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Ponham-se no lugar daqueles a quem chamam

vilões
06.01.2009, Margarida Santos Lopes
Este artigo foi planeado depois de ler no site do PÚBLICO centenas de
comentários às notícias sobre a guerra na Faixa de Gaza. Quisemos perceber a
razão de tanto ódio aos israelitas e/ou aos palestinianos. A muçulmana Raquel
Evita Saraswati e o judeu Roi Ben-Yehuda deixam aqui um conselho:
"Escolham o campo dos que defendem a paz, seja qual for o lado da 'fronteira'
em que vivem"

Um leitor identificado como "Fantasma Vermelho, Leninegrado", escreveu: "Quanto mais


rápido o sionismo assinar todas as suas sentenças e certidões de óbito, quanto melhor!
Massacre puro e duro. Do mais fiel nazismo que por aí habita. Holocausto aplicado pelos
descendentes das suas vítimas. A ironia da História? [...] Morte ao Sionismo! Viva a
Palestina!!!".

Um outro leitor, "Alexandre Pinto, Lisboa", deixou esta quase prece: "Israel, que Deus te
ilumine, não te falhe a pontaria e a mão pesada. Acaba de vez com a peçonha que habita as
tuas fronteiras. Não tenhas dó nem piedade. Avança com botas cardadas e não te preocupes
com os chamados alvos civis porque é onde se escondem os terroristas cobardes do
Hamas".
Porquê tanto ódio? Por que temos de escolher um dos lados? Para encontrar respostas,
batemos à porta de um judeu, Roi Ben-Yehuda (http://roiword.wordpress.com/), e de uma
muçulmana, Raquel Evita Saraswati (http://raquelevita.wordpress.com/), dois amigos que
vivem em Nova Iorque, reconhecidos como "agentes de coragem moral", porta-vozes de
uma nova geração - ele tem 32 anos e ela 25 - que já não olha para "o outro" como fonte de
todo o mal.
Licenciada em Relações Internacionais, Raquel Evita Saraswati define-se como "uma
académica e activista muçulmana reformista, cujos principais interesses são a religião e os
direitos humanos, a resolução de conflitos e a reconciliação da cultura com a soberania
individual". Nos Estados Unidos ou no Canadá, na Academia Naval norte-americana ou na
ONU, ela tem discursado sobre vários temas - crimes de honra, mulheres e o islão, a
situação no Darfur (Sudão) ou o tráfico de crianças no Centro e Sudeste da Ásia. Escreve
para jornais como o israelita Ha'aretz, tem sido entrevistada pela CNN e foi capa da revista
finlandesa The Freethinker. Na sua fotogaleria, podem vê-la, por exemplo, ao lado de
Barack Obama.
Apesar das "ameaças de morte e mutilação física", ela insiste em que "o islão obriga todos
os crentes a agir com justiça" e em que "a liberdade oferecida pela democracia onde
vivemos não deve ser desperdiçada". Em 2007, recebeu o prestigiado Courage Award da
fundação norte-americana Colin Higgins.
Roi Ben-Yehuda é um jornalista freelance licenciado em Artes na New School University e
com um mestrado em História Judaica no Jewish Theological Seminary, ambos em Nova
Iorque. Prepara agora um doutoramento em resolução de conflitos. Os seus artigos,
traduzidos para várias línguas, incluindo espanhol, francês, indonésio e urdu, aparecem
regularmente no Ha'aretz, Jewcy.com, France 24, The Turkish Daily Times, Al-Jazira,
Middle East Times, Middle-East Online, entre outros.
Apresentados que estão os dois, aqui está o que eles pensam, depois de uma troca de e-
mails:
Escolher um campo?
Diz Roi: "Ao contrário de alguns ideais românticos, o sofrimento não enobrece. Todas as
guerras e violência deixaram cicatrizes no nosso povo. Os nossos corações, como ovos em
água a ferver, endureceram. Não é que a israelitas e palestinianos falte, intrinsecamente,
compaixão; é apenas a realidade no terreno que impossibilita o reconhecimento da
humanidade de um e de outro".
"A minha amizade com Raquel, e com muitos outros muçulmanos, continua a renovar a
minha fé na possibilidade de reconciliação e coexistência. Se a experiência cria inimizade,
também cria possibilidade. Quanto mais positivo for o contacto que israelitas/palestinianos
e judeus/muçulmanos tiverem uns com os outros, mais próximos ficaremos da paz."
"Quanto à ideia de que temos de adoptar ou a perspectiva palestiniana ou a perspectiva
israelita, considero que isso é uma razoável mas infeliz resposta ao conflito. Em tempos de
crise, quando as vidas e identidades das pessoas estão sob ameaça, é compreensível que a
sua cosmopolita visão mundial (se alguma vez existiu) desabe sobre si própria. Mas temos
