona
de Identificação de Defesa Aérea, a emersão perto dos navios norte-
americanos e a construção de uma marinha fazem parte de um plano de longo
prazo para enfraquecer a determinação dos EUA em defender uma ilha
situada a 225km da costa continental chinesa, mas a 10.300km da costa
ocidental dos EUA.
Partindo do Mar da China Meridional, os navios também teriam
problemas, quer se dirigissem ao Pacífico ou ao Oceano Índico — que é a
via navegável usada a nível mundial para o transporte do gás e do petróleo
sem os quais a China colapsaria.
Para se moverem para oeste, na direção dos estados produtores de energia
do Golfo, os chineses teriam de passar pelo Vietname, que, como já
observámos, tem, recentemente, mostrado abertura aos americanos. Teriam
de se aproximar das Filipinas, um aliado dos EUA, e depois de tentar
atravessar o Estreito de Malaca, entre a Malásia, Singapura e Indonésia,
todos países diplomática e militarmente ligados aos EUA. O Estreito tem,
aproximadamente, 800km de comprimento e, no seu ponto mais apertado,
tem menos de 3km de largura. Sempre foi um ponto de estrangulamento — e
os chineses ainda estão sujeitos a serem estrangulados. Todos os estados ao
longo do Estreito e perto dos seus acessos receiam o domínio chinês, e a
maioria deles tem disputas territoriais com Pequim.
A China reivindica a quase totalidade do Mar da China Meridional, e das
reservas de energia que se acredita encontrarem-se por baixo deste, como
seus. Todavia, a Malásia, Taiwan, Vietname, Filipinas e Brunei também têm
pretensões territoriais contra a China e uns contra os outros. Por exemplo, as
Filipinas e a China disputam ferozmente as Ilhas Mischief, um grande recife
nas Ilhas Spratly, no Mar da China Meridional, as quais, um dia, poderão vir
a merecer o seu nome1. Cada um dos atóis disputados, que são centenas e
que, por vezes, não passam de rochedos a sair da água, pode vir a ser
transformado numa crise diplomática, já que, à volta de cada rochedo, existe
uma potencial disputa sobre zonas de pesca, direitos de exploração e
soberania.
Para alargar os seus objetivos, a China está a usar métodos de dragagem e
arroteamento de terras para começar a transformar vários recifes e atóis
situados em território disputado em ilhas. Por exemplo, o que foi um recife
nas Ilhas Spratly (cujo nome, Recife da Cruz Ardente, o descrevia bem) é
agora uma ilha, a que nem faltam um porto e uma pista de aterragem com
capacidade para caças, o que aumenta em muito o controlo da China sobre
os céus da região que atualmente detém. Num outro recife, estão
estacionadas unidades de artilharia.
Num discurso feito no verão de 2015, o Secretário da Defesa dos EUA,
Ash Carter, disse: «O simples ato de transformar um rochedo subaquático
num aeródromo não confere direitos de soberania sobre ele nem permite
estabelecer restrições ao tráfego aéreo ou marítimo internacional.» Esta
declaração foi proferida pouco depois de a China ter anunciado estar a
alterar a sua postura militar na região, de meramente defensiva para ofensiva
e defensiva. Uma atitude que salienta a intenção da China de ser ela a ditar
as regras na região; e, para atingir esse objetivo, tanto tentará agradar aos
seus vizinhos como os ameaçará.
A China precisa de assegurar as rotas do Mar da China Meridional, tanto
para fazer chegar os seus produtos aos mercados como para que as matérias-
primas necessárias ao fabrico desses produtos — entre os quais se contam o
petróleo, o gás e metais preciosos — cheguem à China. Não pode dar-se ao
luxo de ter o caminho bloqueado. A diplomacia é uma solução; a marinha
sempre crescente é outra; mas as melhores garantias são as condutas,
estradas e portos.
Diplomaticamente, a China tentará puxar as nações do Sudeste Asiático
para longe dos EUA, usando tanto a cenoura como o chicote. Se exagerar no
chicote, os países em causa vincular-se-ão cada vez mais a tratados de
defesa com Washington; se exagerar na cenoura, eles poderão não se vergar
às vontades de Pequim. Por agora, ainda olham para o outro lado do Pacífico
em busca de proteção.
Os mapas da região atualmente impressos pelos chineses representam a
quase totalidade do Mar da China Meridional como seu. Isto é uma
declaração de intenções, sustentada por patrulhas navais agressivas e
declarações oficiais. Pequim pretende alterar a forma de pensar dos vizinhos
e a forma de pensar e de agir da América — impondo cada vez mais a sua
agenda, até que os seus concorrentes recuem. O que aqui está em jogo é o
conceito de águas internacionais e de direito de passagem em tempos de paz;
não é algo a que as outras potências renunciem facilmente.
O escritor geopolítico Robert Kaplan expõe a teoria de que o Mar da
China Meridional é, para os chineses do século XXI, o que o Mar das
Caraíbas foi para os EUA no início do século XX. Tendo consolidado o seu
território continental, os americanos haviam-se tornado uma potência de dois
oceanos (o Atlântico e o Pacífico), após o que se propuseram controlar os
mares à sua volta, expulsando os espanhóis de Cuba.
A China também pretende tornar-se uma potência de dois oceanos (o
Pacífico e o Índico). Para tanto, está a investir em portos de águas profundas
na Birmânia, no Bangladesh, no Paquistão e no Sri Lanka — um investimento
que lhe rende boas relações, a possibilidade de ter bases amigas que
recebam a sua futura marinha, de visita ou em permanência, e ligações
comerciais com o seu país.
Os portos do Oceano Índico e da Baía de Bengala fazem parte de um
plano ainda mais vasto para assegurar o futuro da China. O seu arrendamento
do novo porto de águas profundas em Gwadar, no Paquistão, será crucial (se
a região paquistanesa do Baluchistão se revelar suficientemente estável)
para a criação de uma rota terrestre alternativa até à China. A China
construiu condutas de gás natural e de petróleo que partem da costa ocidental
da Birmânia e ligam a Baía de Bengala ao Sudoeste da China — a forma da
China de reduzir a sua dependência enervante do Estreito de Malaca, por
onde passam quase 80 por cento dos seus fornecimentos energéticos. Isto
explica parcialmente os motivos por que, em 2010, quando a Junta
Birmanesa começou a abrir-se lentamente ao exterior, não foram apenas os
chineses a aparecer-lhes ansiosamente à porta. Os americanos e os
japoneses não perderam tempo em estabelecer melhores relações, e tanto o
Presidente Obama como o Primeiro-Ministro Abe do Japão foram apresentar
os seus cumprimentos em pessoa. Se puderem influenciar a Birmânia, isso
ajudá-los-á a manter a China sob controlo. Até agora, os chineses estão a
ganhar este jogo específico no tabuleiro de xadrez global, mas os americanos
poderão conseguir suplantá-los, desde que o governo birmanês esteja
confiante em que Washington o apoiará.
Os chineses estão também a construir portos no Quénia, ferrovias em
Angola e uma barragem hidroelétrica na Etiópia. Estão a esquadrinhar toda a
África, de uma ponta à outra, em busca de minérios e metais preciosos.
As empresas e os trabalhadores chineses estão espalhados por todo o
mundo; lentamente, as forças armadas chinesas segui-los-ão. O grande poder
acarreta grande responsabilidade. A China não permitirá que as rotas
marítimas na sua vizinhança sejam policiadas pelos americanos. Haverá
ocorrências que exigirão uma atuação chinesa fora da sua região. Um
desastre natural, ou um incidente terrorista ou com reféns, que envolvam um
grande número de trabalhadores chineses, obrigariam a China a agir, e isso
implicaria a existência de bases avançadas, ou, pelo menos, a autorização de
outros estados à passagem da China pelos seus territórios. Existem, neste
momento, dezenas de milhões de chineses em todo o mundo, nalguns casos
alojados em enormes complexos para trabalhadores, nalgumas zonas de
África.
A China terá dificuldades em tornar-se ágil no decurso da próxima
década. Mal conseguiu manobrar o equipamento do Exército do Povo para
prestar auxílio no rescaldo do devastador terramoto de 2008 em Sichuan.
Mobilizou o exército, mas não o seu material; uma deslocação rápida para
fora do país seria um desafio ainda maior.
Isto mudará. A China não se deixa deter nem motivar, diplomática ou
economicamente, pelos direitos humanos, nas suas relações com o mundo.
Tem as suas fronteiras bem seguras, tenta forçar as constrições da Primeira
Cadeia de Ilhas e já se move pelo mundo com confiança. Se conseguir evitar
um conflito grave com o Japão ou com os EUA, o único verdadeiro perigo
para a China será ela própria.
Há 1,4 mil milhões de razões pelas quais a China poderá conseguir, e 1,4
mil milhões de razões pelas quais poderá não conseguir ultrapassar a
América enquanto maior potência do mundo. Uma grande depressão como a
dos anos 30 poderá fazê-la regredir décadas. A China colocou-se na posição
de refém da economia global. Se não comprarmos, eles não fabricam. E, se
não fabricarem, terão desemprego em massa. Se houver desemprego em
massa e de longo prazo, numa época em que os chineses estão concentrados
nas zonas urbanas, a inevitável agitação social poderá atingir — como tudo
na China — uma escala até hoje nunca vista.
1
Mischief significa travessura, maldade, fonte de problemas — N. da T.
CAPÍTULO 3

EUA

«As notícias da minha morte foram consideravelmente exageradas.»


Mark Twain
MAPA EUA

L
ocalização, localização, localização. Se ganhasse a lotaria, e
quisesse comprar um país onde viver, o primeiro que o agente
imobiliário lhe mostraria seriam os Estados Unidos da América.
Twain referia-se aos relatos errados sobre a sua morte, mas poderia estar
a falar das previsões exageradas sobre a extinção dos EUA.
O bairro é lindo, as vistas são maravilhosas e há cursos de água
fantásticos; as vias de transporte são excelentes; e os vizinhos? Os vizinhos
são ótimos, não causam qualquer problema.
Se este espaço fosse dividido em várias secções, o seu valor desceria
consideravelmente — especialmente se os inquilinos não falassem todos a
mesma língua e pagassem a renda em moedas diferentes — mas, como casa
unitária, para uma família, não podia ser melhor.
Existem 50 estados americanos, mas que formam uma nação, de um modo
que os 28 estados soberanos da União Europeia nunca formarão. A maior
parte dos estados da União Europeia tem uma identidade nacional muito
mais forte, mais definida, do que qualquer estado americano. É fácil
encontrar um francês que se sinta, em primeiro lugar, francês, e em segundo
lugar, europeu, ou que se sinta pouco vinculado à ideia de Europa, mas um
americano identifica-se com a sua União como poucos europeus se
identificam com a deles. Isto é explicado pela geografia, e pela história da
unificação dos EUA.
Pintando este vasto país em pinceladas fortes e largas, de leste a oeste,
podemos dividi-lo em três partes.
Primeiro, temos a Planície da Costa Leste, que leva aos Montes
Apalaches: uma área bem irrigada por rios pequenos, mas navegáveis e com
um solo fértil. Depois, mais para oeste, encontram-se as Grandes Planícies,
que se estendem até às Montanhas Rochosas, e, dentro desta secção, situa-se
a bacia do Mississípi, com a sua rede de rios enormes e navegáveis, que
correm para o Rio Mississípi e descem até ao Golfo do México, o qual está
protegido pela península da Florida e por diversas ilhas. Transposta a
cordilheira montanhosa colossal das Rochosas, chega-se ao deserto, à
Cordilheira Sierra Nevada, a uma estreita planície costeira e, finalmente, à
costa do Oceano Pacífico.
Para norte, acima dos Grandes Lagos, fica o Escudo Canadiano, a maior
área de rocha pré-câmbrica, muita da qual forma uma barreira ao
povoamento humano. A sudoeste — deserto. A geografia determinou que, se
uma entidade política conseguisse alcançar e depois controlar toda a
extensão de terra «de costa a costa», essa seria uma grande potência, a maior
que a História já conhecera. Uma vez atingido esse poder, a União tornar-se-
ia quase impossível de invadir. Como vimos em relação à Rússia, existe
«profundidade estratégica» para onde uma força defensora poderá recuar. A
dimensão do Canadá (e, em menor medida, do México), é também uma
vantagem, já que qualquer potência hostil que tentasse invadir os EUA
atravessando esses países teria de criar linhas de abastecimento
incrivelmente longas.
Igualmente importante, nos tempos modernos, é que qualquer entidade
suficientemente estúpida para ponderar invadir a América depressa seria
obrigada a refletir sobre o facto de esta conter centenas de milhões de armas,
prontamente à disposição de uma população que leva a sua vida, liberdade e
busca da felicidade muito a sério. Além das formidáveis forças armadas dos
EUA, há a Guarda Nacional, a polícia estatal e, como se viu em várias
ocasiões em 2015, uma força policial urbana que pode rapidamente
assemelhar-se a uma unidade militar. Em caso de invasão, qualquer pequena
cidade dos EUA, como Folsum, Fairfax ou Farmerville, se transformaria
num ápice numa Faluja do Iraque.
Mas, para chegar a esta rara posição geográfica de quase
invulnerabilidade a ataques convencionais, o espaço teve, primeiro, de ser
adquirido e unificado, o que, considerando que o Continente tem 4800km de
costa a costa, foi conseguido com uma rapidez espantosa.
Quando os europeus começaram a chegar, no princípio do século XVII,
depressa perceberam que a Costa Leste deste território «virgem» estava
repleta de portos naturais e solos férteis. Ali estava um local onde podiam
viver e, ao contrário das suas terras natais, um local onde esperavam poder
viver livremente. Os seus descendentes acabariam por negar a liberdade aos
habitantes nativos, mas essa não era a intenção dos primeiros colonos. A
geografia fê-los vir do outro lado do Atlântico, cada vez em maior número.
A última das 13 colónias originais a ser estabelecida foi a Geórgia, em
1732. Todas elas foram adquirindo uma mentalidade cada vez mais
independente, até chegarem à Guerra Revolucionária Americana (1775-83).
No início deste período, as colónias, que começaram gradualmente a ligar-se
umas às outras, estendiam-se ao longo de 1600km, do Massachusetts, a norte,
até à Geórgia, e calcula-se que tivessem uma população combinada de cerca
de 2,5 milhões de pessoas. Estavam limitadas pelo Atlântico a leste e pelos
Montes Apalaches, a oeste. Os Apalaches, com 2500km de comprimento,
são impressionantes, mas, comparados com as Montanhas Rochosas, não são
particularmente altos. Ainda assim, formavam uma barreira formidável ao
movimento para oeste dos primeiros colonos, que estavam ocupados a
consolidar o território que tinham conquistado e a preparar-se para o
governar. Os colonos enfrentavam ainda uma outra barreira, esta de ordem
política. O governo britânico proibia a colonização a oeste dos Apalaches,
pois queria assegurar-se de que o comércio, e os impostos, permaneceriam
no litoral leste.
A Declaração de Independência (1776) estipula: «Quando, no decurso de
acontecimentos humanos, se torne necessário que um povo dissolva os laços
políticos que o ligavam a outro e assuma, entre os Poderes terrenos, uma
posição igual e autónoma, a que lhe dão direito as Leis da Natureza e as leis
do Deus da Natureza, o devido respeito pelas opiniões dos homens exige que
sejam declaradas as causas que levaram a essa separação.» Prossegue
enunciando essas causas com algum pormenor, e afirmando (sem sombra de
ironia esclavagista) que é evidente em si mesmo que todos os homens foram
criados iguais. Estes sentimentos nobres ajudaram a chegar à vitória na
Guerra da Independência, que, por seu turno, deu origem a um novo estado-
nação.
No início do século XIX, a liderança deste novo país ainda não fazia ideia
de que se encontrava a milhares de quilómetros do «Mar do Sul», ou
Pacífico. Usando trilhos índios, alguns exploradores, para quem a palavra
«intrépido» poderia ter sido inventada, tinham atravessado os Apalaches e
chegado ao Mississípi. Aí, pensavam encontrar uma via navegável que
levasse ao oceano, fazendo, pois, a ligação às vastas extensões de terra que
os espanhóis haviam explorado nas regiões costeiras do Sudoeste e do
Pacífico, incluindo o que hoje são o Texas e a Califórnia.
Nessa época, os recém-criados EUA estavam longe de ter as fronteiras
garantidas e, se tivessem ficado limitados às suas fronteiras de então, ter-
lhes-ia sido difícil tornarem-se uma grande potência. Os seus cidadãos já
tinham acesso ao Rio Ohio, logo a oeste dos Apalaches, mas este levava ao
Mississípi, cuja margem ocidental era controlada pelos franceses, até à
cidade de Nova Orleães. Isto permitia aos franceses dominarem o comércio
americano que saía para o Velho Mundo, partindo do Golfo do México,
assim como o vasto território a oeste, no que hoje é o coração dos EUA. Em
1802, um ano depois de ter assumido a presidência, Thomas Jefferson
escreveu: «Existe um lugar único no mundo, cujo detentor é o nosso inimigo
natural e habitual. Chama-se Nova Orleães.»
A França era, pois, o detentor e o problema; mas a solução,
excecionalmente, não era a guerra.
Em 1803, os Estados Unidos simplesmente compraram à França o
controlo sobre todo o Território da Luisiana. As terras estendiam-se do
Golfo do México para noroeste, até às nascentes dos afluentes do Rio
Mississípi, nas Montanhas Rochosas. Era uma área de dimensão equivalente
aos territórios atuais de Espanha, de Itália, de França, do Reino Unido e da
Alemanha somados. E incluía a bacia do Mississípi, da qual fluía o caminho
da América para a grandeza.
Com uma assinatura e a entrega da 15 milhões de dólares, a Compra da
Luisiana, em 1803, duplicou a área dos EUA e conferiu-lhes o domínio
sobre a maior rota de transporte fluvial do mundo. Como escreveu o
historiador americano Henry Adams, «Nunca os Estados Unidos
conseguiram tanto por tão pouco».
A grande bacia do Mississípi tem mais quilómetros de rio navegável do
que todo o resto do mundo em conjunto. Em mais lugar nenhum existem
tantos rios cujas nascentes não se situem em altitude, e cujas águas corram
suavemente ao longo de todo o percurso até ao oceano, percorrendo grandes
distâncias. O Mississípi, alimentado pela maior parte do sistema de bacia
hidrográfica, começa perto de Mineápolis e acaba a 2900km de distância, no
Golfo do México. Assim, os rios eram a conduta natural para o comércio
sempre crescente, levando a um grande porto e usando embarcações, que
eram, e são, muito mais baratas do que os meios de transporte por estrada.
Os americanos tinham, desta forma, obtido a estrategicamente crucial
profundidade geográfica, consubstanciada numa terra gigantesca e fértil, e
uma alternativa aos portos atlânticos para realizarem os seus negócios.
Tinham também rotas sempre em expansão de leste para oeste, ligando a
Costa Leste ao novo território, e ainda os sistemas fluviais que corriam de
norte para sul, interconetando as terras então fracamente povoadas, e
encorajando a América a constituir-se como uma entidade unitária.
Por essa altura, criara-se a sensação de que a nação viria a tornar-se um
colosso, uma potência continental. Continuaram a expandir-se, sempre para
oeste, mas com um olho no Sul e na segurança da joia da coroa — o
Mississípi.
Em 1814, os britânicos tinham partido e os franceses tinham desistido da
Luisiana. Agora, o desafio era fazer os espanhóis partirem. Não era muito
difícil. Os espanhóis estavam exaustos pela guerra na Europa contra
Napoleão; os americanos estavam a empurrar a Nação Índia Seminole para
dentro da Florida espanhola, e Madrid sabia que se lhe seguiriam vagas de
colonos. Em 1819, os espanhóis cederam a Florida aos EUA e, com ela, uma
enorme extensão de território.
A Compra da Luisiana dera aos EUA os territórios centrais, mas o
Tratado Transcontinental de 1819 deu-lhes algo quase igualmente valioso.
Os espanhóis aceitaram que os EUA tivessem jurisdição no Oeste longínquo,
acima do paralelo 42, que fica no que hoje é a fronteira entre a Califórnia e
o Oregon, enquanto a Espanha controlaria as terras situadas mais abaixo, a
oeste dos territórios americanos. Os EUA tinham chegado ao Pacífico.
Nessa época, a maioria dos americanos pensou que a grande vitória de
1819 fora conseguir a Florida, mas o Secretário de Estado John Quincy
Adams escreveu no seu diário: «A aquisição de uma linha de fronteira
definitiva até ao Pacífico define uma grande época da nossa História.»
Mas havia outro problema de língua espanhola — o México.
Como a Compra da Luisiana duplicara a dimensão dos EUA, quando o
México se tornou independente de Espanha, em 1821, a sua fronteira ficou a
apenas 320km do porto de Nova Orleães. No século XXI, o México não
constitui uma ameaça territorial aos EUA, embora a sua proximidade cause
problemas à América, dado que alimenta o apetite do vizinho setentrional
por mão de obra ilegal e drogas.
Porém, em 1821, era diferente. O México controlava terras até à
Califórnia do Norte, o que os americanos podiam tolerar, mas também se
estendia para leste, abrangendo o que é hoje o Texas, que, então como agora,
fazia fronteira com a Luisiana. Na altura, a população do México era de 6,2
milhões e a dos EUA de 9,6 milhões. O exército dos EUA podia ter
conseguido expulsar os poderosos ingleses, mas estes estavam a combater a
4800km de casa, com linhas de abastecimento que cruzavam um oceano. Os
mexicanos estavam ali mesmo ao lado.
Discretamente, Washington encorajou os americanos e os recém-chegados
a começarem a instalar-se dos dois lados da fronteira entre os EUA e o
México. Vagas de imigrantes chegaram e espalharam-se para oeste e
sudoeste. Havia poucas probabilidades de que criassem raízes na região que
hoje conhecemos como o México moderno, assimilando e aumentando a
população local. O México não é abençoado como a América. Tem solos de
pouca qualidade para a agricultura, não possui um sistema fluvial que possa
usar para transporte e era totalmente antidemocrático, pelo que os recém-
chegados teriam poucas hipóteses de lhes serem concedidas terras.
Enquanto a infiltração no México prosseguia, Washington emitiu a
«Doutrina Monroe» (que foi buscar o nome ao Presidente James Monroe),
em 1823. Esta resumia-se a um aviso às potências europeias de que já não
poderiam vir procurar terras no Hemisfério Ocidental e, se perdessem partes
do seu território já existente, não poderiam reclamá-las. Senão…
Em meados dos anos 30 do século XIX, existiam já colonos brancos
suficientes no Texas para forçarem a questão mexicana. A população
mexicana, católica e de língua espanhola era de poucos milhares, mas havia
cerca de 20.000 colonos brancos protestantes. A Revolução do Texas de
1835-36 expulsou os mexicanos, mas foi por pouco, e, se os colonos
tivessem perdido, o exército mexicano teria ficado em posição de marchar
sobre Nova Orleães e controlar a extremidade sul do Mississípi. Este é um
dos grandes «e ses» da História Moderna.
Contudo, a história não se passou assim e o Texas tornou-se independente
através do dinheiro, das armas e das ideias americanas. O território aderiu à
União em 1845 e, juntos, combateram na Guerra Mexicana de 1846-48, onde
esmagaram o seu vizinho do Sul, ao qual foi exigida a aceitação de que o
México fosse relegado para as areias da margem sul do Rio Grande.
Com a Califórnia, o Novo México e o território que hoje constitui o
Arizona, o Nevada, o Utah e parte do Colorado conquistados, as fronteiras
dos EUA continentais eram, então, semelhantes ao que são hoje, e são, em
muitos aspetos, fronteiras naturais. A sul, o Rio Grande atravessa um
deserto; a norte, encontram-se grandes lagos e terrenos montanhosos, com
poucas pessoas junto à fronteira, especialmente na metade oriental do
Continente; e, a leste e a oeste, estão os grandes oceanos. Contudo, no século
XXI, é provável que a memória histórica e cultural da região sudoeste como
terra hispânica venha a reemergir, visto que a demografia está a alterar-se
rapidamente e, dentro de poucas décadas, os hispânicos constituirão a
maioria da população.
Mas voltemos a 1848. Os europeus tinham partido, a bacia do Mississípi
estava a salvo de ataques por terra, o Pacífico tinha sido alcançado e era
evidente que as nações índias remanescentes seriam subjugadas: não havia
ameaças aos EUA. Estava na hora de fazer dinheiro e, depois, de arriscar
cruzar os oceanos para proteger a aproximação às três linhas de costa da
futura superpotência.
A Corrida ao Ouro na Califórnia ajudou, mas os imigrantes iriam para
oeste de qualquer forma. Afinal, havia um império continental para construir,
e, à medida que este se desenvolvia, mais imigrantes se lhes seguiam. A Lei
da Propriedade Rural de 1862 concedia 160 acres de terras detidas pela
federação a qualquer pessoa que as cultivasse durante cinco anos e pagasse
uma pequena taxa. Porque iria um homem pobre da Alemanha, da
Escandinávia ou de Itália para a América Latina para ser um servo, quando
podia ir para os EUA e ser um homem livre e proprietário de terras?
Em 1867, o Alasca foi comprado à Rússia. Na altura, ficou conhecido
como «a loucura de Seward», devido ao nome do Secretário de Estado
William Seward, que concluiu o negócio. Pagou 7,2 milhões de dólares, ou 2
cêntimos por acre. A imprensa acusou-o de estar a comprar neve, mas a
opinião pública mudou de ideias com a descoberta de importantes depósitos
de ouro em 1896. Décadas mais tarde, foram também encontradas enormes
reservas de petróleo.
Passados dois anos, em 1869, veio a abertura da via-férrea
transcontinental. Tornou-se então possível atravessar o país numa semana,
enquanto, anteriormente, essa travessia demorava vários meses repletos de
perigos.
À medida que o país crescia, e enriquecia, começou a construir uma
marinha oceânica. Durante a maior parte do século XIX, as preocupações
dominantes da política externa tinham sido expandir o comércio e evitar
complicações no exterior, mas estava na altura de alargar a esfera de
influência e de proteger a aproximação às linhas de costa. A única ameaça
real era a de Espanha — que podia ter sido convencida a sair do Continente,
mas ainda controlava as ilhas de Cuba, Porto Rico e parte do que é hoje a
República Dominicana.
Em especial, Cuba tirava o sono aos presidentes americanos, como
voltaria a fazer em 1962, durante a Crise dos Mísseis de Cuba. Esta ilha está
situada logo ao largo da Florida, o que lhe dá acesso a e potencial controlo
do Estreito da Florida e do Canal do Iucatão, no Golfo do México. Esta é a
rota de saída e entrada do e para o porto de Nova Orleães.
O poder de Espanha podia ter vindo a diminuir no final do século XIX,
mas esta era ainda uma força militar formidável. Em 1898, os EUA
declararam guerra a Espanha, destroçaram as suas tropas e ganharam
controlo sobre Cuba, e, de caminho, também sobre Porto Rico, Guam e as
Filipinas. Todos eles teriam a sua utilidade, mas Guam, em particular, é um
ativo estratégico vital, e Cuba seria uma ameaça estratégica se controlada
por uma grande potência.
Em 1898, essa ameaça foi removida através da guerra com Espanha. Em
1962, foi removida através da ameaça de uma guerra com a União Soviética,
depois de esta ter sido a primeira a pestanejar. Hoje, nenhuma grande
potência patrocina Cuba, e esta parece destinada a cair novamente sob a
influência cultural, e provavelmente política, dos EUA.
A América estava a mover-se rapidamente. No mesmo ano em que
conquistou Cuba, o Estreito da Florida e, em grande medida, as Caraíbas,
também anexou a ilha de Havai, no Pacífico, protegendo-se assim das
aproximações à sua Costa Oeste. Em 1903, a América assinou um tratado
arrendando os seus direitos exclusivos sobre o Canal do Panamá. O
comércio estava em franca ascensão.
Era a altura certa para os EUA mostrarem que tinham vindo para ficar no
palco mundial, e que melhor forma para o provarem do que uma
demonstração de força circum-navegando o globo?
O Presidente Theodore Roosevelt falava com relativa suavidade — mas,
na realidade, levou um grande pau à volta do mundo2. Em dezembro de 1907,
saíram dos EUA 16 couraçados da força atlântica da marinha. Tinham os
cascos pintados de branco, a cor da marinha para tempos de paz, e este
exemplo impressionante de simbolismo diplomático ficou conhecido como
«a Grande Frota Branca». Nos 14 meses seguintes, a frota visitou 20 portos,
nomeadamente no Brasil, Chile, México, Nova Zelândia, Austrália,
Filipinas, Japão, China, Itália e Egito. Destes, o mais importante era o Japão,
que ficou avisado de que, em último caso, a frota atlântica americana
poderia ser deslocada para o Pacífico. A travessia, uma mistura de poder de
persuasão e poder bélico, precedeu o termo militar «projeção de força», mas
foi disso mesmo que se tratou, e não deixou de ser devidamente entendida
como tal por todas as grandes potências do mundo.
A maior parte dos presidentes seguintes adotou o conselho de George
Washington, expresso no seu discurso de despedida, em 1796, de não se
envolverem em «antipatias inveteradas contra nações específicas e em afetos
arrebatados por outras», e de se «manterem à distância de alianças
permanentes com qualquer parte do mundo exterior».
Tirando uma entrada tardia — embora crucial — na Primeira Guerra
Mundial, a América do século XX conseguiu, em geral, evitar complicações
e alianças até 1941.
A Segunda Guerra Mundial veio mudar tudo. Os EUA foram atacados por
um Japão cada vez mais militarista, depois de Washington ter imposto
sanções económicas a Tóquio que teriam deixado o país de rastos. Os
americanos defenderam-se ferozmente. Projetaram o seu então já vasto poder
no outro lado do mundo e, para que as coisas se mantivessem assim, dessa
vez não voltaram para casa.
Enquanto maior potência económica e militar mundial no pós-guerra, a
América precisava, nesse momento, de controlar as rotas marítimas
mundiais, para manter a paz e fazer chegar os produtos aos mercados.
Os EUA eram «o último homem de pé». Os europeus tinham-se esgotado,
e as suas economias, tal como as suas cidades, estavam em ruínas. Os
japoneses estavam esmagados, os chineses devastados e em guerra entre si, e
os russos nem sequer faziam parte do jogo capitalista.
Um século antes, os britânicos tinham aprendido que precisavam de bases
avançadas e de centrais de carvão a partir das quais pudessem projetar e
proteger o seu poder naval. Agora, com a Grã-Bretanha em declínio, os
americanos olhavam com cobiça para os ativos britânicos e diziam: «Que
belas bases — ficamos com elas.»
O preço era justo. No outono de 1940, os britânicos tinham precisado
desesperadamente de mais navios de guerra. Os americanos tinham 50 a
mais, por isso, através do que foi designado o «Acordo Contratorpedeiros
por Bases», os britânicos trocaram a sua possibilidade de serem uma
potência global por ajuda para se manterem na guerra. Quase todas as bases
navais britânicas no Hemisfério Ocidental foram entregues.
O que estava aqui em jogo, e ainda está, para todos os países, era o betão.
O betão na construção de portos, pistas de aterragem, hangares aéreos
robustos, depósitos de combustível, docas secas e áreas de treino para as
Forças Especiais. No Leste, depois da derrota do Japão, a América
aproveitou a oportunidade para construir estas estruturas por todo o
Pacífico. Já tinham Guam, que ficava a meio caminho; a seguir, obtiveram
bases até à ilha japonesa de Okinawa, no Mar da China Oriental.
Os americanos também olhavam para terra. Se iam pagar para reconstruir
a Europa, através do Plano Marshall de 1948-51, tinham de se assegurar de
que a União Soviética não iria destruí-la e alcançar a costa atlântica. Os
soldados não voltaram para casa. Em vez disso, assentaram arraiais na
Alemanha e fizeram recuar o Exército Vermelho através da Planície do Norte
Europeu.
Em 1949, Washington liderou a formação da NATO e, com isto, assumiu
efetivamente o comando do poder militar que restava no mundo ocidental. A
chefia civil da NATO pode pertencer a um belga num ano e a um britânico no
ano seguinte, mas o comandante militar é sempre um americano, e o maior
poder de fogo dentro da NATO é, de longe, o americano.
Diga o tratado o que disser, o Comandante Supremo da NATO responde,
em última análise, a Washington. O Reino Unido e a França aprenderiam à
sua custa, durante a Crise do Suez de 1956, quando foram obrigados, pela
pressão americana, a cessar a sua ocupação da zona do canal, perdendo, em
resultado, a maior parte da sua influência no Médio Oriente, que um país da
NATO não define uma política estratégica naval sem, primeiro, obter a
concordância de Washington.
Depois de a Islândia, a Noruega, a Grã-Bretanha e a Itália (todos
membros fundadores da NATO) terem concedido aos EUA o acesso às suas
bases e direitos sobre elas, a América dominava agora o Atlântico Norte e o
Mediterrâneo, assim como o Pacífico. Em 1951, alargou o seu domínio ao
Sul deste oceano, formando uma aliança com a Austrália e a Nova Zelândia,
e também ao Norte, depois da Guerra da Coreia de 1950-53.
Havia, agora, dois mapas dos Estados Unidos: o mais familiar, que se
estendia em diagonal de Seattle, na costa do Pacífico, para baixo, até à
península no Mar dos Sargaços, e o que demonstrava a pegada do poder
geopolítico da América. Este último mapa mostrava as bases, os portos e as
pistas de aterragem — as construções reais que se podem marcar numa
página. Mas era também um mapa concetual, que revelava que, no caso de a
situação A ocorrer na região B, poder-se-ia contar com o país C como
aliado dos EUA, e vice-versa. Se uma grande potência pretendesse brincar
em qualquer lugar do mundo, sabia que, se os EUA quisessem, poderiam
intervir na contenda. Nascera uma superpotência. Nos anos 60, o fracasso
dos EUA no Vietname prejudicou-lhes a confiança e tornou-os mais
cautelosos no envolvimento em problemas internacionais. Todavia, o que
foi, com efeito, uma derrota não alterou substancialmente a estratégia global
da América.
Agora, existiam apenas três locais de onde poderia vir um desafio à
hegemonia americana: de uma Europa unida, da Rússia e da China. Todas
estas potências se fortaleceriam, mas duas atingiriam os seus limites.
O sonho de alguns europeus de uma UE com uma «união cada vez maior»
e uma política externa e de defesa comum está a morrer lentamente debaixo
dos nossos olhos e, mesmo que assim não fosse, os países da UE gastam tão
pouco em defesa que, em última análise, continuam dependentes dos EUA. A
crise económica de 2008 deixou as potências europeias com pouca
capacidade e vontade de participar em aventuras no exterior.
Em 1991, a ameaça russa foi eliminada devido à assombrosa
incompetência económica da própria Rússia, ao seu desvario militar e ao
insucesso em convencer as massas dominadas do seu império de que os
gulags e a produção em excesso de tratores financiados pelo estado eram o
caminho a seguir. O recente antagonismo da Rússia de Putin é uma pedra no
sapato dos EUA, mas não uma ameaça séria ao domínio da América.
Quando, em 2014, o Presidente Obama descreveu a Rússia como «não mais
do que um poder regional», pode ter sido desnecessariamente provocador,
mas não estava errado. As barras da prisão geográfica da Rússia, como
vimos no Capítulo 1, ainda estão no mesmo sítio: os russos ainda não têm um
porto de águas quentes com acesso às rotas marítimas globais e ainda lhes
falta a capacidade militar para, em tempo de guerra, chegarem ao Atlântico
através dos Mares Báltico e do Norte, ou do Mar Negro e do Mediterrâneo.
Os EUA estiveram parcialmente por trás da mudança de governo na
Ucrânia, em 2014. Queriam alargar a democracia no mundo e afastar a
Ucrânia da influência russa, enfraquecendo, assim, o Presidente Putin.
Washington sabe que, durante a última década, enquanto a América estava
distraída no Iraque e no Afeganistão, os russos ganharam vantagem naquilo a
que chamam o «exterior próximo», recuperando uma implantação sólida em
locais como o Cazaquistão e conquistando território na Geórgia.
Tardiamente, e com alguma falta de convicção, os americanos têm vindo a
tentar reverter os ganhos da Rússia.
Os americanos preocupam-se com a Europa, preocupam-se com a NATO,
agirão em determinadas circunstâncias (se for do seu interesse), mas, para
eles, a Rússia é agora, essencialmente, um problema europeu, embora a
mantenham sob vigilância.
Resta, pois, a China, e a China está em ascensão.
A maioria das análises escritas na última década preveem que, em meados
do século XXI, a China ultrapassará os EUA e tornar-se-á a maior
superpotência mundial. Por motivos parcialmente expostos no Capítulo 2,
esta teoria não me convence. Poderá levar um século.
Economicamente, os chineses estão a caminho de igualar os americanos, e
isso confere-lhes bastante influência e um lugar na mesa principal, mas,
militar e estrategicamente, estão décadas atrasados. Os EUA passarão essas
décadas tentando garantir que esse estado de coisas não se altere, mas
parece inevitável que o fosso venha a desaparecer.
O betão é muito caro. Não apenas a mistura e o vazamento, mas também as
autorizações para o misturar e vazar onde se quiser. Como vimos a propósito
do «Acordo Contratorpedeiros por Bases», a ajuda dos americanos a outros
governos nem sempre é totalmente altruísta. A ajuda económica, e a não
menos importante ajuda militar, garantem autorizações para vazar cimento,
mas garantem ainda muito mais do que isso, mesmo que também exista um
custo adicional.
Por exemplo, Washington pode estar horrorizado com as violações dos
direitos humanos na Síria (um estado hostil) e expressar as suas opiniões
ruidosamente, mas a sua repulsa pelo mesmo tipo de violações no Bahrein
pode ser um pouco mais difícil de ouvir, sendo abafada pelos motores da
Quinta Frota dos Estados Unidos, que está baseada no Bahrein como
convidada do governo local. Por outro lado, a ajuda garante o direito a dizer
ao governo B (digamos, da Birmânia) que será melhor resistir às propostas
do governo C (digamos, da China). Neste exemplo em concreto, os EUA
vieram atrasados, porque o governo birmanês só recentemente começou a
abrir-se à maior parte do mundo exterior, e Pequim entrou na corrida com
avanço.
No entanto, quando se trata do Japão, da Tailândia, do Vietname, da
Coreia do Sul, de Singapura, da Malásia, da Indonésia e de alguns outros,
tudo é mais fácil para os americanos, devido ao receio que esses países têm
do seu vizinho gigantesco e à sua ânsia de se aliarem a Washington. Todos
eles podem ter problemas entre si, mas esses problemas são minimizados
pela consciência de que, se não se juntarem, serão abatidos um por um, e
acabarão por cair sob a hegemonia chinesa.
Os EUA ainda estão na fase inicial do que, em 2011, a então Secretária de
Estado Hillary Clinton designou como «o foco na China». Foi uma frase
interessante, que alguns interpretaram como significando o abandono da
Europa; mas o foco num local não significa o abandono de outro. A questão é
mais o peso que se dá a cada um deles.
Muitos estrategas da política externa governamental dos EUA estão
convencidos de que a História do século XXI será escrita na Ásia e no
Pacífico. É aí que vive metade da população do mundo, e, se se contar com a
Índia, prevê-se que, em 2050, essa região seja responsável por metade da
produção económica global.
Por este motivo, veremos os EUA investirem cada vez mais tempo e
dinheiro na Ásia Oriental, para estabelecerem a sua presença e intenções na
região. Por exemplo, os americanos instalaram uma base para os fuzileiros
navais dos Estados Unidos no Norte da Austrália. Mas, para exercerem uma
influência real, poderão ter de investir também numa ação militar limitada,
para darem garantias aos seus aliados de que virão em seu auxílio em caso
de hostilidades. Por exemplo, se a China começar a bombardear um
contratorpedeiro japonês e parecer decidida a prosseguir a ação militar, a
marinha dos EUA poderá ter de disparar tiros de aviso contra a marinha
chinesa, ou mesmo tiros diretos, para mostrar que está disposta a entrar em
guerra por causa desse incidente. Da mesma forma, quando a Coreia do
Norte dispara contra a Coreia do Sul, o Sul devolve os disparos, mas,
presentemente, os EUA não o fazem. Em vez disso, colocam publicamente
forças em alerta, marcando assim uma posição. Se a situação se agravasse,
disparariam então tiros de aviso contra um alvo norte-coreano e, finalmente,
tiros diretos. Esta é uma forma de intensificar a pressão sem declarar guerra
— e é aqui que as coisas se tornam perigosas.
Os EUA estão a tentar demonstrar a toda a região que esta tem todo o
interesse em estar do lado de Washington — e a China está a fazer o
contrário. Logo, se desafiado, cada um dos lados terá de reagir, já que cada
desafio a que se esquive fará com que a confiança dos seus aliados, e o
medo dos concorrentes, comecem a erodir-se lentamente, até que acabe por
surgir uma ocorrência que convença um estado a mudar de lado.
Os analistas escrevem, com frequência, sobre a necessidade que certas
culturas têm de não perderem a face, ou de não serem vistas a recuar, mas
este não é um problema exclusivo das culturas árabes ou da Ásia Oriental —
é um problema humano, expressado de várias formas. Pode ser mais definido
e abertamente articulado nessas duas culturas, mas os estrategas da política
externa americana estão tão conscientes dele como qualquer outra potência.
A língua inglesa tem até dois provérbios que demonstram como esta ideia
está profundamente enraizada: «Dá-se-lhes uma mão e levam logo o braço»
e a máxima criada pelo Presidente Theodore Roosevelt em 1900, que hoje
faz parte do léxico político: «Fala suavemente, mas traz contigo um grande
pau.»
Neste século, o jogo mortal será o de saber como os chineses, os
americanos e outros poderes na região irão gerir cada crise que surja sem
perderem a face, e sem deixarem que cresça um profundo poço de
ressentimento e raiva de ambos os lados.
A Crise dos Mísseis de Cuba é, geralmente, considerada uma vitória
americana; o que é menos publicitado é que, vários meses depois de a
Rússia ter retirado os seus mísseis de Cuba, os Estados Unidos retiraram os
seus mísseis Júpiter (que podiam atingir Moscovo) da Turquia. Na verdade,
foi um compromisso em que ambos os lados puderam, no fim, dizer aos
respetivos públicos que não tinham capitulado.
No Pacífico do século XXI, há outros grandes compromissos a serem
alcançados. A curto prazo, a maior parte deles, embora não todos, deverá
ser obra dos chineses — um primeiro exemplo é a declaração por Pequim de
uma Zona de Identificação de Defesa Aérea, exigindo que as nações
estrangeiras informem a China antes de entrarem no que é território
disputado, e o facto de os americanos terem sobrevoado a zona
deliberadamente sem aviso prévio. Os chineses ganharam algo ao
declararem a zona, fazendo dela uma questão relevante; os EUA ganharam
algo ao serem vistos a não obedecer. É um jogo a longo prazo.
E é também um jogo do gato e do rato. No início de 2016, pela primeira
vez, a China fez aterrar um avião numa das pistas que construiu nas ilhas
artificiais que está a criar na área das Ilhas Spratly, no Mar da China
Meridional. O Vietname e as Filipinas protestaram formalmente, pois ambos
têm reivindicações territoriais na zona, e os EUA descreveram a atitude da
China como ameaçadora da «estabilidade regional». Agora, Washington está
atento a cada projeto de construção, e a cada voo, e tem de selecionar
quando e onde protesta com mais vigor ou envia patrulhas navais e da força
aérea para perto do território disputado. Seja como for, precisa de assegurar
aos seus aliados que os apoiará e garantirá a liberdade de navegação em
zonas internacionais, sem, no entanto, ir tão longe que atraia a China para um
confronto militar.
A política dos EUA em relação aos japoneses é assegurar-lhes que
partilham interesses estratégicos em relação à China e garantir que a base
americana em Okinawa permanece aberta. Os americanos ajudarão a Força
de Autodefesa Japonesa a adquirir robustez, mas, simultaneamente,
restringirão a capacidade militar do Japão para desafiar os EUA no
Pacífico.
Embora todos os outros países da região sejam importantes, naquilo que é
um puzzle diplomático complicado, os estados-chave parecem ser a
Indonésia, a Malásia e Singapura. Os três estão situados ao lado do Estreito
de Malaca, que, no seu ponto mais apertado, tem apenas 2,7km de largura.
Todos os dias, passam por esse estreito 12 milhões de barris de petróleo,
destinados a uma China cada vez mais sequiosa e a outros locais da região.
Enquanto aqueles três países forem pró-americanos, os EUA estão em
vantagem.
Uma outra vantagem é que os chineses não são politicamente ideológicos,
não pretendem espalhar o comunismo, nem cobiçam (muito) mais território,
como os russos fizeram durante a Guerra Fria, e nenhum dos lados deseja um
conflito. A China pode aceitar que a América vigie a maior parte das rotas
marítimas que levam os produtos chineses ao mundo, desde que os
americanos aceitem que haverá limites ao quanto esse controlo se
aproximará da China.
Haverá desentendimentos, e o nacionalismo será usado, ocasionalmente,
para garantir a unidade do povo chinês, mas cada um dos lados procurará
chegar a um compromisso. O perigo surgirá se houver mal-entendidos e/ou
se arriscarem demasiado.
Existem pontos problemáticos. Os americanos têm um tratado com Taiwan
que estipula que, se os chineses invadirem o que consideram ser a sua 23ª
província, os EUA declarar-lhes-ão guerra. Uma linha vermelha para a
China, que poderia desencadear uma invasão, é o reconhecimento formal de
Taiwan pelos EUA, ou uma declaração de independência por parte de
Taiwan. Contudo, nada indica que tal possa vir a acontecer, e não se
vislumbra uma invasão chinesa no horizonte.
Enquanto a sede da China por petróleo e gás estrangeiros cresce, a dos
EUA decresce. Isto terá um enorme impacto nas suas relações externas,
especialmente no Médio Oriente, com efeitos indiretos para outros países.
Devido às perfurações marítimas em águas costeiras dos EUA, e à
fraturação hidráulica subterrânea em vastas regiões do país, a América
parece destinada a tornar-se, não só autossuficiente em energia, mas também
exportadora líquida de energia, por volta de 2020. Isto significará que a sua
preocupação em assegurar um fluxo de petróleo e gás da região do Golfo
diminuirá. Continuará a ter interesses estratégicos na região, mas a sua
importância já não será tão primordial. Se a atenção da América decrescer,
as nações do Golfo procurarão novas alianças. Um dos candidatos será o
Irão, outro a China, mas isso só acontecerá quando os chineses tiverem
construído a sua marinha oceânica e, o que é igualmente importante,
estiverem preparados para a utilizar.
A Quinta Frota dos Estados Unidos não está preparada para abandonar o
seu porto no Bahrein — esse é um pedaço de betão a que teria relutância em
renunciar. Porém, se os fornecimentos de energia da Arábia Saudita, do
Kuwait, dos Emirados Árabes Unidos e do Qatar já não forem necessários
para manter as luzes da América ligadas, e os seus carros na estrada, o
público e o Congresso americanos perguntarão o que faz ela ali. Se a
resposta for «está a vigiar o Irão», poderá não ser suficiente para pôr termo
ao debate.
Noutro ponto do Médio Oriente, a política dos EUA a curto prazo é evitar
que o Irão se torne demasiado forte e, simultaneamente, tentar celebrar o que
é conhecido como o «grande negócio» — um acordo que resolva as muitas
questões que dividem os dois países e que acabe com três décadas e meia de
inimizade. Com as nações árabes a lançar-se no que poderá ser uma luta de
décadas com os islamitas armados, Washington parece ter desistido da ideia
otimista de promover o nascimento de democracias jeffersonianas, e querer
concentrar-se em tentar gerir a situação, fazendo, ao mesmo tempo, todo o
possível por não sujar as botas dos soldados americanos de areia.
A relação estreita com Israel poderá arrefecer, embora lentamente, à
medida que a demografia dos EUA se altera. Os filhos dos imigrantes
hispânicos e asiáticos que estão agora a chegar aos EUA interessar-se-ão
mais pela América Latina e pelo Extremo Oriente do que por um país
minúsculo na extremidade de uma região que já não é vital para os interesses
americanos.
A política na América Latina será a de garantir que o Canal do Panamá
permanece aberto, indagar sobre as tarifas para a passagem pelo proposto
canal nicaraguense de ligação ao Pacífico e vigiar a ascensão do Brasil, não
vá este lembrar-se de querer ter influência no Mar das Caraíbas.
Economicamente, os EUA competirão também com a China por influência
em toda a América Latina — mas só em Cuba irá Washington fazer tudo o
que puder para se assegurar de que domina a era pós-Castro/comunismo. A
proximidade de Cuba à Florida e a relação histórica (embora conturbada)
entre Cuba e os EUA, aliadas ao pragmatismo chinês, deverão bastar para
preparar o caminho para que os EUA sejam o poder dominante na nova
Cuba. A visita histórica do Presidente Obama à ilha, na primavera de 2016,
fez muito neste sentido. Obama foi o primeiro presidente dos EUA em
funções a visitar Havana desde Calvin Coolidge, em 1928. O antigo líder
cubano Fidel Castro mostrou o seu desagrado em relação ao acontecimento,
e os meios de comunicação controlados pelo estado transmitiram
respeitosamente os seus reparos negativos, mas sentiu-se que o faziam
apenas para satisfazer o velho líder; a decisão coletiva estava tomada, a
nova era já começara. A proximidade e o poder da América, assim como o
número de americanos cubanos, deverão cimentar esta nova relação ao longo
da próxima década.
Em África, os americanos são apenas mais uma nação em busca das
riquezas naturais do Continente, mas a nação com mais êxito nessa busca é a
China. Tal como no Médio Oriente, os EUA observarão a luta islamita no
Norte de África com interesse, mas tentarão não se envolver mais de perto
do que a 9000 metros de altitude.
A experiência da América na construção de nações ultramarinas parece
ter terminado.
No Iraque, no Afeganistão e noutros locais, os EUA subestimaram a
mentalidade e a força dos pequenos poderes e das tribos. A história
americana de segurança física e unidade poderá tê-los levado a sobrestimar
o poder dos seus argumentos racionalistas democráticos, segundo os quais
os compromissos, o trabalho árduo e até o voto triunfarão sobre o medo
histórico atávico e enraizado do «outro», seja este sunita, xiita, curdo, árabe,
muçulmano ou cristão. Presumiram que as pessoas quereriam juntar-se,
enquanto, na verdade, muitas não se atrevem a tentá-lo e preferem viver
separadas, devido às suas próprias experiências. Esta é uma triste reflexão
acerca da Humanidade, mas, em vários períodos da História, e em diversos
locais, parece ser uma lamentável verdade. Os atos dos americanos
destaparam uma panela em ebulição onde essa verdade estivera
temporariamente escondida.
Isto não faz dos estrategas políticos americanos «ingénuos», como alguns
dos diplomatas europeus mais presunçosos gostam de acreditar; mas é
verdade que têm uma atitude de «poder fazer» e «poder resolver» que,
inevitavelmente, não funcionará sempre.
Durante 30 anos, esteve na moda prever-se o declínio iminente ou em
curso dos EUA. Isto é tão errado agora como o foi no passado. O país mais
bem-sucedido do planeta está prestes a tornar-se autossuficiente em energia,
continua a ser a potência económica preeminente e gasta mais em
investigação e desenvolvimento para as suas forças armadas do que os
orçamentos militares gerais de todos os outros países da NATO somados. A
sua população não está a envelhecer como a da Europa e a do Japão, e um
estudo da Gallup de 2013 demonstrou que 25 por cento das pessoas que
querem emigrar referem os EUA como a sua primeira escolha de destino. No
mesmo ano, a Universidade de Xangai fez uma lista do que os seus
especialistas consideravam ser as 20 melhores universidades do mundo: 17
eram nos EUA.
O estadista prussiano Otto Von Bismarck, numa observação com duplo
sentido, afirmou, há mais de um século, que «Deus protege especialmente os
bêbados, as crianças e os Estados Unidos da América». O que parece, ainda
hoje, ser verdade.
2
A frase «Speak softly and carry a big stick; you will go far» [«Fala suavemente e traz contigo um
grande pau; assim, irás longe»] foi escrita pelo Presidente Roosevelt numa carta a Henry L. Sprague, a
26 de janeiro de 1900. Ficou conhecida como a essência da política externa de Roosevelt: a tática da
prudência e da negociação, apoiadas na possibilidade de usar a força, se necessário — N. da T.
CAPÍTULO 4

EUROPA OCIDENTAL

«Aqui, o passado estava em todo o lado,


um continente inteiro tecido com memórias.»
Miranda Richmond Mouillot,
A Fifty-Year Silence: Love, War and a Ruined House in France
MAPA EUROPA OCIDENTAL

O
mundo moderno, para o melhor e para o pior, nasceu na Europa.
Este posto avançado ocidental da grande massa terrestre da
Eurásia deu origem ao Iluminismo, o qual levou à Revolução
Industrial, que, por sua vez, resultou no que hoje vemos à nossa volta todos
os dias. Por esse facto, podemos agradecer, ou culpar, a localização da
Europa.
O clima, alimentado pela Corrente do Golfo, abençoou a região com a
quantidade certa de precipitação para o cultivo em larga escala, e com o tipo
certo de solo para que as colheitas aí floresçam. Isto permitiu o crescimento
populacional numa área onde, para a maioria, era possível trabalhar durante
todo o ano, mesmo no pico do verão. O inverno juntou a isto um bónus, com
temperaturas suficientemente quentes para possibilitar o trabalho, mas
suficientemente frias para matar muitos dos germes que, até hoje, atormentam
grandes partes do resto do mundo.
Boas colheitas significam um excedente de alimentos que podem ser
comercializados; por sua vez, isto levou ao aparecimento de centros de
comércio que se transformaram em cidades. E também permitiu que as
pessoas não pensassem apenas em produzir alimentos, voltando a sua
atenção para as ideias e a tecnologia.
A Europa Ocidental não tem verdadeiros desertos, as suas superfícies
geladas estão confinadas a poucas áreas no extremo Norte, e os terramotos,
vulcões e cheias devastadoras são raros. Os seus rios são longos, de águas
tranquilas, navegáveis e feitos para o comércio. Ao desaguarem em diversos
mares e oceanos, fluem até linhas de costa que são, a oeste, a norte e a sul,
abundantes em portos naturais.
Se está a ler estas linhas preso numa tempestade de neve nos Alpes, ou
enquanto espera que as cheias baixem, levando a água de volta ao Danúbio,
as bênçãos geográficas da Europa podem não lhe parecer assim tão
evidentes; mas, em comparação com muitos outros lugares, a Europa é
mesmo abençoada. Foram estes fatores que levaram os europeus a criar os
primeiros estados-nação industrializados, o que, por seu turno, os levou a
serem os primeiros a fazer a guerra à escala industrial.
Se considerarmos a Europa no seu todo, veremos as montanhas, rios e
vales que explicam porque existem aí tantos estados-nação. Ao contrário dos
EUA, onde uma língua e cultura dominantes se expandiram rápida e
violentamente para oeste, criando um país gigantesco, a Europa cresceu
organicamente ao longo de milénios e permanece dividida em regiões
geográficas e linguísticas.
As diversas tribos da Península Ibérica, por exemplo, impedidas de se
expandir para norte, até França, pela presença dos Pirenéus, foram-se
juntando gradualmente ao longo de milhares de anos, para formarem a
Espanha e Portugal — e nem mesmo a Espanha é um país inteiramente unido,
com a Catalunha a manifestar o seu desejo de independência de forma cada
vez mais audível. A França também foi formada por barreiras naturais,
enquadrada como está pelos Pirenéus, os Alpes, o Reno e o Oceano
Atlântico.
Os rios principais da Europa não comunicam entre si (a menos que se
conte com o Sava, que desagua no Danúbio, em Belgrado). Isto explica
parcialmente porque existem tantos países no que é um espaço relativamente
pequeno. Como não se interligam, a maior parte dos rios acaba por funcionar
como fronteira, e cada um constitui uma esfera de influência económica em
si mesmo; tal deu lugar ao aparecimento de, pelo menos, uma concentração
urbana importante nas margens de cada rio, algumas das quais, por sua vez,
se transformaram em cidades capitais.
O segundo maior rio da Europa, o Danúbio (2864km), é um exemplo
típico. Nasce na Floresta Negra alemã e corre para sul, em direção ao Mar
Negro. Ao todo, a bacia do Danúbio afeta 18 países e forma várias
fronteiras naturais pelo caminho, incluindo as da Eslováquia com a Hungria,
da Croácia com a Sérvia, da Sérvia com a Roménia e da Roménia com a
Bulgária. Há mais de 2000 anos, era uma das fronteiras do Império Romano,
o que, por sua vez, o ajudou a tornar-se uma das principais rotas comerciais
dos tempos medievais e deu origem às atuais cidades capitais de Viena,
Bratislava, Budapeste e Belgrado. Formou também a fronteira natural de
dois Impérios subsequentes, o Austro-Húngaro e o Otomano. À medida que
cada um destes se foi retraindo, as nações voltaram a emergir, acabando por
se transformar em estados-nação. Contudo, a geografia da região do
Danúbio, em especial na sua região sul, ajuda a explicar porque existem aí
tantas pequenas nações, em comparação com os países maiores localizados
dentro e à volta da Planície do Norte Europeu.
Há muitos séculos que os países do Norte da Europa são mais ricos do
que os do Sul. O Norte industrializou-se antes do Sul, pelo que tem tido uma
economia mais próspera. Como muitos dos países do Norte abrangem o
coração da Europa Ocidental, as suas ligações comerciais foram mais fáceis
de manter, e os vizinhos abastados podiam negociar entre si — enquanto os
espanhóis, por exemplo, tinham de optar entre atravessar os Pirenéus para
estabelecer relações comerciais ou restringir-se aos mercados limitados de
Portugal e do Norte de África.
A Bacia do Danúbio ilustra as vantagens geográficas do terreno na Europa; rios interligados em
terreno plano forneceram fronteiras naturais e uma rede de transportes facilmente navegável
que impulsionou um sistema de comércio florescente.

Existem também teorias indemonstráveis, segundo as quais o domínio do


catolicismo no Sul o atrasou, enquanto a ética de trabalho protestante ergueu
os países do Norte a outras alturas. Sempre que visito a cidade bávara de
Munique, reflito nesta teoria, e, ao passar pelos templos cintilantes das sedes
da BMW, da Allianz e da Siemens, encontro motivos para a pôr em dúvida.
Na Alemanha, 34 por cento da população é católica, e a própria Baviera é
predominantemente católica, embora as suas preferências religiosas não
pareçam ter influenciado o seu progresso, nem a sua insistência em que os
gregos trabalhassem mais e pagassem mais impostos.
O contraste entre o Norte e o Sul da Europa pode também, pelo menos em
parte, atribuir-se ao facto de que o Sul tem menos planícies costeiras
adequadas à agricultura, e tem sofrido mais secas e catástrofes naturais do
que o Norte, embora numa escala menor do que sucede noutras partes do
mundo. Como vimos no Capítulo 1, a Planície do Norte Europeu é um
corredor que se estende de França aos Montes Urais, na Rússia, sendo
delimitada a norte pelos Mares do Norte e Báltico. O terreno permite um
bom cultivo em grande escala, e as vias navegáveis possibilitam o fácil
transporte das colheitas e de outros produtos.
De todos os países da planície, França era o mais bem situado para tirar
partido dela. França é o único país europeu que pode considerar-se
simultaneamente uma potência do Norte e do Sul. Contém a maior extensão
de terreno fértil da Europa Ocidental e muitos dos seus rios estão
interligados; um deles corre para oeste até ao Atlântico (o Sena), outro para
sul até ao Mediterrâneo (o Ródano). Estes fatores, conjugados com o seu
terreno relativamente plano, favoreceram a unificação das regiões e —
especialmente a partir do tempo de Napoleão — a centralização do poder.
Mas, para sul e para oeste, muitos países continuam na segunda fila do
poder europeu, em parte devido à sua localização. O Sul de Itália, por
exemplo, ainda se encontra muito aquém do Norte em termos de
desenvolvimento, e, embora Itália seja um estado unificado (incluindo
Veneza e Roma) desde 1871, as tensõs da desavença entre Norte e Sul são
maiores agora do que alguma vez foram desde a Segunda Guerra Mundial.
Há muito que os fortes centros industriais, turísticos e financeiros do Norte
possibilitam um nível de vida mais alto nessa zona, o que levou à formação
de partidos políticos que pugnam pelo corte dos subsídios estatais ao Sul, ou
mesmo pelo rompimento com o Sul.
A Espanha também enfrenta dificuldades, e sempre as enfrentou, devido à
sua geografia. As suas estreitas planícies costeiras têm solos pobres, e o
acesso aos mercados é internamente dificultado pela pequena extensão dos
rios e pela Meseta Central, um planalto de altitude elevada rodeado por
cordilheiras de montanhas, algumas das quais o atravessam. O comércio com
a Europa Ocidental é também prejudicado pelos Pirenéus, e todos os
mercados a sul, do outro lado do Mediterrâneo, ficam em países em vias de
desenvolvimento com rendimentos limitados. A Espanha foi deixada para
trás depois da Segunda Guerra Mundial, pois, sob a ditadura de Franco,
ficou politicamente estagnada, distanciando-se da maior parte da Europa
moderna. Franco morreu em 1975 e a recém-democrática Espanha aderiu à
UE em 1986. Nos anos 90, já começara a alcançar o resto da Europa
Ocidental, mas as suas fraquezas geográficas e financeiras inatas continuam
a atrasá-la e têm intensificado os problemas do excesso de gastos e do fraco
controlo fiscal central. Esteve entre os países mais afetados pela crise
económica de 2008.
A Grécia tem dilemas semelhantes. Grande parte da linha costeira grega
alberga penhascos escarpados e existem poucas planícies costeiras
adequadas à agricultura. No interior, encontram-se mais falésias íngremes,
rios que não permitem o transporte e poucos vales vastos e férteis. O terreno
agrícola existente é de alta qualidade; o problema é que não existe em
quantidade suficiente para permitir que a Grécia se torne um exportador
importante de produtos agrícolas, ou que se desenvolvam mais do que um
punhado de áreas urbanas principais, onde se concentram populações
altamente qualificadas, extremamente competentes e tecnologicamente
avançadas. Esta situação é ainda agravada pela sua localização, com Atenas
posicionada na extremidade de uma península, quase isolada do comércio
terrestre com a Europa. A Grécia depende do Mar Egeu para ter acesso ao
comércio marítimo da região — mas, do outro lado desse mar, encontra-se a
Turquia, um grande potencial inimigo. A Grécia travou várias guerras contra
a Turquia no final do século XIX e no início do século XX, e, nos tempos
modernos, continua a gastar quantidades consideráveis de euros, que não
tem, em defesa.
O território continental está protegido por montanhas, mas existem cerca
de 1400 ilhas gregas (6000 se contarmos com várias rochas que emergem do
Mar Egeu), das quais 200 são habitadas. É necessária uma marinha
considerável só para patrulhar este território, para não falar do poder naval
que seria preciso para dissuadir qualquer tentativa de invasão. O resultado é
um custo enorme em gastos militares, que a Grécia não pode pagar. Durante
a Guerra Fria, os americanos e, em menor medida, os ingleses, dispunham-se
a assegurar alguns dos requisitos militares essenciais para manter a União
Soviética fora do Mar Egeu e do Mediterrâneo. Quando a Guerra Fria
acabou, os cheques acabaram também. Mas a Grécia continuou a gastar.
Esta divisão histórica ainda hoje tem impacto, na sequência da crise
financeira que atingiu a Europa em 2008 e da desavença ideológica na Zona
Euro. Em 2012, quando se iniciaram os resgates financeiros na Europa e
foram exigidas medidas de austeridade na Grécia para o país se manter à
tona e dentro da Zona Euro, a divisão geográfica não tardou a tornar-se
evidente. Quem dava e impunha exigências eram os países do Norte, quem
recebia e suplicava eram, essencialmente, os do Sul. Não demorou muito a
que os alemães fizessem notar que trabalhavam até aos 65 anos e pagavam
impostos que iam para a Grécia, para que, aí, a idade da reforma pudesse
situar-se nos 55. Depois, perguntaram: porquê? E a resposta, «na saúde e na
doença», não os satisfez.
Os alemães lideraram a imposição de medidas de austeridade com base
nos resgates, enquanto os gregos lideraram as reações de revolta. Por
exemplo, o Ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schäuble, comentou que
«ainda não tinha a certeza de que todos os partidos políticos da Grécia
tivessem consciência da sua responsabilidade na situação difícil em que o
seu país se encontrava». Ao que o Presidente grego, Karolos Papoulias, que
lutara contra os nazis, replicou: «Não posso aceitar que o Sr. Schäuble
insulte o meu país… quem é o Sr. Schäuble para insultar a Grécia? Quem
são os holandeses? Quem são os finlandeses?» Fez também uma referência
contundente à Segunda Guerra Mundial: «Tivemos sempre orgulho em
defender, não só a nossa liberdade, o nosso país, mas também a liberdade da
Europa.» Os estereótipos dos sulistas dissolutos e indolentes e dos nortenhos
cuidadosos e trabalhadores depressa voltaram à superfície, com os meios de
comunicação gregos a responderem com lembretes constantes e ásperos do
passado da Alemanha, que incluíram a sobreposição de um bigode à Hitler a
uma fotografia de primeira página da Chanceler Merkel.
Os contribuintes gregos — que não são em número suficiente para
sustentar a economia do país — têm uma opinião muito diferente, e
perguntam: «Porque hão de os alemães de nos dar ordens, quando o euro os
beneficia mais do que a qualquer outro país?» Na Grécia, tal como noutros
locais, as medidas de austeridade impostas pelo Norte são vistas como um
ataque à soberania.
Estão a aparecer rachas no edifício da «família da Europa». Na periferia
da Europa Ocidental, a crise financeira fez a Grécia parecer um membro um
pouco à parte; a leste, também surgiram conflitos. Se se quiser que a
aberração dos últimos 70 anos de paz se prolongue por este século, essa paz
exigirá amor, cuidado e atenção.
As gerações pós-Segunda Guerra Mundial cresceram com a paz como
norma, mas a diferença na geração atual é que, hoje, os europeus têm
dificuldade em imaginar o contrário. Agora, as guerras parecem ser algo que
acontece noutros locais ou no passado — na pior das hipóteses, ocorrem na
«periferia» da Europa. Os traumas de duas guerras mundiais, seguidas de
sete décadas de paz e, depois, do colapso da União Soviética convenceram
muitas pessoas de que a Europa Ocidental é uma região «pós-conflito».
Há motivos para crer que isto ainda possa ser verdade no futuro, mas
existem fontes potenciais de conflito a borbulhar abaixo da superfície, e a
tensão entre europeus e russos poderá resultar num confronto. Por exemplo, a
História e a mudança de forma geográfica assombram a política externa
polaca, apesar de o país estar, atualmente, em paz, ser bem-sucedido e um
dos maiores estados da UE, com uma população de 38 milhões. Também
fisicamente é um dos maiores membros, e a sua economia duplicou desde
que emergiu de trás da Cortina de Ferro, mas, ainda assim, não deixa de
olhar para o passado, enquanto tenta garantir o futuro.
O corredor da Planície do Norte Europeu atinge o seu ponto mais estreito
entre a costa báltica da Polónia, a norte, e o início dos Montes Cárpatos, a
sul. Seria aqui que, da perspetiva militar russa, poderia ser colocada a
melhor linha defensiva, ou, da perspetiva de um atacante, as suas forças
seriam comprimidas, antes de se espalharem na direção da Rússia.
Os polacos viram os dois lados da questão enquanto os exércitos
passaram pelo local nos dois sentidos, alterando frequentemente as
fronteiras. Se pegarmos no The Times Atlas of European History e o
folhearmos rapidamente, como se fosse um livro de imagens animadas,
veremos a Polónia surgir por volta do ano 1000, depois mudar
continuamente de forma, desaparecer e reaparecer, até assumir a sua forma
atual, em finais do século XX.
A localização da Alemanha e da Rússia, juntamente com a experiência
dos polacos com estes dois países, não faz de nenhum deles um aliado
natural de Varsóvia. Tal como a França, a Polónia quer manter a Alemanha
presa dentro da UE e da NATO, e os medos ainda mal esquecidos que nutre
pela Rússia foram postos em evidência pela crise na Ucrânia. Ao longo dos
séculos, a Polónia tem visto a Rússia avançar e recuar, aproximando-se e
afastando-se do seu território. Depois de ter recuado, aquando da queda do
Império Soviético (russo), só havia uma tendência subsequente previsível.
As relações com a Grã-Bretanha, como contrapeso à Alemanha dentro da
UE, estabeleceram-se com facilidade, apesar da traição de 1939: a Grã-
Bretanha e a França tinham assinado um tratado garantindo irem em auxílio
da Polónia se esta fosse invadida pela Alemanha. Quando o ataque chegou, a
resposta ao Blitzkrieg foi um «Sitzkrieg» — os dois Aliados ficaram
sentados por trás da Linha Maginot, em França, enquanto a Polónia era
engolida. Apesar disto, as relações com o Reino Unido são fortes, embora os
principais aliados procurados pela recém-libertada Polónia, em 1989,
tenham sido os EUA.
Os americanos aceitaram os polacos, e vice-versa: ambos tinham os
russos em mente. Em 1999, a Polónia aderiu à NATO, fazendo a influência
desta aproximar-se mais 650km de Moscovo. Nesse momento, vários outros
países anteriormente pertencentes ao Pacto de Varsóvia eram já membros da
Aliança, e, em 1999, Moscovo viu, impotente, a NATO entrar em guerra com
a Sérvia, sua aliada. Nos anos 90, a Rússia não estava em posição de reagir,
mas, depois do caos dos anos de Yeltsin, Putin entrou a matar e defendeu-se
com vigor.
A citação mais conhecida atribuída a Henry Kissinger foi proferida nos
anos 70, quando se diz que perguntou: «Se eu quiser telefonar à Europa — a
quem devo ligar?» Os polacos têm uma pergunta atualizada: «Se os russos
nos ameaçarem, telefonamos a Bruxelas ou a Washington?» E sabem bem a
resposta.
Os países balcânicos estão também, mais uma vez, livres do jugo
imperial. O seu terreno montanhoso levou à emergência de muitos pequenos
estados na região, e foi um dos fatores que impediu a integração entre eles
— apesar de todos os esforços da experiência da União dos Eslavos do Sul,
também conhecida como Jugoslávia.
Passadas as guerras dos anos 90, a maior parte dos antigos países da
Jugoslávia vira-se para oeste, mas, na Sérvia, o apelo do Leste, com a sua
religião ortodoxa e os seus povos eslavos, permanece forte. A Rússia, que
ainda não perdoou às nações ocidentais o bombardeamento da Sérvia em
1999 e a separação do Kosovo, continua a tentar atrair a Sérvia para a sua
órbita através das forças gravitacionais da língua, da etnia, da religião e dos
acordos energéticos.
Numa frase que ficou famosa, Bismarck afirmou que uma grande guerra
seria despoletada por «um disparate qualquer nos Balcãs»; e assim foi. A
região é, agora, um campo de batalha económico e diplomático, com a UE, a
NATO, os turcos e os russos a competirem por influência. A Albânia, a
Bulgária, a Croácia e a Roménia fizeram a sua escolha e estão dentro da
NATO — e, tirando a Albânia, estão também na UE, tal como a Eslovénia.
As tensões estendem-se para norte, até à Escandinávia. A Dinamarca já é
membro da NATO e o recente ressurgimento da Rússia suscitou um debate
na Suécia sobre a conveniência de abandonar a neutralidade de dois séculos
e aderir à Aliança. Em 2013, os jatos russos encenaram uma simulação de
bombardeamento à Suécia, a meio da noite. O sistema de defesa sueco
parecia estar a dormir e não conseguiu afugentar nenhum, e foi a força aérea
dinamarquesa que se pôs em campo para escoltar os russos para longe.
Apesar disso, a maioria dos suecos é ainda contra a adesão à NATO, mas o
debate prossegue, alimentado pela afirmação de Moscovo de que seria
forçado a «reagir» se a Suécia ou a Finlândia aderissem à Aliança.
Os países da UE e a NATO precisam de formar uma frente unida face a
estes desafios, mas isso só será possível se a relação mais importante no
interior da UE permanecer intacta — a relação entre a França e a Alemanha.
Como já vimos, França era o país mais bem colocado para tirar partido
do clima, das rotas comerciais e das fronteiras naturais da Europa. Está
parcialmente protegido, exceto numa zona — o Nordeste, no ponto onde o
terreno plano da Planície do Norte Europeu se converte no que é hoje a
Alemanha. Antes de a Alemanha existir como país único, isto não era um
problema. A França estava a uma distância considerável da Rússia, longe
das hordas mongóis, e tinha o Canal entre si e a Inglaterra, o que significava
que qualquer tentativa de invasão em grande escala e ocupação total poderia,
provavelmente, ser repelida. Na verdade, a França era a potência
preeminente no Continente: o seu poder podia mesmo repercutir-se até às
portas de Moscovo.
Mas, então, a Alemanha uniu-se.
Já o vinha fazendo há algum tempo. A «ideia» de Alemanha existia há
séculos: as terras Francas Orientais que, no século X, se transformaram no
Sacro Império Romano eram por vezes designadas «as Germanias», visto
abrangerem até 500 microrreinos germânicos. Depois de, em 1806, o Sacro
Império Romano ter sido dissolvido, a Confederação Germânica de 39
microestados juntou-se, em 1815, no Congresso de Viena. Isto, por seu turno,
levou à Confederação Germânica do Norte, e depois à unificação da
Alemanha, em 1871, após a Guerra Franco-Prussiana, na qual as tropas
germânicas vitoriosas ocuparam Paris. França tinha, agora, um vizinho de
fronteira que era, geograficamente, maior do que ela própria, com uma
população de dimensão semelhante mas com uma maior taxa de crescimento,
e mais industrializado.
A unificação foi anunciada no Palácio de Versalhes, perto de Paris, após a
vitória alemã. O ponto fraco na defesa francesa, a Planície do Norte
Europeu, fora transposto. Sê-lo-ia novamente, duas vezes, nos 70 anos
seguintes, depois do que a França recorreria à diplomacia, em vez da guerra,
para tentar neutralizar a ameaça de leste.
A Alemanha tivera sempre problemas geográficos maiores do que os da
França. As terras planas da Planície do Norte Europeu davam-lhe dois
motivos para ter medo: a oeste, os alemães viam o seu poderoso vizinho há
muito unificado, a França; e, a leste, o gigantesco Urso Russo. O seu maior
receio era de um ataque simultâneo das duas potências, vindo do corredor da
planície. Não podemos saber se tal poderia ter acontecido, mas o medo de
que acontecesse teve consequências catastróficas.
A França temia a Alemanha, a Alemanha temia a França, e, quando a
França se juntou à Rússia e à Grã-Bretanha na Triple Entente de 1907, a
Alemanha passou a temer os três. Agora, havia o facto acrescido de que a
marinha britânica poderia, quando quisesse, bloquear o acesso da Alemanha
ao Mar do Norte e ao Atlântico. A solução encontrada pela Alemanha, por
duas vezes, foi atacar a França primeiro.
O dilema da posição geográfica da Alemanha e da sua beligerância ficou
conhecido como «a Questão Germânica». A solução, depois dos horrores da
Segunda Guerra Mundial, ou, na verdade, depois de séculos de guerra, foi a
aceitação da presença, em terras europeias, de uma única potência
avassaladora, os EUA, que fundaram a NATO e geraram condições para a
criação da União Europeia. Esgotados pela guerra, e com a segurança
«garantida» pelas forças armadas americanas, os europeus iniciaram uma
experiência espantosa. Foi-lhes pedido que confiassem uns nos outros.
O que, hoje, é a União Europeia foi concebida de forma que a França e a
Alemanha pudessem abraçar-se tão estreitamente que nenhuma delas tivesse
um braço livre para bater na outra. Tem funcionado brilhantemente, criando
um enorme espaço geográfico que, atualmente, contém a maior economia do
mundo.
Tem funcionado especialmente bem para a Alemanha, que se ergueu das
cinzas de 1945 e usou em seu benefício a geografia que, antes, temia.
Tornou-se o maior fabricante da Europa. Em vez de enviar exércitos para a
planície, envia produtos com a prestigiada etiqueta «Made in Germany», os
quais descem o Reno e o Elba, percorrem as autoestradas e chegam à Europa
e ao mundo, a norte, a sul, a oeste e, cada vez mais desde 1990, a leste.
Contudo, o que teve início em 1951 como a Comunidade Europeia do
Carvão e do Aço, com seis nações, transformou-se na UE de 28 nações, com
um núcleo ideológico de uma «união cada vez maior». Depois de a primeira
grande crise financeira ter atingido a União, essa ideologia está um pouco
abalada e os laços que a ligam estão a desfiar-se. Como diz o escritor
geopolítico Robert Kaplan, existem sinais dentro da UE de uma «vingança
da geografia».
A união cada vez maior levou, para 19 dos 28 países, a uma moeda única
— o euro. Os 28 membros, com exceção da Dinamarca e do Reino Unido,
estão empenhados em juntar-se a ela, se e quando preencherem os critérios
exigidos. O que hoje é claro, e, para alguns, já era claro nesse momento, é
que, em 1999, quando a moeda única foi criada, muitos dos países que se lhe
juntaram não estavam, simplesmente, preparados.
Em 1999, muitos países entraram na relação recém-redefinida de olhos
bem fechados. Esperava-se de todos eles que mantivessem os seus níveis de
dívida, desemprego e inflação dentro de certos limites. O problema foi que
alguns, em especial a Grécia, adulteravam as contas. Muitos dos peritos
sabiam-no, mas, porque o euro não é apenas uma moeda — é também uma
ideologia —, os membros fecharam os olhos.
Os países da Zona Euro concordaram em unir-se economicamente, como
observam os gregos, «na saúde e na doença», mas, quando a crise económica
de 2008 eclodiu, os países mais ricos tiveram de resgatar os mais pobres, e
rebentou uma discussão doméstica azeda. Ainda hoje os parceiros estão a
atirar pratos à cabeça uns dos outros.
A crise do euro e problemas económicos mais vastos revelaram as
brechas na Casa da Europa (particularmente ao longo da velha linha de
quebra que separa o Norte do Sul). O sonho da união cada vez maior parece
estar estagnado, ou talvez a reverter-se. Se assim for, a questão germânica
poderá regressar. Vista pelo prisma de sete décadas de paz, esta tese pode
parecer alarmista, até porque a Alemanha está entre os membros mais
pacíficos e democráticos da família europeia; mas, vista pelo prisma de sete
séculos de guerras na Europa, não pode ser excluída.
A Alemanha está determinada a continuar a ser uma boa europeia. Os
alemães sabem instintivamente que, se a União se fragmentar, os velhos
medos da Alemanha reaparecerão, especialmente sendo esta agora, de longe,
a nação mais populosa e rica da Europa, com 82 milhões de habitantes e a
quarta maior economia do mundo. Uma União falhada também prejudicaria a
Alemanha economicamente: o terceiro maior exportador de produtos do
mundo não quer ver o seu mercado mais próximo dividir-se e cair no
protecionismo.
O estado-nação alemão, apesar de ter menos de 150 anos, é agora a
potência indispensável na Europa. Em assuntos económicos, não tem rival,
fala suavemente mas traz consigo um grande pau em forma de euro, e o
Continente ouve-o. Todavia, em política externa global, limita-se a falar
suavemente, por vezes nem fala de todo, e tem aversão a paus.
A sombra da Segunda Guerra Mundial ainda paira sobre a Alemanha. Os
americanos e, mais tarde, também os europeus ocidentais, dispuseram-se a
aceitar o rearmamento alemão devido à ameaça soviética, mas a Alemanha
rearmou-se quase relutantemente e tem resistido a usar a sua força militar.
Fez de figurante no Kosovo e no Afeganistão, mas optou por não participar
no conflito líbio.
A sua incursão diplomática mais séria numa crise não económica teve
lugar na Ucrânia, o que nos diz muito acerca dos seus interesses atuais. Os
alemães estiveram envolvidos nas maquinações que, em 2014, derrubaram o
Presidente ucraniano Yanukovych, e criticaram duramente a subsequente
anexação da Crimeia pela Rússia. Todavia, ciosa dos gasodutos, Berlim foi
notoriamente mais contida nas suas críticas e no seu apoio a sanções do que,
por exemplo, o Reino Unido, que está muito menos dependente da energia
russa. Através da UE e da NATO, a Alemanha está ancorada na Europa
Ocidental, mas, em tempos tempestuosos, as âncoras podem resvalar, e
Berlim está numa situação geográfica que lhe permite, se necessário,
transferir a sua atenção para leste e cimentar laços muito mais estreitos com
Moscovo.
A observar todas estas maquinações continentais a partir das linhas
laterais do Atlântico está o Reino Unido, umas vezes presente no território
do Continente, outras em «isolamento esplêndido», mas sempre totalmente
empenhado em garantir que nenhum poder superior ao seu se erguerá na
Europa. Isto é tão verdade agora, nos corredores diplomáticos da UE, como
o era nos campos de batalha de Agincourt, Waterloo ou Balaclava.
Quando pode, o Reino Unido imiscui-se nas grandes alianças franco-
alemãs na UE; quando isso não é possível, procura alianças com outros
estados-membros mais pequenos, com vista a conseguir votos suficientes
para pôr em causa as políticas com que não concorda.
Geograficamente, os britânicos estão bem colocados. Têm bons terrenos
para cultivo, rios razoáveis, excelentes acessos ao mar e às suas reservas de
peixe; estão suficientemente perto do continente europeu para assegurarem o
comércio, mas protegidos pelo seu caráter insular — houve ocasiões em que
o Reino Unido deu graças pela sua geografia, quando guerras e revoluções
devastaram os seus vizinhos.
As perdas sofridas e a experiência ganha pela Grã-Bretanha nas guerras
mundiais não devem ser subestimadas, mas perdem impacto em comparação
com o que sucedeu na Europa continental no século XX e, aliás, mesmo antes
disso. Os britânicos estão algo distanciados do que é viver com a memória
coletiva histórica de invasões frequentes e alterações de fronteiras.
Existe uma teoria segundo a qual a relativa segurança do Reino Unido nas
últimas centenas de anos é a razão por que este país teve mais liberdade e
menos despotismo do que os países do outro lado do Canal. Esta teoria
defende que houve menos necessidade de «homens fortes» ou de ditadores, o
que, desde a Magna Carta (1215) às Disposições de Oxford (1258), levou a
formas de democracia avançadas em vários anos em relação a outros países.
É um bom argumento, embora não seja demonstrável. O que é inegável é
que a água que cerca a ilha, as árvores que a cobrem e que possibilitaram a
construção de uma marinha considerável e as condições económicas que
desencadearam a Revolução Industrial permitiram à Grã-Bretanha dominar
um império global. A Grã-Bretanha pode ser a maior ilha da Europa, mas
não é um país grande. A expansão do seu poder por todo o globo, nos
séculos XVIII, XIX e XX, foi notável, mesmo considerando o declínio da
sua posição desde então.
A sua localização ainda lhe dá algumas vantagens estratégicas, uma das
quais é a falha GIUK (Gronelândia, Islândia e Reino Unido). Trata-se de um
ponto de estrangulamento nas rotas marítimas mundiais — não tão importante
como o Estreito de Ormuz ou o Estreito de Malaca, mas que,
tradicionalmente, tem dado alguma vantagem ao Reino Unido no Atlântico
Norte. A rota alternativa para as marinhas do Norte da Europa (incluindo as
da Bélgica, da Holanda e da França) chegarem ao Atlântico passa pelo
Canal da Mancha, mas este é estreito — tem apenas 32km de largura no
Estreito de Dover — e muito bem defendido. Qualquer navio da marinha
russa que venha do Ártico terá, também, de passar pela GIUK a caminho do
Atlântico.
Esta vantagem estratégica diminuiu com a redução do papel e do poder da
Marinha Real, mas, em caso de guerra, voltaria a beneficiar o Reino Unido.
A GIUK é um dos muitos motivos pelos quais Londres entrou em pânico em
2014, quando, por um breve período, a votação sobre a independência da
Escócia pareceu poder resultar num «Sim». A perda de poder no Mar do
Norte e no Atlântico do Norte teria sido um desastre estratégico e um enorme
rombo no prestígio do que restasse do Reino Unido.
O que os britânicos têm agora é uma memória coletiva de grandeza. É essa
memória que convence muitas pessoas na ilha de que, se alguma coisa tiver
de ser feita no mundo, a Grã-Bretanha deverá estar entre os países que a
farão. Os britânicos continuam dentro da Europa, mas, ao mesmo tempo, fora
dela; esta é uma questão ainda não resolvida.
Quarenta anos depois de terem aderido à UE, os britânicos decidiram
fazer um referendo inquirindo se deveriam ou não continuar a fazer parte
dela. As duas principais questões que os fizeram aproximar-se da porta de
saída estão relacionadas: soberania e imigração. A fação anti-UE, apoiada
por alguns indecisos, tem sido alimentada pela quantidade e pelo tipo de leis
aprovadas pela UE, que o Reino Unido, como parte do acordo entre os
membros, está obrigado a cumprir. Por exemplo, têm surgido manchetes
acerca de criminosos estrangeiros, condenados por crimes graves no Reino
Unido, que não podem ser deportados por causa da Convenção Europeia dos
Direitos do Homem.
Ao mesmo tempo, a vaga de imigrantes económicos e refugiados que
chega à Europa, vinda do Médio Oriente e de África, tem também fomentado
sentimentos anti-UE, já que muitos desses imigrantes querem chegar à Grã-
Bretanha, e acredita-se que tenham sido orientados nesse sentido pelos
países da UE por onde passaram.
Os preconceitos contra os imigrantes intensificam-se sempre em tempos
de recessão económica, tal como a que recentemente atingiu a Europa, e os
efeitos deste fenómeno têm sido observados em todo o Continente,
resultando na ascensão de partidos políticos de direita, todos com
convicções contrárias ao pan-nacionalismo, com o consequente
enfraquecimento do tecido da UE.
Um exemplo ilustrativo teve lugar em 2016, quando, pela primeira vez em
meio século, a Suécia começou a verificar os documentos dos viajantes que
chegavam da Dinamarca. Foi uma resposta direta ao número de refugiados e
migrantes que chegavam ao Norte da Europa vindos do grande Médio
Oriente e aos ataques do Estado Islâmico em Paris, em novembro de 2015. A
ideia da «Zona Schengen» da UE, uma área sem fronteiras abrangendo 26
países, sofreu alguns rudes golpes, com vários países, em diversos
momentos, a reintroduzirem controlos fronteiriços por motivos de segurança.
Temendo um engarrafamento, a Dinamarca começou então a verificar as
pessoas vindas da Alemanha. Tudo isto tem um custo económico, dificulta a
circulação e constitui um ataque tanto físico como concetual à «união cada
vez maior». Alguns analistas começaram já a falar de uma «Fortaleza
Europa», devido a propostas no sentido de reduzir os níveis de imigração,
mas esquecem-se de que há também uma deriva para a «Fortaleza Estado-
Nação».
A tradicional população branca da Europa está a envelhecer. As previsões
demográficas predizem uma pirâmide invertida, com os mais velhos no cimo
e menos jovens para tomarem conta deles ou pagarem impostos. Contudo,
estas previsões não afetaram em nada a implantação dos sentimentos anti-
imigrantes na que era anteriormente a população indígena, que tem
dificuldade em lidar com as rápidas mudanças no mundo em que cresceu.
Esta alteração demográfica está, por seu turno, a ter efeitos na política
externa dos estados-nação, em especial no que se refere ao Médio Oriente.
Em assuntos como a Guerra do Iraque ou o conflito israelo-palestiniano, por
exemplo, muitos governos europeus devem, pelo menos, ter em conta a
opinião dos seus cidadãos muçulmanos na formulação das políticas.
O caráter e as normas sociais internas dos países europeus sofreram
também algum impacto. Os debates sobre os direitos das mulheres e o uso de
véu, as leis sobre a blasfémia, liberdade de discurso e muitos outros temas
têm sido influenciados pela presença de um grande número de muçulmanos
nas áreas urbanas da Europa. A máxima de Voltaire segundo a qual ele
defenderia até à morte o direito de alguém emitir a sua opinião, mesmo que a
considerasse ofensiva, foi, em tempos, um dado adquirido. Agora, apesar de
muitas pessoas terem sido mortas porque disseram algo considerado
insultuoso, o debate mudou. Já não é incomum ouvir-se defender a ideia de
que talvez insultar a religião deva estar para lá dos limites, possivelmente
até ser tornado ilegal.
Enquanto, dantes, os liberais teriam estado inteiramente de acordo com
Voltaire, hoje revelam laivos de relativismo. O massacre de jornalistas no
jornal satírico francês Charlie Hebdo, em 2015, foi seguido de condenação
e repulsa generalizadas; todavia, algumas secções da condenação liberal
foram temperadas com um «mas talvez a sátira tenha ido longe de mais». Isto
é algo novo para a Europa na Idade Moderna e faz parte das suas guerras
culturais, que se refletem em atitudes para com as estruturas políticas
europeias.
A NATO está a desfiar-se nas pontas, ao mesmo tempo que a União
Europeia. Ambas podem ser remendadas, mas, se não o forem, com o tempo
poderão extinguir-se ou tornar-se irrelevantes. Haveria, então, um regresso a
uma Europa de estados-nação soberanos, em que cada estado procuraria
alianças num sistema de equilíbrio de poderes. Os alemães voltariam a
recear o cerco dos russos e dos franceses, os franceses voltariam a recear o
seu maior vizinho e todos voltaríamos ao início do século XX.
Para os franceses, isto seria um pesadelo. Conseguiram ajudar a prender a
Alemanha dentro da UE, para depois descobrirem que, após a reunificação
da Alemanha, se tornaram o parceiro menos influente num veículo de dois
motores que tinham a ambição de guiar. Isto põe um problema a Paris que
esta cidade não parece capaz de resolver. Se não aceitar pacificamente que
Berlim tome as decisões pela Europa, arrisca-se a enfraquecer ainda mais a
União. Mas, se aceitar a liderança alemã, o seu poder ficará diminuído.
França tem capacidade para ter uma política externa independente — na
verdade, com a sua «Force de frappe», ou força nuclear dissuasora, os seus
territórios ultramarinos e as suas forças armadas apoiadas por porta-aviões,
é precisamente isso que faz —, mas sente-se segura sabendo que o seu flanco
oriental está protegido e pode dar-se ao luxo de erguer os olhos para o
horizonte.
Tanto a França como a Alemanha estão, atualmente, a tentar manter a
União coesa: agora, veem-se um ao outro como parceiros naturais. Mas só a
Alemanha tem um plano B — a Rússia.
No fim da Guerra Fria, a maior parte das potências continentais reduziu os
seus orçamentos militares e cortou nas forças armadas. Foi preciso o choque
da guerra russo-georgiana de 2008 e a anexação da Crimeia pela Rússia em
2014 para que as atenções se concentrassem na probabilidade do
recrudescimento do velho problema da guerra na Europa.
Agora, os russos lançam regularmente missões aéreas destinadas a testar
os sistemas de defesa aérea da Europa e estão ocupados a consolidar a sua
influência na Ossétia do Sul, na Abecásia, na Crimeia, na Transnístria e na
Ucrânia Oriental. Mantêm as suas ligações com os russos étnicos nos estados
Bálticos, e ainda têm a sua possessão de Calininegrado, no Mar Báltico.
Os europeus já começaram a recalcular seriamente as suas despesas
militares, mas não há muito dinheiro com que contar, e são confrontados com
decisões difíceis. Enquanto discutem essas decisões, os mapas estão a ser
retirados das gavetas, e os diplomatas e estrategas militares vão-se
apercebendo de que, embora as ameaças de Carlos Magno, Napoleão, Hitler
e dos soviéticos tenham desaparecido, a Planície do Norte Europeu, os
Cárpatos, o Báltico e o Mar do Norte ainda lá estão.
No seu livro Of Paradise and Power, o historiador Robert Kagan defende
que os europeus ocidentais vivem no paraíso, mas não devem tentar reger-se
pelas regras do paraíso quando se aventuram no mundo do poder. Talvez,
com a crise do euro a regredir, ao olharmos para o paraíso à nossa volta, nos
pareça inconcebível a possibilidade de voltarmos atrás; mas a História
mostra-nos o quanto as coisas podem mudar em apenas algumas décadas, e a
geografia ensina-nos que, se os seres humanos não lutarem constantemente
para ultrapassar as suas «regras», essas «regras» dominá-los-ão.
Foi isto que Helmut Kohl quis dizer em 1998, quando avisou, ao deixar o
cargo de Chanceler da Alemanha, que era o último líder alemão a ter vivido
durante a Segunda Guerra Mundial e, por isso, a ter presenciado os horrores
que esta infligiu. Em 2012, escreveu um artigo para o jornal diário mais
vendido na Alemanha, o Bild, no qual se mostrou ainda preocupado com a
possibilidade de, devido à crise financeira, a atual geração de líderes não
preservar a experiência do pós-guerra traduzida na confiança europeia:
«Para aqueles que não viveram estes tempos e que, especialmente agora,
durante a crise, perguntam que benefícios traz a unidade da Europa, a
resposta, apesar do período de paz europeia sem precedentes que dura há
mais de 65 anos e apesar dos problemas e dificuldades que ainda teremos de
ultrapassar, é: a paz.»
CAPÍTULO 5

ÁFRICA

«Parece sempre impossível até ser feito.»