de reconhecer que ao criar dicotomias positivas e negativas estamos frequentemente a
contribuir para o problema. Se escolherem campos, escolham entre os que são a favor da
paz, seja qual for o lado da 'fronteira' em que eles vivam."
Diz Raquel Evita: "Creio que, por vezes, o ódio é a única maneira que as pessoas têm de
canalizar a sua dor, a única maneira em que os seres humanos processam o sofrimento. Não
acredito que as pessoas queiram odiar - no entanto, quando um jovem palestiniano não
conhece nada mais que um território sem Estado, nada mais a não ser a vergonha de um
checkpoint, nada mais a não ser a visão de corpos ensanguentados; e quando um jovem
israelita vê numa viagem de autocarro a morte iminente, vê uma criança da sua idade
enrolar munições à cintura para assassinar e destruir em nome de Deus - a razão está
perdida. A razão, que deveria levar um coração humano à compaixão e à reconciliação, à
misericórdia e à justiça, não existe."
"Nas palavras do escritor Salman Rushdie: 'O mundo é incompatível, nunca se esqueçam...
fantasmas, nazis, santos, todos vivem ao mesmo tempo; num só lugar, felicidade venturosa,
enquanto ao fundo da rua é o inferno'. Nenhum povo sabe melhor isto do que os povos de
Israel-Palestina. Lutam pela paz, pela simples decência - e, no entanto, o mal da destruição
está sempre presente."
"A minha amizade com Roi é uma das mais importantes relações da minha vida. Nele eu
vejo esperança para a humanidade: um homem cuja vida não tem sido poupada ao horror
da violência mas cujo coração tem recusado a toxicidade do ódio. Tantos de nós sabemos
que pessoas assim existem no 'outro lado' - falamos de anónimos 'cidadãos palestinianos' e
'cidadãos israelitas', contudo, este conhecimento abstracto não é suficiente. Os nossos
media e políticos demonizam os nossos congéneres, e nós seguimos, demasiadas vezes, esta
óbvia manipulação de mentes e espíritos. O que nós, a nova geração de muçulmanos e
judeus que apela a paz, devemos fazer é isto: dialogar uns com os outros. As nossas mentes
não devem ser campos de batalha calcados por velhos pensamentos e um ódio persistente.
Devemos rejeitar a ideia simplista de que a identidade religiosa ou a etnicidade determina o
nosso 'campo'. Podemos encontrar-nos uns com os outros - até virtualmente - e reinventar
esta região. Para além do desejo de reconciliação, podemos e devemos, agir pela paz."
Viciados na violência?
Diz Roi: "Lamento desapontar alguns dos seus leitores, mas israelitas e palestinianos,
líderes incluídos, não acordam de manhã e dizem: 'Preciso da minha dose de violência'. Isso
faria deles monstros e não humanos. A maioria de israelitas e palestinianos envolve-se na
violência devido à percepção de que estão sob ameaça e na convicção de que agem em
autodefesa e pela causa da justiça. Não é, portanto, um impulso sádico para provocar
derramamento de sangue".
"Ao mesmo tempo, é óbvio que inúmeros palestinianos e israelitas têm uma doentia
confiança na eficácia da violência. Temos depositado demasiada fé no que chamamos de
algoritmo da violência: a noção de que a força é o método opcional de resolver conflitos.
Esta fé fez com que muitos, tragicamente, rejeitassem formas pacíficas de solucionar o
conflito.
"Embora a violência em Gaza possa, a curto prazo, resultar numa trégua temporária, nunca
acabará com este conflito. Como constatou o músico norte-americano Michael Franti,
'podem bombardear o mundo e deixá-lo em pedaços, mas não podem bombardeá-lo e
conseguir a paz'. O verdadeiro desafio que Israel-Palestina enfrentam hoje é como
transformar a fé das pessoas, do algoritmo da violência para o algoritmo da paz. A minha
missão, ao escrever, é encontrar meios criativos para levar a cabo esta transformação."
Diz Raquel Evita: "Não tenho a certeza se os líderes israelitas e palestinianos estão viciados
na violência, mas creio que são incapazes de olhar para além da violência como forma de
solucionar o conflito. Quando as partes se sentem atacadas - como ambas legitimamente se
sentem - a violência parece, frequentemente, a única resposta viável. Tem sido esse o caso
desde o aparecimento da Humanidade - e as pessoas de todas as ideologias têm, de uma
maneira ou de outra, usado a violência quando têm a percepção de estar em risco".
"Nestas circunstâncias, a diplomacia não tem sido mais do que um interregno entre actos