Nelson Mandela
MAPA ÁFRICA

A
linha de costa africana? Ótimas praias, realmente encantadoras,
mas péssimos portos naturais. Rios? Rios fantásticos, mas a
maioria deles inúteis para o transporte seja do que for, dado que, a
cada poucos quilómetros, se encontram cataratas. Estes são apenas dois
numa longa lista de problemas que ajudam a explicar porque não é a África
tão bem-sucedida, tecnológica ou politicamente, como a Europa Ocidental
ou a América do Norte.
Existem muitos lugares com pouco sucesso, mas poucos têm tido tão
pouco como a África, e isto apesar da vantagem inicial de ter sido o local
onde surgiu o Homo Sapiens, há cerca de 200.000 anos. Como escreveu o
lúcido escritor Jared Diamond, num brilhante artigo na National
Geographic, em 2005, «É o contrário do que se esperaria do primeiro a
começar a corrida». Contudo, os primeiros corredores ficaram separados de
todos os outros pelo Deserto do Saara e pelos Oceanos Índico e Atlântico.
Quase todo o Continente se desenvolveu isolado da massa terrestre
eurasiática, onde as ideias e a tecnologia eram trocadas de leste para oeste,
e de oeste para leste, mas não de norte para sul.
A África, sendo um Continente vastíssimo, foi sempre composta por
diversas regiões, climas e culturas, mas o que todas elas tinham em comum
era o seu isolamento umas das outras e do mundo exterior. Agora já não é
tanto assim, mas o legado permanece.
A ideia que o mundo faz da geografia africana é imperfeita. Poucas
pessoas se apercebem da sua verdadeira dimensão. Isto porque a maioria de
nós usa o mapa-mundo Mercator padronizado. Este, tal como outros mapas,
representa uma esfera numa superfície plana, distorcendo assim as formas. A
África é muito mais comprida do que os mapas fazem, geralmente, crer, o
que explica o feito que foi a travessia do Cabo da Boa Esperança e nos
lembra a importância do Canal do Suez para o comércio mundial. Contornar
o Cabo foi uma proeza extraordinária, mas, quando se tornou desnecessário
fazê-lo, a viagem por mar da Europa Ocidental até à Índia foi encurtada em
10.000km.
Se olharmos para um mapa-mundo, colarmos mentalmente o Alasca à
Califórnia e depois virarmos os EUA ao contrário, estes parecem encaixar
grosseiramente em África, com algumas falhas, aqui e ali. Mas, na verdade,
a África é três vezes maior do que os EUA. Olhe outra vez para o mapa
Mercator padronizado e verá que a Gronelândia parece ter o mesmo tamanho
de África; porém, a África é 14 vezes maior do que a Gronelândia! Seria
possível encaixar os EUA, a Gronelândia, a Índia, a China, a Espanha, a
França, a Alemanha e o Reino Unido em África e ainda deixar espaço para a
maior parte da Europa Oriental. Sabemos que a África é uma massa terrestre
descomunal, mas os mapas raramente nos mostram até que ponto realmente o
é.
A geografia deste Continente imenso pode ser explicada de várias formas,
mas a mais básica é pensar em África em termos do terço superior e dos
dois terços inferiores.
O terço superior começa nas costas mediterrânicas dos países norte-
africanos de língua árabe. As planícies costeiras depressa dão lugar ao
Saara, o maior deserto seco do mundo, que é quase tão grande como os
EUA. Logo abaixo do Saara encontra-se a região do Sahel, uma faixa de
terreno arenoso semiárido, salpicado de rochas, que mede mais de 4800km
nos seus pontos mais largos e se estende da Gâmbia, na costa atlântica, à
Eritreia, no Mar Vermelho, passando pelo Níger e pelo Chade. A palavra
Sahel vem de sahil, em árabe, que significa costa, e é assim que as pessoas
que vivem nessa região a veem — como a linha de costa do vasto mar de
areia que é o Saara. É um outro tipo de costa, a partir da qual a influência do
Islão diminui. Do Sahel até ao Mediterrâneo, a grande maioria dos povos é
muçulmana. A sul, existe muito mais diversidade de religiões.
Na verdade, a sul do Sahel, nos dois terços inferiores de África, existe
muito mais diversidade na maior parte das coisas. O clima torna-se mais
temperado e surge vegetação verde, que se transforma em selva nas
imediações do Congo e da República Centro-Africana. Na direção da Costa
Leste, ficam os grandes lagos do Uganda e da Tanzânia, enquanto, para oeste,
aparecem mais desertos em Angola e na Namíbia. Quando chegamos à
extremidade da África do Sul, o clima volta a ser «mediterrânico», embora
estejamos a quase 8000km do ponto mais a norte, na Tunísia, na costa
mediterrânica.
Dado que foi em África que surgiram os seres humanos, somos todos
africanos. Todavia, as regras da raça alteraram-se por volta de 8000 a.C.,
quando alguns de nós, que se tinham afastado para locais como o Médio
Oriente e as cercanias da região mediterrânica, perderam o fascínio pela
errância, assentaram, começaram a cultivar a terra e acabaram por se
concentrar em aldeias e cidades.
No entanto, a sul, havia poucas plantas suscetíveis de serem domadas, e
menos ainda animais. A maior parte da terra consistia em selvas, pântanos,
desertos ou planaltos de encostas escarpadas, e nenhuma dessas
configurações se prestava ao cultivo de trigo ou arroz, ou ao sustento de
rebanhos de ovelhas. Os rinocerontes, gazelas e girafas africanos
recusavam-se teimosamente a servir de animais de carga — ou, como diz
Diamond numa passagem memorável, «A história poderia ter sido diferente
se os exércitos africanos, alimentados a carne de girafa de criação e
apoiados por unidades de cavalaria montadas em enormes rinocerontes,
tivessem invadido a Europa para derrotar os seus soldados alimentados a
carne de carneiro e montados em cavalos raquíticos.» Mas a vantagem
inicial de África na nossa História em comum deu-lhe, de facto, mais tempo
para desenvolver um outro fator que, até hoje, a impede de progredir: um
conjunto virulento de doenças, como a malária e a febre amarela, causadas
pelo calor e agravadas pelas condições de vida em aglomerados apinhados e
por más infraestruturas de saúde. Isto também sucede noutras regiões — na
América subcontinental e do Sul, por exemplo —, mas a África subsaariana
tem sido especialmente afetada, nomeadamente pelo VIH, e enfrenta um
problema particularmente grave, devido à prevalência do mosquito e da
mosca tsé-tsé.
A maior parte dos rios do Continente coloca também um problema, pois
nascem em terras altas e descem em cataratas abruptas que impedem a
navegação. Por exemplo, o poderoso Zambeze pode ser o quarto maior rio
de África, correndo ao longo de 2500km, e uma atração turística
assombrosa, com os seus rápidos borbulhantes e as Cataratas de Vitória,
mas, como rota comercial, de pouco serve. Passa por seis países, descendo
de uma altitude de 1490 metros até ao nível do mar, ao desaguar no Oceano
Índico, em Moçambique. Tem partes navegáveis por barcos de fundo raso,
mas essas partes não estão interligadas, limitando assim o transporte de
carga.
Ao contrário do que sucede na Europa, que tem o Danúbio e o Reno, esta
desvantagem tem dificultado o contacto e o comércio entre regiões — o que,
por seu turno, afetou o desenvolvimento económico e impediu a formação de
grandes regiões de comércio. Os grandes rios do Continente, o Níger, o
Congo, o Zambeze, o Nilo e outros não comunicam entre si, e essa
desconexão tem um fator humano. Enquanto vastas áreas da Rússia, da China
e dos EUA falam uma língua unificadora que favorece o comércio, em África
existem milhares de línguas, e não houve uma cultura que emergisse para
dominar áreas de dimensão equivalente. Por outro lado, a Europa era
suficientemente pequena para ter uma «língua franca» que permitisse a
comunicação, e as suas características geográficas encorajavam a interação.
Ainda que tivessem surgido estados-nação tecnologicamente produtivos, a
maior parte do Continente não deixaria de ter dificuldade em conetar-se ao
resto do mundo, visto que grande parte da sua massa terrestre é delimitada
pelos Oceanos Índico e Atlântico e pelo Deserto do Saara. As trocas de
ideias e de tecnologia mal tocaram a África Subsaariana durante milhares de
anos. Apesar disto, surgiram vários Impérios e cidades-estado africanos
depois do século VI d.C.: por exemplo, o Império do Mali (séculos XIII-
XVI) e a cidade-estado do Grande Zimbabwe (séculos XI-XV), este último
na parcela terrestre entre os Rios Zambeze e Limpopo. Porém, estes, como
outros, estavam isolados em blocos regionais relativamente pequenos, e,
embora as miríades de culturas que emergiram em todo o Continente possam
ter sido politicamente sofisticadas, a paisagem física permanecia uma
barreira ao desenvolvimento tecnológico: quando o mundo exterior chegou
em força, muitas ainda não conheciam a escrita, o papel, a pólvora ou a
roda.
Os mercadores do Médio Oriente e do Mediterrâneo faziam negócios no
Saara, após a introdução dos camelos, desde há cerca de 2000 anos,
nomeadamente comercializando as vastas reservas de sal aí existentes; mas
só depois das conquistas árabes do século VII d.C. é que ficaram reunidas as
condições para uma expansão para sul. No século IX, já tinham atravessado
o Saara, e no século XI estavam firmemente estabelecidos bastante a sul, na
Nigéria de hoje. Os árabes chegavam também da Costa Leste, instalando-se
em locais como Zanzibar e Dar es Salaam, onde hoje se situa a Tanzânia.
Quando, no século XV, os europeus finalmente desceram a Costa Oeste,
encontraram poucos portos naturais para os seus barcos. Ao contrário da
Europa ou da América do Norte, onde as linhas de costa denteadas dão
origem a portos naturais profundos, a maior parte da costa africana é regular.
E, quando conseguiram chegar a terra, tiveram dificuldade em penetrar mais
do que cerca de 160km para o interior, devido à fraca navegabilidade dos
rios e aos desafios do clima e das doenças.
Tanto os árabes como, mais tarde, os europeus, trouxeram consigo novas
tecnologias que, em grande parte, guardaram para si, e levaram tudo o que
encontraram de valor — essencialmente, recursos naturais e pessoas.
A escravatura já existia muito antes de o mundo exterior ter voltado ao seu
local de origem. Os mercadores na região do Sahel usavam milhares de
escravos para transportar vastas quantidades da mercadoria regional mais
valiosa naquele tempo, o sal, mas os árabes iniciaram a prática de
subcontratar a captação de escravos africanos a líderes tribais prestáveis,
que os entregavam na costa. No auge do Império Otomano, nos séculos XV e
XVI, centenas de milhares de africanos (maioritariamente da região
sudanesa) tinham já sido levados para Istambul, para o Cairo, para Damasco
e para todo o mundo árabe. Os europeus seguiram-lhes o exemplo,
ultrapassando os árabes e os turcos no seu apetite por, e maus tratos a,
indivíduos trazidos até aos barcos negreiros ancorados ao largo da Costa
Oeste.
Nas grandes capitais de Londres, Paris, Bruxelas e Lisboa, os europeus
puxaram então de mapas dos contornos geográficos de África e desenharam-
lhes linhas — ou, dizendo-o de um modo mais agressivo, mentiras. Entre
essas linhas, escreveram palavras como Congo Médio ou Volta Superior e
chamaram-lhes países. Essas linhas eram mais determinadas pelos locais até
onde os exploradores, as forças militares e os homens de negócios de cada
potência tinham avançado do que pela identidade dos povos que viviam nos
espaços entre elas, ou pela forma como estes queriam organizar-se. Muitos
africanos são, hoje, parcialmente prisioneiros da geografia política
fabricada pelos europeus, assim como das barreiras naturais à progressão
que a natureza lhes impôs. A partir destas condições, estão a construir uma
casa moderna e, nalguns casos, economias vibrantes e interligadas.
Hoje, existem 56 países em África. Desde que os «ventos de mudança» do
movimento de independência sopraram, em meados do século XX, algumas
das palavras entre as linhas foram alteradas — por exemplo, a Rodésia é
agora o Zimbabwe —, mas as fronteiras permanecem, surpreendentemente,
intactas na sua maior parte. Todavia, muitas trazem consigo as mesmas
divisões que implicaram quando foram traçadas, e essas divisões formais
são alguns dos muitos legados que o colonialismo deixou ao Continente.
Os conflitos étnicos dentro do Sudão, da Somália, do Quénia, de Angola,
da República Democrática do Congo, da Nigéria, do Mali e de outros locais
são a prova de que a ideia europeia de geografia não se enquadrou na
realidade da demografia africana. Pode ter havido sempre conflitos: os zulus
e os xhosa já tinham os seus desentendimentos muito antes de terem posto os
olhos num europeu. Mas o colonialismo forçou a resolução desses
desentendimentos dentro de uma estrutura artificial — o conceito europeu de
estado-nação. As guerras civis modernas são parcialmente devidas ao facto
de os colonizadores terem determinado que nações diferentes seriam uma
única nação num único estado, e de, depois de os colonizadores terem sido
expulsos, ter emergido um povo dominante dentro do estado que queria
governá-lo na totalidade, levando, assim, à violência.
Vejamos, por exemplo, a Líbia, uma invenção artificial com apenas
algumas décadas que, ao primeiro teste, se desmembrou, voltando à sua
anterior realidade de três regiões geográficas distintas. A oeste situava-se,
nos tempos gregos, a Tripolitânia (do grego tri polis, três cidades, que
acabaram por se fundir, transformando-se em Trípoli). A área a leste,
centrada na cidade de Bengasi, mas estendendo-se para sul até à fronteira
com o Chade, era conhecida, tanto nos tempos gregos como nos romanos,
como Cirenaica. Abaixo destas duas, no que é hoje o extremo Sudoeste do
país, fica a região do Fezão.
A Tripolitânia sempre se virou para norte e noroeste, exercendo o
comércio com os seus vizinhos sul-europeus. A Cirenaica virou-se sempre
para leste, para o Egito e as terras árabes. Até a corrente marítima ao largo
da costa da região de Bengasi leva os barcos naturalmente para leste. O
Fezão era, tradicionalmente, uma terra de nómadas, que tinham pouco em
comum com as duas comunidades costeiras.
Foi assim que os gregos, os romanos e os turcos governaram aquela área
— e foi esta a identidade que as pessoas interiorizaram durante séculos. A
ideia de Líbia, estabelecida há poucas décadas, terá dificuldade em
sobreviver, e um dos muitos grupos islamitas do Leste declarou já um
«emirado de Cirenaica». Embora este possa não vingar, temos aqui um
exemplo de um conceito de região exclusivamente criado por linhas
desenhadas em mapas por estrangeiros.
No entanto, um dos maiores fracassos do traçado de linhas por europeus
situa-se no Centro do Continente, no gigantesco buraco negro conhecido
como República Democrática do Congo — a RDC. Foi este o cenário do
romance de Joseph Conrad, Heart of Darkness, e ainda hoje é um local
envolto na escuridão da guerra. É um exemplo típico de como a imposição
de fronteiras artificiais pode levar a um estado fraco e dividido, devastado
por conflitos internos, e cuja riqueza mineral o condena à exploração por
forasteiros.
A RDC ilustra bem porque o termo genérico «países em vias de
desenvolvimento» é uma forma demasiado imprecisa de descrever países
que não fazem parte do mundo moderno industrializado. A RDC não está a
desenvolver-se, nem mostra quaisquer sinais de que virá a fazê-lo. A RDC
nunca deveria ter sido unificada; desmoronou-se e é a zona de guerra menos
noticiada do mundo, apesar de seis milhões de pessoas aí terem morrido em
guerras ocorridas desde o fim dos anos 90.
A RDC não é democrática, nem uma república. É o segundo maior país de
África, com uma população de cerca de 75 milhões, embora, dada a situação
aí vigente, seja difícil obter números precisos. É maior do que a Alemanha,
a França e a Espanha juntas e contém a Floresta Tropical do Congo,
ultrapassada em dimensão apenas pela Amazónia.
A população divide-se em mais de 200 grupos étnicos, dos quais o maior
é o dos bantus. Existem várias centenas de línguas, mas o uso generalizado
do francês atenua um pouco esse fosso. O francês vem dos anos em que a
RDC era uma colónia belga (1908-60) e, antes disso, dos tempos em que o
Rei Leopoldo da Bélgica a usou como sua propriedade pessoal, de onde
roubou recursos naturais para forrar os bolsos. O governo colonial belga fez
com que as versões britânica e francesa parecessem quase benignas e foi
impiedosamente brutal do princípio ao fim, com poucas tentativas de
construir qualquer tipo de infraestrutura que beneficiasse os habitantes.
Quando os belgas partiram, em 1960, deixaram para trás um país com
poucas possibilidades de se manter unido.
As guerras civis começaram quase de imediato e, mais tarde, foram
intensificadas por um papel de figurante ensopado em sangue na Guerra Fria
global. O governo da capital, Kinshasa, apoiou o lado rebelde na guerra de
Angola, atraindo assim a atenção dos EUA, que também apoiavam o
movimento rebelde contra o governo angolano patrocinado pela União
Soviética. Cada um dos lados contribuiu com armas no valor de milhões de
dólares.
Quando a Guerra Fria terminou, nenhuma das grandes potências tinha
interesse no que, na altura, se chamava Zaire, e o país cambaleou em frente,
mantendo-se à tona graças aos seus recursos naturais. O Vale do Rift entra na
RDC a sul e a leste, expondo grandes quantidades de cobalto, cobre,
diamantes, ouro, prata, zinco, carvão, manganésio e outros minerais,
especialmente na província de Catanga.
Nos tempos do Rei Leopoldo, o mundo queria a borracha da região para a
indústria automóvel em expansão; hoje, a China compra mais de 50 por
cento do que a RDC exporta, mas a população continua a viver na pobreza.
Em 2014, o Índice de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas colocou
a RDC em 186º lugar, dos 187 países que analisou. Todos os últimos 18
países dessa lista ficam em África.
Por ser tão rica em recursos e tão grande, toda a gente quer um pouco da
RDC, que, sem uma autoridade central forte, não pode defender-se.
A região faz fronteira com nove países. Todos eles desempenharam um
papel na agonia da RDC, e este é um dos motivos por que as guerras do
Congo são também conhecidas como a «guerra mundial africana». A sul, está
Angola, a norte, a República do Congo e a República Centro-Africana, a
leste, o Uganda, o Ruanda, o Burundi, a Tanzânia e a Zâmbia. As raízes das
guerras vêm de há décadas, mas os tempos mais difíceis foram despoletados
pelo desastre que atingiu o Ruanda em 1994 e, no seu rescaldo, alastrou para
oeste.
Depois do genocídio no Ruanda, os sobreviventes tutsi e os hutus
moderados formaram um governo liderado pelos tutsis. As máquinas de
matar da milícia hutu, a Interahamwe, fugiram para a RDC Oriental, mas
levaram a cabo raides na fronteira. Também se juntaram a secções do
exército da RDC para matar os tutsis da RDC, que vivem junto à zona
fronteiriça. Chegaram então os exércitos do Ruanda e do Uganda, apoiados
pelo Burundi e pela Eritreia. Aliados a milícias da oposição, atacaram a
Interahamwe e derrubaram o governo da RDC. Depois, passaram a controlar
grande parte das riquezas naturais do país, com o Ruanda, em especial, a
expedir toneladas de coltan, que é usado no fabrico de telemóveis e chips de
computador. Porém, as antigas forças governamentais não desistiram e —
com a participação de Angola, da Namíbia e do Zimbabwe — continuaram a
luta. O país tornou-se um vasto campo de batalha, com mais de 20 fações
envolvidas na contenda.
As guerras já mataram, num cálculo restritivo, dezenas de milhares de
pessoas, e foram a causa da morte de mais seis milhões, devido a doenças e
subnutrição. As Nações Unidas estimam que quase 50 por cento das vítimas
tenham sido crianças com menos de cinco anos.
Nos anos mais recentes, os combates esmoreceram, mas a RDC alberga o
conflito mais mortífero do mundo desde a Segunda Guerra Mundial e ainda
precisa da presença da maior missão de manutenção de paz das Nações
Unidas para impedir que rebente novamente uma guerra generalizada. Agora,
importa não voltar a fazer uniões impensadas, porque a RDC nunca foi um
conjunto. Devem, simplesmente, manter-se as peças afastadas até se
encontrar uma forma de as juntar sensata e pacificamente. O colonizador
europeu criou um ovo sem passar pela galinha, uma incongruência repetida
em todo o Continente e que continua a assombrá-lo.
O Burundi é outro exemplo, com tensões políticas etnicamente enraizadas
que estiveram em ebulição durante todo o ano de 2015 e se agravaram em
2016. Antigamente parte da África Oriental alemã, quando esta incluía o que
hoje é a Tanzânia, foi dividido entre a Bélgica e o Reino Unido depois da
Primeira Guerra Mundial e administrado pela Bélgica desde 1945 até à
independência, em 1962. Os belgas usaram o povo tutsi para governar os
hutus e, apesar de constituírem apenas 15 por cento da população, os tutsis
continuam a dominar a política, a economia e as forças armadas. Mais de
300.000 pessoas morreram na guerra civil entre 1993 e 2005. Os níveis de
violência começaram a subir novamente em 2015/16, depois de o Presidente
Pierre Nkurunziza ter reinterpretado a constituição de forma a permitir-lhe
concorrer a um terceiro mandato. Não era bem isto que o Presidente Obama
tinha em mente quando, durante a sua visita a África em julho de 2015,
criticou os líderes africanos, dizendo: «O continente não avançará se os seus
líderes se recusarem a sair dos cargos quando os seus mandatos terminam…
por vezes, ouviremos os líderes dizerem: “Sou a única pessoa capaz de
manter esta nação unida.” Se isto for verdade, então esse líder falhou,
realmente, na construção do seu país.» Esta frase abrangeu tanto o legado
colonial de África como o facto de os seus líderes modernos terem, muitas
vezes, sido parte do problema em vez da solução para esse legado.
A África foi amaldiçoada e abençoada pelos seus recursos — abençoada
na medida em que possui riquezas naturais em abundância, mas amaldiçoada
porque há muito que os forasteiros as pilham. Em tempos mais recentes, os
estados-nação conseguiram reclamar uma parte dessas riquezas e, hoje, os
países estrangeiros investem em vez de roubarem, mas, ainda assim, os
povos raramente beneficiam com o negócio.
Além das suas riquezas minerais naturais, a África é também dotada de
muitos grandes rios — embora a maior parte dos seus rios não favoreça o
comércio, são boas fontes de hidroeletricidade. Contudo, esta também é uma
fonte de potenciais conflitos.
O Nilo, o rio mais longo do mundo (6600km), afeta dez países
considerados próximos da sua bacia — o Burundi, a RDC, a Eritreia, a
Etiópia, o Quénia, o Ruanda, o Sudão, a Tanzânia, o Uganda e o Egito. No
século V a.C., o historiador Heródoto disse: «O Egito é o Nilo, e o Nilo é o
Egito.» Isto ainda é verdade, por isso qualquer ameaça ao abastecimento da
secção egípcia totalmente navegável do Nilo, com 1127km, seria uma
preocupação para o Cairo — suficientemente grave para justificar que o
Egito entrasse em guerra. Sem o Nilo, não haveria lá ninguém. O Egito pode
ser um país enorme, mas a grande maioria da sua população de 84 milhões
vive a poucos quilómetros do Nilo. Tendo em conta a área em que as
pessoas residem, o Egito é um dos países mais densamente populados do
mundo.
O Egito já era, provavelmente, um estado-nação quando a maior parte dos
europeus ainda vivia em cabanas de lama, mas nunca foi mais do que uma
potência regional. Está protegido por desertos por três lados e poderia ter-se
tornado uma grande potência na região mediterrânica se não fosse um
problema: quase não há árvores no Egito e, durante grande parte da História,
sem árvores não era possível construir uma marinha grandiosa, que pudesse
expandir o poder da nação. O Egito sempre teve uma marinha — importava
cedros do Líbano para construir barcos a custos exorbitantes —, mas nunca
foi uma marinha oceânica.
Hoje, o moderno Egito tem as forças armadas mais poderosas de todos os
estados árabes, graças à ajuda militar americana; mas continua limitado
pelos desertos, pelo mar e pelo seu tratado de paz com Israel. Continuará a
ser notícia, pois debate-se com dificuldades para alimentar 84 milhões de
pessoas por dia, enquanto combate uma insurgência islamita, especialmente
no Sinai, e vigia o Canal do Suez, pelo qual passa diariamente 8 por cento
de todo o comércio mundial. Cerca de 2,5 por cento do petróleo de todo o
mundo passa por ali todos os dias; o fecho do Canal acrescentaria
aproximadamente 15 dias de tempo de trânsito para a Europa e 10 para os
EUA, com os custos correspondentes.
Apesar de ter travado cinco guerras com Israel, o país com que é mais
provável que o Egito entre em conflito a seguir é a Etiópia, e o motivo é o
Nilo. Dois dos países mais antigos do Continente, com os maiores exércitos,
poderão defrontar-se por causa da principal fonte de água da região.
O Nilo Azul, que nasce na Etiópia, e o Nilo Branco encontram-se na
capital sudanesa, Cartum, antes de fluírem através do Deserto da Núbia e
entrarem no Egito. Neste ponto, a maior parte da água vem do Nilo Azul.
A Etiópia é, por vezes, chamada a «torre de água de África», devido à sua
elevada altitude e a ter mais de 20 barragens alimentadas pela chuva nas
suas terras altas. Em 2011, Adis Abeba anunciou um empreendimento
conjunto com a China para construir um projeto hidroelétrico gigantesco no
Nilo Azul, perto da fronteira com o Sudão, chamado a Barragem da Grande
Renascença, com data de conclusão prevista para 2020. A barragem será
usada para criar eletricidade, e o fluxo para o Egito deverá manter-se; mas,
em teoria, a barragem poderá também conter água para um ano, e a
conclusão do projeto dará à Etiópia o poder de reter a água para seu próprio
uso, reduzindo assim, drasticamente, o seu fluxo para o Egito.
De acordo com o estado atual das coisas, as forças armadas do Egito são
mais poderosas, mas isso está a mudar lentamente, e a Etiópia, um país com
96 milhões de pessoas, é uma potência em crescimento. O Cairo sabe-o, e
sabe também que, uma vez construída a barragem, a sua destruição criaria
uma inundação catastrófica, tanto na Etiópia como no Sudão. Todavia, de
momento, não tem um casus belli para atacar antes da finalização do projeto,
e, apesar de um ministro do governo ter sido recentemente apanhado por um
microfone a defender um bombardeamento, é mais provável que, nos
próximos anos, ocorram negociações intensas, com o Egito a exigir garantias
sólidas de que o fluxo nunca será interrompido. Prevê-se que as guerras da
água estejam entre os próximos conflitos a ter lugar neste século, e esta
merece ser seguida com atenção.
Outro líquido fortemente disputado é o petróleo.
A Nigéria é o maior produtor de petróleo da África Subsaariana, e todo o
seu petróleo de alta qualidade está no Sul. Os nigerianos do Norte queixam-
se de que os lucros desse petróleo não são distribuídos equitativamente por
todas as regiões do país. Por seu turno, isto exacerba as tensões étnicas e
religiosas entre os povos do delta nigeriano e os do Nordeste.
Em tamanho, população e recursos naturais, a Nigéria é o país mais
poderoso da África Ocidental. É a nação mais populosa do Continente, com
177 milhões de pessoas, o que, com a sua dimensão e recursos naturais, a
torna a maior potência regional. Foi formada a partir dos territórios de
vários reinos antigos, que os britânicos juntaram numa área administrativa.
Em 1898, estabeleceram um «Protetorado Britânico sobre o Rio Níger», que
veio a transformar-se na Nigéria.
O país pode, hoje, ser uma central de poder regional independente, mas o
seu povo e os seus recursos foram mal geridos durante décadas. Nos tempos
coloniais, os britânicos preferiam ficar na área sudoeste, ao longo da costa.
A sua missão «civilizadora» raramente se estendia às terras altas do Centro,
ou às populações muçulmanas do Norte, e essa metade do país continua
menos desenvolvida do que o Sul. Muito do dinheiro ganho com o petróleo é
gasto para subornar os mandachuvas do complexo sistema tribal da Nigéria.
A indústria terrestre do petróleo no delta está também a ser ameaçada pelo
Movimento para a Emancipação do Delta do Níger, um nome pomposo para
um grupo que opera numa região devastada pela indústria petrolífera, mas
que usa esse facto como cobertura para atos de terrorismo e extorsão. Os
raptos de trabalhadores petrolíferos estrangeiros estão a tornar a Nigéria um
local cada vez menos atrativo para os negócios. As jazidas marítimas de
petróleo escapam, na sua maior parte, a esta atividade, e é para aí que os
investimentos estão a ser direcionados.
O grupo islamita Boko Haram, que quer estabelecer um califado nas áreas
muçulmanas, tem usado a sensação de injustiça gerada pelo
subdesenvolvimento para ganhar implantação no Norte. Os combatentes do
Boko Haram pertencem, geralmente, ao grupo étnico kanuri, do Nordeste.
Raramente agem fora do seu território natal, não se aventurando sequer, para
oeste, até à região hauça, e muito menos até às zonas costeiras do Sul. Isto
significa que, quando as forças armadas nigerianas o procuram, o Boko
Haram está a operar em casa. A maioria da população local não coopera
com os militares, seja por medo de represálias ou por ressentimento em
relação ao Sul.
O território ocupado pelo Boko Haram não chega a pôr em perigo a
existência do estado da Nigéria. O grupo nem sequer constitui uma ameaça
para a capital, Abuja, embora esta esteja situada a meio do país; mas
constitui uma ameaça diária para os povos do Norte e prejudica a reputação
da Nigéria no estrangeiro enquanto local de negócios.
A maior parte das aldeias que o grupo capturou situam-se nas montanhas
Mandara, que se prolongam até aos Camarões. Isto significa que o exército
nacional está a operar muito longe das suas bases, e não consegue cercar
uma força do Boko Haram. O governo dos Camarões não acolhe o Boko
Haram, mas as regiões rurais dão aos combatentes espaço suficiente para
recuar, se necessário. Esta situação ainda durará alguns anos, durante os
quais o Boko Haram tentará formar alianças com os jihadistas a norte, na
região do Sahel.
Os americanos e os franceses já detetaram o problema há vários anos, e
usam agora drones de vigilância em resposta à ameaça crescente de
violência, partindo da região do Sahel/Saara e conetando-se com o Norte da
Nigéria. Os americanos usam várias bases, incluindo a localizada em
Djibuti, que faz parte do Comando Africano dos Estados Unidos, criado em
2007, e os franceses têm acesso a betão em diversos países, naquilo a que
chamam a «África Francófona».
O perigo de a ameaça alastrar a vários países foi um sinal de alerta. A
Nigéria, os Camarões e o Chade estão agora militarmente envolvidos, em
coordenação com os americanos e os franceses.
Mais a sul, na costa atlântica, encontra-se o segundo maior produtor de
petróleo da África Subsaariana — Angola. A antiga colónia portuguesa é um
dos estados-nação africanos com fronteiras geográficas naturais. Está
enquadrado pelo Oceano Atlântico a oeste, pela selva a norte e pelo deserto
a sul, enquanto as regiões a leste são terrenos acidentados esparsamente
populados, que servem de zona-tampão em relação à RDC e à Zâmbia.
A maioria da população de 22 milhões vive na metade ocidental, que é
bem irrigada e adequada à agricultura; e, ao largo da costa, a oeste, ficam a
maior parte das jazidas de petróleo de Angola. As plataformas petrolíferas
no Atlântico pertencem, essencialmente, a empresas americanas, mas mais
de metade da sua produção acaba na China. Isto faz de Angola (dependente
das oscilações nas vendas) o segundo maior fornecedor de crude ao Reino
do Meio, ultrapassado apenas pela Arábia Saudita.
Angola é mais um país familiarizado com conflitos. A sua guerra pela
independência terminou em 1975, quando os portugueses desistiram do
combate, mas metamorfoseou-se instantaneamente numa guerra civil entre
tribos, disfarçada de guerra civil por motivos ideológicos. A Rússia e Cuba
apoiavam os «socialistas», os EUA e a África do Sul do apartheid
apoiavam os «rebeldes». A maioria dos socialistas do MPLA (Movimento
Popular para a Libertação de Angola) pertenciam à tribo mbundu, enquanto
os combatentes rebeldes da oposição vinham, sobretudo, de duas outras
tribos principais, os bacongo e os ovimbundu. Os seus disfarces políticos
eram a FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola) e a UNITA (União
Nacional para a Independência Total de Angola). Muitas das guerras civis
das décadas de 60 e 70 seguiram este modelo: se a Rússia apoiasse um dos
lados, esse lado lembrar-se-ia subitamente de que tinha princípios
socialistas, enquanto os seus opositores se tornariam anticomunistas.
Os mbundu estavam em vantagem geográfica, mas não numérica. Detinham
a capital, Luanda, tinham acesso a jazidas de petróleo e ao rio principal, o
Cuanza, e eram apoiados por países que lhes podiam fornecer armas russas e
soldados cubanos. Em 2002, ganharam a guerra, e os seus escalões mais
altos adulteraram de imediato as suas algo questionáveis credenciais
socialistas, indo engrossar a longa lista de líderes coloniais e africanos que
enriqueceram à custa do povo.
Esta triste história de exploração interna e externa prossegue no século
XXI.
Como já vimos, os chineses estão em todo o lado, não brincam em serviço
e estão agora tão envolvidos em todo o Continente como os europeus e os
americanos. Cerca de um terço das importações de petróleo da China vem de
África, o que — juntamente com os metais preciosos que se podem encontrar
em muitos países africanos — significa que estão ali para ficar. O
envolvimento em África das empresas petrolíferas e das grandes
multinacionais europeias e americanas ainda é mais forte, mas a China está a
equiparar-se-lhes rapidamente. Por exemplo, está à procura de minério de
ferro na Libéria, a explorar minas de cobre na RDC e na Zâmbia, e de
cobalto, também na RDC. Já ajudou a desenvolver o porto queniano de
Mombaça e vai agora dedicar-se a projetos de maior envergadura,
precisamente no momento em que as reservas de petróleo do Quénia estão a
tornar-se comercialmente viáveis.
A Corporação de Estradas e Pontes da China, uma empresa estatal
chinesa, está a construir um projeto ferroviário de 14 mil milhões de dólares
para ligar Mombaça à capital, Nairobi. Os analistas dizem que o tempo que
os produtos levam a transitar entre as duas cidades será reduzido de 36
horas para oito, com um correspondente corte de 60 por cento nos custos.
Existem até planos para ligar Nairobi ao Sudão do Sul, assim como ao
Uganda e ao Ruanda. O Quénia pretende, com a ajuda da China, ser a central
de poder económico do Litoral Leste.
Para lá da sua fronteira sul, a Tanzânia está a tentar rivalizar com o
Quénia na ambição de se tornar o líder da África Oriental, e fechou negócios
de milhares de milhões de dólares com os chineses para projetos de
infraestruturas. Assinou também um acordo conjunto com a China e com uma
construtora de Omã para remodelar e alargar o porto de Bagamoyo, já que o
seu porto principal, em Dar es Salaam, está seriamente congestionado.
Prevê-se que Bagamoyo venha a ter capacidade para receber 20 milhões de
contentores de carga por ano, o que fará dele o maior porto de África. A
Tanzânia tem também boas redes de transporte no «Corredor Meridional de
Crescimento Agrícola da Tanzânia» e está a estabelecer ligações com a
Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral, composta por 15
nações. Isto, por seu turno, põe-na em contacto com o Corredor Norte-Sul,
que liga o porto de Durban às regiões de cobre da RDC e da Zâmbia, com
ramais que conetam o porto de Dar es Salaam a Durban e ao Malawi.
Apesar disto, a Tanzânia parece destinada a ser a potência de segunda
linha da Costa Leste. A economia do Quénia é a central do poder da
Comunidade da África Oriental, composta por cinco países, e é responsável
por cerca de 40 por cento do PIB da região. Pode ter menos terrenos aráveis
do que a Tanzânia, mas usa aqueles que tem com muito mais eficiência. O
seu sistema industrial é, também, mais eficiente, tal como o seu sistema de
transporte de produtos para os mercados — tanto internos como
internacionais. Se conseguir manter a estabilidade política, tudo indica que
continuará a ser a potência regional dominante, a curto e médio prazos.
A presença da China também se estende ao Níger, com a Corporação
Nacional de Petróleo da China a investir na pequena jazida de petróleo
situada nos campos de Ténéré, no Centro do país. E o investimento chinês
em Angola na última década excedeu os oito mil milhões de dólares e
continua a crescer todos os anos. A Corporação de Engenharia Ferroviária
da China (CREC) já gastou dois mil milhões de dólares a modernizar a linha
ferroviária de Benguela, que liga a RDC ao porto angolano de Lobito, na
costa atlântica, a 1300km de distância. Por aqui passam o cobalto, o cobre e
o manganésio que amaldiçoam e abençoam a província de Catanga, na RDC.
Em Luanda, a CREC está a construir um novo aeroporto internacional e, à
volta da capital, surgiram enormes blocos de apartamentos desenhados
segundo o modelo chinês, para albergar alguns dos 150.000 a 200.000
trabalhadores chineses que se estima estarem agora no país. Milhares desses
trabalhadores são também militares treinados e poderão transformar-se numa
milícia pronta a usar, se a China assim o entender.
O que Pequim quer de Angola é o mesmo que quer de todo o lado:
materiais com os quais fabricar os seus produtos, e estabilidade política
para garantir o fluxo desses materiais e produtos. Logo, se, em 2013, o
Presidente José Eduardo dos Santos, que está em funções há 36 anos, decidiu
pagar um milhão de dólares a Mariah Carey para cantar na sua festa de
aniversário, isso é com ele. E se os mbundu, aos quais dos Santos pertence,
continuarem a dominar o país, isso é com eles.
O envolvimento da China é uma proposta atrativa para muitos governos
africanos. Pequim e as grandes empresas chinesas não fazem perguntas
difíceis acerca de direitos humanos, não exigem reformas económicas, nem
sequer sugerem que alguns líderes africanos deixem de roubar a riqueza dos
seus países, como seria provável que fizessem o FMI ou o Banco Mundial.
Por exemplo, a China é o maior parceiro comercial do Sudão, o que explica,
em certa medida, porque protege a China constantemente o Sudão no
Conselho de Segurança das Nações Unidas, e porque continuou a apoiar o
Presidente Omar al-Bashir, mesmo depois de haver um mandado de captura
contra ele, emitido pelo Tribunal Penal Internacional. Porém, as críticas
ocidentais a esta atitude são prontamente condenadas por Pequim; são vistas
como apenas mais uma demonstração de poder destinada a impedir a China
de fazer negócios, e como hipócritas, dada a História do Ocidente em
África.
Os chineses só querem o petróleo, os minerais, os metais preciosos e os
mercados. Trata-se de uma relação equitativa entre governos, mas veremos
tensões crescentes entre as populações locais e a mão de obra chinesa,
frequentemente trazida para auxiliar nos grandes projetos. Isto, por seu turno,
pode fazer Pequim intervir mais na política local, e obrigar a China a manter
alguma presença militar em vários países.
A África do Sul é o maior parceiro comercial da China em África. Os
dois países têm um longo historial político e económico e estão bem
posicionados para trabalharem juntos. Centenas de empresas chinesas, tanto
estatais como privadas, operam agora em Durban, Joanesburgo, Pretória,
Cidade do Cabo e Porto Elizabeth.
A economia sul-africana está classificada como a segunda maior do
Continente, a seguir à da Nigéria. É, sem dúvida, a central de poder no Sul,
em termos de economia (três vezes a dimensão da de Angola), forças
armadas e população (53 milhões). A África do Sul está mais desenvolvida
do que muitas nações africanas, graças à sua localização no extremo Sul do
Continente, com acesso a dois oceanos, à sua riqueza natural em ouro, prata
e carvão e a um clima e um solo que permitem a produção de alimentos em
grande escala.
Por estar situada tão a sul, e por a planície costeira se converter
rapidamente em terras altas, a África do Sul é um dos poucos países
africanos que não sofrem a maldição da malária, já que os mosquitos têm
dificuldade em reproduzir-se ali. Isto criou condições para os colonizadores
europeus penetrarem no seu interior muito mais profunda e rapidamente do
que nos trópicos infestados de malária, se instalarem e iniciarem uma
atividade industrial em pequena escala, que cresceu até ser, hoje, a maior
economia da África Austral.
Para a maior parte da África Austral, negociar com o mundo exterior
significa negociar com Pretória, Bloemfontein e a Cidade do Cabo.
A África do Sul tem usado a sua riqueza natural e localização para
vincular os seus vizinhos ao seu sistema de transporte; ou seja, existe uma
via de dois sentidos, ferroviária e terrestre, como uma passadeira rolante,
que se estende dos portos de East London, Cidade do Cabo, Porto Elizabeth
e Durban, para norte, passando pelo Zimbabwe, Botswana, Zâmbia, Malawi
e Tanzânia, e chegando mesmo à província de Catanga, na RDC, e, mais a
leste, a Moçambique. A nova ferrovia chinesa de Catanga à costa angolana
foi construída para quebrar este domínio e poderá ir buscar algum tráfego à
RDC, mas a África do Sul parece destinada a manter a sua vantagem.
Durante os anos do apartheid, o ANC (Congresso Nacional Africano)
apoiou o MPLA de Angola na sua luta contra a colonização portuguesa.
Todavia, a paixão de uma luta partilhada está a transformar-se numa relação
mais fria, agora que cada uma das partes controla o seu país e compete a
nível regional. Angola tem um longo caminho a percorrer para se equiparar à
África do Sul. Este não será um confronto militar: o domínio da África do
Sul é praticamente total. Tem forças armadas numerosas e bem equipadas,
que incluem cerca de 100.000 soldados, dezenas de caças e de helicópteros
de ataque, e vários submarinos e fragatas modernos.
Nos tempos do Império Britânico, controlar a África do Sul significava
controlar o Cabo da Boa Esperança e, logo, as rotas marítimas entre os
Oceanos Atlântico e Índico. As marinhas modernas podem passar muito mais
ao largo da linha de costa sul-africana se o desejarem, mas o Cabo ainda é
uma peça essencial no mapa-mundo e a África do Sul é uma presença que se
impõe no conjunto do terço inferior do Continente.
Neste século, há uma nova luta por África, mas, desta vez, é uma luta
bifurcada. Existem os bem publicitados interesses exteriores, e as respetivas
ingerências na competição por recursos, mas existe também uma «luta
interna», e a África do Sul pretende ser mais rápida e ir mais longe nessa
luta.
A África do Sul domina a Comunidade para o Desenvolvimento da África
Austral (SADC), composta por 15 nações, e conseguiu obter um lugar
permanente na Conferência Internacional sobre a Região dos Grandes Lagos,
da qual nem sequer é membro. A SADC rivaliza com a Comunidade da
África Oriental (EAC), que inclui o Burundi, o Quénia, o Ruanda, o Uganda
e a Tanzânia. Esta última é também membro da SADC e os outros membros
da EAC não veem com bons olhos a sua aproximação à África do Sul. Pela
sua parte, a África do Sul parece ver a Tanzânia como um veículo para
ganhar mais influência na região dos Grandes Lagos, e para além dela.
A Força Nacional de Defesa da África do Sul tem uma brigada na RDC,
oficialmente sob o comando das Nações Unidas, mas que foi para aí enviada
pelos seus mandantes políticos para garantir que a África do Sul não é
deixada de fora dos despojos de guerra daquele país tão rico em minerais.
Isto colocou-a em competição com o Uganda, o Burundi e o Ruanda, que têm
as suas próprias ideias acerca de quem deve mandar na RDC.
A África do passado não teve possibilidades de escolha — a sua
geografia moldou-a —, e depois os europeus engendraram a maior parte das
suas fronteiras atuais. Agora, com as suas populações em crescimento
acentuado e as suas megacidades em desenvolvimento, não tem alternativa
senão aderir ao mundo moderno globalizado, ao qual está tão ligada. Nesta
tarefa, apesar de todos os problemas que já abordámos, está a avançar a
passos largos.
Os mesmos rios que entravaram o comércio são agora rentabilizados na
produção de energia hidroelétrica. Da mesma terra que tinha dificuldade em
suster uma produção alimentar em grande escala extraem-se minerais e
petróleo, tornando alguns países ricos, embora pouca dessa riqueza chegue
às mãos dos povos. Ainda assim, em muitos, mas não em todos os países, a
pobreza diminuiu e os níveis de cuidados de saúde e de educação
aumentaram. Vários países são de língua oficial inglesa, o que, numa
economia global dominada pela língua inglesa, é uma vantagem, e o
Continente cresceu economicamente durante grande parte da última década.
O lado menos risonho é que, em muitos países, o crescimento económico
está dependente dos preços globais dos minerais e da energia. Países cujos
orçamentos nacionais estão calculados para receber 100 dólares por barril
de petróleo, por exemplo, ficam com pouca margem de manobra quando os
preços caem para 80 ou 60 dólares. Os níveis de produção estão perto do
que eram nos anos 70. A corrupção continua imparável em todo o Continente
e, além dos poucos conflitos «acesos» (Somália, Nigéria, Sudão, por
exemplo), existem muitos outros que estão apenas adormecidos.
De qualquer forma, todos os anos são construídas mais estradas e
ferrovias, interligando este espaço incrivelmente diverso. As grandes
distâncias dos oceanos e desertos que separavam a África do resto do mundo
foram ultrapassadas pelos aviões, e a força industrial criou portos em locais
onde a natureza não programara a sua existência.
A cada década, desde a de 60, os otimistas têm escrito que a África está
prestes a vencer as limitações que a História e a Natureza lhe impuseram.
Talvez, desta vez, seja verdade. Tem de ser. A população da África
Subsaariana é, atualmente, de 1,1 mil milhões de pessoas, segundo alguns
cálculos — e, em 2050, esse número poderá ter mais do que duplicado para
2,4 mil milhões.
CAPÍTULO 6

MÉDIO ORIENTE

«Quebrámos o Sykes-Picot!»
Combatente do Estado Islâmico, 2014
MAPA MÉDIO ORIENTE

A
meio de quê? A oriente de quê? O próprio nome da região é
baseado na visão europeia do mundo, e foi a visão europeia da
região que a moldou. Os europeus traçaram linhas a tinta em
mapas: linhas que não existiam na realidade e que criaram algumas das
fronteiras mais artificiais que o mundo já viu. Agora, está a ser feita uma
tentativa de as redesenhar a sangue.
Um dos vídeos mais importantes que emergiram do Médio Oriente em
2014 foi ofuscado, nesse ano, por imagens de explosões e decapitações. É
um excerto da habilidosa propaganda do Estado Islâmico e mostra um
buldózer a apagar, ou melhor, a demolir, a fronteira entre o Iraque e a Síria.
Esta fronteira não é mais do que uma berma alta de areia. Se se deslocar a
areia, a fronteira deixa de existir fisicamente. Esta «linha» ainda existe em
teoria. Os próximos anos revelarão se as seguintes palavras do combatente
do Estado Islâmico foram proféticas, ou apenas uma bravata: «Estamos a
destruir as fronteiras e a derrubar as barreiras. Graças a Alá.»
Depois da Primeira Guerra Mundial, existiam menos fronteiras do que
atualmente no Médio Oriente mais alargado, e as que existiam eram,
geralmente, determinadas apenas pela geografia. Os espaços entre elas
estavam vagamente subdivididos e eram governados de acordo com a
geografia, a etnia e a religião, mas não havia qualquer tentativa de criar
estados-nação.
O Grande Médio Oriente estende-se por 1600km, de oeste a leste, do Mar
Mediterrâneo às montanhas do Irão. De norte a sul, se começarmos no Mar
Negro e terminarmos nas costas do Mar Arábico, no litoral de Omã, tem
3200km de comprimento. A região inclui vastos desertos, oásis, montanhas
cobertas de neve, longos rios, grandes cidades e planícies costeiras. E
possui bastantes riquezas naturais, sob as formas de que todos os países
industrializados e em vias de industrialização, em todo o mundo, precisam
— petróleo e gás.
Inclui também a região fértil conhecida como Mesopotâmia, a «terra entre
os rios» (o Eufrates e o Tigre). Contudo, a sua característica mais dominante
é o vasto Deserto Arábico e o terreno de vegetação rasteira no seu centro,
que abrange zonas de Israel, da Jordânia, da Síria, do Iraque, do Kuwait, de
Omã, do Iémen e da maior parte da Arábia Saudita, incluindo o Rub al’Khali
ou «Quarteirão Vazio». Este é o maior deserto contínuo de areia do mundo, e
incorpora uma área do tamanho de França. É devido a esta característica
que, não só a maioria dos habitantes da região vive na sua periferia, mas
também, até à colonização europeia, a maior parte das pessoas aí residentes
não pensavam em termos de estados-nação ou de fronteiras legalmente
estabelecidas.
A noção de que um homem de uma determinada zona não pudesse viajar
através de uma região para visitar um parente da mesma tribo, a menos que
tivesse um documento passado por um terceiro que não conhecia e que vivia
numa cidade distante, fazia muito pouco sentido. A ideia de que o dito
documento era emitido porque um estrangeiro dissera que aquela zona se
dividia agora em duas regiões e inventara nomes para elas não fazia sentido
nenhum e contrariava o modo como se vivera ali durante séculos.
O Império Otomano (1299-1922) era governado a partir de Istambul. No
seu auge, estendia-se desde as portas de Viena, atravessava a Anatólia e
chegava à Arábia e ao Oceano Índico. De oeste a leste, cobria o que são
hoje a Argélia, a Líbia, o Egito, Israel / Palestina, a Síria, a Jordânia, o
Iraque e partes do Irão. Nunca se incomodou em criar nomes para a maior
parte destas regiões; em 1867, limitou-se a dividi-las em áreas
administrativas conhecidas como «Vilaietes», as quais, em regra, se
baseavam nos locais onde certas tribos viviam, fossem os curdos no Norte
do Iraque de hoje ou as federações tribais no que é agora uma parte da Síria
e uma parte do Iraque.
Quando o Império Otomano começou a colapsar, os britânicos e os
franceses tiveram uma ideia diferente. Em 1916, o diplomata britânico
Coronel Sir Mark Sykes pegou num lápis de cera e desenhou uma linha tosca
cruzando um mapa do Médio Oriente. A linha ia de Haifa, no Mediterrâneo,
no que é hoje Israel, até Kirkurk (agora no Iraque), a nordeste. Tornou-se a
base do seu acordo secreto com o seu homólogo francês, François Georges-
Picot, para dividir a região em duas esferas de influência, no caso de a
Triple Entente derrotar o Império Otomano na Primeira Guerra Mundial. Os
territórios a norte da linha ficariam sob o controlo francês, enquanto os que
se encontravam a sul seriam submetidos à hegemonia britânica.
O termo «Sykes-Picot» tornou-se um símbolo das muitas decisões
tomadas no primeiro terço do século XX, que traíram promessas feitas a
líderes tribais e explicam parcialmente a agitação e o extremismo de hoje.
No entanto, esta explicação não deve ser sobrevalorizada: já havia violência
e extremismo antes da chegada dos europeus. Ainda assim, como vimos a
propósito de África, a criação arbitrária de «estados-nação» congregando
pessoas que não estão habituadas a viver juntas na mesma região não é uma
boa receita para gerar justiça, igualdade e estabilidade.
Antes do Sykes-Picot (em sentido lato), não existia o estado da Síria, nem
o Líbano, a Jordânia, o Iraque, a Arábia Saudita, o Kuwait, Israel ou a
Palestina. Os mapas modernos mostram as fronteiras e os nomes dos
estados-nação, mas estes são jovens e frágeis.
O Islão é a religião dominante no Médio Oriente, mas contém, dentro de
si, várias versões diferentes. A divisão mais importante no seio do Islão é
quase tão antiga como essa religião: a cisão entre muçulmanos sunitas e
xiitas teve origem em 632 d.C., data da morte do profeta Maomé, que levou a
uma disputa pela sua sucessão.
Os muçulmanos sunitas são a maioria entre os árabes e, na verdade, entre
toda a população muçulmana a nível mundial, perfazendo, talvez, 85 por
cento do total, embora, dentro de alguns países árabes, as percentagens
sejam menos nítidas. O nome vem de «Al Sunna», ou «povo da tradição».
Após a morte do Profeta, os que viriam a tornar-se sunitas alegaram que o
sucessor daquele deveria ser escolhido por meio das tradições tribais
árabes. Veem-se como muçulmanos ortodoxos.
A palavra «xiita» deriva de «Shiat Ali», que, literalmente, significa «o
partido de Ali», referindo-se ao genro do Profeta Maomé. Ali e os seus
filhos Hassan e Hussein foram assassinados e, assim, foi-lhes negado o que
os xiitas consideravam ser o seu direito natural — liderar a comunidade
islâmica.
A partir daqui, surgiram diversas disputas doutrinais e práticas culturais
que afastaram os dois principais ramos do Islão, levando a conflitos e a
guerras, embora tenham também existido longos períodos de coexistência
pacífica.
Existem também divisões dentro de cada divisão. Por exemplo, há vários
ramos do Islão Sunita que seguem grandes sábios antigos específicos,
incluindo a rígida tradição hanbali, preferida por muitos sunitas do Qatar e
da Arábia Saudita; esta, por seu turno, influenciou o ultrapuritano
pensamento salafita, que predomina entre os jihadistas.
O Islão Xiita tem três divisões principais, sendo a mais conhecida,
provavelmente, a dos duodecimanos, que seguem os ensinamentos dos Doze
Imãs, mas mesmo essa contém divisões. A escola ismaelita disputa a
linhagem do sétimo Imã, enquanto a escola zaidita disputa a do quinto Imã.
Existem também várias subdivisões da corrente dominante do Islão Xiita,
sendo os alauitas e os drusos considerados tão distantes do pensamento
islâmico tradicional que muitos outros muçulmanos, especialmente entre os
sunitas, nem os reconhecem como fazendo parte da religião.
O legado do colonialismo europeu deixou os árabes agrupados em
estados-nação e governados por líderes que tendiam a favorecer o ramo do
Islão (e a tribo) de onde eles próprios provinham. Estes ditadores usavam,
depois, a engrenagem do estado para garantir o seu domínio de toda a área
delimitada pelas linhas artificiais traçadas pelos europeus, sem tentar saber
se essa situação era ou não historicamente apropriada e justa para as
diferentes tribos e religiões que haviam sido unidas à força.
O Iraque é um exemplo típico dos conflitos e do caos que se seguiram. Os
xiitas mais religiosos nunca aceitaram que um governo liderado por um
sunita controlasse as suas cidades santas, como Najaf e Karbala, onde se diz
que os seus mártires Ali e Hussein estão sepultados. Estes sentimentos
comunais existem há séculos; são emoções que não se diluem com algumas
décadas de designação comum como «iraquianos».
Como governantes do Império Otomano, os turcos depararam-se com uma
área acidentada e montanhosa dominada pelos curdos, e depois, à medida
que as montanhas perdiam altitude e se convertiam nas planícies que
levavam a Bagdade, e, a oeste, no que é hoje a Síria, com um local onde a
maioria das pessoas eram árabes sunitas. Finalmente, para lá do ponto onde
os dois grandes Rios Tigre e Eufrates convergiam no Rio Xatalárabe,
correndo através dos pântanos e da cidade de Baçorá, encontraram mais
árabes, a maior parte dos quais era xiita. Governaram a região de acordo
com estas condicionantes, dividindo-a em três regiões administrativas:
Mossul, Bagdade e Baçorá.
Na antiguidade, estas regiões correspondiam, grosseiramente, ao que era
conhecido como a Assíria, a Babilónia e a Suméria. Quando os persas
controlaram o espaço, dividiram-no de forma semelhante, tal como o fez
Alexandre, o Grande, e, mais tarde, o Império Omíada. Os britânicos,
perante a mesma área, transformaram os três em um, uma impossibilidade
lógica que os cristãos resolvem através da Santíssima Trindade, mas que, no
Iraque, resultou numa confusão total.
Muitos analistas dizem que só um homem forte poderia unir aquelas três
áreas num único país, e o Iraque teve um homem forte atrás do outro. Mas, na
realidade, os povos nunca foram unificados, apenas ficaram paralisados de
medo. No único lugar que os ditadores não podiam ver, as mentes das
pessoas, poucas seguiram a propaganda do Estado ou deixaram que esta as
fizesse esquecer a perseguição sistemática aos curdos, o domínio do clã
muçulmano sunita de Saddam a partir da sua cidade-natal de Tikrit ou o
massacre em massa dos xiitas, depois da sua rebelião falhada de 1991.
Os curdos foram os primeiros a partir. As minorias mais restritas numa
ditadura fingem, por vezes, acreditar na propaganda de que os seus direitos
estão protegidos, porque não têm força para alterar a realidade. Por
exemplo, a minoria cristã no Iraque, e o punhado de judeus que aí existe,
consideraram mais seguro manter-se em silêncio numa ditadura secular,
como a de Saddam, do que arriscar uma mudança e o que temiam que se lhe
seguisse, e, na verdade, se seguiu mesmo. Todavia, os curdos estavam
geograficamente definidos e, acima de tudo, eram suficientemente numerosos
para poderem reagir quando a realidade da ditadura se tornou insuportável.
Os cinco milhões de curdos do Iraque estão concentrados nas províncias
nortenhas e nordestinas de Irbil, Suleimânia e Dahuk e nas regiões
circundantes. Trata-se de um território gigante em forma de crescente
formado, essencialmente, por montes e montanhas, o que significa que os
curdos mantiveram a sua identidade específica, apesar dos repetidos ataques
culturais e militares que sofreram, como a campanha al-Anfal de 1988, que
incluiu ataques aéreos com gás contra aldeias. Durante essa campanha em
oito fases, as forças de Saddam não fizeram prisioneiros, matando todos os
homens entre os 15 e os 50 anos que encontraram. Mais de 100.000 curdos
foram assassinados e 90 por cento das suas aldeias foram erradicadas do
mapa.
Quando, em 1990, Saddam Hussein invadiu o Kuwait, os curdos
aproveitaram a oportunidade para fazerem História e transformarem o
Curdistão na realidade que lhes fora prometida depois da Primeira Guerra
Mundial, no Tratado de Sèvres (1920), mas nunca concedida. Na parte final
da Guerra do Golfo, os curdos sublevaram-se, as forças Aliadas declararam
uma «zona de segurança» onde não era permitida a entrada das forças
iraquianas e um Curdistão não oficial começou a tomar forma. A invasão do
Iraque pelos EUA, em 2003, cimentou o que parece ser um facto consumado
— Bagdade não voltará a governar os curdos.
O Curdistão não é um estado soberano reconhecido, mas tem muito do
aparato inerente a estes, e os acontecimentos atuais no Médio Oriente só vêm
aumentar a probabilidade de vir a existir um Curdistão tanto de nome como
de direito internacional. As questões são: qual será a sua configuração? E
como reagirão a Síria, a Turquia e o Irão, se as suas regiões curdas tentarem
fazer parte dele e criar um Curdistão que lhes seja contíguo, com acesso ao
Mediterrâneo?

Apesar de não ser um estado reconhecido, existe um «Curdistão» identificável como região.
Transpondo fronteiras como o faz, é uma área de potenciais conflitos, no caso de as regiões
curdas tentarem estabelecer um país independente.

Haverá ainda outro problema: a unidade entre os curdos. Há muito que o


Curdistão Iraquiano está dividido entre duas famílias rivais. Os curdos da
Síria estão a tentar criar um microestado, a que chamam Rojava. Veem-no
como parte de um futuro grande Curdistão, mas, se for realmente criado,
surgirão questões relativas a quanto poder será atribuído, a quem o será e
onde. Se o Curdistão se tornar um estado internacionalmente reconhecido, a
forma do Iraque mudará. Isto, presumindo que o Iraque continuará a existir.
Poderá assim não ser.
O Reino Haxemita, como a Jordânia é também conhecida, é outro local
que foi esculpido a partir do deserto pelos britânicos, que, em 1918, tinham
uma larga parcela de terreno para administrar e vários problemas para
resolver.
Diversas tribos árabes tinham ajudado os britânicos a combater os
otomanos durante a Primeira Guerra Mundial, mas havia duas em especial
que Londres prometera recompensar no fim da guerra. Infelizmente, a mesma
promessa fora feita a ambas — o controlo da Península Arábica. Dado que
as tribos sauditas e haxemitas lutavam entre si frequentemente, isto gerava
algum desconforto. Assim, Londres sacudiu o pó dos mapas, traçou neles
algumas linhas e decretou que o chefe da família saudita podia governar uma
região e o chefe dos haxemitas podia governar a outra, embora cada um
deles «precisasse» de um diplomata britânico para supervisionar as coisas.
O líder saudita acabou por dar um nome ao seu território, designando-o com
base em si mesmo, e por isso conhecemos essa área como Arábia Saudita —
o que seria mais ou menos equivalente a chamar «Terra dos Windsor» ao
Reino Unido.
Os britânicos, muito dados a assuntos administrativos, nomearam a outra
área «Transjordânia», uma forma abreviada de referir «o outro lado do Rio
Jordão». Uma pequena cidade poeirenta chamada Amã tornou-se a capital da
Transjordânia, e, quando, em 1948, os britânicos se retiraram, o nome do
país mudou para Jordânia. Mas os haxemitas não eram da área de Amã:
originalmente, faziam parte da poderosa tribo coraixita, da região de Meca,
e os habitantes nativos eram, na sua maior parte, beduínos. A maioria da
população é, agora, palestiniana: quando, em 1967, os israelitas ocuparam a
Cisjordânia, muitos palestinianos fugiram para a Jordânia, que foi o único
estado árabe a conceder-lhes a cidadania. Hoje, temos uma situação em que
a maioria dos 6,7 milhões de cidadãos da Jordânia é palestiniana, e muitos
deles não se veem como leais súbditos do atual governante haxemita, o Rei
Abdullah. A agravar este problema está o milhão de refugiados iraquianos e
sírios que o país também acolheu, e que estão a esgotar os seus
limitadíssimos recursos.
Este tipo de alterações à demografia de um país pode causar problemas
graves, e não há lugar onde isto seja mais verdade do que no Líbano.
Até ao século XX, os árabes da região viam a área entre as montanhas
libanesas e o mar como uma simples província da região da Síria. Os
franceses, em cujas mãos a zona caiu depois da Primeira Guerra Mundial,
viram-na de maneira diferente.
Há muito que os franceses se haviam aliado aos cristãos árabes da região
e, como forma de agradecimento, inventaram um país para eles, num local
onde, nos anos 20, pareciam ser a população dominante. Como não havia
outro nome óbvio para dar ao país, os franceses designaram-no a partir das
montanhas ali próximas, e assim nasceu o Líbano. Esta fantasia geográfica
manteve-se até ao final dos anos 50. Nessa altura, a taxa de natalidade entre
os muçulmanos xiitas e sunitas do Líbano estava a crescer mais depressa do
que a dos cristãos, e a população muçulmana tinha sido engordada pelos
palestinianos que fugiam da Guerra Israelo-Árabe de 1948, que grassava nos
vizinhos Israel e Palestina. Houve apenas um censo oficial no Líbano (em
1932), porque a demografia é um assunto muito delicado e o sistema político
baseia-se parcialmente na dimensão das populações.
Há muito que ocorrem picos de conflito entre os diversos grupos
confessionais da área, e o que alguns historiadores chamam a primeira
guerra civil libanesa eclodiu em 1958 entre os cristãos maronitas e os
muçulmanos, que, por essa altura, deviam ser ligeiramente mais numerosos
do que os cristãos. Hoje, são a clara maioria, mas ainda não existem dados
oficiais, e os estudos académicos que avançam números são ferozmente
contestados.
Algumas zonas da capital, Beirute, são exclusivamente muçulmanas xiitas,
tal como a maior parte do Sul do país. É aí que o grupo xiita Hezbollah
(apoiado pelo Irão, dominado pelos xiitas) é predominante. Outro baluarte
xiita é o Vale do Beca, que o Hezbollah tem usado como escala nas suas
incursões na Síria, onde apoia as forças governamentais. Há outras cidades
que são esmagadoramente muçulmanas sunitas. Por exemplo, pensa-se que
Trípoli, no Norte, seja 80 por cento sunita, mas tem também uma
considerável minoria alauita e, dadas as tensões entre sunitas e alauitas ali
ao lado, na Síria, isto tem gerado picos esporádicos de conflito.
O Líbano só parece um estado unificado quando se olha para ele num
mapa. Poucos minutos depois de se chegar ao aeroporto de Beirute, torna-se
evidente que está longe de o ser. A viagem do aeroporto até ao centro passa
pelos subúrbios exclusivamente xiitas da zona sul, que são parcialmente
policiados pela milícia do Hezbollah, talvez a força de combate mais
eficiente do país. O exército libanês existe no papel, mas, se estalasse outra
guerra civil como a de 1975-90, desmoronar-se-ia, pois os soldados da
maior parte das unidades limitar-se-iam a voltar para as suas cidades natais
e a juntar-se às milícias locais.
Foi, em parte, o que aconteceu às forças armadas sírias, quando a guerra
civil se instalou em força nesse país, em finais de 2011.
A Síria é outro estado multirreligioso, multiconfessional e multitribal que
se desfez ao primeiro abanão. Como é típico na região, neste país existe uma
maioria de muçulmanos sunitas — cerca de 70 por cento —, mas também há
minorias substanciais de outras religiões. Até 2011, muitas comunidades
viviam lado a lado nas cidades e no campo, mas, ainda assim, havia áreas
distintas sob o domínio de grupos específicos. Tal como no Iraque, os
habitantes locais diriam sempre: «Somos um único povo, não há divisões
entre nós.» Contudo, tal como no Iraque, o nome, local de nascimento e local
de residência permitiam, geralmente, identificar facilmente as origens de
cada um e, tal como no Iraque, não era preciso muito para dividir o único
povo em vários povos.
Quando os franceses governaram a região, seguiram o exemplo britânico
de dividir para reinar. Nesse tempo, os alauitas eram conhecidos como
nusayris. Muitos sunitas não os consideravam muçulmanos, e a hostilidade
para com eles era tal que se rebatizaram como alauitas (ou seja, «seguidores
de Ali»), para reforçar as suas credenciais muçulmanas. Eram um povo
atrasado, que vivia nos montes e estava no fundo da pirâmide social da
Síria. Os franceses pegaram neles e colocaram-nos nas forças policiais e
militares, a partir de onde, ao longo dos anos, se estabeleceram como um
dos principais poderes naquela terra.
No fundo, toda a gente tinha consciência da tensão que resultava de haver
líderes de uma pequena minoria da população a governar a maioria. O clã
Assad, de onde provém o Presidente Bashar al-Assad, é alauita, um grupo
que abrange, aproximadamente, 12 por cento da população. Esta família
governa o país desde que o pai de Bashar, Hafez, tomou o poder num golpe
de Estado, em 1970. Em 1982, Hafez esmagou uma rebelião sunita da
Irmandade Muçulmana em Hama, tendo matado, talvez, 30.000 pessoas ao
longo de vários dias. A Irmandade nunca perdoou nem esqueceu, e, quando,
em 2011, se iniciou a rebelião a nível nacional, havia contas a ajustar.
Nalguns aspetos, a guerra civil que se seguiu não foi mais do que a Segunda
Parte de Hama.
A configuração e formação final da Síria estão agora em questão, mas há
um cenário no qual, se Damasco cair (o que é muito pouco provável), os
alauitas se retirarão para os seus antigos redutos na costa e nas montanhas e
formarão um microestado, tal como existia nas décadas de 20 e 30. Em
teoria, é possível, mas centenas de milhares de muçulmanos sunitas
permaneceriam na região e, se surgisse um novo governo em Damasco
dominado por sunitas, uma das suas prioridades seria assegurar uma rota
para a costa síria e derrotar as últimas bolsas de resistência.
No futuro próximo, a Síria parece destinada a ser governada como um
conjunto de feudos, sobre os quais imperarão diversos senhores da guerra. À
data em que este livro é escrito, o Presidente Assad é, simplesmente, o
senhor da guerra mais poderoso de entre vários. A guerra civil mais recente
do Líbano durou 15 anos e, por vezes, o país aproxima-se perigosamente de
mais uma. A Síria poderá ter um destino parecido.
A Síria tornou-se também, tal como o Líbano, um local usado por
potências estrangeiras para a prossecução dos seus próprios objetivos. A
Rússia, o Irão e o Hezbollah libanês apoiam as forças governamentais sírias.
Os países árabes apoiam a oposição, mas diferentes estados apoiam
diferentes grupos opositores: por exemplo, a Arábia Saudita e o Qatar
competem por influência na região, mas cada um deles apoia um diferente
mandatário para a alcançar.
Será necessária habilidade, coragem e um elemento tantas vezes em falta
— transigência — para manter estas regiões unidas como um espaço único e
governável. Especialmente porque os combatentes jihadistas sunitas estão a
tentar separá-las para alargarem o seu «califado».
Grupos como a Al Qaeda e, mais recentemente, o Estado Islâmico,
receberam o apoio que hoje têm, em parte, devido à humilhação causada
pelo colonialismo e depois pelo fracasso do nacionalismo pan-árabe — e,
em certa medida, do estado-nação árabe. Os líderes árabes não conseguiram
criar prosperidade nem liberdade, e o canto da sereia do islamismo, que
promete resolver todos os problemas, revelou-se atrativo para muitos numa
região marcada por uma mistura tóxica de religiosidade, desemprego e
repressão. Os islamitas evocam uma idade de ouro em que o Islão governava
um Império e estava na vanguarda da tecnologia, da arte, da medicina e da
administração. Ajudaram a trazer à superfície as antigas desconfianças em
relação ao «outro» em todo o Médio Oriente.
O Estado Islâmico nasceu do subgrupo «Al Qaeda no Iraque» no fim da
primeira década do século XXI, que era nominalmente dirigido pelos restos
da liderança da Al Qaeda. Quando a Guerra Civil da Síria estava em pleno
curso, o grupo separou-se da Al Qaeda e rebatizou-se. A princípio, era
conhecido no mundo exterior como ISIL («Estado Islâmico No Levante»),
mas, como a palavra árabe para Levante é Al Sham, transformou-se
gradualmente em ISIS. No verão de 2014, o grupo começou a autodesignar-
se Estado Islâmico, tendo proclamado essa entidade em vastas zonas do
Iraque e da Síria.
Este tornou-se rapidamente o grupo jihadista de referência, recrutando
milhares de muçulmanos estrangeiros para a causa, em parte devido ao seu
romantismo religioso e em parte à sua brutalidade. No entanto, a sua
característica mais atrativa era o êxito na criação de um califado; enquanto a
Al Qaeda assassinava pessoas e conquistava manchetes, o Estado Islâmico
assassinava pessoas e conquistava território.
O Estado Islâmico também conquistou uma área que é cada vez mais
importante na era da Internet — o espaço psicológico. Pegou no trabalho
pioneiro da Al Qaeda nas redes sociais e levou-o a novas dimensões de
sofisticação e brutalidade. Em 2015, o Estado Islâmico estava à frente de
qualquer governo a nível de mensagens públicas, usando jihadistas criados a
partir dos efeitos, por vezes, brutais da Internet e da obsessão desta com a
violência e o sexo. Estes são a Geração Dura de Jihadis e têm vantagem em
qualquer jogo mortal.
No verão de 2015, muitos árabes em todo o Médio Oriente, incluindo a
maior parte dos meios de comunicação regionais, chamavam já o Estado
Islâmico por outro nome, que refletia o sentimento de repulsa nutrido pela
maioria das pessoas comuns por essa organização — Daesh.
Trata-se de uma espécie de acrónimo, formado pelo nome anterior do
grupo em árabe, Dawlat al Islamiya Iraq Wa al Shams, mas a razão por que
as pessoas tendem a usar este nome é por os membros do Estado Islâmico o
odiarem. Tem um som semelhante ao verbo daes (alguém que é dissimulado
e dissemina desentendimentos); rima com palavras negativas como fahish
(pecador); e, mais importante ainda para quem despreza o ramo específico
do Islão seguido pela organização, rima com e soa um pouco como jahesh,
que significa «idiota». Na cultura arábica, este é um insulto grave, que, ao
mesmo tempo, rebaixa o insultado e reduz o seu poder para incutir medo.
Em 2015, a guerra avançou e recuou, devastando partes do Iraque, com o
Estado Islâmico a perder a cidade de Tikrit, mas a conquistar Ramadi.
Subitamente, a força aérea dos Estados Unidos encontrou-se na estranha
situação de realizar missões de reconhecimento aéreo, e ataques aéreos
limitados, que auxiliavam os comandantes da Guarda Republicana Iraniana.
O Estado Islâmico queria Tikrit, em parte para se precaver contra uma
eventual tentativa do governo iraquiano de retomar Mossul, a norte, mas
Ramadi era muito mais importante para ele. Situa-se na província de Anbar,
que é uma região do Iraque esmagadoramente sunita e tem acesso à fronteira
síria. O controlo desse território fortalecia a sua pretensão de ser um
«estado».
Agosto de 2015 marcou o primeiro aniversário das missões de
bombardeamento lideradas por americanos contra o Estado Islâmico, tanto
no Iraque como na Síria. Houve milhares de ataques aéreos, com muitos dos
aviões dos Estados Unidos a partir dos porta-aviões USS George H. W.
Bush e USS Carl Vinson, estacionados no Golfo, e outros do Kuwait e de
uma base nos Emirados Árabes Unidos, incluindo o caça F-22 Raptor
Stealth, que também foi introduzido nos combates em 2015, para atacar
instalações petrolíferas do Estado Islâmico. Os pilotos norte-americanos,
que realizaram a maior parte das missões, queixavam-se de não terem
controladores aéreos avançados das Forças Especiais Americanas que lhes
comunicassem as coordenadas para os ataques. Como os alvos se
encontravam, muitas vezes, em zonas urbanas, as «regras de combate»
implicavam que muitos aviões regressassem às bases sem terem disparado
as suas armas.
Desde o final do verão de 2015, o Estado Islâmico tem vindo a perder
continuamente território. As perdas mais significativas incluem a cidade
síria de Kobane, reconquistada por combatentes curdos, e, em janeiro de
2016, a importante cidade iraquiana de Ramadi, retomada pelo exército
iraquiano. Ao mesmo tempo, o Estado Islâmico foi sujeito a uma enorme
pressão resultante de uma intensificação dos ataques aéreos.
Os russos envolveram-se ainda mais no conflito, atacando tanto o Exército
Livre da Síria como alvos do Estado Islâmico na Síria, após o alegado
ataque do Estado Islâmico a um dos seus aviões de passageiros, no Egito. Os
franceses responderam aos ataques terroristas de Paris, em novembro de
2015, com ataques aéreos em massa ao Estado Islâmico, tendo depois
pedido auxílio ao Reino Unido. O Parlamento Britânico votou pelo
alargamento dos ataques aéreos ao Iraque, de forma a abrangerem a Síria.
O resultado foi a redução da dimensão do «Califado» do Estado Islâmico,
assim como a morte de alguns dos seus líderes e de muitos dos seus
membros. Porém, centenas de combatentes dirigiram-se, então, à Líbia, para
aí estabelecerem outra base, possivelmente como reforço para o caso de
serem dizimados na Síria e no Iraque. Na primavera de 2016, a Líbia já se
tornara, claramente, mais uma frente numa longa batalha.
Com os russos, os britânicos, os americanos, os franceses e outros países
fortemente envolvidos no conflito, milhares de missões foram realizadas
com drones, algumas a partir do território continental dos Estados Unidos.
Os drones são um exemplo moderno e inequívoco de como a tecnologia pode
ultrapassar algumas das restrições impostas pela geografia — mas, ao
mesmo tempo, servem para sublinhar a importância da geografia. Os EUA
têm as suas crescentes frotas de drones instaladas em, pelo menos, dez bases
em todo o mundo. Isto permite que uma pessoa esteja sentada num gabinete
com ar condicionado no Nevada, manobrando um joystick para atingir alvos
ou para transferir o controlo para um operacional próximo do alvo. Mas
também significa que os EUA precisam de manter boas relações com os
países que albergam os seus quartéis-generais de drones regionais. Por
exemplo, o sinal enviado a partir do Nevada poderá ter de percorrer um
cabo subaquático até à Alemanha e, daí, ser enviado para um satélite
pertencente a um terceiro país que venda largura de banda ao Pentágono. Isto
é um lembrete do mapa concetual do poder norte-americano, que é essencial
para a completa compreensão da geopolítica atual.
Os ataques de drones têm sido usados com efeitos devastadores contra
alvos individuais. Durante 2015/16, deram um enorme contributo para a
recuperação de vários milhares de quilómetros quadrados de território
iraquiano das mãos do Estado Islâmico, embora este tenha mantido o
controlo sobre grandes parcelas das regiões do país dominadas pelos
sunitas.
Os combatentes islamitas sunitas de todo o mundo, atraídos como traças
pela luz de mil milhões de píxeis, tiraram partido da tripartição entre curdos,
sunitas e xiitas no Iraque. Oferecem aos árabes sunitas uma combinação
embriagante formada pela promessa de lhes devolver o seu papel «legítimo»
de força dominante na região e pelo restabelecimento de um califado em que
a sua versão de verdadeiros crentes (os muçulmanos sunitas) viverá sob um
único governante.
Contudo, é o próprio fanatismo das suas convicções e práticas que explica
porque não conseguem realizar as suas fantasias utópicas.
Em primeiro lugar, só algumas das tribos sunitas iraquianas apoiarão os
objetivos jihadistas e, mesmo assim, só para atingirem os seus próprios fins
— que não incluem um regresso ao século VI. Assim que conseguirem o que
querem, virar-se-ão contra os jihadistas, especialmente contra os
estrangeiros. Em segundo lugar, os jihadistas já demonstraram que não terão
piedade de quem quer que se lhes oponha, e que ser não sunita é,
praticamente, uma sentença de morte. Por isso, todos os muçulmanos não
sunitas e todas as minorias do Iraque — cristãos, caldeus, yazidis e outros
— estão contra eles, tal como dezenas de países ocidentais e muçulmanos.
Os sunitas iraquianos não jihadistas estão numa posição difícil. Em caso
de fragmentação, ou até de federalização oficial do Iraque, ficarão presos no
interior, rodeados por areia, numa área que é conhecida como Triângulo
Sunita, com as pontas aproximadamente situadas logo a leste de Bagdade, a
oeste de Ramadi e a norte de Tikrit. Os sunitas que aí vivem têm,
frequentemente, mais em comum com as suas tribos homónimas na Síria do
que com os curdos do Norte ou os xiitas do Sul.
Não existe diversidade económica suficiente dentro do triângulo para
sustentar uma entidade sunita. A História atribuiu petróleo ao Iraque, mas as
cisões que, na prática, dividem o país significam que o petróleo está,
principalmente, nas zonas curdas e xiitas; e, se não existir um Iraque forte e
unificado, o dinheiro do petróleo voltará para os locais onde este se
encontra. As terras curdas nunca obedecerão a um controlo sunita, as cidades
a sul de Bagdade, como Najaf e Karbala, são esmagadoramente xiitas, e os
portos de Baçorá e Umm Qasr estão longe do território sunita. Este dilema
obriga os sunitas a lutar por uma parcela justa de um território que já
governaram, por vezes jogando com a ideia de separação, mas sabendo que,
nesse caso, o seu futuro seria, provavelmente, a autorregulamentação com
muito poucos ativos.
Em caso de separação, os xiitas são os mais bem colocados, do ponto de
vista geográfico, para beneficiarem da situação. A região que dominam tem
jazidas de petróleo, 56km de linha costeira, a via navegável do Xatalárabe,
portos, acessos ao mundo exterior e um aliado religioso, económico e militar
logo ao lado, sob a forma do Irão.
A fantasia jihadista é o domínio global pelo Islão Salafita. Nos seus
momentos mais lúcidos, embora ainda delirantes, planeiam, e lutam por, um
objetivo mais restrito — um califado que abranja todo o Médio Oriente. Um
dos gritos de batalha dos jihadistas é «De Mossul a Jerusalém!», o que
significa que têm esperança de controlar a área que vai de Mossul, no
Iraque, até Beirute, no Líbano, Amã, na Jordânia e Jerusalém, em Israel.
Todavia, a dimensão real do califado geográfico do Estado Islâmico está
limitada pelas suas capacidades.
A intenção destas linhas não é subestimar o problema ou a escala do que
pode vir a ser a versão árabe da Guerra dos Trinta Anos, na Europa (1618-
48). Não se trata de um problema apenas do Médio Oriente. Muitos dos
jihadistas internacionais que sobreviverem regressarão a casa, na Europa, na
América do Norte, na Indonésia, no Cáucaso e no Bangladesh, onde é pouco
provável que se contentem com uma vida tranquila. Os serviços secretos de
Londres acreditam que existem muito mais muçulmanos britânicos a
combater em grupos jihadistas no Médio Oriente do que no exército
britânico. O programa de radicalização levado a cabo pelos islamitas teve
início muitas décadas antes das iniciativas de desradicalização agora em
curso nos países europeus.
A maior parte dos países da região enfrenta a sua própria versão desta
luta geracional, em maior ou menor medida. A Arábia Saudita, por exemplo,
tem combatido as células da Al Qaeda na última década, mas, tendo
arrasado a maior parte delas, defronta-se agora com desafios renovados,
vindos da nova geração de jihadistas. Tem ainda outro problema no Sul, na
fronteira com o Iémen, que está também atormentado pela violência, por
movimentos separatistas e por um forte elemento jihadista.
Existe também um movimento islamita em ebulição na Jordânia,
especialmente na cidade de Zarqa, no Nordeste, para os lados das fronteiras
com a Síria e o Iraque, onde vivem alguns dos vários milhares de apoiantes
de grupos como a Al Qaeda e o Estado Islâmico. As autoridades temem que
um grupo jihadista do Iraque ou da Síria alcance em força as fronteiras,
agora fragilizadas, e as atravesse para a Jordânia. O exército jordano,
treinado pelos britânicos, é considerado um dos mais robustos do Médio
Oriente, mas poderia ver-se em dificuldades se os islamitas locais e
combatentes estrangeiros saíssem para as ruas em atos de guerrilha. Se os
jordanos palestinianos se recusassem a defender o país, não seria irrealista
supor que este cairia no mesmo tipo de caos que hoje vemos na Síria. Esta é
a última coisa que os governantes haxemitas querem — e é, também, a última
coisa que os israelitas desejam.
A batalha pelo futuro do Médio Oriente árabe tem, em certa medida,
ofuscado a luta israelo-árabe. Ocasionalmente, a fixação com Israel e a
Palestina regressa, mas a magnitude do que se passa noutros locais permitiu,
por fim, que pelo menos alguns observadores compreendessem que os
problemas da região não se resumem à existência de Israel. Essa foi uma
mentira espalhada pelos ditadores árabes, que visavam desviar as atenções
da sua própria brutalidade, na qual acreditaram muitas pessoas na área e os
idiotas de serviço a esses mesmos ditadores no Ocidente. Ainda assim, a
tragédia conjunta de Israel e da Palestina continua, e a obsessão com essa
pequena porção de terra é tão grande que poderá voltar a ser considerada
por alguns o conflito mais premente do mundo.
Os otomanos viam a área a oeste do Rio Jordão, até à costa mediterrânica,
como parte da região da Síria. Chamavam-lhe Filistina. Depois da Segunda
Guerra Mundial, sob o Mandato Britânico, essa zona tornou-se a Palestina.
Os judeus viviam no local chamado Israel há milénios, mas as vicissitudes
da História dispersaram-nos por todo o mundo. Israel continuou, para eles, a
ser a «terra prometida», e Jerusalém, em especial, era terreno sagrado.
Contudo, em 1948, os muçulmanos árabes e os cristãos já eram a clara
maioria naquele território há mais de mil anos.
No século XX, com a introdução do Mandato sobre a Palestina, o
movimento judeu para a união dos seus correligionários minoritários cresceu
e, acossados pelos pogroms na Europa Oriental, cada vez mais judeus
começaram a instalar-se ali. Os britânicos eram favoráveis à criação de uma
«pátria judaica» na Palestina e permitiram que os judeus se mudassem para
lá e comprassem terras aos árabes. Depois da Segunda Guerra Mundial e do
Holocausto, o fluxo de judeus que tentavam chegar à Palestina aumentou
ainda mais. As tensões entre judeus e não judeus atingiram o ponto de
ebulição, e uma Grã-Bretanha exausta entregou o problema às Nações
Unidas em 1948, as quais votaram pela divisão da região em dois países. Os
judeus concordaram, mas os árabes disseram «não». O resultado foi a
guerra, que criou a primeira vaga de refugiados palestinianos a fugir da zona
e de refugiados judeus a chegar de todo o Médio Oriente.
A Jordânia ocupou a região da Cisjordânia, incluindo a Jerusalém
Oriental. O Egito ocupou Gaza, considerando tratar-se de uma extensão do
seu território. Nenhum deles estava disposto a reconhecer às pessoas que aí
viviam a nacionalidade palestina ou a pertença a um estado palestino, nem
existia qualquer movimento significativo dos habitantes reclamando a
criação de um estado palestino. Entretanto, a Síria declarou que toda aquela
área fazia parte da grande Síria e que os aí residentes eram sírios.
Ainda hoje, o Egito, a Síria e a Jordânia desconfiam da independência da
Palestina, e, se Israel desaparecesse e fosse substituído pela Palestina, era
provável que os três reivindicassem partes do território. Contudo, neste
século, existe um feroz sentido de identidade nacional entre os palestinianos,
e qualquer ditadura árabe que tentasse privar o estado palestino de uma parte
do seu território, fosse qual fosse a sua forma ou dimensão, enfrentaria uma
oposição maciça. Os palestinianos estão plenamente conscientes de que a
maior parte dos países árabes, para onde alguns deles fugiram no século XX,
recusam conceder-lhes a cidadania; esses países insistem que o estatuto dos
seus filhos e netos é, ainda, de «refugiados», e fazem questão de que estes
não se integrem nos referidos países.
Durante a Guerra dos Seis Dias de 1967, os israelitas ganharam o
controlo de toda a Jerusalém, da Cisjordânia e de Gaza. Em 2005, saíram de
Gaza, mas centenas de milhares de colonos permanecem na Cisjordânia.

As Colinas de Golã, a Cisjordânia e Gaza continuam a ser territórios contestados, desde a


Guerra dos Seis Dias, em 1967.