de violência. Mesmo as negociações supostamente sérias têm sido teatrais na sua
apresentação. As pessoas que vivem no terreno - por vezes literalmente! - não conseguem
olhar de novo para inimigos que apertam as mãos do outro lado do mundo e,
instantaneamente, acreditarem que o seu vizinho não os vai matar."
"O que precisamos é de uma mudança de ideologia: ambas as partes se apresentam como
vítimas e, de facto, ambas as partes são vítimas, até certo ponto, É injusto dizer que a
Palestina 'quer' ser vista como vítima, quando é o argumento de que é uma vítima que levou
Israel a atacar Gaza. Ambas as partes são lar de vítimas e de vitimizados; de poderosos e de
impotentes.
O que fazer?
Diz Roi: "O meu conselho a todos é reforçar as capacidades de empatia. O Presidente-eleito
[Barack] Obama estava certo quando, numa visita a Israel, afirmou: 'Se alguém lançasse
rockets sobre a minha casa onde as minhas filhas dormem à noite eu faria tudo ao meu
alcance para impedir isso. E espero que os israelitas façam o mesmo'. Isto é o que o mundo
precisa de fazer antes de chamar a Israel 'um cancro entre as nações'. Desafio os leitores do
seu jornal a interrogarem-se sobre quão contidos seriam se uma organização político-
militar em Espanha bombardeasse as suas cidades com mísseis numa base diária. Quão
tolerantes seriam se as suas povoações ficassem paralisadas com medo?"
"Ao mesmo tempo, também desafio os israelitas a fazer o mesmo [raciocínio] com os
palestinianos. Imaginar o que é estar sob ocupação ou viver sitiado. Olharem para as
imagens dos mortos e feridos, fixar os rostos dos oprimidos e imaginarem as suas próprias
famílias. Imaginarem que essas pessoas, tal como eles, têm planos, que também querem
viver e ser livres. Faria desse exercício mental parte do currículo escolar em Israel."
"O meu conselho a todos é que se ponham no lugar daqueles a quem chamam vilões. Fazê-
lo poderá não causar o mesmo tipo de legítima indignação mas dificultará muito mais que
se desumanize e se destrua, física e culturalmente, o outro. A batalha para Israel-Palestina
não é o cenário do bem versus mal, e tratá-la assim não ajuda ninguém."
"Tenho vivido em Israel metade da minha vida e aqui regresso frequentemente. A minha
posição política amadureceu e solidificou-se em Israel e não creio que o facto de hoje viver
aqui [em Nova Iorque] mudou alguma coisa a esse respeito. Se eu fosse um palestiniano a
viver na Palestina, gostaria de pensar que seria parte da resposta não violenta à ocupação.
Sei que é mais fácil dizer do que fazer, mas é assim que eu gostaria de me ver a mim próprio
como palestiniano."
Diz Raquel Evita: "O bem-estar da humanidade depende da nossa capacidade de comunicar
através de barreiras auto-impostas de identidade religiosa, por isso, tenho de rejeitar a ideia
de falar apenas para um 'campo'. Esta falsa dicotomia é a essência do conflito. Eu sou uma
muçulmana americana que nunca esteve em Israel-Palestina. No entanto, as vidas em
Israel-Palestina estão ligadas à minha - não apenas porque a minha linhagem tem o mesmo
sangue deles - mas também porque o bem-estar de palestinianos, israelitas e dos seres
humanos em todo o mundo - tem impacto no que acontece naquela região. É nossa
responsabilidade colectiva fazer a mudança positiva".
"Como mulher, tenho sofrido o tipo de violência que só o mais vil e cruel dos homens pode
perpetrar - e, no entanto, não odeio os homens. Tenho visto morte. Tenho visto doenças e
desespero - e, no entanto, não culpo Deus. Não posso dizer que conheço a vida dos
palestinianos e dos israelitas, mas sei que somos maiores do que a soma da nossa ira e as
marcas da nossa dor. O mundo faria bem em intervir de forma material - economia,
segurança, diplomacia - mas também devemos fazer ouvir as vozes dos palestinianos e dos
israelitas que sinceramente apelam à paz."
"Imagens de ódio só servem os nossos objectivos mais destrutivos - um apaziguamento
masoquista do pior de nós próprios. É muito mais desconfortável ver a verdadeira
humanidade do inimigo. Apelo a todos que assumam a sua responsabilidade pessoal em
impulsionar a nova geração de pacifistas. Que não sejamos apenas ouvidos mas que nos
levem a sério. Depende de nós porque a velha guarda tem sido inútil. As vidas dos nossos
filhos valem muito mais do que aquilo que hoje estamos a fazer uns aos outros."

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