Israel vê Jerusalém como a sua capital eterna e indivisível. Segundo a


religião judaica, a rocha sobre a qual Abraão se preparava para sacrificar
Isaac encontra-se ali, precisamente por cima do Sagrado dos Sagrados, o
Templo do Rei Salomão. Para os palestinianos, Jerusalém tem ecos
religiosos profundamente enraizados no mundo muçulmano: a cidade é vista
como o terceiro local mais sagrado do Islão, pois diz-se que o Profeta
Maomé ascendeu ao Paraíso a partir daquela mesma rocha, que se encontra
no local do que é hoje a «Mesquita Mais Distante» (Al Aqsa). Militarmente,
a cidade tem apenas uma moderada importância estratégica, do ponto de
vista geográfico — não tem uma verdadeira indústria merecedora de
referência, nem rios, nem um aeroporto —, mas tem uma importância
avassaladora em termos culturais e religiosos: a necessidade ideológica do
lugar é mais importante do que a sua localização. O controlo de, e o acesso
a, Jerusalém não é um assunto sobre o qual se possa chegar facilmente a uma
solução de compromisso.
Comparativamente, foi mais fácil aos israelitas desistirem de Gaza
(embora, ainda assim, não tenha deixado de ser difícil). No entanto, saber se
as pessoas que aí vivem ganharam muito com a partida dos israelitas é ainda
uma questão aberta ao debate.
Das duas atuais «entidades» palestinianas, Gaza é, de longe, a que está em
pior situação. Tem apenas 40km de comprimento e 12km de largura. Neste
espaço, estão comprimidos 1,8 milhões de pessoas. Na verdade, trata-se de
uma «cidade-estado», embora horrivelmente empobrecida. Devido ao
conflito com Israel, os seus cidadãos estão cercados, por três lados, por uma
barreira de segurança criada por Israel e pelo Egito, e pelo mar a oeste. Só
podem construir até uma determinada distância da fronteira com Israel,
porque os israelitas estão a tentar limitar a capacidade de fogo dos mísseis
de Gaza para o interior de Israel. Na última década, intensificou-se uma
corrida assimétrica às armas, com os militantes de Gaza a procurarem
mísseis de maior alcance e Israel a desenvolver o seu sistema de defesa
antimíssil.
Por causa da sua densidade urbana, Gaza constitui um bom terreno de
combate para os seus defensores, mas é um pesadelo para os civis, que têm
poucos ou nenhuns locais onde se abrigar da guerra e nenhuma ligação à
Cisjordânia, embora a distância entre as duas seja apenas de 40km no seu
ponto mais curto. Até que seja alcançado um acordo de paz, os habitantes de
Gaza não têm para onde ir, e há muito pouco que possam fazer onde estão.
A Cisjordânia tem quase sete vezes o tamanho de Gaza, mas é um terreno
interior. Em grande parte, é constituída por uma cordilheira montanhosa que
se estende de norte a sul. De uma perspetiva militar, isto dá a quem quer que
domine as terras altas o controlo sobre a planície costeira a oeste da
cordilheira, e do Vale do Jordão a leste. Deixando de lado a ideologia dos
colonos judeus, que reclamam o direito bíblico de viverem naquilo a que
chamam Judeia e Samaria, do ponto de vista militar a posição dos israelitas
é que não pode permitir-se que uma força não israelita controle essas terras
altas, pois isso possibilitar-lhe-ia disparar armamento pesado sobre a
planície costeira onde vive 70 por cento da população de Israel. Na mesma
planície situam-se também as suas mais importantes redes rodoviárias,
muitas das suas empresas de alta tecnologia mais bem-sucedidas, o
aeroporto internacional e a maior parte da sua indústria pesada.
Este é um dos motivos para a exigência de «segurança» pelo lado israelita
e para a sua insistência em que, mesmo que exista um estado palestiniano
independente, esse estado não possa ter um exército com armamento pesado
na cordilheira, e em que Israel mantenha também o controlo da fronteira com
a Jordânia. Devido à sua pequena dimensão, Israel não tem uma verdadeira
«profundidade estratégica», um local para onde recuar se as suas defesas
forem rompidas, e, por isso, a sua prioridade militar é tentar assegurar-se de
que ninguém consegue aproximar-se. Além disso, a distância de Telavive até
à fronteira com a Cisjordânia é de cerca de 16km no seu ponto mais curto; a
partir da cordilheira da Cisjordânia, quaisquer forças armadas medianas
poderiam cortar Israel em dois. Também no caso da Cisjordânia, Israel evita
que qualquer grupo se torne suficientemente poderoso para ameaçar a sua
existência.
Nas condições atuais, Israel enfrenta ameaças à sua segurança e às vidas
dos seus cidadãos através de ataques terroristas e do disparo de mísseis
vindos dos seus vizinhos mais próximos, mas não uma ameaça à sua
existência. O Egito, a sudoeste, não constitui uma ameaça. Existe um tratado
de paz que, presentemente, convém a ambos os lados, e a parcialmente
desmilitarizada Península do Sinai funciona como espaço-tampão entre os
dois. Mais a leste, do outro lado do Mar Vermelho, em Aqaba, na Jordânia, o
deserto também protege Israel, tal como o seu tratado de paz com Amã. A
norte, existe uma potencial ameaça vinda do Líbano, mas é relativamente
pequena, sob a forma de raides transfronteiriços e/ou bombardeamentos
limitados. Porém, se e quando o Hezbollah, no Líbano, usar os seus mísseis
mais pesados e de maior alcance para atingir o interior de Israel, a resposta
será maciça.
A ameaça potencial mais grave vem do maior vizinho do Líbano, a Síria.
Historicamente, Damasco quer e precisa de acesso direto à costa. Sempre
viu o Líbano como parte da Síria (como, na verdade, o era) e continua
ressentida por as suas tropas terem sido obrigadas a retirar-se em 2005. Se
essa rota para o mar estiver bloqueada, a alternativa será atravessar as
Colinas de Golã e descer para a região acidentada à volta do Mar da
Galileia, a caminho do Mediterrâneo. Mas as Colinas foram conquistadas
por Israel depois de este ter sido atacado pela Síria na guerra de 1973, e o
exército sírio teria de levar a cabo um massacre gigantesco para abrir
caminho até à planície costeira que leva aos principais centros
populacionais israelitas. Esta hipótese não pode ser excluída algures no
futuro, mas, a médio prazo, parece extremamente improvável, e — enquanto
a guerra civil se mantiver na Síria — impossível.
Resta, assim, a hipótese do Irão — um problema mais sério, já que
levanta a questão das armas nucleares.
O Irão é um gigante não árabe, com uma população maioritariamente de
língua farsi. É maior do que a França, a Alemanha e o Reino Unido juntos,
mas, enquanto as populações desses países somadas perfazem 200 milhões
de pessoas, o Irão tem apenas 78 milhões. Com espaço habitável limitado, a
maioria da população vive nas montanhas; os grandes desertos e planícies
salinas do interior do Irão não permitem a habitação humana. Uma simples
passagem de automóvel por essas extensões pode abater o espírito humano, e
viver nelas é uma luta que poucos empreendem.
Existem duas gigantescas cordilheiras montanhosas no Irão: a de Zagros e
a de Elburz. A de Zagros tem início a norte, descendo ao longo de 1450km,
paralela às fronteiras do Irão com a Turquia e o Iraque, e termina quase no
Estreito de Ormuz, no Golfo. A oeste da metade sul da cordilheira, situa-se
uma planície onde o Xatalárabe divide o Irão e o Iraque. É também aí que se
encontram as principais jazidas de petróleo iranianas, estando as outras no
Norte e no Centro. Em conjunto, estima-se que constituam as terceiras
maiores reservas do mundo. Apesar disto, o Irão continua relativamente
pobre, devido à má gestão, à corrupção, a uma topografia montanhosa que
entrava a circulação dos transportes e a sanções económicas que, em parte,
impediram a modernização de determinados setores da indústria.
A cordilheira de Elburz inicia-se também no Norte, mas ao longo da
fronteira com a Arménia. Percorre toda a extensão da Costa Sul do Mar
Cáspio e continua até à fronteira com o Turquemenistão, descendo depois, ao
chegar ao Afeganistão. É esta cordilheira montanhosa que se vê da capital,
Teerão, dominando a cidade a norte. Proporciona vistas espetaculares, e
também um segredo mais bem guardado do que o projeto nuclear iraniano: as
condições para o esqui são, aí, excelentes durante vários meses por ano.
O Irão está defendido pela sua geografia, com montanhas de três lados e
pântanos e água do quarto. Os mongóis foram a última força a conseguir
avançar pelo território, em 1219-21, e, desde então, os atacantes têm-se
desfeito em pó ao tentar atravessar as montanhas. Na Segunda Guerra do
Golfo, em 2003, até os EUA, a maior força de combate que o mundo já viu,
acharam melhor não virar à direita ao entrarem no Iraque pelo Sul, sabendo
que, mesmo com o seu poder militar superior, não convinha invadir o Irão.
Na verdade, as forças armadas dos Estados Unidos tinham, na altura, um
lema: «Fazemos desertos, não montanhas.»
Em 1980, quando a Guerra Irão-Iraque estalou, os iraquianos recorreram a
seis divisões para atravessar o Xatalárabe, numa tentativa de anexar a
província iraniana do Khuzistão. Não conseguiram sequer chegar às
planícies pantanosas, quanto mais entrar nos contrafortes de Zagros. A
guerra arrastou-se por oito anos, ceifando, pelo menos, um milhão de vidas.
O terreno montanhoso do Irão dificulta a criação de uma economia
interligada, e favorece a existência de muitos grupos minoritários com
características bem definidas. No Khuzistão, por exemplo, a etnia
maioritária é a árabe, e, noutros locais, existem curdos, azeris, turcomenos e
georgianos, entre outros. Pelo menos 60 por cento do país fala farsi, a língua
da maioria persa dominante. Em consequência desta diversidade, o Irão
possui, tradicionalmente, um poder centralizado e tem usado a força e uma
rede de serviços secretos impressionante para manter a estabilidade interna.
Teerão sabe que ninguém está prestes a invadir o Irão, mas sabe também que
as potências hostis poderão usar as suas minorias para tentar atiçar
divergências e, assim, pôr em perigo a sua revolução islâmica.
O Irão tem, também, uma indústria nuclear que muitos países, em especial
Israel, acreditam estar a ser usada para preparar a construção de armas
nucleares, aumentando assim as tensões na região. Os israelitas sentem-se
ameaçados pela perspetiva de o Irão possuir armas nucleares. Não se trata
só do potencial do Irão para rivalizar com o arsenal de Israel e dizimar o
país com apenas uma bomba: se o Irão obtivesse a bomba, seria provável
que os países árabes entrassem em pânico e tentassem obtê-la também. Os
sauditas, por exemplo, temem que os aiatolas queiram dominar a região,
reunir todos os árabes xiitas sob o seu comando e até controlar as cidades
santas de Meca e Medina. Um Irão com armas nucleares seria a
superpotência regional por excelência e, para contrabalançar este perigo, os
sauditas tentariam, provavelmente, comprar armas nucleares ao Paquistão
(com quem têm relações estreitas). O Egito e a Turquia poderiam seguir-lhe
o exemplo.
Isto significa que a ameaça de um ataque aéreo israelita às instalações
nucleares iranianas é uma presença constante, mas existem muitos fatores
condicionantes. Um deles é que, em linha reta, Israel dista 1600km do Irão.
A força aérea israelita teria de atravessar duas fronteiras soberanas, as da
Jordânia e do Iraque; este último avisaria, certamente, o Irão de que o ataque
se aproximava. Outro é que qualquer outra rota implicaria capacidades de
reabastecimento que podem estar para além das possibilidades de Israel, e
(se entrasse pelo Norte) sobrevoaria também territórios soberanos. Um
último fator é que o Irão detém o que pode ser um trunfo — o poder de
fechar o Estreito de Ormuz, no Golfo, por onde passa todos os dias,
dependendo das vendas, cerca de 20 por cento do petróleo necessário ao
mundo. No seu ponto de menor largura, o Estreito, que é considerado o mais
estratégico do mundo, tem apenas 33km de largo. O mundo industrializado
receia o efeito do fecho de Ormuz, talvez por meses a fio, com a consequente
subida dos preços em flecha. Este é um dos motivos por que tantos países
pressionam Israel a não agir.
Na primeira década do século XXI, os iranianos temiam um cerco por
parte dos americanos. A marinha dos EUA estava no Golfo e as tropas
americanas estavam no Iraque e no Afeganistão. Com a redução dos
contingentes militares nesses países, os receios iranianos esmoreceram, e o
Irão vê-se na posição dominante, com uma linha direta de ligação aos seus
aliados no Iraque dominado pelos xiitas. O Sul do Iraque é, também, uma
ponte entre o Irão e os seus aliados alauitas em Damasco e, depois, uma
forma de acesso aos seus aliados xiitas sob a forma do Hezbollah, no
Líbano, sobre a costa mediterrânica.
Nos séculos VI a IV a.C., o Império Persa estendia-se do Egito à Índia. O
Irão dos dias modernos não tem esses desígnios imperiais, mas não deixa de
querer expandir a sua influência, e a direção óbvia para o fazer são as
planícies a oeste — o mundo árabe e as suas minorias xiitas. Tem adquirido
peso no Iraque desde que a invasão dos EUA implementou um governo de
maioria xiita. Isto alarmou a Arábia Saudita, dominada por sunitas, e ajudou
a alimentar a versão do Médio Oriente de uma Guerra Fria centrada na
relação entre os sauditas e os iranianos. A Arábia Saudita pode ser maior do
que o Irão, pode ser várias vezes mais rica do que o Irão devido às suas
indústrias bem desenvolvidas de petróleo e gás, mas a sua população é
muito menor (28 milhões de sauditas contra 78 milhões de iranianos) e,
militarmente, não está segura da sua capacidade para defrontar o seu vizinho
persa, no caso de esta guerra fria alguma vez aquecer e de haver um
confronto direto entre as forças dos dois países. Cada um dos lados
ambiciona ser a potência dominante na região, e cada um deles vê-se como o
defensor da respetiva versão do Islão. Quando o Iraque estava sob o
calcanhar de Saddam, existia um poderoso tampão que separava a Arábia
Saudita e o Irão; com o desaparecimento desse tampão, os dois países
deitam agora olhares fulminantes um ao outro, através do Golfo. O acordo
conseguido pelos americanos sobre as instalações nucleares do Irão,
celebrado no verão de 2015, não tranquilizou, de forma alguma, os estados
do Golfo em relação à ameaça que o Irão representa para eles. Os relatos
dos meios de comunicação ocidentais concentraram-se na reação de Israel
ao acordo, mas os meios de comunicação árabes manifestaram-se, em toda a
região, fortemente contra este, com alguns jornais a compará-lo ao Acordo
de Munique de 1938. Um dos principais colunistas sauditas defendeu que o
reino deveria começar a construir uma bomba, de forma a estar preparado
quando o Irão fizer o mesmo.
Este foi o pano de fundo dos acontecimentos chocantes do início de 2016,
quando a Arábia Saudita (um país de maioria sunita) executou 47
prisioneiros num único dia, entre os quais se encontrava o xeque xiita mais
velho do país, Nimr al Nimr. Foi um ato calculado pela família real sunita no
poder, para mostrar ao mundo, incluindo à América, que, com acordo
nuclear ou sem ele, os sauditas iriam enfrentar o Irão. Estalaram
manifestações em todo o mundo muçulmano xiita, a embaixada saudita em
Teerão foi devidamente saqueada e incendiada, as relações diplomáticas
entre os dois países foram cortadas e o cenário ficou preparado para o
prosseguimento da azeda guerra civil entre sunitas e xiitas.
A oeste do Irão, encontra-se um país que é, ao mesmo tempo, europeu e
asiático. A Turquia situa-se na fronteira do mundo árabe, mas não é árabe, e,
embora a maior parte do seu território faça parte da grande região do Médio
Oriente, tenta distanciar-se dos conflitos que aí têm lugar.
Os turcos nunca foram verdadeiramente reconhecidos como parte da
Europa pelos seus vizinhos a norte e noroeste. Se a Turquia for europeia, as
fronteiras da Europa ficam no extremo da vasta Planície da Anatólia, o que
significa que os seus limites são a Síria, o Iraque e o Irão. Este é um
conceito que poucas pessoas aceitam. Se não for europeia, então o que é? A
sua maior cidade, Istambul, foi Cidade Europeia da Cultura em 2010,
concorre ao Festival da Canção da Eurovisão e ao Campeonato Europeu da
UEFA, requereu, nos anos 70, a adesão ao que é hoje a União Europeia; e,
ainda assim, menos de 5 por cento do seu território está localizado na
Europa. A maioria dos geógrafos considera a pequena área da Turquia
situada a oeste do Bósforo pertencente à Europa, e o resto do país, a sul e a
sudeste do Bósforo, pertencente ao Médio Oriente (no seu sentido mais lato).
Este é um dos motivos por que a Turquia nunca foi aceite na UE. Outros
fatores são o seu historial relativo aos direitos humanos, em especial no que
se refere aos curdos, e a sua economia. A população turca é de 75 milhões e
os países europeus temem que, dada a disparidade entre padrões de vida, a
adesão à UE resultasse numa afluência de mão de obra em massa. Outro
dado que pode ter relevância, embora não se fale dele na UE, é o facto de a
Turquia ser um país de maioria muçulmana (98 por cento). A UE não é uma
organização secular nem cristã, mas tem assistido a um debate difícil sobre
«valores». Para cada argumento a favor da adesão da Turquia à UE, existe
um argumento contra, e, na última década, as perspetivas de essa adesão vir
a acontecer têm diminuído. Isto levou o país a refletir nas suas alternativas.
Nos anos 20, pelo menos para um homem, não houve alternativa. O seu
nome era Mustafa Kemal e foi o único general turco a acabar a Primeira
Guerra Mundial com melhor reputação do que tinha no princípio. Depois de
as forças vitoriosas terem moldado a Turquia, ele tornou-se presidente, com
um programa que consistia em resistir aos termos impostos pelos Aliados,
mas, ao mesmo tempo, modernizar a Turquia e torná-la parte da Europa. Os
códigos jurídicos ocidentais e o calendário gregoriano foram introduzidos e
as instituições públicas islâmicas banidas. O uso do fez foi proibido, o
alfabeto latino substituiu a escrita árabe e até foi concedido o voto às
mulheres (dois anos antes de o ser em Espanha e 15 anos antes de o ser em
França). Em 1934, quando os turcos adotaram apelidos legalmente
vinculativos, foi dado a Kemal o nome de «Atatürk» — «Pai dos Turcos».
Morreu em 1938, mas os líderes turcos subsequentes continuaram a trabalhar
para aproximar a Turquia da Europa Ocidental, e os que não o fizeram
enfrentaram golpes de Estado levados a cabo por umas forças armadas
determinadas a completar o legado do Atatürk.
Todavia, no final dos anos 80, a rejeição persistente da Europa e a
teimosa recusa de muitos turcos comuns a tornar-se menos religiosos
resultaram numa geração de políticos que começaram a pensar o impensável
— que talvez a Turquia precisasse de um plano B. O Presidente Turgut Özal,
um homem religioso, assumiu funções em 1989 e iniciou as mudanças.
Encorajou novamente os turcos a verem a Turquia como a grande ponte
terrestre entre a Europa, a Ásia e o Médio Oriente, e como um país que
poderia voltar a ser uma grande potência nessas três regiões. O atual
presidente, Recep Tayyib Erdoğan, tem ambições semelhantes, talvez até
mais grandiosas, mas encontrou os mesmos obstáculos à sua consecução.
Esses obstáculos são, em parte, geográficos.
Politicamente, os países árabes continuam desconfiados de que Erdoğan
queira recriar economicamente o Império Otomano e resistem ao
estabelecimento de laços mais estreitos. Os iranianos veem a Turquia como
o seu concorrente militar e económico mais poderoso, situado mesmo ao seu
lado. As relações entre os dois, que nunca foram calorosas, arrefeceram
ainda mais devido a apoiarem fações contrárias na guerra civil síria. O forte
apoio da Turquia ao governo da Irmandade Muçulmana, no Egito, foi uma
política que lhe saiu pela culatra quando as forças armadas egípcias
orquestraram o seu segundo golpe de Estado e tomaram o poder. As relações
entre o Cairo e Ancara são, agora, geladas.
Ainda piores são as relações entre Ancara e Moscovo. Os turcos e os
russos dão-se mal há 500 anos, mas, no último século, aprenderam a, em
geral, evitar fricções de maior. A guerra civil síria veio mudar isso, com a
Rússia a apoiar o Presidente Assad e a Turquia a fazer todos os possíveis
por ajudar a derrubar o regime de Assad e a substituí-lo por um governo
liderado por muçulmanos sunitas. A situação agudizou-se no final de 2015,
depois de os Russos intervirem militarmente na Síria. A Turquia abateu um
caça russo SU 24, que alegou ter entrado no seu espaço aéreo. Seguiu-se uma
guerra de palavras azedas, houve mesmo a ameaça vaga de troca de tiros,
mas os dois lados acabaram por se contentar com animosidade e sanções
económicas. Esta zanga feroz não foi motivada apenas pela Síria e pelo caça
russo — foi-o também pela competição entre a Turquia e a Rússia por
influência no Mar Negro, no Mar Cáspio e entre os povos túrquicos em
países como o Turquemenistão. Ambos sabem que, à medida que a Turquia
continuar a crescer, procurará rivalizar com a Rússia nos «stãos», e nenhum
deles está disposto a ceder em assuntos de soberania e «honra».
A elite turca já aprendeu que marcar pontos junto dos islamitas
comprando lutas com Israel tem como resultado a cooperação de Israel com
o Chipre e a Grécia para criar uma aliança de energia trilateral com a
finalidade de explorar os campos de gás ao largo das respetivas costas. A
ideia negativa que o governo egípcio faz da Turquia tem contribuído para o
interesse do Cairo em ser um dos principais clientes desta nova fonte
energética. Entretanto, a Turquia, que poderia ter beneficiado da energia
israelita, continua largamente dependente do seu velho inimigo, a Rússia,
para satisfazer as suas necessidades energéticas, enquanto, ao mesmo tempo,
trabalha em conjunto com a Rússia para desenvolver novas condutas que
levem energia aos países da UE.
Os americanos, alarmados pela nova guerra fria entre a Turquia e Israel,
dois dos seus aliados, estão a tentar juntá-los de novo. Os EUA querem uma
melhor relação entre aqueles dois países com vista ao fortalecimento da
posição da NATO no Mediterrâneo Oriental. Para a NATO, a Turquia é um
país-chave, porque controla as entradas e saídas para e do Mar Negro,
através da diminuta passagem do Estreito do Bósforo. Se a Turquia fechar o
Estreito, que tem menos de 1,6km no seu ponto de menor largura, a Frota
Russa do Mar Negro não poderá chegar ao Mediterrâneo e, daí, ao
Atlântico. Mesmo a passagem pelo Bósforo só os levará até ao Mar de
Mármara; daí, ainda têm de atravessar o Estreito de Dardanelos para
chegarem ao Mar Egeu, a caminho do Mediterrâneo.
Dada a sua massa terrestre, a Turquia não costuma ser vista como uma
potência marítima, mas faz fronteira com três mares e o seu controlo sobre
essas águas sempre fez dela uma força a ser tida em conta; é também uma
ponte comercial e viária, que liga a Europa ao Médio Oriente, ao Cáucaso e
aos países da Ásia Central, com os quais tem laços históricos e, nalgumas
regiões, étnicos.
A Turquia está determinada a posicionar-se numa encruzilhada da
História, mesmo que o trânsito aí possa, por vezes, ser perigoso. A página
do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Turquia na Internet enfatiza isto
mesmo na secção «Sinopse da Política Externa»: «A geografia afro-
eurasiática, no epicentro da qual está situada a Turquia, é uma área onde tais
oportunidades e riscos interagem intensivamente.» E afirma ainda: «A
Turquia está determinada a tornar-se membro pleno da União Europeia,
como parte do seu esforço bicentenário para atingir o mais alto nível de
civilização contemporânea.»
Parece pouco provável que isto aconteça a curto ou médio prazo. Até há
poucos anos, a Turquia era citada como um exemplo de como um país do
Médio Oriente, além de Israel, podia converter-se à democracia. Esse
exemplo sofreu, recentemente, alguns abalos, com o problema curdo, que
ainda subsiste, as dificuldades enfrentadas por algumas das minúsculas
comunidades cristãs e o apoio tácito aos grupos islamitas na sua luta contra
o governo sírio. As observações do Presidente Erdoğan sobre os judeus e a
igualdade de raça e de género, somadas à assustadora islamização da
Turquia, fizeram soar os alarmes. No entanto, comparada com a maior parte
dos estados árabes, a Turquia é muito mais desenvolvida e reconhecível
como uma democracia. Erdoğan pode estar a desfazer algum do trabalho do
Atatürk, mas os netos do Pai dos Turcos vivem com mais liberdade do que
qualquer outro povo no Médio Oriente árabe.
Por nunca terem passado por uma abertura semelhante e terem sofrido o
colonialismo, os estados árabes não estavam preparados para transformar as
revoltas árabes (a vaga de protestos que começou em 2010) numa verdadeira
Primavera Árabe. Em vez disso, deixaram-se cair na perpetuação de
tumultos e na guerra civil.
A Primavera Árabe é uma designação errónea, inventada pelos meios de
comunicação; tolda a nossa compreensão do que está a acontecer. Houve
demasiados repórteres a precipitar-se para entrevistar os jovens liberais que
se manifestavam nas praças das cidades com cartazes escritos em inglês, e a
cair no equívoco de ver neles a voz do povo e a direção da História. Alguns
jornalistas haviam já feito o mesmo durante a «Revolução Verde»,
descrevendo os jovens estudantes do Norte de Teerão como a «Juventude do
Irão» e ignorando, assim, os outros jovens iranianos que estavam a juntar-se
à milícia reacionária Basij e à Guarda Revolucionária.
Em 1989, na Europa Ocidental, existia uma forma de totalitarismo: o
comunismo. Na mente da maioria das pessoas, só havia um caminho a tomar:
no sentido da democracia, que florescia do outro lado da Cortina de Ferro.
O Leste e o Oeste partilhavam uma memória histórica de períodos de
democracia e de sociedade civil. O mundo árabe de 2011 não passara por
nada disso e apontava em muitas direções diferentes. Entre as hipóteses
colocadas, havia, e ainda há, as direções da democracia, da democracia
liberal (que difere da anterior), do nacionalismo, do culto do líder forte, e
ainda a direção para a qual muitos sempre se tinham virado — a do Islão nas
suas diversas formas, incluindo o islamismo.
No Médio Oriente, o poder decorre, efetivamente, dos canos das armas.
Alguns bons cidadãos de Misrata, na Líbia, podem querer desenvolver um
partido democrata liberal, e alguns podem, até, querer defender os direitos
dos homossexuais; mas as suas opções ficarão limitadas se o verdadeiro
poder local fuzilar os democratas liberais e os homossexuais. O Iraque é um
caso ilustrativo: uma democracia apenas no papel, longe de ser liberal, e um
local onde as pessoas são rotineiramente assassinadas por serem
homossexuais.
A segunda fase da revolta árabe já entrou em velocidade de cruzeiro.
Trata-se da complexa luta interna que ocorre no seio das sociedades onde as
convicções religiosas, os costumes sociais, as ligações tribais e as armas
são, no momento, forças muito mais poderosas do que os ideais «ocidentais»
de igualdade, liberdade de expressão e sufrágio universal. Os países árabes
estão pejados de preconceitos, ou melhor, ódios, dos quais o ocidental
médio sabe tão pouco que tende a não acreditar que existam, mesmo que os
tenha impressos na frente dos olhos. Nós estamos conscientes dos nossos
próprios preconceitos, que são inúmeros, mas, muitas vezes, fechamos os
olhos aos que perduram no Médio Oriente.
As demonstrações quotidianas de ódio pelos outros são de tal forma
comuns no mundo árabe que praticamente não suscitam comentários, a não
ser por parte da minoria liberal da região, geralmente educada no Ocidente,
cujo acesso às plataformas dos meios de comunicação é limitado. Os
cartoons antissemitas que fazem eco do jornal de propaganda nazi Der
Stürmer são vulgares. Semana após semana, é dado espaço a imãs
desabridos em programas de televisão em horário nobre.
Por vezes, os apologistas ocidentais deste tipo de comportamento contêm-
se por medo de serem descritos como exemplos dos «orientalistas» de
Edward Said. Traem os seus próprios valores liberais negando a sua
universalidade. Outros, na sua ingenuidade, dizem que tais incitamentos ao
assassínio não são generalizados e devem ser vistos no contexto da língua
árabe, que pode ser dada a desvios retóricos. Isto denota a sua
incompreensão da «rua árabe» e do papel dos meios de comunicação árabes
dominantes, assim como uma recusa em admitir que, quando pessoas cheias
de ódio dizem algo, dizem-no a sério.
Quando Hosni Mubarak foi destituído do cargo de presidente do Egito, na
verdade foi o poder popular que o derrubou, mas o que o mundo exterior não
percebeu foi que as forças armadas esperavam há anos uma oportunidade de
se verem livres dele e do seu filho Gamal, e que o cenário das ruas lhes
proporcionou a cobertura de que precisavam. Só quando a Irmandade
Muçulmana convocou os seus apoiantes é que a cobertura chegou. Existiam
apenas três instituições no Egito: o Partido Nacional Democrático de
Mubarak, as forças armadas e a Irmandade. As últimas duas destruíram a
primeira, após o que a Irmandade ganhou as eleições, começou a transformar
o Egito num estado islamita e pagou o respetivo preço, tendo sido derrubada
pelo verdadeiro poder naquele país — as forças armadas.
Os islamitas continuam a ser a segunda força mais poderosa, embora
agora subterrânea. Quando as manifestações anti-Mubarak estavam no auge,
as multidões no Cairo atraíram várias centenas de milhares de pessoas.
Depois da queda de Mubarak, quando o pregador radical da Irmandade
Islâmica Yusuf al-Qaradawi regressou do exílio no Qatar, pelo menos um
milhão de pessoas saiu à rua para o receber, mas poucos nos meios de
comunicação ocidentais lhes chamaram a «voz do povo». Os liberais nunca
tiveram hipóteses. Nem agora as têm. Não porque os habitantes da região
sejam radicais; mas porque, quando se tem fome e medo, e se recebem
promessas de pão e segurança ou do conceito de democracia, a escolha não
é difícil.
Em sociedades empobrecidas, com poucas instituições responsáveis, o
poder reside nos gangues disfarçados de «milícias» e de «partidos
políticos». Enquanto estes lutam pelo poder, por vezes incentivados por
simpatizantes ocidentais ingénuos, morrem muitos inocentes. Tudo indica que
assim será na Líbia, na Síria, no Iémen, no Iraque e, possivelmente, noutros
países, ainda durante muitos anos.
Os americanos estão desejosos de reduzir o seu investimento político e
militar na região, devido à diminuição das suas necessidades de importação
de energia; se se retirarem, a China, e, em menor grau, a Índia, poderão ter
de se envolver na mesma proporção da perda de interesse dos EUA. Os
chineses já são bastante influentes na Arábia Saudita, no Iraque e no Irão.
Este é um cenário global, que será definido nas chancelarias das capitais das
grandes potências. No terreno, jogar-se-á com a imaginação, os desejos, as
esperanças e as necessidades das pessoas, e também com as suas vidas.
O Sykes-Picot está a quebrar-se; restaurá-lo, mesmo em diferentes termos,
será uma tarefa demorada e sangrenta.
CAPÍTULO 7

ÍNDIA E PAQUISTÃO

«A Índia não é uma nação, nem um país.


É um subcontinente de nacionalidades.»
Muhammad Ali Jinnah
MAPA ÍNDIA E PAQUISTÃO

A
Índia e o Paquistão concordam numa coisa: nenhum deles quer o
outro por perto. Isto pode ser problemático, dado que partilham
uma fronteira de 3000km. Os dois estão carregados de
antagonismo e de armas nucleares, por isso a forma como gerem esta relação
indesejada é uma questão de vida ou de morte para dezenas de milhões de
pessoas.
A Índia tem uma população de quase 1,3 mil milhões de pessoas, enquanto
a do Paquistão é de 182 milhões. Empobrecido, volátil e estilhaçado, o
Paquistão parece definir-se pela sua oposição à Índia, enquanto a Índia,
embora obcecada com o Paquistão, se define de muitas formas, incluindo a
de ser uma potência mundial emergente, com uma economia em crescimento
e uma classe média em expansão. Desta posição de vantagem, olha para o
Paquistão e verifica que o supera em quase todos os indicadores económicos
e democráticos.
Os dois países travaram quatro guerras principais, além de muitas
contendas. As emoções estão ao rubro. Uma observação frequentemente
citada de um oficial paquistanês, segundo a qual o Paquistão faria a Índia
sangrar de mil feridas, foi respondida, no final de 2014, pelo analista militar
Dr. Amarjit Singh, que escreveu, no Indian Defence Review:
«Independentemente do que outros pensem, a minha opinião é que será,
simplesmente, melhor para a Índia enfrentar um dispendioso ataque nuclear
do Paquistão, e superá-lo, mesmo à custa de dezenas de milhões de mortes,
do que sofrer, dia após dia, a ignomínia e a dor de mil feridas e o
desperdício de energia resultante de um potencial desaproveitado.» Isto
pode não refletir a política oficial do governo, mas é um indicador do
enraizamento das emoções a vários níveis, nas duas sociedades. O Paquistão
e a Índia modernos nasceram do fogo; da próxima vez, o fogo poderá matá-
los.
Os dois estão unidos pela geografia do subcontinente indiano, que cria
uma moldura natural. A Baía de Bengala, o Oceano Índico e o Mar Arábico
estão, respetivamente, a sudeste, a sul e a sudoeste, o Indocuche a noroeste e
os Himalaias a norte. No sentido dos ponteiros do relógio, o planalto do
Deserto do Baluchistão vai ganhando altitude até se transformar nas
montanhas da Fronteira Noroeste, que se erguem ainda mais até se
converterem no Indocuche. Virando à direita, para leste, encontra-se a
Cordilheira Caracórum, que, depois, leva aos Himalaias. Estes ocupam toda
a fronteira com a China, até à Birmânia. Daí, à medida que a Índia se curva
em volta do Bangladesh, o terreno desce para sul, até à Baía de Bengala.
O interior da moldura contém o que são a Índia, o Paquistão, o
Bangladesh, o Nepal e o Butão dos tempos modernos. As últimas duas são
nações interiores e empobrecidas, dominadas pelos seus vizinhos
gigantescos, a China e a Índia. O problema do Bangladesh não é a falta de
acesso ao mar, mas o facto de o mar ter um acesso demasiado fácil ao
Bangladesh: as cheias provocadas pelas águas da Baía de Bengala afligem
constantemente as suas terras baixas. O seu outro problema geográfico é
estar quase totalmente cercado pela Índia, já que a fronteira de 4095km,
estabelecida por acordo em 1974, fez com que a Índia envolvesse o
Bangladesh, deixando-lhe apenas uma pequena fronteira com a Birmânia
como ligação terrestre alternativa ao mundo exterior.
O Bangladesh é volátil, e contém militantes islamitas que incomodam a
Índia; mas nenhum dos três países mais pequenos do subcontinente poderá,
algum dia, erguer-se e ameaçar o seu senhor incontestado. E o Paquistão
também não seria considerado uma ameaça para a Índia se não se tivesse
tornado mestre na tecnologia do fabrico de armas nucleares nas décadas que
se seguiram à secessão da região, em 1947.
A área delimitada por esta moldura, embora relativamente plana, foi
sempre demasiado vasta e diversa para ter um governo central forte. Mesmo
os senhores coloniais britânicos, com a sua famosa burocracia e o seu
sistema ferroviário abrangente, permitiram a autonomia regional e, aliás,
usaram-na para virar os líderes locais uns contra os outros. A diversidade
linguística e cultural deve-se, em parte, às diferenças climatéricas — por
exemplo, o Norte gelado dos Himalaias contrasta com as selvas do Sul —,
mas também aos rios e às religiões do subcontinente.
Várias civilizações cresceram ao longo desses rios, como o Ganges, o
Bramaputra e o Indo. Ainda hoje, os centros populacionais estão semeados
ao longo das suas margens, e as regiões, tão diferentes umas das outras —
por exemplo, o Punjab, com a sua maioria sique, e os habitantes de Tamil
Nadu, de língua tâmil — baseiam-se nessas divisões geográficas.
Diferentes potências invadiram o subcontinente ao longo dos séculos, mas
nenhuma o conquistou realmente. Mesmo hoje, Nova Deli não controla
verdadeiramente a Índia, e, como veremos, Islamabade controla ainda menos
o Paquistão. Os muçulmanos foram os que melhor conseguiram unir o
subcontinente sob uma única liderança, mas nem mesmo o Islão conseguiu
alguma vez superar as diferenças linguísticas, religiosas e culturais.
A primeira invasão muçulmana deu-se logo no século VIII d.C., quando os
árabes do Califado Omíada alcançaram o Punjab, no que é agora o
Paquistão. Desde então até ao século XVIII, várias invasões estrangeiras
levaram o Islão ao subcontinente; contudo, a leste do Vale do Rio Indo, a
maioria da população hindu resistiu à conversão, lançando, assim, as
sementes da subsequente secessão da Índia.
Os britânicos chegaram e partiram e, quando partiram, o centro perdeu a
sustentação, e tudo se desmoronou. Na verdade, não havia um verdadeiro
centro: a região sempre estivera dividida de acordo com as antigas
disparidades entre as línguas do Punjab e de Guzarate, entre as montanhas e
os desertos, e entre o Islão e o Hinduísmo. Em 1947, as forças do
nacionalismo pós-colonial e do separatismo religioso partiram o
subcontinente em duas partes principais, e, mais tarde, em três: a Índia, o
Paquistão e o Bangladesh. Os britânicos, esgotados por duas guerras
mundiais, e conscientes de que os dias do Império estavam a chegar ao fim,
partiram sem glória.
A 3 de junho de 1947, foi feito o comunicado na Câmara dos Comuns: os
britânicos iam retirar-se — a Índia seria dividida em dois domínios
independentes, a Índia e o Paquistão. Setenta e três dias mais tarde, a 15 de
agosto, tinham partido quase todos.
Seguiu-se uma migração extraordinária de pessoas, pois milhões de
muçulmanos atravessaram as novas fronteiras da Índia, dirigindo-se para o
Paquistão, a oeste, enquanto milhões de hindus e siques viajavam no sentido
inverso. Colunas de 30.000 pessoas percorriam as estradas e comunidades
inteiras deslocavam-se. Os comboios a abarrotar de refugiados cruzavam o
Continente para cá e para lá, despejando pessoas em cidades e trazendo, na
viagem de regresso, os que se dirigiam para o lado contrário.
Foi uma carnificina. Estalaram tumultos nos dois países quando os
muçulmanos, os hindus, os siques e outros se viraram uns contra os outros,
movidos pelo pânico. O governo britânico lavou as mãos e recusou os
apelos dos novos líderes indianos e paquistaneses para que as poucas tropas
ainda no país ajudassem a manter a ordem. As estimativas do número de
vítimas mortais variam, mas, pelo menos, um milhão de pessoas morreu e 15
milhões foram deslocados. As áreas de maioria muçulmana, no Oeste — a
região do Vale do Indo, a oeste do Deserto do Thar, e a bacia do rio Ganges
—, tornaram-se o Paquistão Ocidental, enquanto as zonas a leste de Calcutá
(rebatizada como Kolkata) se converteram no Paquistão Oriental.
O que ganhou o Paquistão com isto? Muito menos do que a Índia. Herdou
a fronteira mais problemática da Índia, a Fronteira Noroeste com o
Afeganistão, e transformou-se num estado partido em duas regiões não
contíguas, com muito pouco que as unisse, já que o Paquistão Ocidental
estava separado do Paquistão Oriental por 1600km de território indiano. O
Alasca e o restante território dos EUA têm gerido facilmente o problema da
não contiguidade, mas estão cultural, linguística e economicamente ligados e
inseridos num ambiente estável. A única ligação entre as duas partes do
Paquistão era o Islão. Nunca se uniram realmente, por isso o seu
desmembramento não foi uma surpresa: em 1971, o Paquistão Oriental
revoltou-se contra o domínio do Paquistão Ocidental, a Índia interveio e,
depois de muito derramamento de sangue, o Paquistão Oriental autonomizou-
se, tornando-se o Bangladesh.
No entanto, em 1947, 25 anos após o fim do Império Otomano, Jinnah e os
outros líderes do novo Paquistão tinham afirmado, entre fanfarras e
promessas de um futuro brilhante, que haviam criado uma pátria muçulmana
unida.
O Paquistão é geográfica, económica, demográfica e militarmente mais
fraco do que a Índia. A sua identidade nacional também não é tão forte como
a desta última. A Índia, apesar da sua dimensão, diversidade cultural e
movimentos secessionistas, construiu uma democracia secular sólida, com
um sentido unificado de identidade indiana. O Paquistão é um estado
islâmico com uma história de ditaduras e populações muitas vezes mais leais
à sua região cultural do que ao Estado.
A democracia secular foi muito útil à Índia, mas a divisão de 1947 deu-
lhe uma vantagem inicial. Dentro das novas fronteiras da Índia situava-se a
grande maioria da indústria do subcontinente, a maior parte dos
rendimentos-base tributáveis e a maioria das principais cidades. Por
exemplo, Calcutá, com o seu porto e setor bancário, ficou na Índia, privando
assim o Paquistão Oriental da sua principal fonte de receitas e ligação ao
mundo exterior.
O Paquistão recebeu apenas 17 por cento das reservas financeiras que
haviam sido controladas pelo governo pré-secessão. Foi deixado com uma
base agrícola, sem dinheiro para gastar em desenvolvimento, com uma
fronteira ocidental volátil e um estado dividido em vários sentidos.
O nome Paquistão fornece-nos algumas pistas sobre essas divisões: paq
significa «puro» e stão significa «terra» em urdu, por isso é a terra dos
puros, mas a palavra é também um acrónimo. O P é de Punjab, o A de
Afegânia (a área pachtun perto da fronteira afegã), o Q de Caxemira [K de
Kashmir], o S de Sinde e o T de «tão», como em Baluchistão.
A partir destas cinco regiões distintas, cada uma com a sua língua,
formou-se um estado, mas não uma nação. O Paquistão esforça-se por criar
um sentido de unidade, mas continua a ser incomum que um punjabi case com
um balúchi, ou que um sindi case com um pachtun. Os punjabis perfazem 60
por cento da população, os sindis 14 por cento, os pachtuns 13,5 por cento e
os balúchis 4,5 por cento. As tensões religiosas estão sempre presentes —
não só no antagonismo por vezes demonstrado em relação às minorias cristã
e hindu do país, mas também entre a maioria muçulmana sunita e a minoria
xiita. No Paquistão, existem várias nações dentro do mesmo estado.

As regiões que compõem a Índia e o Paquistão — muitas têm as suas próprias identidades e
línguas distintas.

A língua oficia é o urdu, que é a língua materna dos muçulmanos que


fugiram da Índia em 1947, a maioria dos quais se estabeleceu no Punjab. Isto
não torna essa língua querida no resto do país. Há muito que a região Sinde
se ressente do que vê como o domínio do Punjab e muitos sindis sentem-se
tratados como cidadãos de segunda classe. Os pachtuns da Fronteira do
Noroeste nunca aceitaram ser governados por forasteiros: partes da região
de fronteira são designadas Áreas Tribais de Administração Federal, mas, na
realidade, nunca foram administradas a partir de Islamabade. Caxemira
continua dividida entre o Paquistão e a Índia e, embora a maioria dos
caxemires deseje a independência, a única coisa em que a Índia e o
Paquistão concordam é que não a admitirão. O Baluchistão também tem um
movimento pela independência que, periodicamente, se manifesta contra o
Estado.
O Baluchistão tem uma importância crucial: embora só contenha uma
pequena minoria da população paquistanesa, sem ele não existe Paquistão.
Abrange quase 45 por cento do país e detém grande parte do seu gás natural
e riqueza mineral. Outra fonte de rendimento chegará com as projetadas vias
terrestres que levarão o petróleo do Irão e do Mar Cáspio até à China,
passando pelo Paquistão. A joia desta coroa é a cidade costeira de Gwadar.
Muitos analistas acreditam que este ativo estratégico era o alvo a longo
prazo da União Soviética quando esta invadiu o Afeganistão, em 1979:
Gwadar teria realizado o sonho há muito acalentado por Moscovo de um
porto de águas quentes. Os chineses também foram atraídos por esta joia e
investiram milhares de milhões de dólares na região. Em 2007, foi
inaugurado um porto de águas profundas, e os dois países estão agora a
trabalhar para o ligar à China. A longo prazo, a China gostaria de usar o
Paquistão como rota terrestre para as suas necessidades energéticas. Isto
permitir-lhe-ia evitar o Estreito de Malaca, que, como vimos no capítulo
sobre a China, é um ponto de estrangulamento que poderá sufocar o
crescimento económico chinês.
Na primavera de 2015, os dois países celebraram um acordo de 46 mil
milhões de dólares para a construção de uma gigantesca rede de estradas,
ferrovias e condutas que cubra 2900km, de Gwadar à região de Xinjiang, na
China. O Corredor Económico China-Paquistão, como é designado, dará à
China acesso direto ao Oceano Índico, e mais além. No final de 2015, a
China assinou também um arrendamento a 40 anos de 2300 acres de terreno
na zona portuária, para desenvolver uma enorme «zona económica especial»
e um aeroporto internacional, tudo como parte do Corredor Económico
China-Paquistão. Como os dois lados sabem que é provável que o
Baluchistão continue volátil, está a ser formada uma força de segurança de
até 25.000 homens para proteger a zona.
O investimento maciço feito pela China na construção de uma via terrestre
como esta é fonte de grande contentamento para o Paquistão, e este é um dos
motivos por que o Paquistão tentará sempre esmagar quaisquer movimentos
secessionistas que surjam naquela província. Contudo, até que mais alguma
da riqueza gerada pelo Baluchistão lhe seja devolvida e usada no seu
próprio desenvolvimento, essa área está destinada a continuar turbulenta e,
ocasionalmente, violenta.
São o Islão, o críquete, os serviços secretos, as forças armadas e o medo
da Índia que mantêm o Paquistão unido. Nenhum destes fatores bastará para
impedir o seu desmembramento se as forças do separatismo se
intensificarem. Na verdade, o Paquistão está em estado de guerra civil há
mais de uma década, depois de guerras periódicas e insensatas contra o seu
gigantesco vizinho, a Índia.
A primeira deu-se em 1947, pouco depois da secessão, e foi travada por
causa de Caxemira, que, em 1948, acabou por ser dividida pela Linha de
Controlo (também conhecida como o Muro de Berlim da Ásia); todavia,
tanto a Índia como o Paquistão continuam a reivindicar soberania sobre toda
a região.
Quase 20 anos mais tarde, o Paquistão calculou mal o poder das forças
armadas indianas com base na má prestação da Índia na guerra sino-indiana
de 1962. As tensões entre a Índia e a China tinham-se agravado devido à
invasão do Tibete pela China, o que, por seu turno, levara a Índia a dar asilo
ao Dalai Lama. Durante este breve conflito, as forças armadas chinesas
mostraram a sua superioridade e avançaram até quase entrarem no estado de
Assam, perto do centro da Índia. As tropas paquistanesas assistiram com
satisfação, e depois, sobrestimando a sua própria intrepidez, declararam
guerra à Índia em 1965, e perderam.
Em 1984, o Paquistão e a Índia enfrentaram-se em contendas a uma
altitude de 6700 metros, no Glaciar de Siachen, no que se pensa ter sido a
batalha a maior altitude da História. Em 1985, 1987 e 1995 ocorreram mais
confrontos. O Paquistão continuou a treinar militantes para se infiltrarem
para lá da Linha de Controlo e, em 1999, estalou mais uma batalha motivada
por Caxemira. Nessa altura, já os dois países estavam armados com armas
nucleares e, durante várias semanas, a ameaça silenciosa da escalada para
uma guerra nuclear pairou sobre o conflito, até que a diplomacia americana
interveio e aplacou os dois lados. Em 2001, estiveram novamente perto de
uma guerra, e ainda hoje existem tiroteios esporádicos ao longo da fronteira.
Militarmente, a Índia e o Paquistão são adversários. Os dois dizem que a
sua postura é defensiva, mas nenhum acredita no outro, e por isso continuam
a acumular tropas junto à fronteira, presos um ao outro numa potencial dança
de morte.
As relações entre a Índia e o Paquistão nunca serão amigáveis, mas, se
não fosse a pedra de Caxemira no sapato de cada um dos lados, poderiam
vir a ser cordiais. Sendo a situação o que é, a Índia contenta-se em ver o
Paquistão dividido e fará os possíveis por manter esse estado de coisas; e o
Paquistão tentará minar a Índia, com elementos pertencentes ao Estado a
apoiarem até ataques terroristas no interior da Índia, como o massacre em
Mumbai, em 2008.
A luta por Caxemira é, em parte, uma questão de orgulho nacional, mas é
também estratégica. O controlo total de Caxemira proporcionaria à Índia
uma janela para a Ásia Central e uma fronteira com o Afeganistão. Privaria,
ainda, o Paquistão de uma fronteira com a China, reduzindo assim a utilidade
das relações entre a China e o Paquistão. O governo paquistanês gosta de
apregoar que a sua amizade com a China é «mais alta do que as montanhas e
mais profunda do que os oceanos». Isto não é verdade, mas tem a sua
utilidade, pois, por vezes, faz com que os americanos receiem cortar a ajuda
financeira maciça que Washington dá ao Paquistão.
Se o Paquistão tivesse total controlo sobre Caxemira, isso aumentaria as
opções de política externa de Islamabade e negaria oportunidades à Índia.
Seria também benéfico para a segurança hídrica do Paquistão. O Rio Indo
nasce no Tibete, nos Himalaias, mas passa pela parte de Caxemira dominada
pela Índia antes de entrar no Paquistão, que atravessa de uma ponta à outra,
indo desaguar no Mar Arábico, junto a Carachi.
O Indo e os seus afluentes fornecem água a dois terços do país: sem ele, a
indústria do algodão e muitos outros sustentáculos da débil economia do
Paquistão sucumbiriam. Nos termos de um tratado que foi sempre respeitado,
mesmo durante as guerras que os opuseram, a Índia e o Paquistão acordaram
em partilhar as águas; mas ambas as populações estão a crescer a um ritmo
alarmante, e o aquecimento global poderá reduzir o fluxo de água. A
anexação de toda a Caxemira garantiria o abastecimento de água ao
Paquistão. Dado o que está em jogo, nenhum dos lados cederá; e, até que
cheguem a um acordo sobre Caxemira, a hostilidade entre eles não
terminará. Caxemira parece destinada a ser, eternamente, o lugar onde são
travadas guerras esporádicas por procuração, entre combatentes treinados
pelo Paquistão e o exército indiano — um conflito que ameaça descambar
numa verdadeira guerra, com o inerente perigo do uso de armas nucleares.
Ambos os países continuarão, além disso, a travar outra guerra por
procuração — no Afeganistão —, especialmente agora que a maior parte das
forças da NATO partiram.
O Paquistão não tem «profundidade estratégica» interna — um local para
onde recuar em caso de invasão vinda do Leste, ou seja, da Índia. A
fronteira entre o Paquistão e a Índia abrange pântanos a sul, o Deserto do
Thar e montanhas a norte; tudo terrenos extremamente difíceis para a
progressão de um exército. No entanto, essa progressão pode ser conseguida
e ambos os lados têm planos de batalha para aí combater. O plano do
exército indiano inclui o bloqueamento do porto de Carachi e dos respetivos
depósitos de armazenamento de combustível por terra e por mar, mas uma
rota de invasão mais fácil passaria entre o Sul e o Norte — seria através do
Centro, do mais hospitaleiro Punjab; e, no Punjab, fica a capital do
Paquistão — Islamabade.
A distância da fronteira indiana a Islamabade é de menos de 400km, quase
sempre em terreno plano. No caso de um ataque convencional avassalador e
em massa, o exército indiano poderia estar na capital em poucos dias. O
facto de não afirmarem pretender fazê-lo é irrelevante: do ponto de vista do
Paquistão, essa hipótese existe, e a sua viabilidade geográfica é suficiente
para que o Paquistão precise de ter um Plano A e um Plano B que o
defendam do perigo.
O Plano A consiste em deter um avanço indiano no Punjab e, talvez,
contra-atacar do outro lado da fronteira e cortar a Autoestrada 1A da Índia,
que é uma rota de abastecimento vital para as tropas indianas. O exército
indiano tem mais de um milhão de soldados, sendo duas vezes maior do que
o do Paquistão, mas, se não puder ser abastecido, não poderá combater. O
Plano B é recuar para lá da fronteira com o Afeganistão, se necessário, e
isso pressupõe a existência de um governo amigável em Cabul. Logo, a
geografia determinou que o Paquistão terá relações com o Afeganistão, tal
como a Índia.
Para se travarem mutuamente, cada um dos lados precisa de moldar o
governo do Afeganistão à sua vontade — ou, por outras palavras, cada um
dos lados quer fazer de Cabul um inimigo do seu inimigo.
Quando, em 1979, os soviéticos invadiram o Afeganistão, a Índia deu
apoio diplomático a Moscovo, mas o Paquistão apressou-se a ajudar os
americanos e os sauditas a armar, treinar e financiar os mujahedin para
combaterem o Exército Vermelho. Assim que os soviéticos foram
derrotados, os serviços secretos do Paquistão, os ISI, ajudaram a criar, e
depois a apoiar, os talibãs afegãos, que tomaram conta do país.
O Paquistão tinha afinidades naturais com os talibãs afegãos. A maior
parte destes é pachtun, a mesma etnia da maioria dos paquistaneses da
Fronteira Noroeste (agora conhecida como Khyber Pakhtunkhwa). Nunca se
viram como dois povos distintos, e consideram a fronteira entre eles uma
invenção ocidental, o que, de certa forma, é verdade.
A fronteira entre o Afeganistão e o Paquistão é conhecida como a Linha
Durand. Sir Mortimer Durand, o secretário de Estado dos Negócios
Estrangeiros do governo colonial da Índia, traçou-a em 1893 e o então
governante do Afeganistão concordou com ela. Porém, em 1949, o governo
afegão «anulou» o acordo, acreditando tratar-se de uma relíquia artificial da
era colonial. Desde então, o Paquistão tem tentado persuadir o Afeganistão a
mudar de ideias, o Afeganistão tem recusado e os pachtuns dos dois lados
das montanhas têm tentado continuar a viver como o fazem há séculos,
ignorando a fronteira e mantendo as suas antigas ligações.
No centro desta área, por vezes designada Pachtunistão, fica a cidade
paquistanesa de Peshawar, uma espécie de complexo urbano
militar/industrial talibã. Esta cidade fornece Kalashnikovs contrafeitas,
tecnologia de construção de bombas e combatentes, e recebe apoio de
algumas secções do Estado.
É também uma escala para os funcionários dos ISI a caminho do
Afeganistão com fundos e instruções para os grupos de inspiração talibã do
outro lado da fronteira. O Paquistão está militarmente envolvido no
Afeganistão há décadas, mas agora excedeu-se, e o tiro saiu-lhe pela culatra.
Em 2001, os talibãs criados pelo Paquistão já acolhiam os combatentes
estrangeiros da Al Qaeda há vários anos. Depois, no 11 de Setembro, a Al
Qaeda atacou os EUA em casa, numa operação montada no Afeganistão. Em
resposta, o poderio militar norte-americano expulsou os talibãs e a Al Qaeda
do seu quartel-general. As forças antitalibã da Aliança do Norte afegã
deslocaram-se para sul, para tomar conta do país, seguidos por uma força de
estabilização da NATO.
Do outro lado da fronteira, logo a seguir ao 11 de Setembro, os
americanos tinham começado a pressionar diplomaticamente o Paquistão,
exigindo a sua participação na «Guerra ao Terror» e o fim do seu apoio ao
terrorismo. O então Secretário de Estado, Colin Powell, tinha telefonado ao
Presidente Musharraf, obrigando-o a interromper uma reunião para atender a
chamada, e dissera-lhe: «Ou está connosco, ou está contra nós.»

Os principais grupos étnicos na área afegã-paquistanesa não se adaptaram à fronteira que foi
imposta em 1893 pela Linha Durand; muitos destes grupos continuam a identificar-se mais com
as suas tribos, para lá das fronteiras, do que com o resto da nação.
Isto nunca foi confirmado pelo lado americano, mas Musharraf escreveu
que a chamada foi seguida de um telefonema de um colaborador próximo de
Powell, Richard Armitage, ao chefe dos ISI, no qual lhe disse que «se
escolhessem os terroristas, deviam preparar-se para serem bombardeados
até voltarem à Idade da Pedra». O Paquistão cooperou, e assunto encerrado.
Acontece que… o Paquistão não cooperou totalmente, e o assunto não ficou
encerrado.
Islamabade foi obrigada a agir, e agiu; mas nem todos os elementos do
sistema paquistanês subiram a bordo. O governo baniu vários grupos
militantes e tentou reprimir grupos religiosos que considerava extremistas.
Em 2004, envolveu-se em ações militares contra grupos na Fronteira
Noroeste e, em privado, aceitou a política americana de ataques com drones
no seu território, ao mesmo tempo que, publicamente, os condenava.
Não foram decisões fáceis. As forças armadas paquistanesas e os ISI
viram-se obrigados a atacar os mesmos líderes talibãs que eles próprios
tinham treinado e com os quais tinham criado amizade nos anos 90. Os
grupos talibãs reagiram com fúria, assumindo o controlo total de várias
regiões nas áreas tribais. Musharraf foi alvo de três tentativas de assassinato
falhadas, o seu futuro sucessor, Benazir Bhutto, foi vítima de homicídio, e,
no meio do caos dos bombardeamentos e das ofensivas militares, até 50.000
civis paquistaneses foram mortos.
A operação dos EUA e da NATO no Afeganistão, e as medidas tomadas
pelo Paquistão do outro lado da fronteira, ajudaram a espalhar os árabes, os
chechenos e outros combatentes estrangeiros da Al Qaeda por todos os
cantos da terra, onde os seus líderes foram perseguidos e mortos; mas os
talibãs não tinham para onde ir — eram afegãos e paquistaneses — e, como
disseram aos invasores estrangeiros e tecnologicamente avançados da
América e da Europa, «vocês podem ter os relógios, mas nós temos o
tempo». Iriam esperar que os estrangeiros partissem, suportando todos os
ataques, e, entretanto, seriam ajudados por alguns elementos do Paquistão.
Passados alguns anos, ficou claro que os talibãs não tinham sido
derrotados, que se haviam fundido no seu substrato de origem, a população
pachtun, e estavam agora a reemergir, onde e quando desejavam.
Os americanos optaram por uma estratégia de «martelo e bigorna».
Martelariam os talibãs afegãos contra a bigorna da operação paquistanesa do
outro lado da fronteira. Nas áreas tribais, a «bigorna» acabou por ser, em
vez disso, uma esponja que absorvia tudo o que era lançado contra ela,
incluindo os talibãs afegãos que recuavam perante o martelo americano.
Em 2006, os britânicos decidiram estabilizar a Província de Helmand, no
Sul, onde a influência do governo afegão não se estendia muito além da
capital da província, Lashkar Gah. Era o centro do território dos pachtuns
afegãos. Os britânicos chegaram com boas intenções, conheciam a história
daquele povo, mas parecem tê-la ignorado — porquê, permanece um
mistério. O então Secretário de Estado da Defesa britânico, John Reid, é
erradamente acusado de, e culpado por, ter dito, nesse verão, que «esperava
que nem um tiro fosse disparado por raiva». O que, na verdade, disse foi:
«Estamos no Sul para ajudar e proteger o povo afegão na reconstrução da
sua economia e democracia. Ficaremos satisfeitos se pudermos partir, daqui
a três anos, sem termos disparado um único tiro.»
Esta podia ser uma aspiração louvável, mas alguma vez terá sido viável?
Nesse verão, depois de uma reunião informativa no Ministério dos Negócios
Estrangeiros, em Londres, tive a seguinte conversa com o secretário de
Estado da Defesa:
— Não se preocupe, Tim. Não vamos perseguir os talibãs, estamos lá
para proteger as pessoas.
— Não se preocupe, senhor Secretário de Estado. Os talibãs não deixarão
de vos perseguir.
Foi uma conversa amigável, que teve lugar antes de mais de 450 soldados
britânicos terem sido mortos, mas ainda hoje não sei se o governo britânico
estava a tranquilizar a opinião pública antes de colocar as tropas no terreno,
prevendo, em segredo, uma missão dura, ou se estava a ser
inexplicavelmente ingénuo acerca do que tinha pela frente.
Assim, os talibãs sangraram os britânicos, sangraram os americanos,
sangraram a NATO, esperaram que a NATO partisse e, passados 13 anos, a
NATO partiu.
Durante todo este período, nos mais altos níveis do sistema paquistanês,
fazia-se jogo duplo. A América podia ter a sua estratégia, mas o Paquistão
sabia o mesmo que os talibãs: que, um dia, os americanos partiriam, e,
quando isso acontecesse, a política externa do Paquistão continuaria a
precisar de um governo amigável no Afeganistão. Algumas fações dentro das
forças armadas e do governo paquistaneses tinham continuado a auxiliar os
talibãs, apostando que, depois da retirada da NATO, pelo menos a metade
Sul do Afeganistão regressaria ao domínio talibã, e garantindo assim que
Cabul teria de conversar com Islamabade.
A perfídia do Paquistão foi posta a nu quando os americanos acabaram
por encontrar o líder da Al Qaeda, Osama bin Laden, escondido à vista do
governo em Abbottabad, uma cidade de guarnição militar. Nesse momento, a
desconfiança dos americanos em relação aos seus «aliados» paquistaneses
era já tal que não avisaram Islamabade com antecedência de que uma equipa
das Forças Especiais ia aterrar ali para matar bin Laden. Foi um desrespeito
pela soberania paquistanesa que humilhou as forças armadas e o governo do
Paquistão, assim como o argumento que se lhe seguiu: «Se não sabiam que
ele estava ali, foram incompetentes; se sabiam, foram cúmplices.»
O governo paquistanês sempre negara ter feito o jogo duplo que resultou
na morte de um elevado número de afegãos e paquistaneses, assim como de,
comparativamente, poucos americanos. Depois da missão de Abbottabad,
continuou a negá-lo, mas já havia menos quem acreditasse nele. Se havia
elementos do sistema paquistanês dispostos a auxiliar o homem mais
procurado pela América, apesar de este, nesse momento, já ter pouco valor
para eles, era óbvio que apoiariam grupos que pudessem dar seguimento às
suas ambições de influenciar o curso dos acontecimentos no Afeganistão. O
problema era que esses grupos tinham, agora, os seus homólogos no
Paquistão e queriam, também, influenciar o curso dos acontecimentos aí.
Virou-se o feitiço contra o feiticeiro.
Os talibãs paquistaneses são uma extensão natural da versão afegã. Ambas
são predominantemente pachtuns e nenhuma delas aceitará o domínio de
qualquer poder não pachtun, seja o exército britânico do século XIX ou o
exército paquistanês controlado pelos punjabis do século XXI.
Isto foi sempre compreendido e aceite por Islamabade. O governo
paquistanês fingia governar todo o país, e os pachtuns da Fronteira Noroeste
fingiam ser leais ao estado paquistanês. Esta relação funcionou até 11 de
setembro de 2001.
Os anos desde essa data foram extremamente duros para o Paquistão. O
número de mortos civis é enorme e o investimento estrangeiro diminuiu
muito, tornando a vida quotidiana ainda mais difícil. O exército, obrigado a
enfrentar o que eram, na prática, os seus aliados, perdeu cerca de 5000
homens e a guerra civil pôs em perigo a frágil unidade do Estado.
As coisas pioraram tanto que as forças armadas e o governo do Paquistão
acabaram por ter de entregar aos EUA informações militares secretas e
coordenadas que lhes permitissem realizar ataques com drones contra alvos
talibãs paquistaneses, na Fronteira Noroeste. Ao mesmo tempo, quando os
ataques se tornaram visíveis, Islamabade viu-se na obrigação de fingir
condená-los e de os descrever como uma violação da soberania
paquistanesa, devido às centenas de mortes civis atribuídas a erros dos
EUA.
Os drones eram, essencialmente, lançados a partir de uma base no
Afeganistão, mas pensa-se que alguns tenham partido de uma base secreta no
interior do Paquistão. De onde quer que viessem, eram muitos. Os ataques
com drones no Afeganistão e no Paquistão aumentaram maciçamente durante
a presidência de Obama, em comparação com a sua quantidade durante a
administração de George Bush.
Na primavera de 2015, tudo piorara ainda mais. A NATO saíra do
Afeganistão e os americanos haviam anunciado o fim das missões de
combate, deixando para trás apenas uma força residual. Oficialmente, a
função desta era a realização de operações das Forças Especiais e de
missões de treino; oficiosamente, era a de tentar garantir que Cabul não
cairia nas mãos dos talibãs. Sem a NATO para enfraquecer os talibãs do
lado afegão da fronteira, a tarefa do Paquistão de vencer os talibãs
paquistaneses ficou ainda mais dificultada. Washington continua a pressionar
Islamabade, e isso abre vários cenários possíveis:
As forças armadas paquistanesas caem, em toda a sua força, sobre a
Fronteira Noroeste e derrotam os talibãs.
A campanha dos talibãs continua a acelerar a fraturação do Paquistão, até
que este se torne um estado falhado.
Os americanos perdem o interesse, abrandam a pressão sobre Islamabade
e o governo faz um acordo com os talibãs. A situação volta ao normal, ou
seja, a Fronteira Noroeste é deixada em paz e o Paquistão continua a impor a
sua agenda ao Afeganistão.
Destes três cenários, o menos provável é o primeiro. Nunca uma força
estrangeira derrotou as tribos da Fronteira Noroeste, e um exército
paquistanês contendo punjabis, sindis, balúchis e caxemires (além de alguns
pachtuns) será considerada uma força estrangeira assim que entrar nas áreas
tribais.
O segundo cenário é possível, mas, depois de anos de surdez a sinais de
alarme, o massacre talibã de 132 alunos em Peshawar, em 2014, parece ter
sacudido o sistema paquistanês o suficiente para o fazer compreender que o
movimento que ajudou a criar poderá, agora, destruí-lo.
Isto faz do terceiro cenário o mais provável. O interesse dos americanos
no Afeganistão é limitado, desde que os talibãs prometam, tacitamente, não
voltar a dar guarida a um grupo jihadista internacional. Os paquistaneses
manterão ligações suficientes com os talibãs afegãos para se assegurarem de
que os governos em Cabul ouvirão Islamabade e não se encostarão à Índia,
e, quando a pressão desaparecer, estes poderão fazer um acordo com os
talibãs paquistaneses.
Nada disto teria sido necessário se os talibãs afegãos, em parte criados
pelos ISI paquistaneses, não tivessem sido estúpidos ao ponto de acolher os
árabes da Al Qaeda de bin Laden e de, após o 11 de Setembro, manterem a
tradição pachtun de respeitar os convidados, recusando-se a entregá-los
quando os americanos o solicitaram. Mas, porque o foram, a situação
continua tão má que o governo dos EUA teve de inverter a sua política e
manter no Afeganistão mais uns milhares de soldados do que planeara.
Quanto à Índia, pode dedicar-se a múltiplas tarefas — e tem mesmo de o
fazer, dado que tem mais em que pensar do que apenas no Paquistão, ainda
que este seja a primeira prioridade da política externa de Nova Deli. Ter um
estado hostil com armas nucleares mesmo ao lado é algo merecedor de
atenção, mas a Índia deve, também, concentrar-se em gerir 1,3 mil milhões
de pessoas ao mesmo tempo que emerge como uma possível potência
mundial.
A sua relação com a China poderia dominar a sua política externa, se não
fosse um pormenor — os Himalaias. Sem a cordilheira montanhosa mais alta
do mundo entre eles, o que é uma relação morna seria, provavelmente,
gelada. Uma olhadela ao mapa mostra-nos dois países imensos lado a lado,
mas um olhar mais atento revela que estão separados um do outro pelo que o
World Factbook da CIA menciona como uma fronteira de 2658km.
Há alguns temas que provocam fricção, o principal dos quais é o Tibete, a
região mais alta da Terra. Como já foi referido, a China queria o Tibete,
tanto para evitar que a Índia o tivesse, como — o que, na visão de Pequim,
seria quase tão mau como a primeira hipótese — para evitar que um Tibete
independente permitisse que a Índia aí baseasse forças militares,
concedendo-lhe, assim, o controlo das terras altas.
A resposta da Índia à anexação do Tibete pela China foi dar guarida ao
Dalai Lama e ao movimento pela independência do Tibete em Dharamsala,
no estado de Himachal Pradesh. Foi uma apólice de seguro a longo prazo,
paga pela Índia, mas sem a expetativa de algum dia ser reembolsada. Nas
atuais circunstâncias, a independência do Tibete parece impossível; mas, se
o impossível viesse a ocorrer, mesmo daqui a várias décadas, a Índia estaria
em posição de lembrar ao governo tibetano quem foram os seus amigos
durante os anos do exílio.
Os chineses sabem que este cenário é extremamente improvável, mas
Dharamsala irrita-os. A sua reação está patente no Nepal, onde Pequim
garante a sua influência junto do movimento maoista local.
A Índia não quer ver um Nepal dominado pelos maoistas, em última
análise controlado pela China, mas sabe que o dinheiro e o comércio de
Pequim compram a sua influência nesse estado. A China pode, atualmente,
importar-se pouco com o maoismo, mas importa-se o suficiente com o Tibete
para mostrar à Índia que também ela pode pagar uma apólice de seguro a
longo prazo. Qualquer «interferência» no Tibete poderá levar a uma
«interferência» no Nepal. E quanto mais a Índia tiver de se concentrar nos
pequenos estados vizinhos, menos poderá concentrar-se na China.
Outra questão entre estes dois países é o estado de Arunachal Pradesh, no
Nordeste da Índia, a que a China chama «Tibete do Sul». À medida que a
confiança da China cresce, cresce também a dimensão do território desse
estado que a China afirma ser chinês. Até há pouco tempo, a China só
reivindicava a área de Tawang, na extremidade oeste do estado. Contudo, no
início da primeira década do século XXI, Pequim decidiu que todo o estado
de Arunachal Pradesh era chinês, o que foi uma novidade para os indianos,
que exercem a soberania sobre ele desde 1955. A pretensão chinesa é, em
parte, geográfica, e em parte psicológica. Arunachal Pradesh faz fronteira
com a China, o Butão e a Birmânia, o que o torna estrategicamente útil, mas
é também valioso para a China como lembrete ao Tibete de que a
independência não tem hipóteses de sucesso.
Esta é uma mensagem que a Índia também tem de enviar periodicamente a
várias das suas regiões. Existem vários movimentos separatistas, uns mais
ativos do que outros, alguns adormecidos, mas nenhum que pareça
determinado a atingir os seus objetivos. Por exemplo, o movimento sique
para criar um estado para siques em parte do Punjab indiano e paquistanês
está, de momento, silencioso, mas poderá inflamar-se novamente. O estado
de Assam alberga vários movimentos concorrentes, incluindo os povos de
língua bodo, que querem um estado próprio, e os Tigres Muçulmanos da
Libertação Unida de Assam, que querem criar um país autónomo, dentro de
Assam, para os muçulmanos.
Existe até um movimento para criar um estado cristão independente em
Nagaland, onde 75 por cento da população são batistas; todavia, a
perspetiva de o Conselho Nacional de Nagaland atingir os seus objetivos é
tão remota como o território que almeja controlar, e o mesmo parece aplicar-
se a todos os movimentos separatistas.
Apesar destes, e de outros, grupos que desejam a independência, de uma
população sique de 21 milhões de pessoas e de uma minoria muçulmana de,
talvez, 170 milhões, a Índia mantém um forte sentido de identidade e de
unidade dentro da diversidade, que lhe será útil quando se afirmar, com mais
propriedade, no palco mundial.
O mundo ficou tão maravilhado com a ascensão fulgurante da China ao
poder que, muitas vezes, esquece o seu vizinho, mas a Índia ainda pode
rivalizar com a China como central de poder económico neste século. É o
sétimo maior país do mundo, com a segunda população mais numerosa. Faz
fronteira com seis países (sete, se contarmos com o Afeganistão). Tem
14.500km de vias navegáveis internas, fornecimentos de água fiáveis e
enormes áreas de terrenos aráveis, é um dos principais produtores de carvão
e possui boas quantidades de petróleo e gás, embora esteja condenada a
nunca poder deixar de importar estas três matérias-primas, e os custos do
combustível e do aquecimento sejam um sorvedouro das suas finanças.
Apesar das suas riquezas naturais, a Índia não acompanhou o crescimento
da China, e, como a China está agora a abrir-se ao mundo, poderá haver um
choque entre os dois países — não na fronteira que os divide, mas no mar.
Durante milhares de anos, as regiões que compõem o que são hoje a China
e a Índia modernas podiam ignorar-se mutuamente, graças ao seu terreno. A
expansão para dentro do território uma da outra, através dos Himalaias, era
impossível, e, além disso, cada uma delas possuía terrenos aráveis mais do
que suficientes.
No entanto, agora, o progresso da tecnologia significa que as duas
precisam de grandes quantidades de energia; a geografia não lhes atribuiu
essa riqueza, e, por isso, os dois países viram-se forçados a alargar os seus
horizontes e a aventurar-se nos oceanos; e foi aí que se encontraram.
Há 25 anos, a Índia adotou uma política de «olhar para o Leste», em parte
para bloquear o que via como a ascensão iminente da China. «Tratou do
assunto» aumentando drasticamente o comércio com a China (essencialmente
através de importações), enquanto, ao mesmo tempo, criava relações
estratégicas em locais que a China considera o seu quintal.
A Índia fortaleceu laços com a Birmânia, as Filipinas e a Tailândia, mas,
o que é ainda mais importante, está a trabalhar com o Vietname e o Japão
para conter o domínio crescente da China no Mar da China Meridional.
Nesta tarefa, tem um novo aliado, embora o mantenha a uma certa
distância — os Estados Unidos. Durante décadas, a Índia suspeitou que os
americanos fossem os novos britânicos, com um sotaque diferente e mais
dinheiro. No século XXI, uma Índia mais confiante, num mundo cada vez
mais multipolar, encontrou motivos para cooperar com os EUA. Quando, em
2015, o Presidente Obama foi assistir à parada militar do Dia da República
Indiana, Nova Deli teve o cuidado de exibir os seus novos e brilhantes
aviões de transporte militar C-130 Hercules e C-17 Globemaster,
fornecidos pelos EUA, assim como os seus tanques fornecidos pela Rússia.
As duas democracias gigantescas estão, lentamente, a aproximar-se.
A Índia tem uma marinha moderna vasta e bem equipada, que inclui um
porta-aviões, mas não poderá competir com a marinha oceânica maciça que
a China está a planear. Em vez disso, a Índia está a alinhar-se com outras
partes interessadas, para que possam, pelo menos, fazer sombra sobre, senão
dominar, a marinha chinesa, quando esta navegar pelos mares da China,
passar pelo Estreito de Malaca, pela Baía de Bengala, contornar a
extremidade da Índia e chegar ao Mar Arábico, dirigindo-se ao porto
amigável que a China construiu em Gwadar, no Paquistão.
Os problemas da Índia reconduzem-se sempre ao Paquistão, e os do
Paquistão, à Índia.
CAPÍTULO 8

COREIA E JAPÃO

«Eu… comecei a proferir um trocadilho sobre Kim Jong-il ser o “Querido


Líder”, mas a frase morreu-me nos lábios.»
Christopher Hitchens, Love, Poverty and War: Journeys and Essays
MAPA COREIA E JAPÃO

C
omo se resolve um problema como o da Coreia? Não se resolve,
apenas se gere —afinal, há muito mais coisas a acontecer no mundo
que requerem atenção imediata.
Toda a região, desde a Malásia até ao porto russo de Vladivostok, vê o
problema Coreia do Norte/Coreia do Sul com preocupação. Todos os
vizinhos sabem que tem potencial para lhes rebentar na cara, arrastando
outros países e prejudicando as suas economias. Os chineses não querem
lutar pela Coreia do Norte, mas também não querem uma Coreia unida que
contenha bases americanas junto à sua fronteira. Os americanos não querem,
verdadeiramente, lutar pela Coreia do Sul, mas também não podem dar-se ao
luxo de serem vistos a abandonar um amigo. Os japoneses, com o seu longo
historial de envolvimento na Península Coreana, têm de andar a pisar ovos,
sabendo que é provável que o que quer que aconteça venha a afetá-los.
A solução é um compromisso, mas a Coreia do Sul mostra pouca
disposição para isso, e a liderança da Coreia do Norte não mostra nenhuma.
O caminho a seguir não é nada claro; parece estar sempre a desaparecer no
horizonte.
Durante vários anos, os EUA e Cuba rodearam-se mutuamente, deixando
cair sugestões de que gostariam de se aproximar, embora não demasiado, o
que levou ao grande avanço que foi o restabelecimento das relações
diplomáticas, em julho de 2015. Por outro lado, a Coreia do Norte recebe
com olhares furiosos qualquer tentativa de aproximação, juntando-lhes, por
vezes, algumas caretas.
A Coreia do Norte é um país devastado pela pobreza, com uma população
estimada de 25 milhões de pessoas, governado por uma monarquia
comunista falida e moralmente corrupta que é um caso perdido e apoiado
pela China, em parte devido ao receio de que um fluxo de milhões de
refugiados desague para norte, atravessando o Rio Yalu. Os EUA, com medo
de que uma retirada militar criasse a impressão errada e encorajasse o
aventureirismo da Coreia do Norte, continuam com quase 30.000 soldados
estacionados na Coreia do Sul, e esta, temerosa de arriscar a sua
prosperidade, continua a fazer muito pouco para levar a reunificação
adiante.
Todos os atores deste drama do Leste Asiático sabem que, se tentarem
forçar uma solução para o problema na altura errada, se arriscam a piorar as
coisas. A piorá-las muito. Não é descabido pensar que se poderia acabar
com duas capitais em ruínas fumegantes, uma guerra civil, uma catástrofe
humanitária, mísseis a cair dentro e à volta de Tóquio e mais um confronto
entre as forças armadas chinesas e americanas numa península dividida,
onde um dos lados tem armas nucleares. Se a Coreia do Norte implodir,
poderá também explodir, projetando instabilidade para lá das fronteiras sob
a forma de guerra, terrorismo e/ou um fluxo de refugiados; por tudo isto, os
atores estão de mãos atadas. E, assim, a solução é deixada para a próxima
geração de líderes, e depois para a seguinte.
Se os líderes mundiais sequer falassem abertamente sobre fazer
preparativos para o dia em que a Coreia do Norte colapsar, arriscar-se-iam
a precipitar esse dia; e, como ninguém está preparado para ele… o melhor é
manter o silêncio. É um beco sem saída.
A Coreia do Norte continua a fazer o papel de pobre louco e poderoso,
com bons resultados. A sua política externa consiste, essencialmente, em
desconfiar de toda a gente, exceto dos chineses; mas nem mesmo Pequim
merece confiança total, apesar de garantir 84,12 por cento das importações
da Coreia do Norte e de comprar 84,48 por cento das suas exportações,
segundo dados de 2014 do Observatório da Complexidade Económica. A
Coreia do Norte faz todos os possíveis por virar todos os estrangeiros uns
contra os outros, incluindo os chineses, de forma a impedir a criação de uma
frente unida contra si.
À sua população cativa, apresenta-se como um estado forte, magnânimo e
magnífico, que contraria as probabilidades e faz frente aos malvados
estrangeiros, autodesignando-se República Popular Democrática da Coreia
(RPDC). Tem uma filosofia política única, o «Juche», que mistura um
nacionalismo feroz com comunismo e autossuficiência nacional.
Na realidade, é o estado menos democrático do mundo: não é governado
para bem do povo e não é uma república. É uma dinastia partilhada por uma
família e um partido. Também preenche todos os requisitos de uma ditadura:
prisões arbitrárias, tortura, julgamentos populares, campos de detenção,
censura, domínio através do medo, corrupção e uma litania de horrores a
uma escala sem paralelo no século XXI. Imagens de satélite e depoimentos
de testemunhas sugerem que, pelo menos, 150.000 presos políticos estão
detidos em gigantescos campos de trabalho e «reeducação». A Coreia do
Norte é um peso na consciência do mundo e, ainda assim, poucas pessoas
estão conscientes de todos os horrores que aí se passam.
As histórias noticiadas de membros da elite vítimas de purgas e
executados com canhões antiaéreos ou atirados a matilhas de cães
esfomeados nunca foram confirmadas. No entanto, sejam ou não verdadeiras,
não restam dúvidas sobre o desfile de horrores a que a ditadura sujeita o seu
povo. O controlo total pelo Estado resultou em espancamentos, tortura,
campos de detenção e assassínios extrajudiciais.
O isolamento autoimposto do país e o controlo quase total da informação
pelo Estado são tais que não podemos fazer mais do que conjeturas sobre o
que sentirão as pessoas em relação ao seu país, sistema e líderes, e se
apoiam ou não o regime. Tentar analisar o que lá se passa em termos
políticos, e porquê, é como olhar por uma janela opaca com óculos escuros
postos. Um dia, um antigo embaixador em Pyongyang disse-me: «É como
estar de um lado da janela, e tentar abri-la, mas não ter qualquer ponto de
apoio para espreitar lá para dentro.»
A história da fundação da Coreia conta-nos que foi criada em 2333 a.C.,
por desígnio divino. O Senhor dos Céus mandou o seu filho, Hwanung, à
terra, onde ele surgiu na Montanha Paektu (Baekdu) e casou com uma mulher
que, anteriormente, era um urso, gerando um filho, Dangun, o qual foi um
exemplo precoce de construtor de uma nação.
A versão mais antiga desta lenda da criação de que existem registos data
do século XIII e pode, de certo modo, explicar o que leva um Estado
comunista a ter uma liderança transmitida dentro de uma família, à qual é
atribuído estatuto divino. Por exemplo, Kim Jong-il era descrito pela
máquina de propaganda de Pyongyang como «Querido Líder, a encarnação
perfeita da aparência que um líder deve ter», «Raio de Sol Orientador»,
«Estrela Cintilante da Montanha Paektu», «Líder Mundial do século XXI» e
«Grande Homem que desceu dos céus», assim como «Coração Eterno de
Amor Ardente». O seu pai tinha títulos muito semelhantes, tal como o seu
filho.
O que sente a população em geral acerca destas declarações? Nem mesmo
os peritos podem ir para além das suposições. Quando se veem as imagens
da histeria de massas dos norte-coreanos a chorar a morte de Kim Jong-il,
em 2011, é interessante notar que, para lá das primeiras filas de pessoas
trementes e soluçantes, o nível de desgosto parece diminuir. Será porque os
que estão na frente sabem que têm as câmaras sobre eles e, por isso, para sua
própria segurança, têm de se comportar devidamente? Ou terão os
indefetíveis do partido sido colocados à frente? Ou tratar-se-á de pessoas
normais genuinamente desgostosas, uma magnificação norte-coreana do tipo
de explosões emocionais que vimos no Reino Unido, após a morte da
Princesa Diana?
Seja como for, a RPDC continua a desempenhar o papel de louco
perigoso, ou pobre perigoso. É um excelente desempenho, e as suas raízes
encontram-se, em parte, na localização e na história da Coreia, encurralada
como está entre os gigantes da China e do Japão.
O nome «O Reino Eremita» foi dado à Coreia no século XVIII, depois de
esta ter tentado isolar-se após séculos em que foi alvo de domínio, ocupação
e saque, ou, por vezes, apenas um ponto de passagem a caminho de algum
outro lugar. Quando se vem do Norte, uma vez passado o Rio Yalu, existem
poucas grandes linhas defensivas naturais até se chegar ao mar, e o mesmo se
aplica quando se vem do mar. Os mongóis chegaram e partiram, tal como a
dinastia Ming chinesa, os manchus e os japoneses, por várias vezes. Por
isso, o país preferiu não interagir com o mundo exterior durante algum
tempo, cortando muitos dos seus laços comerciais, na esperança de ser
deixado em paz.
Não o conseguiu. No século XX, os japoneses voltaram, anexando todo o
país em 1910 e, mais tarde, dedicando-se a destruir a sua cultura. A língua
coreana foi banida, assim como o ensino da História coreana, e o culto nos
santuários xintoístas tornou-se obrigatório. As décadas de repressão
deixaram um legado que, ainda hoje, afeta as relações entre o Japão e os
dois estados coreanos.
A derrota do Japão, em 1945, deixou a Coreia dividida pelo paralelo 38.
A norte deste, encontrava-se um regime comunista supervisionado, primeiro,
pelos soviéticos, e depois pela China comunista; a sul, estava uma ditadura
pró-americana designada República da Coreia (RDC). Estava-se no início
da Guerra Fria e cada centímetro de terra era disputado, com cada um dos
lados a procurar ganhar influência ou controlo em todo o mundo, e relutante
em deixar que o outro lado mantivesse a presença onde quer que fosse.
A escolha do paralelo 38 como linha divisória foi infeliz em muitos
aspetos e, nas palavras do historiador americano Don Oberdorfer, arbitrária.
Segundo este, Washington estava tão concentrado na rendição do Japão, a 10
de agosto de 1945, que não tinha uma verdadeira estratégia para a Coreia.
Com as tropas soviéticas em movimento no Norte da península e a Casa
Branca a convocar uma reunião de emergência que durou toda a noite, dois
oficiais juniores, armados apenas de um mapa da National Geographic,
escolheram o paralelo 38 como um bom local onde sugerir aos soviéticos
que parassem, com base no facto de se situar a meio do país. Um desses
oficiais era Dean Rusk, que, mais tarde, seria secretário de Estado, na
administração do Presidente Truman, durante a Guerra da Coreia.
Não estavam presentes quaisquer coreanos, nem peritos na Coreia. Se
estivessem, poderiam ter dito ao Presidente Truman e ao seu então
Secretário de Estado James Francis Byrnes que a linha era a mesma que já
fora discutida pelos russos e pelos japoneses, a propósito da definição de
esferas de influência, meio século antes, a seguir à Guerra Russo-Japonesa
de 1904-05. Moscovo, desconhecendo que os americanos estavam a tomar
decisões políticas em cima do joelho, não poderia ser censurada por pensar
estar perante o reconhecimento, na prática, dessa sugestão pelos americanos,
e, logo, a aceitação da divisão e de um Norte comunista. O acordo estava
feito, a nação dividida e a sorte lançada.
Os soviéticos retiraram as tropas do Norte em 1948 e os americanos
seguiram-lhes o exemplo, no Sul, em 1949. Em junho de 1950, as forças
armadas da Coreia do Norte ousaram subestimar fatalmente a estratégica
geopolítica da América na Guerra Fria e atravessaram o paralelo 38,
decididas a reunificar a península sob o governo comunista. As forças do
Norte percorreram o país quase até ao seu extremo Sul, fazendo soar os
alarmes em Washington.
A liderança norte-coreana, e os seus apoiantes chineses, haviam
concluído, acertadamente, que, de um ponto de vista estritamente militar, a
Coreia não era vital para os EUA; mas o que lhes faltou compreender foi que
os americanos sabiam que, se não fossem em auxílio do seu aliado sul-
coreano, os seus outros aliados, em todo o mundo, perderiam a confiança
neles. E, se os aliados da América, no auge da Guerra Fria, começassem a
alargar as suas opções ou a passar-se para o lado comunista, toda a sua
estratégia global seria posta em causa. Existe aqui um paralelo com a
política atual dos EUA no Leste Asiático e na Europa de Leste. Países como
a Polónia, os Estados Bálticos, o Japão e as Filipinas têm de confiar na
proteção da América nas suas relações com a Rússia e a China.
Em setembro de 1950, os EUA, liderando uma força das Nações Unidas,
irromperam na Coreia, fazendo as tropas do Norte recuar para trás do
paralelo 38 e, depois, quase até ao Rio Yalu e à fronteira com a China.
Era a vez de a China tomar uma decisão. Uma coisa era ter forças dos
EUA na península, outra muito diferente era tê-las a norte do paralelo —
mais precisamente, a norte das montanhas que dominavam Hamhung — e a
uma distância que lhes permitia atacar a própria China. As tropas chinesas
atravessaram o Yalu e seguiram-se 36 meses de combate feroz, com
numerosas baixas de todos os lados, até se deterem junto à presente fronteira
e acordarem numas tréguas, embora não num tratado. Ali estavam, impedidas
de transpor o paralelo 38, e assim continuam.
A geografia da península é bastante simples e recorda-nos como a divisão
entre Norte e Sul é artificial. A verdadeira divisão é (a traços largos) entre o
Leste e o Oeste. O Oeste da península é muito mais plano do que o Leste, e é
aí que a maioria das pessoas vive. O Leste tem a cordilheira montanhosa
Hamgyong a norte e cordilheiras mais pequenas a sul. A zona
desmilitarizada (DMZ), que corta a península a meio, segue, nalguns
segmentos, o Rio Imjin-gang, mas este nunca foi uma barreira natural entre as
duas entidades; é apenas um rio dentro de um espaço geográfico unificado
onde os estrangeiros penetram demasiadas vezes.
As duas Coreias continuam tecnicamente em guerra e, dadas as tensões
explosivas entre elas, um conflito de grandes dimensões está sempre a
poucos disparos de distância.
O Japão, os EUA e a Coreia do Sul preocupam-se com as armas nucleares
da Coreia do Norte, mas a Coreia do Sul, em especial, tem outra ameaça a
pairar sobre si. A capacidade da Coreia do Norte para miniaturizar com
êxito a sua tecnologia nuclear e criar ogivas lançáveis é uma incógnita, mas
não há dúvida de que tem capacidade, como já demonstrou em 1950, para
lançar um ataque convencional de surpresa.
A capital da Coreia do Sul, a megacidade de Seul, fica a apenas 56km a
sul do paralelo 38 e da zona desmilitarizada. Quase metade dos 50 milhões
de habitantes da Coreia do Sul vive na região da grande Seul, onde se
encontra estabelecida a maior parte dos seus centros industriais e
financeiros, e tudo isto está ao alcance da artilharia norte-coreana.
Calcula-se que, nas colinas sobranceiras à zona desmilitarizada de
238km, as forças armadas norte-coreanas tenham 10.000 peças de artilharia.
Estão bem enterradas, algumas em bunkers fortificados e abrigos
subterrâneos. Nem todas conseguiriam atingir o centro de Seul, mas algumas
poderiam fazê-lo, e todas têm alcance suficiente para atingir a região da
grande Seul. Não há dúvida de que, em dois ou três dias, a conjugação das
forças aéreas sul-coreanas e norte-americanas destruiriam a maior parte
delas, mas, por essa altura, Seul já estaria em chamas. Imagine-se o efeito de
apenas uma rajada disparada por 10.000 peças de artilharia que atingisse
zonas urbanas e semiurbanas, e multiplique-se esse efeito por dezenas de
vezes.
Dois peritos na Coreia do Norte, Victor Cha e David Chang, num artigo
para a revista Foreign Policy, calcularam que as forças da RPDC poderiam
disparar até 500.000 rajadas contra a cidade, na primeira hora de um
conflito. Parece uma estimativa muito elevada, mas, mesmo dividindo este
número por cinco, os resultados seriam devastadores. O governo sul-
coreano ver-se-ia a braços com uma guerra terrível e, ao mesmo tempo, teria
de gerir o caos provocado por milhões de pessoas a fugir para sul, mesmo
que tentasse reforçar a fronteira com tropas estacionadas abaixo da capital.

Uma grande preocupação para a Coreia do Sul é a proximidade de Seul e das áreas urbanas
circundantes da fronteira com a Coreia do Norte. A posição de Seul torna-a vulnerável a
ataques surpresa do país vizinho, cuja capital está muito mais longe e parcialmente protegida
por terreno montanhoso.
As colinas acima da zona desmilitarizada não são muito altas, e existe
muito terreno plano entre elas e Seul. Num ataque surpresa, o exército norte-
coreano conseguiria avançar bastante depressa, auxiliado pelas Forças
Especiais, que entrariam através de túneis subterrâneos que os sul-coreanos
acreditam já ter sido construídos. Pensa-se que os planos de batalha da
Coreia do Norte incluam submarinos a despejar tropas de choque a sul de
Seul, assim como a ativação de células adormecidas colocadas entre a
população do Sul. Estima-se que a Coreia do Norte tenha 100.000 soldados
considerados Forças Especiais.
O Norte também já provou que pode atingir Tóquio com mísseis
balísticos, disparando vários sobre o Mar do Japão na direção do Pacífico,
o que os levaria diretamente para território japonês. As suas forças armadas
têm mais de um milhão de soldados, constituindo um dos maiores exércitos
do mundo, e, mesmo que um grande número deles não esteja altamente
treinado, seriam sempre úteis a Pyongyang como carne para canhão,
enquanto esta procurava alargar o conflito.
Os americanos combateriam ao lado do Sul, as forças armadas chinesas
estariam em alerta total e a aproximar-se do Yalu, e os russos e os japoneses
observariam nervosamente o desenrolar dos acontecimentos.
Ninguém está interessado em que haja outra grande guerra na Coreia, já
que ambos os lados seriam devastados, mas isso nunca impediu guerras no
passado. Em 1950, quando a Coreia do Norte atravessou o paralelo 38, não
previra uma guerra de três anos com cerca de quatro milhões de mortos,
acabando num impasse. Hoje, um conflito em larga escala poderia ser ainda
mais catastrófico. A economia da RDC é 80 vezes mais forte do que a do
Norte, a sua população é duas vezes maior e seria quase certo que as forças
armadas sul-coreanas e norte-americanas conjugadas acabariam por esmagar
a Coreia do Norte, partindo do princípio de que a China não decidiria
intervir novamente.
E depois? Foram feitos muito poucos planos sérios para essa
eventualidade. Pensa-se que o Sul tenha construído alguns modelos em
computador para avaliar o que poderia ser necessário, mas a convicção
geral é de que a situação seria caótica. Os problemas que adviriam da
implosão ou explosão da Coreia multiplicar-se-iam se estas ocorressem em
resultado de uma guerra. Muitos países seriam afetados e ver-se-iam
obrigados a tomar decisões. Mesmo que a China não quisesse intervir
durante os combates, poderia sentir-se compelida a cruzar a fronteira e a
proteger o Norte para manter a zona-tampão entre si própria e as forças dos
EUA. Poderia considerar que uma Coreia unificada, aliada aos EUA, que
são aliados do Japão, seria uma ameaça potencial demasiado forte para ser
tolerada.
Os EUA teriam de decidir até onde avançariam na zona desmilitarizada e
se deveriam tentar controlar todos os locais na Coreia do Norte que contêm
armas nucleares e outras armas de destruição maciça. A China teria
preocupações semelhantes, especialmente porque algumas das instalações
nucleares ficam a apenas 56km da sua fronteira.
Do ponto de vista político, o Japão teria de decidir se queria uma Coreia
poderosa e unificada do outro lado do Mar do Japão. Dadas as frágeis
relações entre Tóquio e Seul, o Japão tem motivos para se preocupar com
essa hipótese, mas, como a China o preocupa muito mais, seria provável que
apoiasse a reunificação, apesar de ser muito possível que lhe viesse a ser
pedida ajuda financeira, devido à sua longa ocupação da península no século
passado. Além disso, sabe, tão bem como Seul, que a maior parte dos custos
económicos da reunificação seriam suportados pela Coreia do Sul, e que
estes fariam os da reunificação alemã parecer uma ninharia. A Alemanha
Oriental podia estar muito atrasada em relação à Alemanha Ocidental, mas
tinha uma história de desenvolvimento, uma base industrial e uma população
instruída. O desenvolvimento da Coreia do Norte teria de ser construído a
partir do zero, e os custos de um tal empreendimento impediriam o
crescimento da economia da península unificada durante uma década. Depois
disso, seria de esperar que a riqueza dos recursos naturais do Norte, como o
carvão, o zinco, o cobre, o ferro e os metais de terras raras, assim como o
programa de modernização, trouxessem os seus benefícios, mas, entretanto,
existem dúvidas quanto à conveniência de arriscar a prosperidade de uma
das nações mais avançadas do mundo.
Estas decisões são questões a debater no futuro. Por agora, cada um dos
lados continua a preparar-se para a guerra; tal como sucede com o Paquistão
e a Índia, estão presos no medo e na desconfiança mútuos.
A Coreia do Sul é hoje um membro dinâmico e integrado das nações do
mundo, com uma política externa à altura. Com mar aberto a oeste, leste e
sul, e poucos recursos naturais, teve o cuidado de construir, nas últimas três
décadas, uma marinha moderna com capacidade para navegar no Mar do
Japão e no Mar da China Oriental, para salvaguardar os interesses da RDC.
Tal como o Japão, está dependente de fontes estrangeiras para satisfazer as
suas necessidades energéticas, por isso mantém sob estreita vigilância as
rotas marítimas de toda a região. Dedicou algum tempo a alargar as suas
possibilidades, investindo capital diplomático em relações mais próximas
com a Rússia e a China, para grande aborrecimento de Pyongyang.
Um erro de cálculo de qualquer um dos lados poderá levar a uma guerra
que, além de ter efeitos devastadores na população da península, arruinaria
as economias da região, com efeitos secundários gigantescos na economia
dos EUA. O que começou com os EUA a defenderem a sua posição contra a
Rússia na Guerra Fria transformou-se numa questão de importância
estratégica para a sua economia e para as de muitos outros países.
A Coreia do Sul ainda tem diferendos com Tóquio relativos à ocupação
japonesa, e as suas relações, mesmo nos seus melhores dias, que são raros,
são apenas cordiais. No início de 2015, quando os americanos, os sul-
coreanos e os japoneses se dispuseram a discutir os pormenores de um
acordo de partilha de informações militares secretas recolhidas por cada um
deles sobre a Coreia do Norte, Seul disse que só cederia um volume
limitado de informações secretas a Tóquio, e só através de Washington. Não
comunicaria diretamente com os japoneses.
Existe ainda, entre os dois países, uma disputa territorial sobre o que a
Coreia do Sul chama as Ilhas Dokdo (solitárias) e os japoneses conhecem
como Ilhas Takeshima (de bambu) — os Rochedos de Liancourt. São
formações rochosas atualmente controladas pelos sul-coreanos, situadas em
locais bons para a pesca e numa região que poderá conter reservas de gás.
Apesar desta pedra nos seus sapatos, e das recordações ainda frescas da
ocupação, ambos têm motivos para cooperar e deixar para trás o seu
passado tormentoso.
A história do Japão é muito diferente da da Coreia, e as razões para isso
devem-se, em parte, à sua geografia.
Os japoneses são um povo insular, com a maioria da sua população de
127 milhões a viver nas quatro grandes ilhas em frente da Coreia e da
Rússia, do outro lado do Mar do Japão, e uma minoria a habitar algumas das
6848 ilhas mais pequenas. A maior das ilhas principais é Honxu, que contém
a maior megacidade do mundo, Tóquio, e os seus 39 milhões de pessoas.
No seu ponto mais próximo, o Japão está a 200km da massa terrestre
eurasiática, sendo este um dos motivos por que nunca foi invadido com
êxito. Os chineses estão a cerca de 800km, do outro lado do Mar da China
Oriental; e, embora exista território russo muito mais perto, as forças russas
estão, geralmente, longe, devido ao clima extremamente inóspito e às áreas
escassamente populadas do outro lado do Mar de Okhotsk.
Na primeira década do século XIV, os mongóis tentaram invadir o Japão,
depois de terem conquistado a China, a Manchúria e a Coreia. Na primeira
tentativa, foram rechaçados, e, na segunda, uma tempestade destruiu a sua
frota. No Estreito da Coreia, o mar foi açoitado por aquilo que os japoneses
disseram ser um «Vento Divino» a que chamavam «kamikaze».
Assim, a ameaça do Oeste e do Noroeste era limitada, e a sudeste e a leste
não havia nada além do Pacífico. Esta última perspetiva foi a razão por que
os japoneses se autointitularam «nipónicos» ou «a origem do sol»: olhando
para leste, não havia nada entre eles e o horizonte, e, todas as manhãs, o Sol
erguia-se desse horizonte. Tirando algumas invasões esporádicas da Coreia,
mantiveram-se, em geral, isolados, até à chegada do mundo moderno; e,
quando este chegou, depois de terem começado por repeli-lo, foram ao
encontro dele.
As opiniões divergem quanto ao momento em que as ilhas se
transformaram no Japão, mas existe uma carta famosa enviada, em 617 d.C.,
do que conhecemos como o Japão ao Imperador da China, na qual um
destacado nobre japonês escreve: «Pela presente, eu, o imperador do país
do sol nascente, escrevo ao imperador do país do sol poente. Está de boa
saúde?» Reza a história que o imperador chinês não gostou desta
impertinência. O seu Império era vasto, enquanto as principais ilhas
japonesas ainda estavam pouco unidas, uma situação que não se alteraria até,
aproximadamente, ao século XVI.
O território das ilhas japonesas forma um país maior do que as duas
Coreias juntas, ou, em termos europeus, maior do que a Alemanha. Contudo,
três quartos dos terrenos não são habitáveis, especialmente nas regiões
montanhosas, e só 13 por cento permitem uma agricultura intensiva. Isto faz
com que os japoneses vivam muito próximos uns dos outros, ao longo das
planícies costeiras e em áreas interiores restritas, onde é possível cultivar
campos de arroz em socalcos nas colinas. Graças às suas montanhas, o Japão
tem muita água, mas a falta de terrenos planos também significa que os seus
rios não são navegáveis e, por isso, não servem para o comércio, um
problema agravado pelo facto de poucos rios comunicarem entre si.
Assim, os japoneses tornaram-se um povo marítimo, estabelecendo
ligações comerciais ao longo das costas da sua miríade de ilhas e fazendo
incursões na Coreia, onde, depois de séculos de isolamento, acabariam por
dominar toda a região.
No início do século XX, o Japão era uma potência industrial com a
terceira maior marinha do mundo, e, em 1905, derrotou os russos numa
guerra travada em terra e no mar. Todavia, a mesma geografia de ilha-nação
que lhe permitira permanecer isolado não lhe dava, agora, outra alternativa
que não a de interagir com o mundo. O problema foi que optou por interagir
militarmente.
Tanto a Primeira Guerra Sino-Japonesa como a Guerra Russo-Japonesa
foram travadas para conter a influência chinesa e russa na Coreia. O Japão
considerava a Coreia, nas palavras do seu conselheiro militar prussiano, o
Major Klemens Meckel, «um punhal apontado ao coração do Japão». O
controlo da península eliminava a ameaça, e o controlo da Manchúria
garantia que a mão da China e, em menor medida, a da Rússia, não
conseguiriam aproximar-se do cabo do punhal. O carvão e o minério de
ferro da Coreia também seriam bastante úteis.
O Japão possuía poucos dos recursos naturais necessários para se tornar
uma nação industrializada. Tinha reservas de carvão limitadas e de má
qualidade, muito pouco petróleo, escassas quantidades de gás natural, parcas
reservas de borracha e falta de muitos metais. Isto é tão verdade agora como
o era há 100 anos, embora os campos de gás marítimos estejam a ser
explorados, juntamente com depósitos submarinos de metais preciosos.
Ainda assim, continua a ser o maior importador de gás natural do mundo, e o
terceiro maior importador de petróleo.
Foi a sede destes produtos que levou o Japão a invadir a China nos anos
30 e, depois, o Sudeste Asiático, no início dos anos 40. Já tinha ocupado
Taiwan em 1895 e prosseguiu com a anexação da Coreia, em 1910. O Japão
ocupou a Manchúria em 1932, e depois levou a cabo uma invasão total da
China em 1937. À medida que cada peça do dominó caía, o império em
expansão e a crescente população japonesa precisavam de mais petróleo,
mais carvão, mais metais, mais borracha e mais alimentos.
Com as potências europeias preocupadas com a guerra na Europa, o Japão
seguiu em frente, invadindo o Norte da Indochina. Finalmente, os
americanos, que, nessa altura, forneciam a maior parte do petróleo de que o
Japão precisava, fizeram-lhes um ultimato — a retirada ou um embargo
petrolífero. Os japoneses responderam com o ataque a Pearl Harbor, e
depois arrasaram o Sudeste Asiático, tomando a Birmânia, Singapura e as
Filipinas, entre outros territórios.
Com isto, excederam-se drasticamente, não só por atacarem os EUA, mas
também por se apossarem dos recursos, como, por exemplo, a borracha, de
que os EUA necessitavam para a sua própria indústria. O gigante do século
XX mobilizou-se para a guerra total. A geografia do Japão desempenhou,
então, o seu papel na maior catástrofe que o atingiu — Hiroxima e
Nagasáqui.
Os americanos tinham desbravado caminho no Pacífico, ilha a ilha, a
grande custo. Quando tomaram Okinawa, que se situa no arquipélago
Ryukyu, entre Taiwan e o Japão, depararam com um inimigo ainda fanático,
preparado para defender as quatro ilhas principais de uma invasão anfíbia.
Previa-se um enorme número de baixas por parte dos EUA. Se o terreno
fosse mais fácil, talvez a opção dos americanos tivesse sido diferente —
poderiam ter aberto caminho até Tóquio —, mas escolheram a via nuclear,
lançando sobre o Japão, e sobre a consciência coletiva mundial, o terror de
uma nova era.
Depois de a poeira radioativa ter assentado sobre a rendição total do
Japão, os americanos ajudaram à reconstrução do país, em parte como
barreira contra a China comunista. O novo Japão provou a sua proverbial
criatividade e, no espaço de três décadas, tornou-se um centro de poder
económico global.
Porém, a sua beligerância e o seu militarismo anteriores não tinham
desaparecido inteiramente: estavam apenas enterrados por baixo dos
escombros de Hiroxima e Nagasáqui e de uma consciência nacional
despedaçada. A constituição pós-guerra do Japão não lhe permitia ter um
exército, uma força aérea ou uma marinha, apenas «Forças de Autodefesa»
que, durante décadas, foram uma pálida sombra das forças armadas de antes
da guerra. O acordo pós-guerra imposto pelos EUA limitava as despesas do
Japão com a defesa a 1 por cento do PIB e deixava dezenas de milhares de
soldados americanos em território japonês, 32.000 dos quais ainda lá estão.
Mas, no início dos anos 80, já eram novamente detetáveis alguns ténues
laivos de nacionalismo. Havia setores da geração mais velha que nunca
tinham aceitado a enormidade dos crimes de guerra japoneses, e setores da
geração mais nova que não estavam preparados para aceitar a culpa pelos
pecados dos pais. Muitos dos filhos da Terra do Sol Nascente queriam o seu
lugar «natural» ao sol, no mundo pós-guerra.
Uma visão flexível da constituição tornou-se a norma e, lentamente, as
Forças de Autodefesa japonesas foram transformadas numa unidade de
combate moderna. Isto aconteceu enquanto a ascensão da China se tornava
cada vez mais evidente, pelo que os americanos, compreendendo que iriam
precisar de aliados militares na região do Pacífico, estavam dispostos a
aceitar um Japão remilitarizado.
Já neste século, o Japão alterou a sua política de defesa, permitindo que
as suas forças combatam ao lado dos aliados no estrangeiro, e esperam-se
alterações à constituição que consagrem legalmente esta tendência. O
documento japonês de Estratégia de Segurança de 2013 foi o primeiro em
que se nomeou um potencial inimigo, da seguinte forma: «A China tem tido
atitudes que podem ser vistas como tentativas de alteração coerciva do
estado das coisas.»
O orçamento para defesa de 2005 foi o maior até à data, atingindo um
valor de 42 mil milhões de dólares americanos, essencialmente para
equipamento naval e aéreo, incluindo seis caças furtivos F-35A fabricados
nos EUA. Na primavera de 2015, Tóquio também divulgou o que chamou um
«contratorpedeiro porta-helicópteros». Não era preciso ser-se perito militar
para reparar que o navio era tão grande como os porta-aviões japoneses da
Segunda Guerra Mundial, que estão proibidos pelos termos da rendição de
1945. O navio pode ser adaptado para aeronaves de asa fixa, mas o ministro
da Defesa emitiu um comunicado afirmando que «não tencionava usá-lo
como porta-aviões». É como comprar uma motocicleta e dizer que, como
não se vai usá-la como motocicleta, é uma bicicleta vulgar. Os japoneses
têm, agora, um porta-aviões.
O dinheiro gasto nesse e noutros equipamentos novos em folha é uma clara
declaração de intenções, tal como o é, em grande parte, o respetivo
posicionamento. As infraestruturas militares em Okinawa, que protegem as
ilhas principais de qualquer aproximação, serão melhoradas. Isto conferirá,
também, maior flexibilidade ao Japão para patrulhar a sua Zona de Defesa
Aérea, uma parte da qual se sobrepõe à equivalente zona chinesa, após o
alargamento desta ter sido anunciado por Pequim, em 2013.
Ambas as zonas cobrem as ilhas chamadas Senkaku ou Diaoyu
(respetivamente, em japonês e em chinês), que são controladas pelo Japão,
mas também reivindicadas pela China. Fazem ainda parte do arquipélago
Ryukyu, que é particularmente sensível, já que qualquer força hostil terá de
passar por essas ilhas para chegar às principais ilhas japonesas;
proporcionam ao Japão um acréscimo considerável ao seu mar territorial e
podem conter gás submarino e jazidas de petróleo exploráveis. Logo, Tóquio
pretende conservá-las por todos os meios necessários.
A «Zona de Identificação de Defesa Aérea» alargada da China, no Mar da
China Oriental, abrange territórios reivindicados pela China, o Japão,
Taiwan e a Coreia do Sul. Quando Pequim declarou que qualquer avião que
sobrevoasse aquela zona teria de se identificar ou «enfrentar medidas
defensivas», o Japão, a Coreia do Sul e os Estados Unidos responderam
sobrevoando-o sem se identificarem. Não houve qualquer reação hostil da
China, mas, a qualquer momento, a China pode decidir transformar esta
questão num ultimato.
O Japão também reivindica soberania sobre as Ilhas Curilas, no seu
extremo Norte, ao largo de Hokkaido, que perdeu para a União Soviética na
Segunda Guerra Mundial e estão ainda sob controlo russo. A Rússia prefere
não discutir o assunto, mas a discussão não está na mesma categoria das
disputas entre o Japão e a China. As Ilhas Curilas têm apenas cerca de
19.000 habitantes e, embora estejam situadas num local bom para a pesca,
não se trata de um território de especial importância estratégica. Por causa
deste desentendimento, as relações entre a Rússia e o Japão são frias, mas,
dentro dessa frieza, a questão das ilhas está praticamente congelada.
É a China que tira o sono aos líderes japoneses e que os mantém próximos
dos EUA, tanto diplomática como militarmente. Há muitos japoneses,
especialmente em Okinawa, que não gostam da presença das forças armadas
dos EUA, mas o poderio da China, somado ao declínio da população
japonesa, irá, provavelmente, garantir a continuação das relações pós-guerra
entre os EUA e o Japão, embora em termos mais igualitários. Os estaticistas
japoneses temem que a população possa diminuir para menos de 100
milhões em meados do século. Se a atual taxa de natalidade se mantiver, é
mesmo possível que, em 2110, a população tenha caído abaixo dos 50
milhões que perfazia em 1910. Os governos japoneses têm tentado diversas
medidas para reverter o declínio. Um exemplo recente é o uso de milhões de
dólares do dinheiro dos contribuintes para financiar um serviço de encontros
para casais jovens. São organizadas festas konkatsu subsidiadas para que
homens e mulheres solteiros se conheçam, comam, bebam e — por fim —
tenham filhos. A imigração é outra solução possível, mas o Japão continua a
ser uma sociedade relativamente insular e a imigração não é bem vista pela
população. Visto que a China, cada vez mais assertiva, tem uma população
de 1,4 mil milhões, o Japão, uma potência em vias de remilitarização com
uma visão discretamente acutilante, precisará de amigos na região.
Por isso, os americanos vão ficar, tanto na Coreia como no Japão. Existe,
agora, uma relação triangular entre eles, conforme sublinhado pelo acordo
de informações secretas acima referido. O Japão e a Coreia do Sul têm
muitas discussões em aberto, mas concordam que o seu receio comum em
relação à China e à Coreia do Norte se lhes sobrepõe.
Mesmo que se disponham a resolver um problema como o da Coreia, a
questão da China continuará a existir, o que significa que a Sétima Frota dos
Estados Unidos se manterá na Baía de Tóquio e que os fuzileiros navais
americanos se manterão em Okinawa, vigiando as rotas de entrada e de saída
do Pacífico e dos Mares da China. Prevê-se alguma agitação marítima.
CAPÍTULO 9

AMÉRICA LATINA

«Gostamos de ser chamados “o continente da esperança”…


Esta esperança é como uma promessa de paraíso,
um título de dívida cujo pagamento é sempre adiado.»
Pablo Neruda, poeta chileno e vencedor do Prémio Nobel
MAPA AMÉRICA LATINA

A
América Latina, em especial o Sul, é a prova de que se pode levar
os conhecimentos e a tecnologia do Velho Mundo para o novo,
mas, se a geografia não for favorável, o êxito será limitado, em
especial se as políticas forem mal aplicadas. Tal como a geografia dos EUA
os ajudou a tornarem-se uma grande potência, a dos vinte países que lhe
ficam a sul garante que nenhum deles se erguerá, neste século, como uma
ameaça séria ao gigante norte-americano, nem se juntarão para o fazer em
conjunto.
As limitações geográficas da América Latina foram agravadas desde o
início, logo na formação dos seus estados-nação. Nos EUA, assim que as
terras foram retiradas aos seus habitantes originais, a maior parte delas foi
vendida ou doada a pequenos proprietários; pelo contrário, na América
Latina, foi imposta a cultura do Velho Mundo de proprietários poderosos e
servos, o que levou à desigualdade. Além disso, os colonos europeus
criaram mais um problema geográfico que, ainda hoje, impede muitos países
de desenvolverem todo o seu potencial: permaneceram junto às costas,
especialmente (como vimos em África) em regiões onde o interior estava
infestado de mosquitos e doenças. A maioria das grandes cidades destes
países, muitas vezes as capitais, situa-se, assim, junto às costas, e todas as
estradas a partir do interior foram construídas para o ligar às capitais, mas
sem se interconetarem.
Nalguns casos, por exemplo no Peru e na Argentina, a área metropolitana
da capital contém mais de 30 por cento da população do país. Os
colonizadores concentraram-se em levar as riquezas de cada região para a
costa e, daí, para os mercados estrangeiros. Mesmo depois da
independência, as elites costeiras, predominantemente europeias, não
investiram no interior, e os poucos centros populacionais que aí existem
continuam mal ligados uns aos outros.
No início da segunda década do século XXI, estava na moda, entre muitos
líderes de negócios, professores e analistas dos meios de comunicação
defender entusiasticamente que se estava no dealbar da «década da América
Latina». Essa previsão não se verificou e, embora a região tenha um
potencial ainda não realizado, nunca deixará de se debater com os fatores
naturais e históricos que lhe couberam em sorte.
O México está a crescer no sentido de se tornar uma potência regional,
mas terá sempre os baldios desérticos a norte, as montanhas a leste e oeste e
as selvas a sul, tudo limitações físicas ao seu desenvolvimento económico.
O Brasil fez a sua aparição no palco mundial, mas as suas regiões interiores
permanecerão isoladas umas das outras; e a Argentina e o Chile, apesar da
sua riqueza de recursos naturais, continuarão sempre muito mais longe de
Nova Iorque e de Washington do que Paris ou Londres.
Duzentos anos depois do início da luta pela independência, os países da
América Latina estão muito atrasados em relação aos norte-americanos e aos
europeus. A sua população total (incluindo as Caraíbas) é de mais de 600
milhões, e, no entanto, o seu PIB conjunto é equivalente ao da França e do
Reino Unido, os quais, somados, perfazem cerca de 125 milhões de pessoas.
Fizeram um longo caminho desde o colonialismo e a escravatura. Resta-lhes
ainda um longo caminho a percorrer.
A América Latina começa na fronteira entre o México e os EUA e
estende-se para sul ao longo de 11.000km, englobando a América Central e
depois a América do Sul, e terminando na Terra do Fogo, no Cabo Horn,
onde os dois maiores oceanos do mundo, o Pacífico e o Atlântico, se
encontram. No seu ponto mais largo, de leste a oeste, do Brasil ao Peru,
mede 5150km. Do lado ocidental tem o Pacífico, do outro o Golfo do
México, o Mar das Caraíbas e o Atlântico. Nenhuma das suas linhas de costa
tem muitos portos naturais profundos, o que limita o comércio.
A América Central é formada por terrenos acidentados com vales
profundos e, no seu ponto mais estreito, tem apenas 193km de largura.
Depois, paralela ao Pacífico durante 7250km, encontra-se a cordilheira
montanhosa contínua mais longa do mundo — os Andes. Estão coroados de
neve ao longo de todo o seu comprimento e são praticamente
intransponíveis, separando, pois, muitas regiões no Oeste do Continente do
Leste. O ponto mais alto do Hemisfério Ocidental situa-se aqui — na
Montanha Aconcágua, com 6962 metros de altura — e as águas que escorrem
da cordilheira são uma fonte de energia hidroelétrica para as nações andinas
do Chile, Peru, Equador, Colômbia e Venezuela. Finalmente, o terreno perde
altitude, surgem florestas e glaciares, entra-se no arquipélago chileno e
depois… a terra acaba. O lado oriental da América Latina é dominado pelo
Brasil e pelo Rio Amazonas, o segundo mais longo do mundo, a seguir ao
Nilo.
Uma das poucas coisas que estes países têm em comum é a língua baseada
no latim. Em quase todos eles se fala espanhol, mas, no Brasil, fala-se
português e, na Guiana Francesa, francês. Contudo, esta ligação linguística
disfarça as diferenças dentro de um Continente que abarca cinco regiões
climatéricas diferentes. O terreno relativamente plano a leste dos Andes e o
clima temperado do terço inferior da América do Sul, conhecido como Cone
Meridional, contrastam fortemente com as montanhas e a selva mais a norte e
permitem a redução dos custos agrícolas e de construção, o que faz destas
regiões algumas das mais rentáveis de todo o Continente — enquanto o
Brasil, como veremos, tem até dificuldade em fazer circular os produtos
dentro do seu próprio mercado interno.
Os académicos e os jornalistas gostam de escrever que o Continente está
«numa encruzilhada» — ou seja, prestes a abraçar, por fim, o seu brilhante
futuro. Eu diria que, do ponto de vista geográfico, está mais no fim do mundo
do que numa encruzilhada; há muitas coisas a acontecer em todo este vasto
espaço, mas o problema é que muitas delas acontecem a grande distância de
tudo o resto. Esta pode ser considerada uma visão típica do Hemisfério
Norte, mas é, também, uma visão de onde estão situados os principais
poderes económicos, militares e diplomáticos.
Apesar da distância entre essa zona e os principais centros populacionais
da História, há cerca de 15.000 anos que vivem pessoas a sul do que é hoje
a fronteira entre o México e os EUA. Pensa-se que fossem originários da
Rússia e que tenham atravessado o Estreito de Bering a pé, numa época em
que este ainda era formado por terra firme. Os habitantes dos nossos dias
são uma mistura de europeus, africanos, tribos indígenas e da população
mestiça, de ascendência europeia e americana nativa.
Esta mistura já existia aquando do Tratado de Tordesilhas entre Espanha e
Portugal, em 1494, um dos primeiros exemplos de linhas traçadas por
colonizadores europeus em mapas de lugares longínquos sobre os quais
sabiam muito pouco — ou, neste caso, nada. Ao dirigirem-se para oeste para
explorar os oceanos, as duas grandes potências marítimas europeias
acordaram que qualquer terra descoberta fora da Europa seria partilhada
entre elas. O Papa concordou. O resto é uma história muito triste, na qual a
grande maioria dos ocupantes das terras hoje designadas América do Sul foi
dizimada.
Os movimentos pela independência começaram no início da primeira
década do século XIX, liderados por Simón Bolívar na Venezuela e José de
San Martín na Argentina. Bolívar, em especial, ficou gravado na consciência
coletiva da América do Sul: a Bolívia foi assim nomeada em sua honra, e os
países de ideologia esquerdista do Continente estão vagamente unidos por
uma ideologia «bolivariana» contra os EUA. Trata-se de um conjunto
flutuante de ideias anticolonialistas/pró-socialistas que, muitas vezes,
degeneram em nacionalismo, como e quando convém aos políticos que as
advogam.
No século XIX, muitos dos países recém-independentes desmembraram-
se, fosse através de conflitos civis ou de guerras transfronteiriças, mas, no
fim desse século, as fronteiras dos diversos estados estavam,
essencialmente, definidas. As três nações mais ricas — o Brasil, a Argentina
e o Chile — lançaram-se, então, numa corrida ruinosamente dispendiosa às
armas navais, que atrasou o desenvolvimento das três. Continuam a existir
disputas fronteiriças em todo o Continente, mas, devido à crescente
implantação da democracia, a maioria delas está adormecida ou é alvo de
tentativas de resolução diplomática.
Especialmente amarga é a relação entre a Bolívia e o Chile, que remonta à
Guerra do Pacífico de 1879, na qual a Bolívia perdeu uma considerável
parcela do seu território, incluindo 400km de litoral, sendo, desde então, um
país interior. Nunca recuperou desse golpe, o que, em parte, explica porque
se encontra entre os países mais pobres da América Latina. Este facto, por
seu turno, exacerbou a divisão radical entre a população fundamentalmente
europeia das terras baixas e os povos maioritariamente indígenas das terras
altas.
O tempo não curou as feridas entre eles, nem as cisões entre os dois
países. Apesar de a Bolívia possuir as terceiras maiores reservas de gás
natural da América do Sul, não o vende ao Chile, que precisa de um
fornecedor fiável. Dois presidentes bolivianos que ponderaram fazê-lo
foram destituídos, e o atual presidente, Evo Morales, tem uma política de
«gás para o Chile» que consiste num acordo de «gás por linha de costa», que
o Chile recusa, apesar da sua necessidade de energia. O orgulho nacional e
as necessidades geográficas sobrepõem-se, de ambos os lados, a um
compromisso diplomático.
Outra disputa de fronteiras que data do século XIX prende-se com as
fronteiras do território britânico de Belize e da vizinha Guatemala. Estas são
linhas retas, tal como vimos em África e no Médio Oriente, e foram traçadas
pelos britânicos. A Guatemala reivindica o Belize como parte do seu
território soberano, mas, ao contrário da Bolívia, não quer levar o assunto
adiante. O Chile e a Argentina discutem a via marítima do Canal de Beagle,
a Venezuela reivindica metade da Guiana e o Equador tem pretensões
históricas ao Peru. Este último exemplo constitui uma das disputas
territoriais mais graves no Continente e já levou a três guerras fronteiriças
nos últimos 75 anos, tendo a mais recente sido travada em 1995; mas,
também aqui, o crescimento da democracia tem atenuado as tensões.
A segunda metade do século XX viu a América Central e do Sul tornar-se
um campo de batalha por procuração da Guerra Fria, com os
correspondentes golpes de Estado, ditaduras militares e violações dos
direitos humanos em massa, por exemplo na Nicarágua. O fim da Guerra Fria
permitiu que muitas nações se aproximassem da democracia e, em
comparação com o que foram no século XX, as relações entre elas são agora
relativamente estáveis.
Os latino-americanos, ou, pelo menos, os que vivem a sul do Panamá,
residem, essencialmente, nas Costas Leste e Oeste, ou perto delas, sendo o
Interior e o gelado extremo Sul muito escassamente povoados. A América do
Sul é, na verdade, um Continente demograficamente oco, e o seu litoral é,
muitas vezes, referido como a «orla povoada». Isto não se verifica tanto na
América Central e, especialmente, no México, onde as populações estão
distribuídas com mais uniformidade; mas o México, em particular, tem um
terreno difícil, que limita as suas ambições e políticas externas.
Na sua extremidade Norte, o México tem uma fronteira de 3200km com os
EUA, a quase totalidade da qual é composta por deserto. O terreno, aí, é tão
inclemente que a maior parte dele é desabitado e funciona como uma zona-
tampão entre o México e o seu gigantesco vizinho a norte — mas esse
tampão é mais vantajoso para os americanos do que para os mexicanos, dada
a disparidade entre as suas tecnologias. Do ponto de vista militar, só as
forças dos EUA poderiam levar a cabo uma invasão de monta que a
atravessasse; qualquer investida vinda do lado contrário seria destruída.
Como barreira à entrada ilegal nos EUA, é útil, mas porosa — um problema
com que as sucessivas administrações dos EUA terão de lidar.
Todos os mexicanos sabem que, antes da guerra de 1846-48 com os
Estados Unidos, as terras que hoje formam o Texas, a Califórnia, o Novo
México e o Arizona faziam parte do México. O conflito levou a que metade
do território mexicano fosse cedido aos EUA. Contudo, não existe qualquer
movimento político sério para a recuperação da região nem qualquer disputa
fronteiriça premente entre os dois países. Ao longo de quase todo o século
XX, discutiram um pequeno pedaço de terra, depois de, nos anos 50 do
século XIX, o Rio Grande ter alterado o seu curso, mas, em 1967, os dois
lados concordaram que a área fazia, legalmente, parte do México.
Em meados do século XXI, é provável que os hispânicos sejam o maior
grupo étnico nos quatro estados americanos acima referidos, e muitos serão
de origem mexicana. Poderão acabar por existir movimentos políticos de
língua espanhola, dos dois lados da fronteira entre os EUA e o México, que
defendam a reunificação, mas o facto de muitos latino-americanos não terem
identidade mexicana, assim como o de não se prever que o México venha a
oferecer padrões de vida sequer remotamente semelhantes aos dos EUA
contribuirão, certamente, para arrefecer os ânimos. O governo mexicano tem
dificuldade em controlar até o seu próprio território — e não estará em
posição de o aumentar no futuro mais próximo. O México está destinado a
viver na sombra dos EUA e, como tal, desempenhará sempre um papel
subserviente nas relações bilaterais. Falta-lhe uma marinha capaz de
proteger o Golfo do México ou de se aventurar no Atlântico e, por isso,
depende da marinha dos EUA para garantir que as rotas marítimas
permanecem abertas e seguras.
As empresas privadas das duas nações instalaram fábricas logo a sul da
fronteira para reduzir as despesas com trabalho e transportes, mas a região é
hostil à existência humana e continuará a ser uma terra de ninguém, que
muitos pobres da América Latina continuarão a atravessar numa tentativa de
aceder, legal ou ilegalmente, à Terra Prometida a norte.
As principais cordilheiras montanhosas do México, as Sierra Madre,
dominam o leste e o oeste do país e, entre elas, encontra-se um planalto. A
sul, no Vale do México, fica a capital — a Cidade do México —, uma das
maiores megacapitais do mundo, com uma população de cerca de 20 milhões
de pessoas.
Nas encostas ocidentais das montanhas e nos vales, o solo é pobre e os
rios de pouco servem no transporte dos produtos para os mercados. Nas
encostas orientais, a terra é mais fértil, mas o terreno acidentado impede,
ainda assim, que o México se desenvolva como gostaria. A sul, estão as
fronteiras com o Belize e a Guatemala. O México tem pouco interesse em
expandir-se para sul, pois o terreno eleva-se rapidamente, transformando-se
no tipo de paisagem montanhosa difícil de conquistar ou de controlar. A
conquista de terras a qualquer desses dois países não aumentaria a reduzida
extensão de solo rentável de que o México já dispõe. Este não tem ambições
territoriais ideológicas e, em vez disso, concentra-se em tentar desenvolver
a sua limitada indústria de produção de petróleo e em atrair mais
investimento para as suas fábricas. Além disso, o México já tem problemas
internos suficientes em mãos, sem precisar de se envolver em aventuras no
exterior — talvez o maior deles seja o seu papel de abastecedor do voraz
apetite americano por drogas.
A fronteira mexicana foi sempre um paraíso para os contrabandistas, mas
nunca o foi mais do que nos últimos 20 anos. Este é um resultado direto da
política governamental dos EUA na Colômbia, 2400km a sul.
O Presidente Nixon foi o primeiro, nos anos 70, a declarar uma «Guerra
às Drogas», que, tal como a «Guerra ao Terror», é um conceito algo
nebuloso em que não é possível obter-se uma vitória. No entanto, foi só no
início dos anos 90 que Washington levou a guerra diretamente aos cartéis de
droga colombianos, com um manifesto auxílio ao governo da Colômbia.
Conseguiu ainda fechar muitas das rotas aéreas e marítimas da droga, da
Colômbia para os EUA.
Os cartéis reagiram criando uma rota terrestre — que atravessa a América
Central e o México, até ao Sudoeste dos EUA. Esta rota segue, parcialmente,
a Autoestrada Pan-americana, que percorre o Continente de sul a norte.
Originalmente concebida para o transporte de produtos nas duas direções,
fazendo-os chegar a diversos países, é hoje também usada para levar drogas
para norte, até aos EUA. Por seu turno, isto incentivou os gangues da droga
mexicanos a tomarem parte na ação, facilitando as rotas e fabricando o seu
próprio produto. O negócio de muitos milhares de milhões de dólares
suscitou guerras locais entre gangues pela disputa de territórios, com os
vencedores a usar o poder e o dinheiro recém-conquistados para se
infiltrarem e corromperem a polícia e as forças armadas mexicanas e para
penetrarem nas elites políticas e de negócios.
Este panorama tem algum paralelismo com o tráfico de heroína no
Afeganistão. Muitos dos camponeses afegãos que cultivam as papoilas
reagiram às tentativas da NATO de destruir o seu modo tradicional de ganhar
a vida pegando em armas ou apoiando os talibãs. O governo pode ter
adotado a política de declarar uma «Guerra às Drogas», mas isso não
significa que as suas ordens sejam executadas a nível regional, onde os
senhores da droga afegãos se infiltraram. O mesmo acontece no México.
Ao longo da História, os sucessivos governos da Cidade do México nunca
conseguiram um controlo firme do país. Agora, os seus opositores, os cartéis
da droga, têm alas paramilitares tão bem armadas como as forças estatais,
muitas vezes mais bem pagas, mais motivadas e, em muitas regiões, vistas
por alguns membros da população como uma fonte de emprego. As elevadas
quantias ganhas pelos gangues circulam agora por todo o país, em grande
parte branqueadas pelo que, à superfície, parecem ser negócios legítimos.
O México está agora a braços com o que é quase uma guerra civil. Os
cartéis tentam controlar o território através da intimidação, o governo tenta
fingir que zela pelo Estado de direito e centenas de cidadãos, apanhados no
fogo cruzado, estão a ser mortos. Entre as manifestações mais horríveis desta
situação esteve o presumível assassínio de 43 professores estagiários por
um cartel, em 2014, um ato que traumatizou o país e galvanizou as
autoridades, mas que, em última análise, parece ser «apenas» mais um
terrível marco no que será uma longa batalha.
A rota terrestre de fornecimento está firmemente estabelecida, e a procura
nos EUA mostra poucos sinais de diminuição. Todos os governos mexicanos
tentam corresponder às expetativas do seu poderoso vizinho e têm
respondido à pressão americana declarando a sua própria «Guerra às
Drogas». Aqui, reside um dilema. O México sustenta-se fornecendo bens de
consumo à América e, enquanto os americanos consumirem drogas, os
mexicanos continuarão a fornecê-las — afinal, a ideia é fabricar produtos
com baixos custos de produção e vendê-los a preços mais altos do que os
dos produtos disponíveis no comércio legal. Sem as drogas, o país seria
ainda mais pobre do que já é, pois muito dinheiro estrangeiro deixaria de
entrar. Com as drogas, é ainda mais violento do que seria de outra forma. O
mesmo se aplica a alguns outros países a sul do México.
A América Central tem pouco a seu favor em termos geográficos, exceto
num aspeto. É estreita. Até agora, o único país a tirar proveito desse facto
foi o Panamá, mas, com a chegada de dinheiro novo vindo da China, essa
situação poderá estar prestes a mudar.
A tecnologia moderna significa que os chineses podem ver, num relance,
numa fotografia tirada por satélite, as oportunidades comerciais que esta
estreita faixa de terra lhes poderá trazer. Em 1513, o explorador espanhol
Vasco Núñez de Balboa teve de atravessar o Atlântico, aportar no que é hoje
o Panamá, depois percorrer selvas e transpor montanhas a pé, até ver outro
vasto oceano diante de si — o Pacífico. As vantagens de ligar os dois eram
óbvias, mas foram precisos mais 401 anos para que a tecnologia estivesse à
altura da geografia. Em 1914, o recém-construído Canal do Panamá, com
80km de comprimento e controlado pelos americanos, foi aberto, poupando
assim 12.800km de viagem entre os Oceanos Atlântico e Pacífico e levando
ao crescimento económico da região do Canal.
Desde 1999, o Canal é controlado pelo Panamá, mas visto como uma via
navegável internacional neutral, protegida pelas marinhas dos EUA e do
Panamá. E aí reside um problema para os chineses.

A América Central poderá sofrer várias alterações nas regiões que estão a receber investimento
chinês, tais como a construção do Grande Canal da Nicarágua.
O Panamá e os EUA são amigos — na verdade, tão bons amigos que, em
2014, a Venezuela cortou, brevemente, relações com o Panamá, chamando-
lhe «lacaio dos EUA». O efeito da retórica da era revolucionária
bolivariana desse país cada vez mais entrincheirado é atenuado pela
consciência de que os Estados Unidos são o parceiro comercial mais
importante da Venezuela e de que a Venezuela garante cerca de 10 por cento
das importações de petróleo dos EUA. É provável que o comércio
energético entre eles decaia à medida que os efeitos da revolução do xisto
nos EUA se começarem a sentir, mas Pequim terá todo o gosto em importar o
petróleo venezuelano, e está a estudar uma forma de o fazer chegar à China
sem depender da rota que passa pelo Panamá.
A China, como vimos no Capítulo 2, tem a ambição de ser uma potência
global e, para atingir este objetivo, precisará de manter as rotas marítimas
abertas ao seu comércio e à sua marinha. O Canal do Panamá pode ser uma
passagem neutral, mas, em última análise, a sua travessia depende da boa
vontade da América. Portanto, porque não construir o seu próprio canal,
mais acima, na Nicarágua? Afinal, o que são 50 mil milhões de dólares para
uma superpotência em crescimento?
O projeto do Grande Canal da Nicarágua é financiado por um homem de
negócios de Hong Kong chamado Wang Jing, que fez muito dinheiro com as
telecomunicações, mas não tem qualquer experiência de engenharia, e muito
menos de coordenação de um dos mais ambiciosos projetos de construção da
História mundial. O senhor Wang insiste que o governo chinês não está
envolvido no projeto. Dada a natureza da cultura de negócios chinesa e a
participação do governo chinês em todas as vertentes da vida, isso seria
invulgar.
A estimativa de custos de 50 mil milhões de dólares para o projeto, que
deverá estar pronto no início dos anos 20 do século XXI, é quatro vezes o
valor de toda a economia da Nicarágua e faz parte do investimento
substancial feito na América Latina pela China, que está, lenta mas
firmemente, a suplantar os EUA enquanto principal parceiro comercial da
região. Não se sabe exatamente quem está a apoiar financeiramente o senhor
Wang, mas o presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, subscreveu o plano
com entusiasmo e sem a menor contemplação pelas mais de 30.000 pessoas
que serão obrigadas a mudar-se das suas terras por causa do projeto.
O antigo revolucionário socialista e agitador sandinista vê-se, agora,
acusado de estar do lado dos grandes negócios. O Canal partirá o país ao
meio, e seis municípios serão divididos. Ao longo de todo o comprimento do
Canal, existirá apenas uma ponte a atravessá-lo. Ortega sabe, com certeza,
que corre o risco de lançar as sementes da discórdia, mas argumenta que o
projeto trará dezenas de milhares de empregos e os investimentos e
rendimentos tão necessários ao segundo país mais pobre do Hemisfério
Ocidental. No início de 2016, o projeto não estava a correr bem. Calcula-se
que o senhor Wang tenha perdido 85 por cento da sua fortuna na queda da
bolsa de valores chinesa, em setembro de 2015. A maior parte dos trabalhos
de construção foi adiada, mas todas as partes insistem que o projeto terá
êxito.
Se assim for, o Canal da Nicarágua será mais longo do que o do Panamá e,
acima de tudo, será consideravelmente mais largo e profundo, o que
permitirá a passagem de navios-cisterna e porta-contentores muito maiores,
para não falar nas grandes embarcações da marinha chinesa. O seu percurso
será de leste para oeste, enquanto o do Canal do Panamá é, na verdade, de
norte para sul. A secção média nascerá da dragagem do Lago da Nicarágua,
o que levou os ambientalistas a avisar que o maior lago de água doce da
América Latina poderá ficar contaminado.
Dado que o Canal do Panamá, poucas centenas de quilómetros a sul, está a
ser alargado, os céticos perguntam porque é necessária outra versão na
Nicarágua. A China controlará um canal com capacidade para a passagem de
navios maiores, o que ajudará a garantir as economias de escala que só a
China consegue promover. Existem questões sobre a rentabilidade futura do
Canal da Nicarágua — poderá levar décadas a gerar dinheiro —, mas este
projeto parece ser mais movido pelos interesses nacionais da China do que
pelo lucro comercial.
A escavação de uma passagem entre dois oceanos num estado-nação é,
apenas, o sinal mais visível do investimento chinês na América Latina. Já
nos habituámos a ver os chineses como os atores principais em África, mas,
desde há 20 anos, têm também estado a mover-se discretamente para sul do
Rio Grande.
Além de investir em projetos de construção, a China tem emprestado
elevadas quantias de dinheiro aos governos da América Latina, em especial
aos da Argentina, Venezuela e Equador. Em troca, a China espera apoio, nas
Nações Unidas, às suas pretensões regionais, incluindo a questão de Taiwan.
Pequim também tem agido como comprador. Os estados da América
Latina têm sido selecionados um a um pelos EUA, que prefere fazer acordos
comerciais bilaterais a negociar com a região como um todo, como têm de
fazer na UE. Os chineses estão a fazer o mesmo, mas, pelo menos, oferecem
uma alternativa, reduzindo, assim, a dependência da região do mercado dos
EUA. Por exemplo, a China substituiu já os EUA enquanto principal parceiro
comercial do Brasil, e poderá fazer o mesmo com vários outros países da
América Latina.
Os países da América Latina não têm uma afinidade natural com os EUA.
As relações entre eles são dominadas pela posição inicial dos EUA,
enunciada na Doutrina Monroe de 1823 (como vimos no Capítulo 3), durante
o comunicado do Estado da União feito pelo Presidente Monroe. A Doutrina
desencorajava os colonizadores europeus e declarava, com todas as letras,
que a América Latina era o quintal dos EUA e a sua esfera de influência.
Desde então, os EUA têm orquestrado o desenrolar dos acontecimentos
nessa zona, e muitos latino-americanos consideram que os resultados finais
nem sempre foram positivos.
Oito décadas depois da Doutrina Monroe, surgiu outro presidente a
reforçá-la. Num discurso de 1904, Theodore «Teddy» Roosevelt afirmou:
«No Hemisfério Ocidental, a adoção, pelos Estados Unidos, da Doutrina
Monroe poderá forçá-los, embora com relutância, em casos flagrantes de
infração à mesma ou de impotência para impor o seu cumprimento, ao
recurso a uma força de polícia internacional.» Por outras palavras, os EUA
poderiam intervir militarmente no Hemisfério Ocidental sempre que o
considerassem apropriado. Sem contar com o financiamento de revoluções,
o armamento de grupos e o fornecimento de instrutores militares, os EUA
usaram a força na América Latina quase 50 vezes entre 1890 e o fim da
Guerra Fria.
Depois disso, a interferência declarada decaiu rapidamente e, em 2001, os
EUA foram signatários da Carta Democrática Interamericana, redigida pela
Organização dos Estados Americanos e congregadora de 34 nações, onde se
proclama que: «Os povos das Américas têm o direito à democracia e os seus
governos têm a obrigação de a promover e defender.» Desde então, os EUA
têm-se concentrado em vincular a si os países da América Latina do ponto
de vista económico, reforçando os pactos comerciais já existentes, como a
Associação de Livre Comércio da América do Norte, e implementando
outros, como o Acordo de Livre Comércio da América Central.
Devido à frieza assim criada nas relações históricas e económicas entre o
Sul e o Norte, quando a China bateu às portas, estas abriram-se sem demora.
Agora, Pequim vende ou doa armas ao Uruguai, à Colômbia, ao Chile, ao
México e ao Peru, e oferece-lhes permutas militares. Está a tentar construir
uma relação militar com a Venezuela, a qual espera que sobreviva à
revolução bolivariana, se e quando esta colapsar. Os seus fornecimentos de
armas à América Latina são numa escala relativamente pequena, mas
complementam os esforços de persuasão da China. O seu único navio-
hospital, o Peace Ark, visitou a região em 2011. É uma embarcação de
apenas 300 camas, que fica muito aquém das versões de 1000 camas dos
americanos, as quais também ali fazem visitas, mas o gesto serviu para
marcar uma posição e para relembrar que a China tem cada vez mais poder
negocial.
Todavia, com ou sem o comércio chinês, os países da América Latina
estão inevitavelmente presos numa região geográfica — o que significa que
os EUA aí desempenharão sempre um papel importante.
O Brasil, que abrange um terço do território da América do Sul, é o
melhor exemplo disto. É quase tão grande como os EUA, e a área dos seus
27 estados federais é maior do que a dos 28 países da UE juntos; mas, ao
contrário destes, faltam-lhe as infraestruturas para ser igualmente rico. Um
terço do Brasil é formado por selva, onde é insustentavelmente caro e,
nalgumas zonas, ilegal moldar terrenos adequados à habitação moderna. A
destruição da Amazónia é um problema ecológico de longo prazo para todo
o mundo, mas é também um problema de médio prazo para o Brasil: o
governo permite que os agricultores da terra queimada abatam as árvores e
depois usem os terrenos para a agricultura. Mas o solo é tão pobre que, em
poucos anos, o cultivo torna-se insustentável. Os agricultores deslocam-se e
abatem ainda mais árvores e, uma vez destruída, a floresta tropical não volta
a crescer. O clima e o solo impedem o desenvolvimento da agricultura.
O Rio Amazonas pode ser navegável nalguns trechos, mas as suas margens
são lodosas e os terrenos circundantes dificultam a construção. Também este
problema limita seriamente a quantidade de terrenos rentáveis disponíveis.
Logo abaixo da região amazónica, nas terras altas, encontra-se a savana, que,
ao contrário daquela, é um caso de sucesso. Há 25 anos, esta área era
considerada imprópria para a agricultura, mas a tecnologia brasileira
transformou-a num dos maiores produtores de rebentos de soja do mundo, o
que — juntamente com o crescimento na produção de cereais — significa
que o país está a tornar-se um importante produtor agrícola.
A sul da savana, ficam os terrenos agrícolas tradicionais do Brasil.
Estamos agora no Cone Meridional da América do Sul, que o Brasil partilha
com a Argentina, o Uruguai e o Chile. Foi na relativamente pequena secção
brasileira que viveram os primeiros colonos portugueses, e passariam 300
anos até que a população conseguisse sair desta zona central e povoar
significativamente o resto do país. Ainda hoje, a maioria das pessoas vive
perto das regiões costeiras, apesar da decisão drástica, tomada no final dos
anos 50, de deslocar a capital (que anteriormente era o Rio de Janeiro)
várias centenas de quilómetros para o interior, estabelecendo-a em Brasília,
uma cidade construída de raiz para esse efeito, numa tentativa de
desenvolver o coração do Brasil.
O centro agrícola do Sul tem, aproximadamente, a mesma dimensão de
Espanha, Portugal e Itália juntos e é muito mais plano do que o resto do país.
É relativamente bem irrigado, mas, em grande parte, situa-se no interior da
região e faltam-lhe vias de transporte devidamente desenvolvidas.
O mesmo se aplica a quase todo o Brasil. Olhando para muitas das
cidades costeiras brasileiras a partir do mar, vê-se, geralmente, uma falésia
gigantesca que se ergue dramaticamente da água de cada um dos lados da
área urbana, ou logo atrás dela. Conhecida como a Grande Escarpa, domina
a maior parte da costa brasileira; é o final do planalto chamado o Escudo
Brasileiro, que constitui a maior parcela do interior do Brasil.
Como o país não tem uma planície litoral, a ligação das suas principais
cidades costeiras requer a construção de estradas que subam a escarpa e a
percorram até à zona urbana mais próxima, voltando, depois, a descê-la. A
falta de estradas modernas aceitáveis é agravada pela deficiência das linhas
ferroviárias. Não é assim que se consegue um comércio lucrativo nem a
unificação política de um espaço vasto.
Mas há pior. O Brasil não tem acesso direto aos rios da região do Rio da
Prata. O próprio Rio da Prata desagua no Atlântico em território argentino, o
que significa que, durante séculos, os comerciantes transportaram os seus
produtos descendo o Rio da Prata até Buenos Aires, em vez de os fazerem
subir e descer a Grande Escarpa para chegar aos portos subdesenvolvidos
do Brasil. A empresa de informações geopolíticas secretas Stratfor.com,
sediada no Texas, calcula que os sete maiores portos do Brasil juntos tenham
capacidade para escoar menos produtos por ano do que o porto americano
de Nova Orleães sozinho.
Deste modo, o Brasil não tem o volume de comércio que desejaria e, o
que não é menos relevante, a maior parte dos seus produtos são
transportados por estradas em más condições e não por via fluvial, o que
aumenta os custos. O lado positivo é que o Brasil está a melhorar as suas
infraestruturas de transportes e as reservas de gás recentemente descobertas
ao largo da sua costa ajudarão a financiar esses melhoramentos, a reduzir a
dependência das importações de energia boliviana e venezuelana e a
amortecer os inevitáveis percalços económicos que todas as nações sofrem.
Ainda assim, o Brasil terá de fazer um esforço hercúleo para ultrapassar os
seus condicionamentos geográficos.
Pensa-se que cerca de 25 por cento dos brasileiros vivam nos infames
bairros da lata chamados favelas. Quando uma pessoa em cada quatro na
população de um estado vive na mais abjeta pobreza, é difícil que esse
estado enriqueça. Isto não significa que o Brasil não seja uma potência em
ascensão, apenas que essa ascensão será limitada.
O poder de negociação poderia ser um atalho para o crescimento; daí os
esforços do Brasil pela obtenção de um assento permanente no Conselho de
Segurança das Nações Unidas e o seu hábito de criar alianças económicas
regionais como a Mercosul, que estabelece uma certa união entre o Brasil, a
Argentina, o Paraguai, o Uruguai e a Venezuela. De tempos a tempos, muitas
vezes sob a liderança do Brasil, os países sul-americanos tentam lançar a
sua versão da UE — tendo a última versão desta ideia sido a UNASUL, da
qual são membros doze nações sul-americanas. A sua sede está situada no
Equador, mas a voz mais proeminente é a do Brasil. Neste aspeto,
assemelha-se à UE, que tem sede na Bélgica e a sua potência mais forte na
Alemanha. E o paralelismo acaba aqui. A UNASUL tem uma presença
impressionante na Internet, mas continua a ser mais um website do que uma
união económica. Os países da UE têm sistemas políticos e económicos
semelhantes e a maior parte dos seus membros partilha a mesma moeda,
enquanto os países da América Latina diferem nas suas políticas, economias,
moedas, níveis de escolaridade e leis do trabalho. Têm, ainda, de
ultrapassar as restrições impostas pela distância, assim como pela altura das
montanhas e pela densidade das selvas que os separam.
Mas o Brasil continuará a esforçar-se por ajudar a criar uma central de
poder sul-americana, recorrendo, para isso, à força da sua diplomacia e ao
seu crescente poder económico. É um país pacífico por natureza, a sua
política externa é contra a intervenção noutros países e uma guerra com
qualquer dos seus vizinhos parece extremamente improvável. Tem
conseguido manter boas relações com as outras 11 nações sul-americanas,
apesar de fazer fronteira com nove delas.
Existe uma disputa fronteiriça com o Uruguai, mas não parece que vá
inflamar-se; e é pouco provável que a rivalidade entre o Brasil e a Argentina
venha a ser libertada em qualquer palco com mais significado político do
que um campo de futebol. Nos últimos anos, o Brasil tem vindo a retirar as
suas unidades militares da fronteira com a Argentina, e o seu vizinho de
língua espanhola tem feito o mesmo. Uma embarcação militar da Argentina
foi amigavelmente recebida num porto brasileiro, enquanto, há poucos anos,
o mesmo acesso foi negado a um navio da Marinha Real Britânica, o que
agradou aos argentinos, devido à sua permanente batalha diplomática com o
Reino Unido por causa das Ilhas Malvinas.
O Brasil está incluído nos BRICS — o grupo dos principais países que se
considera estarem em ascensão, tanto económica como politicamente, mas,
embora cada um deles possa estar a crescer individualmente, o conceito é
mais ditado pela moda do que pela realidade. O Brasil, a Rússia, a Índia, a
China e a África do Sul não formam um grupo político ou geográfico em
qualquer sentido significativo e têm muito pouco em comum uns com os
outros. Se as letras não resultassem num som pronunciável como uma
palavra, a teoria dos BRICS nunca teria pegado. Os BRICS têm uma
conferência anual e, por vezes, o Brasil alia-se à Índia e à África do Sul em
questões internacionais, numa espécie de eco vago do Movimento dos Não
Alinhados durante a Guerra Fria, mas não se junta à Rússia e à China na
tomada de posições, por vezes hostis, para com os EUA.
Em 2013, houve, na verdade, um desentendimento entre os gigantes norte e
sul-americanos, motivado por uma questão que ainda causa algum
ressentimento no Brasil. A notícia de que a Agência de Segurança Nacional
dos EUA tinha espiado a Presidente brasileira, Dilma Rousseff, levou-a a
cancelar uma visita de Estado a Washington. O facto de a administração
Obama não ter apresentado, de imediato, um pedido de desculpas foi
revelador da irritação dos americanos por a China os ter suplantado como
principal parceiro comercial do Brasil. Pensa-se que a decisão subsequente
do Brasil de comprar caças suecos para a sua força aérea, em vez dos da
Boeing, tenha sido influenciada por este mal-estar. Contudo, as relações
entre os dois estados foram parcialmente restabelecidas, embora não a nível
presidencial. O Brasil não gosta de confrontos, ao contrário da Venezuela,
sob o falecido Presidente Chavez. Os brasileiros sabem que o mundo os
considera uma potência em ascensão, mas sabem também que o seu poder
nunca igualará o dos americanos.
O mesmo se pode dizer da Argentina; porém, nalguns aspetos, esta está
mais bem colocada para se tornar um país do Primeiro Mundo do que o
Brasil. Faltam-lhe a dimensão e a população para se converter na primeira
potência regional da América Latina, o que parece ser o destino do Brasil,
mas tem a qualidade de solo necessária para criar um padrão de vida
comparável ao dos países europeus. Isto não significa que consiga realizar
esse potencial — apenas que, se a Argentina souber conduzir a sua
economia, a sua geografia permitir-lhe-á converter-se na potência que nunca
foi.
As bases desse potencial foram lançadas no século XIX, com vitórias
militares sobre o Brasil e o Paraguai, que resultaram no controlo das regiões
agrícolas planas do Rio da Prata, do respetivo sistema fluvial navegável e,
logo, do comércio que flui através deste na direção de Buenos Aires e do
seu porto. Esta zona está entre os terrenos mais valiosos de todo o
Continente. Conferiu uma vantagem económica e estratégica imediata à
Argentina, em detrimento do Brasil, do Paraguai e do Uruguai — que se
mantém até hoje.
No entanto, a Argentina não aproveitou sempre as suas vantagens ao
máximo. Há cem anos, estava entre os dez países mais ricos do mundo — à
frente de França e de Itália. Mas a falta de diversificação, a sociedade
estratificada e injusta, o mau sistema de ensino, uma sucessão de golpes de
Estado e a grande variação nas políticas económicas durante o período
democrático dos últimos 30 anos implicaram um declínio acentuado no
estatuto da Argentina.
Os brasileiros têm uma anedota acerca do snobismo de que acusam os
seus vizinhos: «Só pessoas tão sofisticadas conseguiriam um falhanço tão
grande.» A Argentina precisa de encontrar um rumo, e uma vaca morta talvez
possa ajudá-la.
A Vaca Morta, ou Vaca Muerta, é uma formação de xisto que, juntamente
com as outras áreas de xisto do país, poderá satisfazer as necessidades
energéticas da Argentina nos próximos 150 anos, e ainda gerar um excedente
para exportação. Está situada na metade inferior da Argentina, na Patagónia,
e confina com a fronteira ocidental com o Chile. É do tamanho da Bélgica —
o que pode ser relativamente pequeno para um país, mas é muito grande para
uma formação de xisto. Até aqui, tudo bem, a menos que se seja contra a
produção de energia a partir do xisto — mas há um senão. Para retirar o gás
e o petróleo do xisto, será preciso um enorme investimento estrangeiro, e a
Argentina não é considerada um país favorável ao investimento estrangeiro.
Mais a sul, existem outras reservas de petróleo e de gás — na verdade,
tão a sul que se situam no mar, dentro e à volta das ilhas que, desde 1833,
pertencem aos britânicos. E aí reside um problema, e uma novela sem fim à
vista.
As ilhas a que a Grã-Bretanha chama Falkland são conhecidas na
Argentina como Malvinas, e ai de qualquer argentino que use a palavra
começada por «F». Na Argentina, é considerado ofensivo fazer um mapa que
designe essas ilhas por qualquer nome que não o de «Ilhas Malvinas», e
todas as crianças da escola primária aprendem a desenhar os contornos das
duas ilhas principais, a ocidental e a oriental. A recuperação das
«Irmãzinhas Perdidas» é uma causa nacional para gerações sucessivas de
argentinos, e tem o apoio da maioria dos seus vizinhos latinos.
Em abril de 1982, os britânicos baixaram a guarda e a ditadura militar
argentina, liderada pelo General Galtieri, ordenou uma invasão das ilhas —
que foi considerada um sucesso retumbante, até que, oito semanas depois, a
força de intervenção britânica chegou, derrotou o exército argentino num
instante e tomou, novamente, posse do território. Por sua vez, isto levou à
queda da ditadura.
Se a invasão argentina tivesse ocorrido na presente década, a Grã-
Bretanha não estaria em posição de recuperar as ilhas, já que, neste
momento, não possui porta-aviões operacionais — uma situação que será
retificada até 2020, fechando, assim, a janela de oportunidade da Argentina.
Contudo, apesar do apelo do petróleo e do gás, uma invasão das Malvinas
pela Argentina é improvável por dois motivos.
Em primeiro lugar, a Argentina é, agora, uma democracia e sabe que a
grande maioria dos habitantes das Ilhas Malvinas deseja permanecer sob o
controlo britânico; em segundo lugar, os britânicos escaldados têm medo de
água fria. Poderá, temporariamente, faltar-lhes um porta-aviões capaz de
navegar os 12.800km até ao Atlântico Sul, mas têm, agora, várias centenas
de soldados de combate nas ilhas, além de sistemas de radar avançados,
mísseis terra-ar, quatro caças Eurofighter e, provavelmente, um submarino
de ataque nuclear a rondar as proximidades durante a maior parte do tempo.
Os britânicos estão decididos a impedir que os argentinos sequer pensem
que podem chegar às praias, quanto mais ocupar as ilhas.
A força aérea argentina usa aviões ultrapassados em décadas em relação
ao Eurofighter, e a diplomacia britânica assegurou-se de que qualquer
tentativa da Argentina de comprar modelos atualizados a Espanha seria
rejeitada. Comprar aos EUA seria uma ideia votada ao fracasso, dadas as
Relações Especiais entre o Reino Unido e os EUA, que são realmente, por
vezes, especiais; logo, as possibilidades de a Argentina se encontrar em
condições de organizar outro ataque antes de 2020 são escassas.
Porém, isso não serenará a guerra diplomática, e a Argentina tem afiado
as armas nessa frente. Buenos Aires já avisou que qualquer empresa
petrolífera que faça perfurações nas Malvinas não poderá candidatar-se a
uma licença de exploração do petróleo e gás de xisto nos campos da Vaca
Muerta, na Patagónia. Aprovou até uma lei que ameaça com multas ou penas
de prisão quem explore a plataforma continental das Malvinas sem a sua
permissão. Isto dissuadiu muitas grandes empresas petrolíferas, mas,
obviamente, não as britânicas. Ainda assim, quem quer que vá sondar as
potenciais riquezas escondidas sob as águas do Atlântico Sul estará a
trabalhar num dos ambientes mais difíceis do setor. Ali, o frio e o vento são
inclementes, e os mares tempestuosos.
Deslocámo-nos o mais para sul possível antes de chegarmos às terras
devolutas e geladas da Antártida. Embora muitos países gostassem de a
controlar, a combinação entre o ambiente extremamente hostil, o Tratado da
Antártida e a ausência de recursos obteníveis e valiosos tem evitado uma
concorrência aberta, pelo menos por enquanto. O mesmo não se pode dizer
do seu equivalente a norte. Passando diretamente da Antártida para a parte
mais setentrional do globo, chegamos a um local destinado a ser um campo
de batalha diplomático no século XXI, enquanto países grandes e pequenos
lutarem pela posição mais vantajosa na zona: o Ártico.
CAPÍTULO 10

O ÁRTICO

«Existem dois tipos de problemas no Ártico, os imaginários e os reais.


Dos dois, os imaginários são os mais reais.»
Vilhjalmur Stefansson, The Arctic in Fact and Fable
MAPA DO ÁRTICO

Q
uando os homens do gelo chegarem, chegarão em força. Quem tem
mais força? Os russos. Mais ninguém tem uma presença tão
marcada na região ou está tão bem preparado para lidar com
condições tão adversas. Todas as outras nações estão mais atrasadas e, no
caso dos EUA, nem sequer parecem querer recuperar: a América é uma
nação ártica sem uma estratégia para o Ártico, e a região está a aquecer.
Os efeitos do aquecimento global estão agora mais patentes do que nunca
no Ártico: o gelo está a derreter, facilitando o acesso à região, o que
coincide com a descoberta de depósitos de energia e com o desenvolvimento
da tecnologia necessária para chegar até eles — e tudo isto chamou a
atenção das nações árticas para os potenciais ganhos e perdas a realizar no
ambiente mais agreste do mundo. Muitos dos países da região têm
reivindicações concorrentes que nunca se deram ao trabalho de enfatizar —
até agora. Mas há muito a ser reivindicado, e muito a ser discutido.
A palavra «ártico» vem do grego artikos, que significa «perto do urso», e
é uma referência à constelação da Ursa Maior, cujas últimas duas estrelas
apontam para a Estrela Polar.
O Oceano Ártico tem 14 milhões de quilómetros quadrados; isto pode
fazer dele o oceano mais pequeno do mundo, mas continua a ser quase tão
grande como a Rússia, e a ter uma vez e meia o tamanho dos EUA. As
plataformas continentais no fundo do mar ocupam proporcionalmente mais
espaço do que em qualquer outro oceano, o que é um dos motivos por que
poderá ser difícil chegar a acordos sobre as áreas de soberania.
A região do Ártico abrange terra nalgumas partes do Canadá, da
Finlândia, da Gronelândia, da Islândia, da Noruega, da Rússia, da Suécia e
dos EUA (Alasca). É uma terra de extremos: durante breves períodos, no
verão, a temperatura pode chegar aos 26 graus Celsius nalguns locais, mas,
durante grandes períodos, no inverno, cai abaixo dos 45 graus negativos.
Contém extensões de rocha polidas pelos ventos gelados, fiordes
espetaculares, desertos polares e até rios. É um local de grande hostilidade e
beleza, que cativa as pessoas há milénios.
A primeira expedição de que há registo foi levada a cabo no ano 330 a.C.
por um marinheiro grego chamado Pytheas de Massilia, que encontrou uma
terra estranha chamada «Thule». De volta a casa, no Mediterrâneo, poucos
acreditaram nas suas histórias espantosas de paisagens imaculadamente
brancas, mares gelados e criaturas nunca vistas, incluindo grandes ursos
brancos; mas Pytheas foi apenas o primeiro de muitos exploradores que, ao
longo dos séculos, registaram as maravilhas do Ártico e sucumbiram às
emoções que este evoca.
Muitos sucumbiram também às privações por ele impostas, especialmente
aqueles que se aventuraram até aos limites do mundo conhecido em busca do
que, para os céticos, era a «mítica» Passagem do Noroeste pelo Oceano
Ártico, que ligaria o Oceano Atlântico ao Pacífico. Um exemplo foi Henry
Hudson. A segunda maior baía do mundo pode ter o seu nome, mas, em
1607, é provável que ele tivesse preferido viver até à velhice a ser largado à
deriva e abandonado à morte quase certa por uma tripulação amotinada, farta
das suas viagens de descoberta.
Quanto à primeira pessoa a alcançar o «Polo Norte», bem, é difícil
designá-la, dado que, embora exista um ponto fixo no globo que determina a
sua localização, o gelo de que está coberto desloca-se sob os pés e, sem
GPS, não é fácil saber-se exatamente onde se está. Sir Edward Parry,
embora sem GPS, tentou fazê-lo em 1827, mas o gelo movia-se para sul mais
depressa do que ele conseguia avançar para norte, e acabou por andar para
trás; mas, pelo menos, sobreviveu.
O Capitão Sir John Franklin teve menos sorte quando, em 1845, tentou
atravessar a última secção nunca antes navegada da Passagem do Noroeste.
Os seus dois barcos ficaram presos no gelo, perto da Ilha do Rei Guilherme,
no arquipélago canadiano. Os 129 membros da expedição pereceram, alguns
a bordo dos barcos, outros depois de abandonarem as embarcações e
começarem a caminhar para sul. Foram enviadas várias expedições em
busca de sobreviventes, mas só encontraram um punhado de esqueletos e
ouviram histórias, contadas por caçadores inuítes, sobre dezenas de homens
brancos que haviam morrido ao percorrerem, a pé, a paisagem gelada. Os
barcos tinham desaparecido completamente, mas, em 2014, a tecnologia pôs-
se a par da geografia e uma equipa de busca do Canadá, com recurso a
sonares, localizou uma das embarcações, o Navio de Sua Majestade Erebus,
no fundo do mar, na Passagem do Noroeste, e trouxe consigo o sino do
barco.
O desfecho da expedição de Franklin não dissuadiu muitos outros
aventureiros de tentarem orientar-se no arquipélago, mas foi só em 1905 que
o grande explorador norueguês Roald Amundsen conseguiu transpô-lo num
pequeno navio, com apenas mais cinco tripulantes. Passou a Ilha do Rei
Guilherme, atravessou o Estreito de Bering e chegou ao Pacífico. Soube que
o conseguira quando encontrou um baleeiro de São Francisco que vinha da
direção contrária. No seu diário, confessou que cedeu às emoções, o que,
provavelmente, foi um acontecimento quase tão inédito como o seu grande
feito: «A Passagem do Noroeste estava conquistada. O sonho da minha
juventude foi, nesse momento, realizado. Uma sensação estranha obstruiu-me
a garganta; era uma espécie de exaustão, de desgaste — era a fraqueza em
mim —, mas senti lágrimas nos olhos.»
Vinte anos depois, decidiu que queria ser o primeiro homem a voar sobre
o Polo Norte, o que, embora mais fácil do que caminhar sobre ele, não é uma
proeza a desprezar. Na companhia do seu piloto italiano Umberto Nobile e
de 14 tripulantes, levou uma aeronave semirrígida a sobrevoar o gelo e
largou bandeiras norueguesas, italianas e americanas de uma altitude de 90
metros. Pode ter sido um esforço heroico, mas, no século XXI, não é visto
como base legal sólida para qualquer reivindicação de direitos sobre a
região por esses três países.
O mesmo se aplica ao esforço impressionante do japonês Shinji Kazama,
que, em 1987, se tornou a primeira pessoa a alcançar o Polo Norte de mota.
Kazama era suficientemente intrépido para não se fiar na redução da calota
polar, e o tipo de homem que teria conduzido através de uma tempestade de
neve para entrar nos livros de História, mas não há dúvida de que, hoje, há
menos gelo para atravessar.
Que o gelo está a recuar é inquestionável — as imagens de satélite
captadas ao longo da última década mostram claramente que a quantidade de
gelo é menor —, mas, quanto à causa, continua a não haver certezas. A
maioria dos cientistas está convencida de que a responsabilidade é do
Homem, e não apenas dos ciclos climáticos naturais, e de que a futura
exploração do que ainda está por desvendar acelerará o fenómeno.
Já existem aldeias, nas costas de Bering e Chuckchi, que foram
transferidas para outros locais, devido à erosão do litoral e à perda de
terrenos de caça. Está em curso uma remodelação biológica. Os ursos
polares e as raposas do Ártico estão a deslocar-se, as morsas disputam o
espaço e os peixes, inconscientes das fronteiras territoriais, estão a mover-
se para norte, reduzindo os recursos piscatórios de alguns países e
aumentando os de outros. Encontram-se já cavalas e bacalhaus do Atlântico
em redes de arrasto no Ártico.
Os efeitos do derretimento do gelo não se farão sentir apenas no Ártico:
países tão longínquos como as Maldivas, o Bangladesh e a Holanda estão em
risco de aumento de cheias à medida que o gelo derreter e o nível do mar
aumentar. São estes efeitos indiretos que fazem do Ártico uma questão
global, e não apenas regional.
Conforme o gelo for derretendo e a tundra for ficando exposta, é provável
que ocorram dois fatores aceleradores do processo de escurecimento da
calota polar. Os resíduos das obras industriais projetadas cobrirão a neve e
o gelo, reduzindo ainda mais a extensão de solo refletor da luz. Os terrenos
de cor mais escura e as águas do mar absorverão então mais calor do que o
gelo e a neve que virão substituir, aumentando, assim, a percentagem de solo
mais escuro. Isto é conhecido como o efeito Albedo, que, embora tenha
aspetos negativos, tem também alguns positivos: o aquecimento da tundra
criará condições para um crescimento de plantas naturais significativamente
mais expressivo, e para o florescimento de culturas agrícolas, ajudando as
populações locais a encontrar novas fontes de alimento.
No entanto, não é possível ignorar o facto de que uma das últimas grandes
regiões intactas do mundo está prestes a mudar. Alguns modelos de previsão
climática calculam que, no final do século, já não haverá gelo no Ártico no
verão; há até quem preveja que isso possa acontecer muito mais cedo. O que
é certo é que, por muito depressa que aconteça e por muito drástica que seja
a redução, a transformação já começou.
O derretimento da calota polar já permite que os navios de carga transitem
pela Passagem do Noroeste, no arquipélago canadiano, durante várias
semanas de verão por ano, o que reduz o tempo de trânsito da Europa para a
China em, pelo menos, uma semana. O primeiro navio de carga não
escoltado por um quebra-gelo fez a travessia em 2014. O Nunavik levava
23.000 toneladas de minério de níquel do Canadá para a China. A rota polar
foi 40 por cento mais curta e passou por águas mais profundas do que se
tivesse atravessado o Canal do Panamá. Isto permitiu que o navio levasse
mais carga, poupou dezenas de milhares de dólares em custos de
combustível e reduziu as emissões com efeito de estufa do navio em 1300
toneladas métricas. Em 2040, espera-se que esta rota esteja aberta durante
até dois meses por ano, o que revolucionará as ligações comerciais através
do «Extremo Norte» e terá efeitos indiretos em locais tão afastados como o
Egito e o Panamá, em termos das receitas que recebem dos Canais do Suez e
do Panamá.
A Rota do Nordeste, ou Rota Marítima do Norte, como lhe chamam os
russos, que envolve a linha de costa da Sibéria, está, agora, também aberta
durante vários meses por ano e a tornar-se uma autoestrada marítima cada
vez mais popular.
As imagens de satélite mostram claramente que o gelo no Ártico está a recuar, tornando as rotas
marítimas que atravessam a região mais acessíveis durante períodos mais longos do ano.

O derretimento do gelo revela outras riquezas potenciais. Pensa-se que


existam grandes quantidades de gás natural e de petróleo ainda por descobrir
na região do Ártico, em áreas que, já são, agora, acessíveis. Em 2008, o
Levantamento Geológico dos Estados Unidos calculou que 47 biliões de
metros cúbicos de gás natural, 44 mil milhões de barris de gás natural
liquefeito e 90 mil milhões de barris de petróleo se encontrem no Ártico,
maioritariamente no mar. À medida que mais território se torna acessível,
mais reservas do ouro, zinco, níquel e ferro já encontrados em parte do
Ártico poderão ser descobertas.
A ExxonMobil, a Shell e a Rosneft contam-se entre os gigantes
energéticos que estão a candidatar-se a licenças e a iniciar perfurações
exploratórias. Os países e as empresas preparados para fazer o esforço de
alcançar as riquezas terão de enfrentar um clima onde, durante a maior parte
do ano, os dias são uma noite sem fim, o mar congela até uma profundidade
de mais de dois metros e, em mar aberto, as ondas podem atingir 12 metros
de altura.
Vai ser um trabalho sujo, duro e perigoso, em especial para quem deseje
fazê-lo durante todo o ano. Exigirá, também, investimentos colossais. Em
muitos locais, não será possível instalar gasodutos, e construir uma
complexa infraestrutura de liquefação no mar, particularmente em condições
tão exigentes, será muito dispendioso. Contudo, os ganhos financeiros e
estratégicos a obter significam que os grandes interventores tentarão
reivindicar os territórios e iniciar as perfurações, e que é pouco provável
que as potenciais consequências ambientais os detenham.
As reivindicações de soberania não se baseiam nas bandeiras dos
primeiros exploradores, mas sim na Convenção das Nações Unidas sobre o
Direito do Mar (UNCLOS). Esta estabelece que cada signatário da
convenção tem direitos económicos exclusivos da sua costa até um limite de
370km (exceto em caso de conflito com os limites de outro país), e pode
declarar essa área como Zona Económica Exclusiva (ZEE). O petróleo e o
gás existentes nessa zona serão, pois, considerados pertencentes ao estado.
Em determinadas circunstâncias, e havendo provas científicas relativas à
plataforma continental de um país, esse país poderá requerer uma extensão
da ZEE a 650km da costa.
O derretimento do gelo ártico está a causar um endurecimento de postura
dos oito membros do Conselho do Ártico, o fórum onde a geopolítica se
transforma em geopolártica.
Os «Cinco Árticos», os estados com fronteiras com o Oceano Ártico, são
o Canadá, a Rússia, os EUA, a Noruega e a Dinamarca (devido à sua
responsabilidade pela Gronelândia). A estes, juntam-se a Islândia, a
Finlândia e a Suécia, que são também membros de pleno direito. Existem 12
outras nações com estatuto de Observador Permanente, que reconheceram
aos «Estados Árticos» soberania, direitos soberanos e jurisdição na região,
entre outros critérios. Por exemplo, no Conselho do Ártico de 2013, o Japão
e a Índia, que patrocinaram expedições científicas ao Ártico, e a China, que
tem uma base científica numa ilha norueguesa, assim como um moderno
quebra-gelo, obtiveram o estatuto de Observadores.
Todavia, existem países não pertencentes ao Conselho que afirmam ter
interesses legítimos na região, e outros, ainda mais numerosos, que
argumentam que, de acordo com a teoria do «património comum da
Humanidade», o Ártico deveria estar aberto a todos.
Atualmente, existem, pelo menos, nove disputas legais e reivindicações de
soberania no Oceano Ártico, todas juridicamente complexas e algumas com
potencial para causar tensões graves entre as nações. Uma das mais
descaradas vem dos russos: Moscovo já deu o exemplo — e deixou-o bem
implantado. Em 2007, enviou dois submarinos tripulados, navegando a 4260
metros de profundidade, ao fundo do mar no Polo Norte e assentou aí uma
bandeira russa de titânio inoxidável, como declaração de intenções. Tanto
quanto se sabe, ainda hoje lá está. Na sequência deste ato, um think-tank
russo sugeriu que o Ártico fosse rebatizado. Não precisaram de pensar muito
para lhes ocorrer uma alternativa: «Oceano Russo».
Noutros locais, a Rússia argumenta que a Cordilheira de Lomonosov, ao
largo da sua costa siberiana, é uma extensão da plataforma continental da
Sibéria, pertencendo, portanto, exclusivamente à Rússia. Isto é problemático
para outros países, dado que a Cordilheira se prolonga até ao Polo Norte.
A Rússia e a Noruega têm especiais dificuldades no Mar de Barents. A
Noruega reivindica a Cordilheira de Gakkel, no Mar de Barents, como uma
extensão da sua ZEE, mas os russos contestam esta pretensão, e pugnam, em
especial, pelas Ilhas Svalbard, o ponto mais setentrional do planeta com
população fixa. A maioria dos países e das organizações internacionais
reconhece a soberania norueguesa (limitada) sobre essas ilhas, mas a ilha
maior, Spitsbergen, tem uma população crescente de migrantes russos que aí
se congregaram em volta da indústria mineira do carvão. As minas não são
rentáveis, mas a comunidade russa é uma ferramenta útil para promover a
reivindicação de Moscovo relativa a todas as Ilhas Svalbard. Quando assim
o desejar, a Rússia poderá instigar tensões e justificar os seus atos com
recurso a pretensões geológicas e ao «facto consumado» da população russa.
A Noruega, enquanto estado da NATO, sabe o que aí vem e fez do
Extremo Norte a prioridade da sua política externa. A sua força aérea
interceta, regularmente, caças russos que se aproximam das suas fronteiras; a
intensificação das tensões levaram-na a deslocar o seu centro de operações
militares do Sul do país para o Norte, e está a construir um Batalhão do
Ártico. O Canadá está a reforçar as suas capacidades militares em climas
frios, e a Dinamarca reagiu também à ameaça russa criando uma Força de
Resposta do Ártico.
Entretanto, a Rússia está a construir um exército do Ártico. Seis novas
bases militares estão em construção, várias instalações da Guerra Fria que
estavam em reserva, como as situadas nas Ilhas da Nova Sibéria, estão a ser
reabertas e algumas pistas de aterragem estão a ser renovadas. Uma força de,
pelo menos, 6000 soldados de combate está a ser preparada para a região de
Murmansk, e incluirá duas brigadas de infantaria mecanizadas, equipadas
com motas de neve e hovercrafts.
Não é coincidência que Murmansk seja agora chamada «a porta de entrada
da Rússia para a energia do Norte» e que o Presidente Putin tenha dito que,
em relação ao abastecimento de energia, «os campos marítimos,
especialmente no Ártico, são, sem exagero, a nossa reserva estratégica para
o século XXI».
As Brigadas de Murmansk serão a força mínima permanente de Moscovo
no Ártico, mas a Rússia demonstrou, em 2014, toda a sua capacidade de
combate em climas frios com um exercício que envolveu 155.000 homens e
milhares de tanques, jatos e navios. O Ministério da Defesa russo afirmou
que esse exercício teve maior dimensão do que alguns dos que realizou
durante a Guerra Fria.
Durante os jogos de guerra, as tropas russas foram encarregadas de repelir
uma invasão de uma potência estrangeira designada «Missuri», o que
evocava claramente os EUA. O cenário era de que as tropas de «Missuri»
tinham aterrado em Chukokta, Kamchatka, nas Ilhas Curilas e na Ilha
Sacalina para apoiarem uma potência asiática não nomeada, que já estava
em conflito com a Rússia. A potência não nomeada era o Japão, e o conflito
em que se baseava o cenário decorria de uma disputa territorial que, segundo
os analistas, se prendia com as Ilhas Curilas do Sul. A declaração militar de
intenções foi, depois, reforçada politicamente, quando o Presidente Putin
acrescentou, pela primeira vez, a região do Ártico à esfera de influência
russa, na sua doutrina oficial de política externa.
Apesar do decréscimo do poder económico russo, que levou já a cortes
orçamentais em muitos departamentos governamentais, o seu orçamento para
a Defesa foi aumentado, em parte para financiar o fortalecimento da
presença militar no Ártico até 2020. Moscovo tem planos para o futuro,
infraestruturas que manteve do passado e a vantagem da localização. Como
disse Melissa Bert, capitão da Guarda Costeira dos Estados Unidos, ao
Centro de Estudos Internacionais e Estratégicos, em Washington D.C.: «Eles
têm cidades no Ártico, nós só temos aldeias.»
Tudo isto constitui, em vários sentidos, uma continuação, ou, pelo menos,
uma ressurreição, das políticas da Rússia no Ártico durante a Guerra Fria.
Os russos sabem que a NATO pode obstruir a sua Frota do Báltico,
bloqueando o Estreito de Skagerrak. Este possível bloqueio é agravado pelo
facto de que, no Ártico, a sua Frota do Norte tem apenas 290km de mar
aberto da costa de Kola até esbarrar com o gelo compacto do Ártico. A
partir deste estreito corredor, terá de descer o Mar da Noruega e, depois,
atravessar o potencial garrote da falha GIUK (Gronelândia, Islândia e Reino
Unido) para chegar ao Oceano Atlântico. Durante a Guerra Fria, esta zona
era conhecida pela NATO como a «Zona de Abate», pois era aí que os
aviões, navios e submarinos da NATO esperavam apanhar a frota soviética.
Avancemos até à Nova Guerra Fria e as estratégias continuam as mesmas,
embora, agora, os americanos tenham retirado as suas forças da Islândia, sua
aliada na NATO. A Islândia não tem forças armadas próprias e a retirada
dos americanos foi descrita pelo governo islandês como «de vistas curtas».
Num discurso dirigido ao Conselho Atlântico sueco, o Ministro da Justiça da
Islândia, Björn Bjarnason, disse: «Deveria ser mantida uma certa presença
militar na região, o que constituiria uma tomada de posição acerca dos
interesses e ambições da nação numa dada área, já que um vazio militar
poderá ser erradamente interpretado no sentido de falta de interesse nacional
e de consideração do assunto como não prioritário.»
Contudo, há, pelo menos, uma década que não existem dúvidas de que o
Ártico é uma prioridade para os russos, e não tanto para os americanos. Isto
reflete-se no grau de atenção concedido à região pelos dois países, ou, no
caso dos EUA, na relativa desatenção que lhe tem votado, desde o colapso
da União Soviética.
A construção de um quebra-gelo requer até mil milhões de dólares e cerca
de dez anos. A Rússia é, claramente, a principal potência no Ártico, com a
maior frota de quebra-gelos do mundo, 32 no total, segundo o Relatório de
2013 da Guarda Costeira dos Estados Unidos. Seis destes são movidos a
energia nuclear, os únicos com esta característica em todo o mundo, e a
Rússia tenciona também lançar o quebra-gelo mais poderoso do mundo em
2018. Este terá capacidade para romper gelo com mais de três metros de
profundidade e para rebocar petroleiros, deslocando mais de 70.000
toneladas através dos campos de gelo.
Os Estados Unidos, pelo contrário, têm uma frota constituída por um
quebra-gelo pesado operacional, o USS Polar Star, em vez dos oito que
possuíam nos anos 60, e não preveem a construção de mais nenhum. Em
2012, tiveram de recorrer a um navio russo para reabastecer a sua base de
investigação na Antártida, o que foi um triunfo para a cooperação entre as
grandes potências, mas, ao mesmo tempo, uma demonstração do quanto os
EUA se deixaram ficar para trás. Além disso, mais nenhuma nação poderá
desafiar a Rússia: o Canadá tem seis quebra-gelos e está a construir mais
um, a Finlândia tem oito, a Suécia sete e a Dinamarca quatro. A China, a
Alemanha e a Noruega têm apenas um.
No outono de 2015, o Presidente Obama fez a primeira viagem de um
presidente em funções ao Alasca e apelou à construção de mais quebra-gelos
norte-americanos. Porém, tratou-se quase de um comentário de passagem,
numa viagem centrada na questão das alterações climáticas. Os aspetos da
segurança e da energia do Ártico foram mencionados muito ao de leve.
Washington continua muito aquém da Rússia.
Os EUA têm outro problema. Não ratificaram o tratado da UNCLOS,
tendo, na prática, cedido 518.000 quilómetros quadrados de território
submarino no Ártico, ao não reivindicarem uma ZEE.
Ainda assim, têm uma disputa em curso com o Canadá acerca de
potenciais direitos sobre o petróleo marítimo e o acesso às águas do
arquipélago canadense. O Canadá vê essas águas como uma «via navegável
interna», enquanto os EUA afirmam tratar-se de um estreito para a navegação
internacional, não sujeito às leis do Canadá. Em 1985, os EUA enviaram um
quebra-gelo para essa zona sem avisarem previamente o Canadá, dando
origem a uma discussão furiosa entre os dois vizinhos, cujas relações são,
simultaneamente, amigáveis e delicadas.
Os EUA têm também uma disputa com a Rússia sobre o Mar de Bering, o
Oceano Ártico e o Pacífico Norte. Em 1990, assinaram um Acordo de
Fronteiras Marítimas com a então União Soviética, no qual Moscovo cedia
uma zona de pesca. Todavia, após o desmembramento da União Soviética, o
parlamento russo recusou-se a ratificar o acordo. A dita zona é tratada pelas
duas partes como estando sob soberania norte-americana, mas os russos
reservam o direito de voltar ao assunto.
Outras disputas incluem a existente entre o Canadá e a Dinamarca acerca
da Ilha Hans, situada no Estreito de Nares, que separa a Gronelândia da Ilha
Ellesmere. A Gronelândia, com a sua população de 56.000 pessoas, tem um
governo próprio, mas permanece sob soberania dinamarquesa. Um acordo
celebrado, em 1953, entre a Dinamarca e o Canadá deixou a ilha ainda sob
disputa e, desde então, ambos os países se têm dado ao trabalho de navegar
até lá para aí firmarem as respetivas bandeiras nacionais.
Todas as questões de soberania decorrem dos mesmos desejos e receios
— o desejo de salvaguardar rotas para navegação militar e comercial, o
desejo de reclamar as riquezas naturais da região e o receio de que outros
possam ganhar terreno nesse aspeto. Até há pouco tempo, as riquezas eram
teóricas, mas o derretimento do gelo transformou o teórico em provável e,
nalguns casos, em inegável.
O derretimento do gelo veio alterar a geografia e o que está em jogo. Os
estados do Ártico e os gigantes energéticos empresariais têm, agora,
decisões a tomar sobre como lidar com essas alterações e quanta atenção
prestar ao ambiente e aos povos do Ártico. A sede por energia sugere que a
corrida é inevitável, no que alguns especialistas chamam o «Novo Grande
Jogo». Vai haver muito mais navios no Extremo Norte, muito mais
plataformas petrolíferas e de gás — na verdade, muito mais de tudo. Os
russos, além de terem os seus quebra-gelos movidos a energia nuclear, estão
até a ponderar a construção de uma central energética nuclear flutuante,
capaz de suportar o peso esmagador de três metros de gelo.
No entanto, existem diferenças entre esta situação e a «Luta por África»
no século XIX, ou as maquinações das grandes potências no Médio Oriente,
na Índia e no Afeganistão, no Grande Jogo original. Esta corrida tem regras,
uma fórmula e um fórum para a tomada de decisões. O Conselho do Ártico é
composto por países maduros, a maioria deles democráticos, em maior ou
menor medida. As leis internacionais que regulam as disputas territoriais, a
poluição ambiental, as leis marítimas e o tratamento dos povos minoritários
estão em vigor. A maior parte do território disputado não foi conquistada
através do imperialismo do século XIX, ou por estados-nação em guerra uns
com os outros.
Os estados do Ártico sabem que a sua vizinhança é difícil, não tanto por
causa de fações antagónicas, mas devido aos desafios colocados pela sua
geografia. O Oceano Ártico tem 14 milhões de quilómetros quadrados; esta
extensão pode ser escura, perigosa e mortal. Não é um bom lugar para se
estar sem amigos. Aqueles estados sabem que, para alguém ter êxito na
região, poderá ter de cooperar, especialmente em assuntos como reservas
piscatórias, contrabando, terrorismo, busca e salvamento e desastres
ambientais.
É plausível que um desentendimento acerca de direitos de pesca possa
degenerar em algo mais grave, dado que o Reino Unido e a Islândia quase
chegaram a vias de facto durante as «Guerras Frias» das décadas de 50 e 70.
O contrabando surge onde quer que existam rotas de tráfego, e não há razões
para crer que o Ártico seja diferente; mas policiá-lo será uma tarefa difícil,
dadas as condições da zona. E, à medida que mais embarcações comerciais
e navios de cruzeiro se aventurarem nessa área, as capacidades de busca e
salvamento e de combate ao terrorismo das nações do Ártico terão de
crescer proporcionalmente, assim como a sua capacidade de reação a um
desastre ambiental em águas cada vez mais concorridas. Em 1965, o quebra-
gelo Lenin encontrava-se no mar quando teve um acidente no seu reator.
Depois do seu regresso a terra, foram cortadas algumas partes do reator, as
quais, juntamente com combustível danificado, foram acondicionadas num
contentor de betão forrado a aço, que foi, depois, atirado ao mar. É provável
que, com a abertura do Ártico, incidentes como este ocorram com mais
frequência, mas continuarão a ser difíceis de gerir.
Talvez o Ártico acabe por ser apenas mais um campo de batalha onde os
estados-nação se digladiem — afinal, as guerras são iniciadas tanto por
medo do outro como por cobiça; mas o Ártico é diferente e, por isso, talvez
a forma de lidar com ele seja, também, diferente. A História mostrou-nos a
rapacidade dos jogos de soma zero3. É possível que uma crença parcial no
determinismo geográfico, combinada com a natureza humana, tenha
impossibilitado que as coisas se passassem de outra forma. Porém, existem
exemplos de como a tecnologia nos tem ajudado a quebrar as grades da
prisão geográfica. Por exemplo, podemos, hoje, atravessar desertos e mares
a velocidades que as gerações anteriores não poderiam, sequer, imaginar.
Libertámo-nos, até, das grilhetas da gravidade terrestre. No novo mundo
globalizado, podemos usar essa tecnologia para nos conceder a todos uma
oportunidade no Ártico. Podemos ultrapassar o lado rapace da nossa
natureza e fazer do grande jogo um jogo limpo, para benefício de todos.
3
Jogo em que os ganhos de uma parte correspondem, necessariamente, às perdas da outra parte — N.
da T.
CONCLUSÃO

T
erminámos no topo do mundo e, por isso, daí só podemos subir.
A fronteira final sempre apelou à nossa imaginação, mas vivemos na
era em que a Humanidade realizou o sonho de conquistar o espaço,
no limiar do infinito, a caminho do futuro. O espírito insaciável da
Humanidade garante-nos que as nossas fronteiras não estão confinadas ao
que Carl Sagan chamou, numa expressão famosa, o «Pálido Ponto Azul».
Mas precisamos de regressar à Terra, por vezes com brusquidão, porque
ainda não conquistámos a nossa própria geografia, nem a nossa propensão
para competir por ela.
A geografia foi sempre uma espécie de prisão — que define o que uma
nação é ou poderá ser, e da qual os líderes mundiais lutaram, muitas vezes,
para se libertar.
A Rússia será, provavelmente, o exemplo mais óbvio, tendo-se expandido
naturalmente da pequena região de planícies que controlava até que o seu
centro abrangesse um espaço vasto, delimitado, essencialmente, pelas
montanhas e pelo mar — com apenas um ponto vulnerável, do outro lado da
Planície do Norte Europeu. Se os líderes russos queriam criar uma grande
nação, o que fizeram, tinham poucas alternativas quanto ao que fazer em
relação a esse ponto fraco. Da mesma forma, a Europa não tomou qualquer
decisão consciente no sentido de se transformar numa enorme área de
comércio; as redes fluviais longas e niveladas tornaram isso possível e, em
certa medida, inevitável, ao longo de milénios.
À medida que o século XXI avança, os fatores geográficos que ajudaram a
determinar a nossa História continuarão, em grande parte, a determinar o
nosso futuro: daqui a um século, a Rússia ainda olhará com ansiedade para
oeste, para o outro lado do que ainda será uma planície. A Índia e a China
continuarão separadas pelos Himalaias. Poderão acabar por entrar em
conflito entre si, mas, se isso acontecer, a geografia decidirá a natureza da
contenda: terão de desenvolver tecnologia que crie condições para uma
força militar gigantesca atravessar as montanhas, ou, se isso ainda não for
possível e nenhum dos lados quiser recorrer à guerra nuclear, de se enfrentar
no mar. A Florida continuará a vigiar as entradas e saídas no Golfo do
México. O que é fulcral é a localização do Golfo, e não quem o controla.
Consideremos um cenário extremo e improvável: imaginemos que uma
Florida maioritariamente hispânica se autonomizou dos EUA e se aliou a
Cuba e ao México. Isto alteraria apenas a dinâmica de quem controlaria o
Golfo, e não a importância da sua situação.
Claro que a geografia não dita o curso de todos os acontecimentos. As
grandes ideias e os grandes líderes fazem parte dos avanços e recuos da
História. Mas todos eles têm de operar dentro dos limites da geografia. Os
líderes do Bangladesh podem sonhar em impedir que as águas inundem a
Baía de Bengala, mas sabem que 80 por cento do país se encontra numa
planície alagadiça e não pode deslocar-se daí. Este foi um facto que o Rei
Canuto, líder escandinavo e inglês, provou aos seus lacaios sicofânticos, no
século XI, ao ordenar às ondas que recuassem: a Natureza, ou Deus, superam
qualquer homem. No Bangladesh, não se pode fazer mais do que reagir à
realidade da Natureza: construir mais defesas contra as cheias e esperar que
o modelo computorizado da subida das águas devida ao aquecimento global
seja exagerado.
As novas realidades geográficas, como as alterações climáticas, trazem
novas oportunidades e desafios. O aquecimento global poderá resultar na
deslocação de pessoas em massa. Se as Maldivas, e muitas outras ilhas,
estiverem realmente destinadas a desaparecer nas ondas, o impacto não
atingirá apenas aqueles que fugirem antes que seja demasiado tarde, mas
também os países para onde eles fugirem. Se as cheias no Bangladesh se
agravarem, o futuro do país e dos seus 160 milhões de habitantes será
terrível; se o nível do mar subir muito mais, esse país empobrecido poderá
ficar submerso. E, se a desertificação das terras logo abaixo do Sahel
continuar, guerras como a do Darfur, no Sudão (parcialmente causada por o
deserto ter conquistado terreno aos nómadas do Norte, que, por seu turno, se
moveram para sul, onde encontraram o povo Fur), irão intensificar-se e
espalhar-se.
As guerras da água são outro potencial problema. Ainda que emergissem
democracias estáveis no Médio Oriente nas próximas décadas, se o nível
das águas do Rio Murat, que brota na Turquia para depois alimentar o
Eufrates, descesse consideravelmente, as barragens que a Turquia teria de
construir para proteger a sua própria fonte de vida poderiam, facilmente,
despoletar guerras com a Síria e o Iraque, situados a jusante.
Olhando mais para diante, na senda da libertação da nossa prisão
geográfica e conquista do universo, as lutas políticas persistirão no espaço,
pelo menos no futuro previsível.
Foi em 1961 que um ser humano atravessou, pela primeira vez, a camada
superior da estratosfera, quando o cosmonauta soviético de 27 anos Yuri
Gagarin chegou ao espaço, a bordo do Volstok 1. O facto de o nome de um
russo dele contemporâneo, chamado Kalashnikov, ser bem mais conhecido,
leva-nos a uma triste reflexão sobre a Humanidade.
Gagarin, Buzz Aldrin e muitos outros são os descendentes de Marco Polo
e de Cristóvão Colombo, pioneiros que alargaram fronteiras e mudaram o
mundo de formas que não poderiam antever no seu tempo de vida. Não está
em questão se a mudança foi para melhor ou para pior; descobriram novas
oportunidades e novos espaços, onde as pessoas competiriam para tirar o
máximo proveito do que a Natureza aí colocara. Levará várias gerações,
mas, também no espaço, implantaremos as nossas bandeiras,
«conquistaremos» territórios, reivindicaremos terras e ultrapassaremos as
barreiras que o universo nos interpuser no caminho.
Existem, hoje, cerca de 1100 satélites operacionais no espaço, e, pelo
menos, 2000 não operacionais. Os russos e os americanos lançaram
aproximadamente 2400 do total, cerca de 100 vieram do Japão e um número
semelhante da China, seguidos por uma hoste de outros países com muito
menos. Abaixo destes, encontram-se as estações espaciais, onde, pela
primeira vez, as pessoas vivem e trabalham a título semipermanente, livres
das restrições da gravidade terrestre. Mais longe, pensa-se que, pelo menos,
cinco bandeiras americanas estejam ainda implantadas na superfície da Lua
e, mais longe ainda, muito mais longe, as nossas máquinas passaram já para
lá de Marte e Júpiter, tendo, algumas delas, chegado muito para além do que
podemos ver e compreender.
É tentador pensar nas nossas incursões no espaço como ligações da
Humanidade a um futuro coletivo e cooperante. Mas, antes disso, continuará
a existir competição pela supremacia no espaço sideral. Os satélites não
estão lá só para transmitir as imagens que vemos nas nossas televisões, ou
para prever o tempo: também espiam outros países, para ver quem se move,
onde e com quê. Além disso, a América e a China estão empenhadas em
desenvolver tecnologia laser, que pode ser usada como arma, e ambas
querem assegurar-se de que possuem um sistema de mísseis capaz de
funcionar no espaço e de neutralizar a versão da concorrência. Muitas das
nações tecnologicamente avançadas estão, agora, a fazer preparativos para o
caso de precisarem de combater no espaço.
Quando queremos chegar às estrelas, os desafios que nos esperam são tais
que talvez tenhamos de nos juntar para os alcançarmos: talvez devamos
viajar pelo universo, não como russos, americanos ou chineses, mas como
representantes da Humanidade. Mas, até agora, embora nos tenhamos
libertado das grilhetas da gravidade, estamos ainda aprisionados nas nossas
mentes, confinados pela nossa desconfiança do «outro», e daí a nossa
competição primitiva por recursos. Temos um longo caminho a percorrer.
AGRADECIMENTOS

M
uito obrigado a todos os que me ofereceram livremente o seu
tempo, conselhos e encorajamento.
Gostaria de agradecer à minha mulher, Joanna, pela sua
paciência e competência natural como revisora, a Pippa Crane e Jennie
Condell, da Elliott and Thompson, por darem forma e direção às minhas
divagações geográficas, e a Ollie Dewis pelo seu encorajamento e ideias.
Estou grato às seguintes pessoas, por terem analisado secções do livro
com o seu olhar experiente, e gostaria de reiterar que quaisquer erros aí
contidos são da minha inteira responsabilidade: James Richards (antigo
intérprete oficial de chinês para o governo do Reino Unido, Presidente da
Associação China), Professor James D. Boys (Investigador Sénior
Convidado no Kings College de Londres), David Slinn (antigo Embaixador
do Reino Unido na Coreia do Norte), Mestre Joel Richards (especialista na
América do Sul), Kelvin O’Shea (Sky News), Tim Miller (Sky News), Jaksa
Scekic (Reuters de Belgrado) e Aleksander Vasca (Reuters de Belgrado).
Agradeço também aos membros de governos em funções e aos
funcionários públicos que tiveram a gentileza de partilhar comigo os seus
conhecimentos especializados, mas que preferiram manter o anonimato.
B

TIM MARSHALL é considerado uma autoridade em Relações Internacionais


com mais de 25 anos de experiência jornalística. Foi editor de Diplomacia
na Sky News, tendo trabalhado anteriormente na BBC. Como jornalista,
esteve presente em mais de quarenta países e cobriu os conflitos na Croácia,
Bósnia, Macedónia, Kosovo, Afeganistão, Iraque, Líbano, Síria e Israel.
Escreveu para o The Times, The Guardian, The Independent, Daily
Telegraph e The Sunday Times, e o seu blogue Foreign Matters esteve na
lista dos escolhidos para o Orwell Prize de 2010.
É o fundador e editor de Assuntos Internos Marshall é do sítio web
TheWhatandtheWhy.com.
Mais informações em
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